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Impeachment aplicável ao Presidente da República

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25/03/2007 às 00:00
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Capítulo 2

O PROCESSO DE IMPEACHMENT BRASILEIRO

Para que o trabalho ora desenvolvido possa trazer ao leitor uma absorção mais facilitada e completa, é necessário que, antes de adentrar-se à matéria e ao procedimento do impeachment propriamente dito, fazer-se uma breve introdução de aspectos que colaborarão com a didática aqui perseguida. Não se pretende buscar os mais propedêuticos ensinamentos jurídicos para chegar-se ao objetivo aqui almejado, contudo, não é exagero desenvolver, por mais breve que seja, uma explanação da diferença entre crimes comuns e crimes de responsabilidade, e, após, trazer uma polêmica que neste trabalho não poderia deixar de ser exposta, qual seja, a discussão sobre a natureza jurídica do impeachment. A partir de então, será dada uma explicação doutrinária sobre cada um dos crimes de responsabilidade apontados na CF/88.

2.1 CRIMES DE RESPONSABILIDADE X CRIMES COMUNS

Por maiores que sejam as discrepâncias e evoluções sofridas pelo impeachment ao longo dos períodos e fases históricas, bem como das diferentes formas de se tratar o assunto impeachment pelo mundo, o tema do crime de responsabilidade é ponto comum em todas essas fases e em todos os lugares por onde se estudou dito instituto. Desta feita, antes de esmiuçar o processo de impeachment em seus aspectos materiais e processuais, mister se faz retratar a distinção existente entre os crimes ditos de responsabilidade e os crimes comuns.

Comparato, em análise sobre o caso Collor [104], já antecipa sobre a necessidade da distinção entre um e outro, que inclusive foi fundamento para tentativa de defesa do ex-presidente Collor, quando do início das acusações por ele sofridas, lê-se:

Como a principal razão do impeachment era que o presidente recebera, enquanto no cargo, grandes somas de seu ex-tesoureiro de campanha e que esses recursos provinham de ato de extorsão, Collor argumentou que seus acusadores teriam primeiro de provar ser ele culpado de suborno ou cumplicidade com os atos de extorsão cometidos por seu ex- tesoureiro. Em resposta a essa contestação, os acusadores frisaram que o sistema constitucional brasileiro sempre fez uma distinção muito clara entre os crimes comuns e crimes passíveis de impeachment [105].

Brossard [106] chama a atenção no sentido de que os crimes de responsabilidade são estranhos à esfera criminal. Isto se dá porque, conforme ensina Comparato, em relação aos crimes comuns e os crimes de responsabilidade, "os primeiros estão devidamente definidos no Código Penal; os últimos são definidos por lei especial [107]".

O penalista E. Magalhães Noronha define crime:

(...) crime é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo bem jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem jurídico, pois toda norma penal tem por finalidade sua tutela [108].

Contudo, Gallo [109] lembra que mesmo que o crime de responsabilidade não seja crime propriamente dito, não deve fugir à regra da tipificação da conduta ativa ou omissiva do agente, devendo moldar-se à forma legal prevista em lei.

A terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou improcedente a apelação crime nº 23.602, cujo objeto da ação tratava de crime de responsabilidade cometido por prefeito municipal no uso de suas prerrogativas funcionais. O réu apelou como se crime comum tivesse cometido, contudo, dita apelação crime transformou-se na apelação cível nº 26.549, pois a matéria não dizia respeito a crime comum, ou propriamente dito, praticado pelo prefeito em si, mas sim a crime de responsabilidade praticado pelo Chefe do Poder Executivo Municipal.

Com muita propriedade ensina Brossard [110] que a aplicação de pena criminal e de responsabilidade ao Chefe do Poder Executivo, advindas de conduta comum, não caracteriza bis in idem, eis que se tratam de ilícitos de diferente natureza e plenamente autônomos entre si.

Os tribunais de julgamento, contudo, são diferentes, quando da prática de crime comum e de crime de responsabilidade. O juízo de admissibilidade será sempre da Câmara de Deputados, já o julgamento será realizado pelo Supremo Tribunal Federal se crime comum o agente praticar e, pelo Senado Federal se crime de responsabilidade, neste último caso com a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal [111].

2.2 NATUREZA JURÍDICA: CONTROVÉRSIAS DOUTRINÁRIAS

Aqui se encontra um tema, dentro do assunto impeachment, que dentre muitos poderia ser apontado como um dos mais polêmicos aspectos de discussão entre doutrinadores da seara constitucional. São três as correntes doutrinárias neste sentido, uma trata da natureza jurídica do impeachment como se política fosse; outra trata como se penal fosse; e uma terceira mistura componentes das duas primeiras.

Se, no plano biológico, as divisas entre o mundo vegetal e o animal nem sempre são nítidas, da mesma forma, no elenco das instituições nem sempre é fácil distribuí-las em categorias estanques, esteticamente repartidas e catalogadas, à feição do que se poderia denominar parnasianismo jurídico [112].

