Palavras chave: ICMS. Exclusão da base de cálculo. PIS-COFINS. Regime tributário.
Tudo começou com um inocente pedido de exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS. É importante ter em mente que o pedido inaugural se refere à “exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições sociais”, e não à exclusão do ICMS destacado para fins contábeis-fiscais de crédito/débito, a fim de assegurar o princípio não cumulativo do imposto.
A questão foi parar no STF, no bojo do RE nº 240.785-MG, relatado pelo insigne Ministro Marco Aurélio de Mello. Depois de decidido pelo conhecimento do recurso por entender presente matéria constitucional – conceito de faturamento – no exame do mérito seis votos foram proferidos pela aceitação da tese, sob o fundamento de que o ICMS não configura mercadoria susceptível de faturamento, que é o fato gerador do PIS/COFINS.
Na época, vigia a legislação que mandava excluir o valor do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS nas operações de substituição tributária (inciso I, do § 2º, do art. 3º da Lei nº 9.718/1998). A contrário sensu, inclui-se o valor do ICMS nas operações regulares, sem substituição tributária.
Por essa razão, a União ingressou com a Adecon que tomou o nº 18-5, para ver declarada a constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS nas operações regulares.
Em razão da preferência no julgamento de ações de natureza coletiva, o julgamento do RE nº 240.785-MG foi sobrestado por 180 dias, por 9 votos contra 2. Vencido o prazo, sem que houvesse o julgamento da Adecon, aquele prazo foi sucessivamente prorrogado por mais duas vezes, até que o inciso I, do § 2º, do art. 3º da Lei nº 9.718/1998, que estava atrapalhando a tese da exclusão, foi sub-repticiamente revogado. Tão sutil foi a forma de sepultamento daquela norma que quase ninguém percebeu a sua revogação. Assim, não se pôde sentir o gosto da vitória!
O RE nº 240.785-MG foi julgado e, por maioria de 9 votos contra 2, foi decidido pela impropriedade de tomar o valor de determinado tributo na base de cálculo de outro tributo (DJe 16-12-2014).
Na verdade, no tributo indireto (PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI) vigora o regime de tributação por dentro que consiste em fazer o tributo incidir sobre si próprio.
De fato, dispõe o art. 13 da Lei Complementar nº 87/1996 que rege nacionalmente o ICMS:
“Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
...
§ 1o Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo:
I – o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”.
A constitucionalidade desse regime de tributação foi confirmada pelo STF:
“Constitucional. Tributário. Base de cálculo do ICMS: inclusão no valor da operação ou da prestação de serviço somado ao próprio tributo. Constitucionalidade. Recurso desprovido” (RE no 212.209, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Nelson Jobim, DJ de 14-2-2003).
Posteriormente, a EC nº 33/2001 acrescentou a letra i ao inciso XII, do § 2º, do art. 155 da CF para consignar que cabe à Lei Complementar: “i) fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.
Na vigência dessa EC no 33/01 o STF decidiu pela constitucionalidade da incidência do ICMS sobre si próprio, nos autos do Recurso Extraordinário julgado sob o rito de Repercussão Geral, conforme ementa abaixo:
“1. Recurso extraordinário. Repercussão Geral.
2. Taxa Selic. Incidência para ...
3. ICMS. Inclusão do montante do tributo em sua própria base de cálculo. Constitucionalidade. Precedentes. A base de cálculo do ICMS, definida como o valor da operação de circulação de mercadorias (art. 155, II, da CF/1988, c/c arts. 2o, I, e 8o, I, da LC 87/1996), inclui o próprio montante do ICMS incidente, pois ele faz parte da importância paga pelo comprador e recebida pelo vendedor na operação. A Emenda Constitucional no 33, de 2001, inseriu a alínea “i” no inciso XII do § 2o do art. 155 da Constituição Federal, para fazer constar que cabe à lei complementar “fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”. Ora, se o texto dispõe que o ICMS deve ser calculado com o montante do imposto inserido em sua própria base de cálculo também na importação de bens, naturalmente a interpretação que há de ser feita é que o imposto já era calculado dessa forma em relação às operações internas. Com a alteração constitucional a Lei Complementar ficou autorizada a dar tratamento isonômico na determinação da base de cálculo entre as operações ou prestações internas com as importações do exterior, de modo que o ICMS será calculado “por dentro” em ambos os casos.
4. Multa moratória. Patamar de 20%. Razoabilidade. Inexistência de ...
5. Recurso extraordinário a que se nega provimento” (RE no 582.461-RG/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 18-8-2011).
Estranha é a tese defendida pela Corte Suprema no caso da exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições sociais. O valor do tributo pode incidir sobre si próprio, mas, não pode compor a base de cálculo de outro tributo. Fosse o contrário até seria mais fácil de compreender.
Pois bem, a tese da exclusão veio a ser sacramentada com efeito erga omnes no bojo do RE nº 574.706/PR, Relatora Ministra Cármen Lúcia, que reconheceu a existência de repercussão geral e, por 7 votos contra 4, decidiu que “o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da COFINS.
