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O emergente direito administrativo global

27/12/2021 às 15:15
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Os regimes regulatórios internacionais atualmente se emaranham com leis nacionais em diversos assuntos como comércio global, saúde, meio ambiente, direitos humanos, investimentos, finanças, padronização bancária etc.

A globalização nasceu como um fenômeno com propósitos econômicos, visando, especialmente, à implementação de um mercado global, impregnado pela lógica capitalista. Nesse sentido, a definição extraída do Dicionário da Real Academia Espanhola indica tratar-se de um processo por meio do qual as economias e os mercados, a partir do desenvolvimento das tecnologias de comunicação, adquiririam uma dimensão mundial, passando a depender cada vez mais dos mercados externos e menos da ação regulatória dos governos.[1]

Com o passar do tempo, a globalização alcançou dimensões variadas. Moreira Neto, por exemplo, refere-se à existência de três compreensões para esse fenômeno: econômica, social e política, estando a face jurídica inserida nesta última dimensão.[2] Por sua vez, Arnaud afirma que o próprio direito está diretamente implicado pelo processo de globalização.[3] Sabino Cassese, mencionado por Moreira Neto, vai além ao afirmar que a globalização é preponderantemente jurídica, reforçando assim a necessidade de estudo do assunto pelo direito.[4]

De acordo com Arnaud, a globalização reflete um novo paradigma caracterizado pelo preenchimento das seguintes condições: alteração nos modelos de produção, livre fluxo de investimentos, incentivo ao estabelecimento de acordos comerciais entre as nações, formação de blocos econômicos regionais, diminuição do papel do Estado, hegemonia de conceitos neoliberais, democratização, proteção dos direitos humanos e surgimento de atores supranacionais e transnacionais.[5]

De fato, a grande quantidade de regimes regulatórios globais atualmente existentes produz enormes dificuldades para os juristas, que passaram a enfrentar diversos temas bastante específicos e técnicos, como comércio global, saúde, meio ambiente, direitos humanos investimentos, finanças, padronização bancárias, etc. O desafio do direito, portanto, passou a ser o de compreender essa realidade fática e jurídica, de forma a contribuir para a melhoria da criação e aplicação (efetividade social) do sistema normativo.

Nessa esteira de pensamento, deve-se reconhecer também o inegável crescimento das grandes organizações econômicas, as denominadas empresas transnacionais. Esse incremento representa uma nova forma de poder privado, de caráter difuso e supraestatal. Com isso, produziu-se uma crise do poder e da autoridade estatal (soberania).

É nesse contexto de governança global, caracterizado por uma miríade de sistemas regulatórios e pelo enfraquecimento do poder do Estado, que se constatou a insuficiência do sistema internacional para regular uma imensa quantidade de interações entre protagonistas públicos, privados e mistos.

Abriu-se, assim, o espaço para o surgimento do Direito Administrativo Global (DAG) como uma tentativa de introduzir mais segurança na órbita administrativa. Trata-se de um direito em sentido amplo que não encontra similares entre os tradicionais ramos do Direito. É administrativo, devido às atividades que academicamente estuda e, na prática, pretende regular. É também global, na medida em que não se limita aos Estados Nacionais. Possui características peculiares de inegável caráter público, como a boa administração, a transparência, a participação, a motivação e o controle (accountability global).[6]

Dessa forma, o DAG pode ser definido, com base nas lições de Kingsbury, Krisch e Stewart[7], como o conjunto de mecanismos, princípios, práticas e compreensões sociais de apoio que promovem ou de alguma forma afetam a accountability dos órgãos administrativos globais.[8] Para Moreira Neto, é o ramo jurídico destinado à composição de conflitos e à obtenção de consensos normativos em um ambiente marcado pelo surgimento de diversificadas assimetrias e pela multiplicação de novos centros de poder não estatais, em regra, criados pela vontade convergente das partes interessadas em regrar, para além das fronteiras nacionais, conflitos em campos anômicos ou insuficientemente regrados.[9]

No espaço administrativo global, convivem, de um lado, diversos tipos distintos de instituições administrativas reguladoras e, de outro, vários modelos de entidades que são objeto de regulamentação: Estados, indivíduos, empresas e organizações não governamentais (ONGs). Como exemplo de regimes reguladores, merecem destaque, na área econômica, as redes e comitês da Organização OCDE, a administração e os comitês da Organização Mundial do Comercio (OMC), os comitês do G-7/G-8, regulamentação financeira realizada, entre outros, pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Comitê da Basiléia e pelo Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI).

Nesse contexto, Vásquez aponta as seguintes características do DAG: a) interrelação entre regulação interna e regulação internacional; b) inclusão de uma grande variedade de acordos institucionais e informais com participação destacada, muitas vezes, de atores não estatais; c) fundamentação em práticas e fontes normativas não plenamente abarcadas dentro das conceções standards do direito internacional. Esta última característica, segundo a autora, é o principal motivo para o DAG adotar procedimentos, instituições e formas de direito administrativo doméstico.[10]

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Os impactos do DAG sobre o direito administrativo das nações são inegáveis. Vejam-se alguns exemplos.