Segundo os ensinamentos de Riccitelli [113] e Alexandre de Moraes [114], o maior doutrinador que segue o raciocínio da teoria mista da natureza jurídica do impeachment é o autor José Frederico Marques. Contudo, o autor deixou em sua obra "Elementos de Direito Processual Penal" a conclusão de que impeachment tem natureza política. Dentre todos os fundamentos que utiliza, o autor assim finaliza seu pensamento:

Não nos parece que o crime de responsabilidade de que promana o impeachment possa ser conceituado como ilícito penal. Se a sanção que se contém na regra secundária pertence ao crime de responsabilidade não tem natureza penal, mas tão- somente o caráter de sanctio júris política, tal crime se apresenta como ilícito político e nada mais [115].

Neste viés, limita-se o presente trabalho ao estudo das duas teorias controversas acerca da natureza jurídica do crime de responsabilidade, a saber, a política e a criminal.

Por uma questão didática, tratar-se-á da natureza jurídica do procedimento cada qual de forma vinculada ao doutrinador que mais tem destaque na defesa da natureza jurídica pertinente, política e penal.

O autor que é tido como o maior defensor da natureza jurídico- política do impeachment é o Mestre Paulo Brossard, que, conforme conta Alexandre de Moraes, tem a seu lado a maioria doutrinária, juntamente com Themistocles Cavalcanti, Carlos Maximiliano e Michael Temer. De outro lado, Pontes de Miranda é o autor tido como exemplo na defesa da natureza jurídica criminal ou penal do impeachment [116].

2.2.1 Natureza jurídica política: Paulo Brossard [117]

O ilustre autor inicia a defesa de sua idéia afirmando seu conceito de que é política a natureza jurídica do impeachment e que, as confusões podem ocorrer facilmente, visto que em muitos países e em muitos momentos, se mostrou e se mostra como instituto de natureza penal e por vezes até administrativa. Compara ainda, o instituto brasileiro com o norte-americano e argentino, onde a natureza é política, pois "não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob condições de ordem política e julgado segundo critérios de ordem política" [118].

Enumera os seguintes autores estrangeiros com os quais compartilha sua idéia, a saber, Hamilton, Story, Lawrence, Bayard, Lieber, Von Holst, Tucker e Black.

Relembra a Constituição Monárquica, onde aponta que já delineava o impeachment como instituto de natureza política, reforçando-se este delinear com a promulgação das Leis 27 e 30 de 1892. Cita, inclusive, trechos de julgados e pareceres do então Senador José Higino, inclusive pela ocasião da rejeição pelo Senado do veto de Deodoro em relação às supracitadas Leis, leia-se um deles:

O Senado é um tribunal político e não um tribunal de justiça criminal. A sua missão não é conhecer dos crimes de responsabilidade do Presidente da República para puni-lo criminalmente, mas para decretar uma medida de governo, a qual é a destituição do presidente delinqüente (...) Crime de responsabilidade é a violação de um dever do cargo, de um dever funcional (...) [119]

Brossard cita estudiosos como Gabriel Luiz Ferreira, Galdino Siqueira, Epitácio Pessoa e Viveiros de Casto também como defensores de sua tese jurídica. Nota ainda a opinião contrária dada por Aurelino Leal, chamando a atenção para sua conclusão, observe-se como Brossard cita Leal:

(...)dir-se-á que o Senado não impõe penas criminais. Antes de mais nada, há uma lei de responsabilidade que define crimes de responsabilidade e que prescreve penas. A condenação, portanto, é de natureza criminal(...) Na página imediata, porém, não deixou de reconhecer que o Senado será sempre um tribunal político [120].

Brossard reforça seu pensamento trazendo à baila não somente a opinião de doutrinadores dos mais altos gabaritos, mas também demonstra que a jurisprudência é a seu favor. Aponta julgados do STF, quais sejam, os acórdãos nº 104 de 1895, 343 e 1899 e 1476 de 1901, bem como o Aresto [121] nº 3018 de 1911. Contudo, ao inferir sobre o Habeas Corpus nº 4091 de 1916, mostra que a discussão sobre o tema não é pacífica entre os Ministros daquela Corte, pois da mesma forma que o então Ministro Oliveira Roberto era adepto à teoria política, Pedro Lessa duvidava da afirmativa absoluta sobre a natureza jurídica do impeachment.

Brossard mostra a satisfação de ter a redação da Constituição de 1946 em relação aos crimes de responsabilidade e o impeachment, vindo para restabelecer a ordem do país, "depois do interregno funesto" [122] entre a Constituição outorgada de 1937 e a promulgada em 18 de Setembro de 1946.

Fundamenta ainda sob aspecto formal a afirmação da natureza jurídica política do impedimento. Explica o Mestre que só à União cabe legislar sobre direito penal, assim, se o impeachment tivesse natureza penal, aos Estados seria defeso o ato legiferante sobre o assunto. Entrementes, os Estados trataram sobre o assunto em suas Constituições e em leis complementares, o que comprova a natureza política do instituto aqui estudado.

Explica que a lei 1.079/50 veio a corroborar seus fundamentos até aqui já expostos, haja vista tratar dos crimes de responsabilidade de maneira político-constitucional, sem alterar a natureza que defende. Todavia, o autor faz uma crítica à Lei, no sentido de que a mesma regula sobre o processo, julgamento e definição dos crimes de responsabilidade inclusive no âmbito estadual, retirando dos Estados o direito de legislar sobre o assunto. O autor assim se manifestou:

Aqui, como em outros passos da elaboração legislativa, se fez sentir a influência dos recentes arestos do Supremo Tribunal, que esterilizaram a competência dos Estados, enfaticamente assegurada pela Constituição. Mais tarde, pela Lei n. 3.528, até ao recôndito dos Municípios desceu o legislador federal (...) A tanto levam as premissas falsas. E o esquecimento da História do Brasil [123].