Transcrevamos a ementa para melhor exame:
“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. EXCLUSÃO DO ICMS NA BASE DE CÁLCULO DO PIS E COFINS. DEFINIÇÃO DE FATURAMENTO. APURAÇÃO ESCRITURAL DO ICMS E REGIME DE NÃO CUMULATIVIDADE. RECURSO PROVIDO.
1. Inviável a apuração do ICMS tomando-se cada mercadoria ou serviço e a correspondente cadeia, adota-se o sistema de apuração contábil. O montante de ICMS a recolher é apurado mês a mês, considerando-se o total de créditos decorrentes de aquisições e o total de débitos gerados nas saídas de mercadorias ou serviços: análise contábil ou escritural do ICMS.
2. A análise jurídica do princípio da não cumulatividade aplicado ao ICMS há de atentar ao disposto no art. 155, § 2º, inc. I, da Constituição da República, cumprindo-se o princípio da não cumulatividade a cada operação.
3. O regime da não cumulatividade impõe concluir, conquanto se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, não se incluir todo ele na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal. O ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da COFINS.
4. Se o art. 3º, § 2º, inc. I, in fine, da Lei n. 9.718/1998 excluiu da base de cálculo daquelas contribuições sociais o ICMS transferido integralmente para os Estados, deve ser enfatizado que não há como se excluir a transferência parcial decorrente do regime de não cumulatividade em determinado momento da dinâmica das operações.
5. Recurso provido para excluir o ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS.”
(RE nº 574.706/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, .J. em 15-03-2017, DJe 17-3-2017).
As abordagens dos itens 1 e 2 da ementa não têm pertinência com o pagamento do PIS/COFINS sem a inclusão do ICMS. A impugnação do contribuinte é dirigida contra o fisco federal e não contra o fisco estadual. Não interessa como é pago o ICMS, mas o ICMS contido no preço de cada mercadoria que segundo o próprio STF deve ser previamente excluído da base de cálculo do PIS/COFINS, para apuração do montante devido dessas contribuições sociais.
Seguiram-se as sucessivos pedidos de exclusões do ISS, da CSLL, do valor da própria contribuição social. Não se conhece até hoje o critério jurídico para excluir um e incluir outro tributo. O certo é que o RE nº 574.706/PR desencadeou uma cadeia de exclusões que parece não ter fim. Dia chegará em que o valor do PIS/COFINS será excluído da base de cálculo do ICMS, adotando-se a lógica do raciocínio utilizado nos julgamentos dos RREE nº 240.785/MG e 574.706/PR.
Excluir o ICMS contido na base de cálculo do PIS/COFINS não é uma tarefa fácil, pois, envolve conhecimentos extrajurídicos, efetuando-se o cálculo do imposto por dentro, para encontrar o exato valor do imposto embutido no preço, vale dizer, na base de cálculo das contribuições sociais.
Por isso, a Corte Suprema decidiu pela exclusão, mas não apontou o critério para fazer essa exclusão.
Daí decorre a interposição de embargos declaratórios pela União com duplo objetivo: definir o ICMS a ser excluído, bem como modular os efeitos da decisão.
Decorridos mais de quatro anos, finalmente, o STF, por maioria de votos, julgou esses embargos declaratórios para assentar a tese de que o valor do ICMS a ser deduzido da base de cálculo do PIS/COFINS é aquele destacado em cada nota fiscal, e que a restituição do indébito far-se-ia a partir de 15-3-2017, data de julgamento do RE nº 574.706/PR, ressalvadas as ações protocoladas até a data do julgamento referido (Embargos declaratórios no RE nº 574.706/PR, j.15-3-2021, DJe 12-8-2021).
A classe empresarial mobilizou, ao longo dos anos, uma multidão de especialistas em direito tributário para lograr a vitória conhecida como “tese do século” envolvendo a bagatela de R$258,3 bilhões. Sustentou-se que se impunha a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, sob a singular argumentação de que o ICMS não é mercadoria passível de faturamento que é o fato gerador das contribuições sociais referidas.
Só que dentro dessa linha de raciocínio a CSLL, que não é uma receita, deveria ser excluída da base de cálculo do imposto de renda. Mas, nesse caso, o STF disse não. Da mesma forma disse não em relação da exclusão do ICMS da base de cálculo da CPRB que tem o mesmo fato regador do PIS/COFINS. Determinou-se, também, a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS/COFINS, mas, negou essa exclusão da base de cálculo da CPRB, sob o fundamento de que não há previsão legal de exclusão, como se nas outras hipóteses houvesse essa previsão normativa. Como vimos, no caso do ICMS havia previsão em sentido contrário, mandando incluir o imposto na base de cálculo do PIS/COFINS em operações regulares. Difícil de entender esses tratamentos díspares. No mínimo, revela falta de critério jurídico nessas fantásticas decisões conflitantes, comprometendo o princípio maior da segurança jurídica.