Para garantir que os órgãos reguladores nacionais atuassem como participantes do regime global, preservando os interesses de outros Estados, das empresas e dos indivíduos sujeitos à regulamentação, as agências intergovernamentais passaram a editar normas globais para gerir não somente o conteúdo da regulamentação nacional, mas também os procedimentos seguidos pelos órgãos reguladores locais ao aplicar uma norma global. Por exemplo, com o objetivo de mais bem alcançar as metas pretendidas pela regulamentação global das telecomunicações, regras da OMC determinaram mudanças em procedimentos administrativos nacionais desse setor, a fim de introduzir o modelo de agências reguladoras independentes.[11]

De acordo com Kingsbury, Krisch e Stewart, outros exemplos relevantes podem ser extraídos da regulação feita pelas instituições de Bretton Woods, especialmente em relação aos países em desenvolvimento. Como condição para a concessão de ajuda financeira a esses países, o Banco Mundial exigiu a observância de normas para a organização da administração nacional, a exemplo da adoção de medidas de combate à corrupção e de instrumentos de transparência. Esses autores afirmam que, pelo fato de muitos países dependerem desse tipo de financiamento externo, essas normas do Banco Mundial já modificaram ou estão na iminência de transformar a administração nacional em grande parte do planeta.[12]

Em outra seara de inegável influência do DAG sobre o direito administrativo local, observa-se que órgãos regionais e globais atuam como revisores dos procedimentos adotados por Estados no relevante campo dos direitos humanos. Como exemplo, Kingsbury, Krisch e Stewart mencionam o caso do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que analisa a compatibilidade dos procedimentos adotados no plano nacional com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.[13] Nessa mesma vertente, Balbín enfatiza ser positiva a influência do DAG sobre os direitos humanos na busca de um direito administrativo local mais igualitário sob o paradigma do Estado social e democrático de direito.[14]

Em conclusão, pode-se, então, afirmar que o DAG se fundamenta em mecanismos, princípios, práticas e ajustes sociais com o fim de promover a accountability dos órgãos globais administrativos. Em especial, esse ramo jurídico emergente busca assegurar que estes a) cumpram standards adequados de boa administração, legalidade, transparência e participação; b) tomem decisões fundamentadas; e c) avaliem, de forma efetiva, as normas e decisões que aprovam. Assim, de acordo com a doutrina de Vásquez, um dos maiores desafios do direito administrativo nacional será continuar a interação com o DAG em um processo constante e sustentável de mútua influência que, apesar de enfrentar momentos de lentidão, não deverá sofrer uma reversão radical.[15]


  1. GLOBALIZAÇÃO. In: Dicionário da Real Academia Espanhola. Disponível em: < https://dle.rae.es/globalizaci%C3%B3n> Acesso em 21 set. 2021.
  2. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Direito Administrativo no século XXI. Belo Horizonte, Fórum, 2018, p. 241.
  3. ARNAUD, André-Jean. O direito entre a modernidade e a globalização. Lições de filosofia do direito e do Estado. Tradução: Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 3.
  4. MOREIRA NETO, op. cit., p. 241.
  5. ARNAUD, op. cit., p. 12-14.
  6. VÁSQUEZ, Cristina. O Direito Administrativo em tempos de ruptura. Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE). 2020. Disponível em <https://kope.sambaplay.tv/colecoes/a-reinvencao-do-direito-administrativo-6205/aula-1-o-direito-administrativo-em-tempos-de-ruptura-por-cristina-vasquez-54624>. Acesso em 21 set. 2021.
  7. Pesquisadores da Universidade de Nova Iorque, responsáveis pelas primeiras experiências no estudo sistemático do DAG.
  8. KINGSBURY, Benedict, KRISCH, Nico e STEWART, Richard B. A emergência de um direito administrativo global. Ensaios sobre o direito administrativo global e sua aplicação no Brasil [recurso eletrônico] / organizadora Michelle Ratton Sanchez Badin. São Paulo, FGV Direito SP, 2016, p. 11-88.
  9. MOREIRA NETO, op. cit., p. 285.
  10. VÁSQUEZ, loc. cit.
  11. KINGSBURY, KRISCH, e STEWART. op. cit., p. 37.
  12. KINGSBURY, KRISCH, e STEWART. op. cit., p. 37.
  13. Ibidem.
  14. BALBÍN, Carlos. Fuentes y Principios del Derecho Administrativo [Entrevista concedida a Taller de Investigación en Derecho Administrativo - TIDA]. Facultad de Derecho y Ciencia Política de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos. 2019. Disponível em < https://tidaunmsm.com/articulos/fuentes-principios-derecho-administrativo-entrevista-carlos-balbin> Acesso em 21 set. 2021.
  15. VÁSQUEZ, loc. cit.
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Sobre o autor
Antônio Marcos de Paulo

Advogado, auditor de controle externo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULO, Antônio Marcos. O emergente direito administrativo global. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6753, 27 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95580. Acesso em: 27 abr. 2024.

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