Termina sua defesa com este desabafo e com a convicção absoluta da verdade de seus ensinamentos, tão preciosos para os que buscam reavivar os preceitos constitucionais esquecidos.

2.2.2 Natureza jurídica criminal: Pontes de Miranda [124]

Pontes de Miranda, por sua vez, é adepto e representante da teoria penal da natureza jurídica do impeachment. Importante ressaltar que Miranda defende a tese criminal em obra escrita para comentar a Constituição de 1967, ou seja, não trata da natureza jurídica do impedimento à luz da Constituição Federal de 1988, até porque o ilustre jurista faleceu no ano de 1973.

Miranda defende que o objetivo do processo de impeachment é o de retirar a pessoa pública do exercício de suas funções e, por isso, a sua natureza não é política. Comenta ainda o ilustre autor que, renunciando o Presidente de sua função, incabível é o prosseguimento do processo. Da mesma forma, aqueles crimes cometidos antes da investidura pública não estarão sujeitos ao processo especial.

Em sua explicação, diz que o fundamento criminal se encontra no fato de que a desconstituição do governante não se dá de forma unilateral, ou, "não se trata de declaração de vontade unilateral, não-receptícia" [125]. Isto se dá porque, segundo o autor, os atos do impeachment no Brasil são atos próprios de processo, diferente da Constituição vaimariana [126], a qual não engloba o processo de responsabilização política na esfera criminal. É neste cerne que ensina que o processo de impedimento funda-se em princípios de natureza constitucional e processual.

Em relação à denúncia que deve ser realizada para o início do processo, Pontes de Miranda ensina que se trata do pressuposto de admissibilidade do processo penal, dizendo que a "(...) resolução quanto à denúncia ou queixa somente pode responder se é admissível ou inadmissível o processo. Ainda não se entra em apreciação que importe cognição, mesmo incompleta, ainda que superficial" [127].

O autor fundamenta seu pensamento de que se trata o instituto de natureza penal extraindo dos ensinamentos do direito processual penal as comparações necessárias para a conclusão almejada. Explica primeiramente sobre as fases do processo penal, iniciando-se pela investigação, explicando a denúncia, a pronúncia e, finalmente, sobre a sentença criminal. Faz um comparativo para fortificar sua tese, ensinando que as fases procedimentais do impeachment são exatamente como aquelas apresentadas no processo penal e acima descritas. Na fase da denúncia ou queixa, por exemplo, o Juiz da causa faz apenas um juízo de admissibilidade quanto à denúncia a ser protocolada pela Câmara dos Deputados, tal qual ocorre no procedimento de crime de responsabilidade. Quanto à fase de pronúncia que se mostra no processo penal, trata-se de cognição sumária, onde o Juiz se convence de que há indícios da autoria do réu em relação ao crime cometido. Nesta fase, explica-se o eventual afastamento do Presidente enquanto o processo se desenvolve, veja- se a explicação do mestre:

A sentença que pronuncia é declarativa, nela somente há a força de declaratividade a que falta o elemento condenatório, esse mesmo elemento que passará à frente quando se proferir a sentença de condenação. Por isso mesmo a eficácia de suspensão do exercício do cargo é efeito, e não força da sentença de pronúncia. Uma vez que se trata de sentença de cognição incompleta (...), o acusado sofre suspensão, e não perda do exercício do cargo [128].

Por fim, tem-se que a sentença é a decisão terminativa do processo com um julgamento de mérito, assim como ocorrerá no processo de impeachment, onde haverá a decisão que acarretará com a condenação ou a absolvição do Presidente acusado por crime de responsabilidade.

2.3 DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE: PERSPECTIVA JURÍDICO-MATERIAL

Passa-se, doravante, ao estudo material dos crimes de responsabilidade propriamente ditos, tais quais elencados no art. 85 da Constituição da República Federativa do Brasil:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes Constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do país; V – a probidade da administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único – Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento [129].

De outra mão, é cediço que a lei que define os crimes de responsabilidade é a Lei 1079/50 e, desta forma, estudar-se-á neste subcapítulo de forma conjunta dita lei especial com aqueles preceitos constitucionais elencados no art. 85 de Carta Magna de 1988.

Assim, quando da leitura dos artigos que definem os crimes de responsabilidade da Lei 1079/50, constata-se a existência de um crime além daqueles elencados no rol do art. 85 da Lei Maior, trata-se do inciso VII do art. 4º da Lei Especial:

Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) VII – a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos (...) [130]

O que ocorre, in casu, é que a Constituição Federal de 1988 retirou do rol dos crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos" [131], protegendo o dinheiro público no texto do §1º do art. 167 da Constituição de 1988 [132], conforme explicado no item 1.4.2.5 deste trabalho.

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Ainda assim, pode-se entender a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos com assunto abrangido dentro da temática "probidade na administração", que objetiva justamente a legal e necessária aplicação do dinheiro público a bem da nação.