Ao que se depreende do pedido formulado pelo contribuinte na inaugural, o valor do ICMS a ser excluído é aquele embutido no preço da mercadoria, vale dizer, na base de cálculo do PIS/COFINS que representa um valor de R$14,75 para cada mercadoria no valor de R$100,00, e não R$18,00 que representa a aplicação da alíquota de 18% sobre o preço que já contém o valor do ICMS embutido. O pedido inicial não pede a “exclusão do valor destacado na nota fiscal” que é outra coisa bem diferente.
Outrossim, essa decisão de ordenar a restituição do indébito tributário a empresários padece dos vícios da contradição.
Como é sabido, no Brasil todo tributo indireto (PIS, COFINS, IPI, ICMS, ISS) tem o seu respectivo valor embutido no preço pago pelo consumidor final. Daí a regra do art. 166 do CTN que condiciona a restituição de tributo indireto à prova de que o contribuinte suportou o ônus do encargo tributário ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la. Porém, essa regra moralizadora foi simplesmente ignorada pela Corte Suprema que ordenou a restituição aos empresários como se estes tivessem arcado com o ônus do encargo tributário. Os empresários receberão de volta aquilo que eles não pagaram. Fantástico! São R$258,3 bilhões que saem dos cofres da União que deverão ser repostos por consumidores finais, de uma forma ou outra, pois, o governo não tem máquina de produzir riquezas, mas, apenas a de promover despesas. São decisões da espécie que somados aos incentivos fiscais casuísticos que levam o governo a agravar o nível de imposição tributária, sem a contraprestação de serviços públicos adequados.
Outra contradição gritante resulta da comparação com o acórdão proferido em sede de Habeas Corpus, quando se decidiu pela criminalização da conduta do devedor contumaz do ICMS, equiparando essa conduta àquela descrita no art. 2º, incido II da Lei nº 8.137/1990 (deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos).
Pois bem, essa construção pretoriana, que procedeu a uma equiparação atípica, parte do pressuposto de que foi o consumidor final quem pagou o valor do imposto embutido no preço e que o comerciante deixou de repassar ao Tesouro, dele se apropriando. Da mesma forma, é o consumidor final quem paga o PIS/COFINS embutido no preço. O devedor contumaz do PIS/COFINS, igualmente, deveria ser punido criminalmente. Vale a pena lembrar que durante o regime militar, o governo criminalizou a conduta do devedor contumaz do IPI, por meio de um Decreto-lei. Todavia, o Supremo Tribunal Federal invalidou o referido diploma legal desqualificando a conduta criminalizada, porque na tributação por dentro, o preço, no qual se acha embutido o valor do imposto indireto, as despesas com a mão de obra, os insumos e a margem de lucro, pertence integralmente ao comerciante .
A essa altura, pergunta-se, quem é o legítimo destinatário da restituição de tributo indireto? Se entender que é o comerciante significa que o valor do tributo embutido no preço lhe pertence e, portanto, incogitável a figura de apropriação indébita a que alude o inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/1990. Ninguém se apropria de algo que lhe pertence! Se entender ao contrário, o empresário não estará legitimado a receber a restituição do indébito.
Na realidade, a tese da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS importa em alterar o regime tributário vigente, de tributação por dentro para tributação por fora, que vigora nos Estados Unidos, Japão e outros países adiantados, aonde se separa o preço pertencente ao comerciante do imposto destacado pertencente ao fisco. Nesse regime tudo é transparente, possibilitando a responsabilização tributária e penal imediata do comerciante que deixar de recolher no prazo legal o imposto destacado na nota fiscal.
Contudo, tudo é diferente no Brasil. Aqui o valor destacado na nota fiscal é meramente para efeitos contábeis-fiscais de crédito/débito, como prescrito está na norma do art. 13 da Lei Complementar nº 87/1996 de início citado. O valor do imposto está incluído no preço das mercadorias e dos serviços, para que o consumidor não possa saber o valor do tributo que está pagando em cada aquisição de mercadorias, ou contratação de serviços, na contramão do princípio da transparência tributária previsto no § 5º, do art. 150 da CF.
Procurando remediar a contrariedade ao princípio retrorreferido, sancionou-se a Lei que obriga os contribuintes a destacar na nota fiscal o valor provável de cada tributo em espécie. É mais uma loucura legislativa, uma burocracia inútil para tornar mais complexo o cumprimento das obrigações acessórias, pois, esses valores são necessariamente aleatórios! Como calcular, por exemplo, o valor do imposto de renda devido em cada operação de venda? Por que não se adota o regime de tributação por fora? Por que é muito simples? Por que é muito transparente? Por que torna fácil a condenação criminal?
Como me disse um Deputado na Comissão do Pacto Federativo onde estive participando de uma audiência pública: “a sua proposta é boa, mas é muito simples; é muito lógica; não vai passar”.