Ainda que a Lei 1.079/50 defina os crimes de responsabilidade de forma mais minuciosa, porque este é o seu objetivo, não trabalhar-se-á nesta monografia com cada inciso da referida Lei, pois busca-se aqui a interpretação dinâmica dos crimes de responsabilidade, o que se fará em conjunto com a leitura da Lei, à luz da Constituição, em fundamentação doutrinária.

Desta banda, tendo em vista a supremacia hierárquica patente da Constituição Federal, o estudo material dos crimes de responsabilidade reger-se-á principalmente pelo princípio constitucional, eis que se trata do texto mais moderno do aquele da Lei 1079/50, ainda que seja Lei Especial.

Ives Granda da Silva Martins [133] mostra que na verdade oito são os crimes de responsabilidade apontados pela Constituição que podem ser cometidos pelo Presidente da República, eis que o caput do art. 85 trata quaisquer crimes que atentem contra a Constituição Federal. Neste viés, o conjunto de quaisquer "atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal [134]" será tido como o primeiro crime do rol do art. 85.

Nestes termos, há que se ressaltar que os crimes doravante vistos, devem ser cometidos de forma dolosa, não há, desta feita, "culpa in vigilando ou in eligendo nesta matéria, no máximo, havendo responsabilidade civil" [135]. O cometimento de quaisquer destes tipos deve abarcar seu aspecto objetivo e subjetivo.

Passa-se, adiante, à análise de cada um dos crimes de responsabilidade propriamente ditos e descritos pela Constituição Brasileira de 1988, lembrando Michel Temer [136] que o rol do art. 85 da CF é exemplificativo, eis que o Presidente da República responderá por quaisquer atos que atentarem contra a Constituição Federal.

2.3.1 Da existência da União

O constituinte, ao proteger a existência da União, defende na verdade a existência do sistema federativo brasileiro, que é objeto de cláusula pétrea constitucional. Assim, inexistente a União, desaparecida estará a Federação. Saliente-se que o bem jurídico ora protegido é a existência da União e não a nomenclatura que se dá ao ente público [137].

Granda Martins [138] discorre sobre a eventual situação de, se porventura o Presidente da República oferecesse proposta de emenda no sentido de alterar o sistema federativo, excluindo os municípios como entes da federação, da mesma maneira que o sistema federativo apresentava-se antes da Constituição de 1988. O autor indaga se esta proposta seria um atentado à forma federativa de Estado, que é protegida por cláusula pétrea pelo §4º do art. 60 da CRFB/88 [139]. O mestre opina no sentido de concordar que seria uma afronta à cláusula pétrea, pelo fato de que estaria o Presidente atentando contra o atual sistema federativo brasileiro, tentando desta forma suprimir o sistema federativo hoje existente. Para o ilustre autor, esta seria uma forma de tender à abolição da forma federativa de Estado do §4º do art. 60 da CRFB/88.

O certo é que, cabendo ao Presidente da República a preservação da Constituição Federal e do sistema federativo brasileiro, assim como do próprio Estado, qualquer agressão ao mesmo implicaria o referido crime. É a leitura que faço do dispositivo [140].

De outra banda, quando há ameaça à existência da União existe atentado contra a soberania do Estado e o Presidente da República que o praticar está sujeito à condenação no processo de impeachment.

2.3.2 Do livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação

No pensamento de Granda Martins, o Presidente que abusa da edição de medida provisória também é autor de crime de responsabilidade, principalmente pelo fato do Presidente estar tolhendo a função principal do Poder Legislativo. Segundo dados que o autor apresenta em sua obra - que neste momento serve como base de desenvolvimento do presente trabalho - enquanto escrevia o livro, o Poder Legislativo havia tratado de cuidar mais medidas provisórias do que da produção de leis de sua competência, ou seja, "1.400 medidas provisórias em pouco mais de sete anos" [141].

O ilustre autor dá ainda um exemplo fático sobre a intervenção abusiva do Poder Executivo sobre o Poder Judiciário, quando o ex-Presidente Itamar Franco interveio sobre a decisão administrativa do Supremo Tribunal Federal acerca dos parâmetros de reajuste dos subsídios dos Ministros da Suprema Corte:

E, de forma variada, no curso da vida atual da Constituição tem havido violações e atentados ao livre exercício dos Poderes mencionados, mas sem maiores reflexos, à falta de questionamento junto aos Poderes competentes. O princípio, todavia, é salutar. Se cumprido fosse, representaria excelente limitação ao poder de intervir do Poder Executivo nas áreas de competência dos outros Poderes, assim como controle de hipertrofia atual dos Poderes exercidos pelo Presidente da República [142].

Granda Martins, desta forma, faz inteligentíssima crítica sobre a violação do preceito do inciso II do art. 85 da Constituição Federal.

2.3.3 Do exercício dos direitos políticos, individuais e sociais

Somente nos casos de estado de sítio e estado de defesa poderá o Presidente da República interferir no livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais dos residentes no Brasil [143].

Diante disso, a discussão circunda-se na interpretação do texto do inciso III do art. 85 da CRFB/1988. A redação protege os direitos individuais como se fossem apartados dos direitos políticos e sociais, todavia, esse não é o entendimento doutrinário constitucional, pois os direitos individuais têm senão o mesmo status dos direitos fundamentais, do qual faz parte dentro do Título II da Carta Constitucional, leia-se:

Ora, os direitos fundamentais exteriorizam dimensão de maior profundidade dos direitos individuais. Todos os direitos fundamentais do indivíduo são necessariamente individuais, razão pela qual todos os direitos fundamentais seriam cláusula pétrea, (...) o que vale dizer, os arts. 5º ao 17º da Lei Suprema cuidam de direitos fundamentais do cidadão e todos eles seriam individuais [144].

Daí, de acordo com a redação deste inciso, existiriam uns direitos mais fundamentais do que outros, o que seria uma discrepância com o espírito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O objetivo do constituinte foi o de enfatizar a proteção tanto dos direitos individuais quanto dos sociais e políticos. Foi, na verdade, uma distinção formal eis que é claro que abrange os efeitos da cláusula pétrea todos os direitos fundamentais, sejam eles individuais, políticos ou sociais [145].

2.3.4 Da segurança interna do país

O comando das Forças Armadas no país é atributo do Presidente da República, assim, principalmente por esta competência, é dever do chefe do Poder Executivo Federal a guarda e o zelo da segurança interna do Brasil. Desta maneira, não pode o Presidente colocar em risco a segurança interna do país [146].

A Escola Superior de Guerra tem teoria a respeito da segurança interna do país. Esta teoria, porém, tem abrangência bem ampla, pois é no sentido de que a maioria dos atos do Presidente da República tem ligação direta ou indireta à segurança interna do país. Ou seja, ele sempre estará tomando decisões em várias cearas, seja ela social, econômica, educacional, etc., sendo que em todas elas haverá reflexo na sociedade, o que poderá ameaçar a segurança interna do país [147].

Assim foi o STF, pelo voto do Ministro Aliomar Baleeiro, que iniciou a corrente de limitação dos atos do Presidente da República que poderiam se tornar ofensivos à segurança interna do país [148]. De outro lado, a Lei 1079/50 ainda aponta os casos de violação à segurança interna do país, minimizando as possibilidades de ataque do Presidente ao princípio protegido constitucionalmente.

2.3.5 Da probidade na administração

José Afonso da Silva fala sobre a improbidade administrativa explicando que difere da moralidade administrativa, a qual tem conotação mais ampla do que a primeira. Assim, nem todo ato amoral conduziria à suspensão dos direitos políticos:

A improbidade diz respeito à prática de ato que gere prejuízo ao erário público em proveito do agente. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo. O ímprobo administrativo é o devasso da Administração Pública [149].

A probidade administrativa deve ser um dos bens jurídicos mais bem protegidos constitucionalmente, isto porque tem relação não só com os atos políticos do Presidente da República, mas também com a repercussão moral que o ato ímprobo traz à esfera social.

À esta luz, é de ressaltar que o ato de improbidade praticado pelo Presidente da República é de extrema lesividade e gravidade, tornando-se indispensável sua introdução no rol dos crimes de responsabilidade.

Granda Martins [150] comenta que a Lei 8429/92 [151] foi a que dispôs sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional, isto é, quando da conduta ímproba do agente executivo.

Veja-se que a referida lei define os crimes de improbidade cometidos por quaisquer agentes que trabalham ou exercem qualquer tipo de função na administração pública, não se restringindo às condutas comissivas e/ou omissivas do Presidente da República. Classifica os crimes de improbidade administrativa como atos de improbidade administrativa que importam em enriquecimento ilícito, atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário e atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública [152].

2.3.6 Da lei orçamentária

Manoel Gonçalves Ferreira Filho define orçamento da seguinte forma: "O orçamento, por um lado, é o plano de despesas do Estado, plano este obrigatório para cada um dos Poderes, como lei que é" [153].

Assim, a lei orçamentária é a lei que define a gestão financeira do Estado, sendo protegida pela Constituição como bem jurídico a ser respeitado pelo Presidente da República. Violando-a, passível encontrar-se-á o Presidente da República de processo de impedimento.

Granda Martins [154] indaga, assim, como se configuraria o crime de responsabilidade do inciso VI do artigo 85 da CRFB [155]. A configuração se daria com o descumprimento da lei ou apenas o atentado à lei orçamentária? E nos casos de não haver verba suficiente para o cumprimento da lei orçamentária, estaria o Presidente sujeito ao crime de responsabilidade?

Ferreira Filho pode explicar:

O desrespeito ao orçamento, em especial pela realização de despesas sem autorização, ou excedentes da autorização, viola essa regra constitucional, configura, portanto, insofismável atentado contra a Constituição. Não é de estranhar, desse modo, que tal infração seja capitulada como crime de responsabilidade [156].

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, tem o entendimento de que o Presidente pode usar da medida provisória para sanar irregularidade em relação a ato que seria atentatório à lei orçamentária, se a medida provisória não fosse editada. Porém, a medida provisória só poderá ser usada se o motivo for de urgência ou relevância, juízos de valor que o STF entende não ser de sua alçada. Assim, para a Suprema Corte, compete ao Presidente da República usar da valoração de urgência e relevância para lançar mão da medida provisória:

Pela atual explicitação do pensamento pretérito da Suprema Corte, não constitui crime de responsabilidade, portanto, a desobediência à lei orçamentária, desde que os motivos de relevância e urgência justifiquem, no interesse público, tal desobediência [157]

Granda Martins [158] declara sua insatisfação com o uso abusivo das medidas provisórias, mas concorda com o pensamento de Hart, quando afirma que o direito pensado pelos juristas e operadores do direito é afirmado pelo posicionamento da Suprema Corte, fazendo-o definitivo no país.

2.3.7 Do cumprimento das leis e das decisões judiciais

O cumprimento da lei por parte do Chefe do Poder Executivo Federal é atividade que não necessita de muita explicação. A obviedade da orientação legal da gestão do Presidente deve caminhar com todas as decisões tomadas por ele. Por sua vez, o Poder Judiciário é o órgão investido a dar a interpretação à lei. Em respeito ao modo tripartite de separação dos Poderes da Federação, ao Presidente cabe dar o primeiro exemplo quando o assunto é do cumprimento das decisões emanadas pelos Juízes – incluindo-se Desembargadores e Ministros, por óbvio [159].

Nossa história política, no entanto, tem deixado muito a desejar quanto ao cumprimento das decisões judiciais. Os regimes de exceção, golpes e regimes impostos ao povo são tônicas do Brasil desde a proclamação da República. Ao Judiciário cabe dizer a lei, muitas vezes sem a possibilidade de fazer respeitá-las. Sobre as derrubadas de Café Filho e Carlos Luz, reflete Granda Martins:

(...) o Supremo Tribunal Federal possuía apenas um arsenal de leis e não um arsenal de tanques, razão pela qual nada poderia fazer para restabelecer a ordem constitucional. Apenas poderia exteriorizar seu inconformismo perante os golpes [160].

Infelizmente, no Brasil, os descumprimentos à ordem judicial e à lei pelo Presidente desencadearam em golpes institucionais. Com exceção de uma oportunidade, que se viu a aplicação da ordem de impeachment na esfera federal [161].

De outra banda, observe-se que, quando o descumprimento legal ou judicial opera-se na ordem estadual ou municipal, a medida deve ser de intervenção federal, em total acordo com o disposto no inciso VI do artigo 34 e inciso IV do artigo 35, ambos da Lei Maior [162].

2.4 DO PROCESSO DE IMPEACHMENT: PERSPECTIVA JURÍDICO- FORMAL

A partir deste subcapítulo, iniciar-se-á o desenvolvimento sobre o procedimento do impeachment em seu aspecto formal. Trata-se, assim, dos meios para que se alcance o impeachment, que para ser decretado deverá haver uma gama de procedimentos legais para alcançá-lo.

A casa não se começa pelo telhado, mas pelo alicerce. Denúncia. Apuração pela CPI. Relatório da CPI. Câmara dos deputados. Senado Federal. Assim, não se pede, imediata e diretamente o impeachment do Presidente da República. Impeachment não é início. É fase final do processus [163].

Começa-se com a explicação da diferença entre as Comissões Parlamentares de Inquérito formadas para investigação de assuntos das mais diferentes naturezas e aquelas Comissões formadas para discussão da denunciabilidade do Presidente em caso de acusação por crime de responsabilidade. Posteriormente, far-se-á um apanhado sobre a legitimidade política ativa do processo, com a investigação sobre a divergência existente na doutrina na afirmação de quem seria o agente político responsável pelo crime de responsabilidade. Daí, será explicado sobre a acusação, denúncia e julgamento do processo político.

2.4.1 Comissões parlamentares de inquérito

Cabe ressaltar, em primeira análise, que a comissão criada para apurar o suposto crime cometido pelo agente do Poder Executivo, não se trata daquela comissão parlamentar de inquérito do parágrafo 3° do art. 58 da Constituição Federal [164]. Esta comissão parlamentar de inquérito (a do art. 58, §3° da CF), trata de fatos determinados e tem prazo para finalização de seus trabalhos. São comissões ad hoc que têm o fito de deliberar e não de processar e julgar. Quando da criação da comissão parlamentar de inquérito, procura-se assegurar a proporção da participação dos partidos políticos que representam a Casa na qual a CPI [165] funciona [166].

A CPI pode ser mista, que será criada pelo Congresso Nacional, ou simples, que será criada somente pela Câmara ou somente pelo Senado. Nas CPI''s do tipo simples, a matéria exclusivamente atribuída a uma Casa, não poderá ser objeto de criação de CPI pela outra. Ainda podem ser temporárias, são chamadas de ad hoc, quando têm prazo certo para ser concluída. Serve para "apuração imediata de fato determinado, mas relevante e de grande repercussão [167]". As comissões permanentes, por seu turno, acontecem para funcionarem ininterruptamente, durante toda a legislatura sob a qual foi criada [168].

Qualquer do povo pode apresentar-se perante a Casa competente para fazer reclamação ou denúncia sobre ilegalidade que tomar conhecimento, devendo apontar o fato ilegal para apuração de comissão temporária ou permanente. Desta feita, muito importante ressaltar que, pelo fato de sempre apurar fato determinado, incabível torna-se a abstração de denúncia ou reclamação, isto é, a denúncia à comissão parlamentar de inquérito deve ser sempre objetiva e determinada [169].

Não se pode confundir, desta maneira, as comissões parlamentares de inquérito criadas para averiguar fato determinado, seja ela temporária ou permanente, com aquelas comissões apuradoras dos crimes de responsabilidade: não se confundem esta com as comissões da Câmara dos Deputados que procuram averiguar a procedência ou não de acusações contra o Presidente da República e de seus Ministros de Estado, nem com as Comissões do Senado Federal, nos crimes de responsabilidade atribuídos ao Presidente e aos Ministros, bem assim, nos crimes da mesma natureza e conexos com aqueles [170].

A comissão a qual se alude o art. 19 da Lei 1.079/50 [171] trata, assim, de comissão especial, a qual não tem as mesmas características de comissão parlamentar de inquérito. A CPI constitucional – e não a legal, da lei 1.079/50 - não aplica a lei ao caso concreto, pois esta é uma incumbência do Poder Judiciário, contudo, a CPI tem poderes próprios daqueles atribuídos às autoridades judiciais. Pode, por exemplo, intimar pessoas a depor, acusar e chamar a interrogatório e, há quem diga, tem poderes inclusive de ordenar prisões. Inobstante, não cabe à CPI declarar a procedência ou não da acusação formalizada pelo Senado Federal contra Presidente da República, ou mesmo proceder investigação sobre tal acusação, quando tratar-se de processo sobre crime de responsabilidade [172].

2.4.2 O agente político: legitimidade passiva no crime de responsabilidade

Para que se entenda corretamente sobre a atuação do agente executivo, mais especificamente do Presidente da República, é necessário que se abstraia aqueles princípios fundamentais da administração pública, retirados dos ensinamentos trazidos pelo Direito Administrativo. Todavia, não busca-se aqui o estudo propedêutico do Direito Administrativo. Por outro lado, é de suma importância trazer algumas definições deste ramo, para eficaz entendimento de quem é o agente político juridicamente capaz de cometer crime de responsabilidade [173].

A previsão estabelecida no caput art. 37 da Constituição Federal [174] é a luz que deve iluminar os atos dos agentes políticos. Daí, vale estabelecer qual é o conceito de agente político e sua importância para a aplicação do impeachment sobre aquele que viola o bem constitucionalmente protegido [175].

Na busca do conceito de agente político, uma discussão doutrinária circunda o tema. Passar-se-á brevemente sobre o entendimento das correntes defendidas pelos maiores doutrinadores de Direito Administrativo brasileiro, para melhor absorção da definição pretendida.

Hely Lopes Meirelles define o agente político dentro da esfera dos três Poderes da federação. A principal característica do agente político, para o autor, é sua participação no alto escalão do órgão do qual faz parte. Assim, são considerados agentes políticos:

(...) os Chefes do Poder Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeito) e seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e de Município); os membros das Corporações Legislativas (Senadores, Deputados e Vereadores); os membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os membros do Ministério Público (Procuradores da República e da Justiça, Promotores e Curadores Públicos); os membros dos Tribunais de Contas (Ministros e Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho de atribuições governamentais, judiciais ou quase- judiciais (...) [176]

O agente político, segundo Meirelles [177], tem ampla liberdade funcional dentro da sua esfera de atuação e não se trata de privilégio atribuído ao agente político. A liberdade que lhe é constituída ocorre para que possa ser garantido o exercício de sua alta função. Tolhendo-se esse amplo círculo de atuação, o agente político poderia, muitas vezes, deixar de atuar vendo-se sujeito às sanções civis e criminais sancionadoras dos atos dos comuns.

O arcabouço legal para esse entendimento é extraído do inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal [178], sendo que para o autor, o constituinte equiparou as funções mencionadas naquele inciso quando usou a expressão dos demais agentes políticos. Diante disso, concluiu o mestre que a interpretação deva ser dada neste sentido, de que todos os agentes apontados naquele artigo são políticos.

Odete Medauar [179], por seu turno, concorda em parte do entendimento de Lopes Meirelles. Defende a doutrinadora que o agente político se trata daquele que é investido em função pública por sufrágio universal, bem como aqueles que exercem função direta ao investido na atividade por mandato eletivo. Assim, para a autora, apenas os Chefes do Poder Executivo e seus funcionários diretos são passíveis de responsabilidade por crimes que venham a cometer em virtude do cargo que se encontram investidos. Aponta, a título de exemplo, a Lei 1.079/50, quando diz que estes agentes políticos sofrerão sanções previstas na legislação especial, além daquelas prerrogativas gerais elencadas na Constituição Federal, Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios.

O ilustre constitucionalista Celso Antônio Bandeira de Mello é adepto e forte defensor da teoria compartilhada por Medauar. Fundamenta sua idéia no sentido da relação que o agente político tem com o seu dever funcional. Para ele, diferentemente do pensamento de Lopes Meirelles, a natureza desta relação não é profissional, mas sim política. E por ser de natureza política exerce um múnus público.

A relação jurídica que os vincula ao Estado é de natureza institucional, estatutária. Seus direitos e deveres não advêm de contrato travado com o Poder Público, mas descendem diretamente da Constituição e das leis. Donde, são por elas modificáveis, sem que caiba procedente oposição às alterações supervenientes, sub color de que vigoravam condições diversas ao tempo das respectivas investiduras [180].

De outra banda, ainda compartilha da tese que os auxiliares diretos do agente político também são responsáveis pelos atos que praticarem na função, ou seja, são legitimamente passíveis do processo de impeachment [181].

Finalizando a discussão ora relatada, Maria Silvia Zanella Di Pietro faz o balancete entre as duas correntes em parte divergentes. A doutrinadora é simpática à idéia de Bandeira de Mello e explica porque. Discorre que a "idéia de agente político liga-se, indissociavelmente, à de governo e à de função política, a primeira dando a idéia de órgão (aspecto subjetivo) e, a segunda, de atividade (aspecto objetivo)" [182].

Explica ainda que as funções políticas são próprias dos agentes do Poder Executivo e, em parte, dos agentes do Poder Legislativo. Poucas são as medidas políticas atinentes aos atos dos agentes do Poder Judiciário, que se resumem a exercer a atividade jurisdicional, limitando-se ao controle a posteriori dos atos Executivos e Legislativos trazidos à sua apreciação. De igual forma, o Ministério Público e o Tribunal de Contas exercem, senão, uma função de controle e fiscalização sobre os atos dos órgãos Executivo e Legislativo [183].

Não basta o exercício de atribuições constitucionais para que se considere como agente político aquele que as exerce, a menos que se considere como tal todos os servidores integrados em instituições com competência constitucional, como a Advocacia Geral da União, as Procuradorias dos Estados, a Defensoria Pública, os militares [184].

A regra geral é a do exercício de mandado pelo qual o agente fora eleito, ou seja, cargo de Presidente da República, Governadores, Prefeitos, Senadores, Deputados Estaduais, Deputados Federais e Vereadores. A exceção é daqueles cargos de alta confiança e de nomeação pelo Chefe do Poder Executivo: Ministros e Secretários [185].

Inobstante a idéia defendida, Di Pietro concorda que não se pode olvidar que contemporaneamente existe uma tendência de consideração do caráter político dos agentes do Poder Judiciário e do Ministério Público. Não que o Juiz tenha efetivamente poder político dentro de sua esfera de atuação, mas tem um papel político relevante ante o fato de dizer o direito ao caso concreto. Destarte, o Ministério Público apresenta papel político principalmente com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no resguardo do inciso II de seu artigo 129 [186]. É este zelo que se remete ao poder de controlar as atividades dos órgãos Executivo, Legislativo e Judiciário, assegurando que tais entes estejam agindo de acordo com a lei. É esta prerrogativa constitucional que lhe dá a tendência da configuração do papel político exercido pela instituição [187].

Riccitelli [188] divide, neste aspecto, o impeachment tradicional, aquele praticado por agentes do Poder Executivo, incluindo as faltas de seus auxiliares diretos; e impeachment atípico, aquele praticado por outros agentes que não participantes do Poder Executivo.

Neste viés, constata-se que, mesmo com a discussão doutrinária existente sobre o tema, é incontroverso que os Chefes dos Poder Executivo são agentes políticos e, por isso, não são tão somente juridicamente passíveis do impedimento, são, também, politicamente legítimos a figurar no pólo passivo no crime de responsabilidade.

2.4.3 Da denúncia

A lei é clara quando reza que cabe a qualquer cidadão a denúncia do Presidente da Repúblicapor crime de responsabilidade [189]. Pontes de Miranda [190] fala, neste sentido, do princípio da denunciabilidade popular. A denúncia, in casu, só poderá ser realizada quando o Presidente da República ainda estiver na função do seu cargo eletivo de Chefe de Poder Executivo Federal [191].

Alexandre de Moraes ressalta a literalidade da lei quando diz que todo cidadão é capaz de denunciar por impeachment e não qualquer do povo. A diferença se dá quando somente as pessoas no pleno gozo de seus direitos políticos podem propor a denúncia em desfavor do Chefe do Poder Executivo Federal. Isto porque, o ato criminoso de responsabilidade fere a cidadania da pessoa, assim, só o cidadão poderá ter sua cidadania violada. Nada impede, desta forma, que o parlamentar denuncie, porém, o fará como cidadão brasileiro, e não como autoridade pública.

A legitimidade ativa ad causam, portanto, não se estende a qualquer um, mas somente às pessoas investidas no status civitas, excluindo, portanto, pessoas físicas não alistadas eleitoralmente, ou que foram suspensas ou perderam seus direitos políticos (CF, art. 15) e, ainda, as pessoas jurídicas, ou estrangeiros e apátridas [192].

Dirigida a denúncia à Câmara de Deputados, passa-se a um processo que se divide em duas fases. Sérgio Borja ensina que o primeiro momento se dá com a deliberação da Casa para averiguar a procedência da denúncia formalizada. O outro momento é o de pronúncia, que se infere à admissibilidade da acusação, "não da acusação sob suspeita aparente, mas sim da convicção da existência do delito configurado na suspeita fundada" [193].

É necessária a condição de que o denunciado não tenha deixado o cargo para que a Câmara dos Deputados receba a denúncia, devendo o denunciante assinar a peça com firma reconhecida, bem como as provas que tem a oferecer [194].

Moraes [195] ensina que o primeiro momento é para averiguação da conveniência da deliberação. Este ato não é arbitrário da Câmara, ou seja, este processo de constatação da plausibilidade da discussão deve obedecer regras, onde verificar-se-á o conteúdo das alegações da denúncia, bem como a robustez probatória trazida. O artigo 19 da Lei 1.079/50 ensina que esta discussão será realizada por uma comissão [196] constituída por representantes de todos os partidos políticos, que terão dez dias para concluir seu parecer. Publicado o parecer no sentido da viabilidade da denúncia, passa-se à segunda fase do processo de denúncia.

O segundo momento é o de procedimento ou não da acusação da denúncia, esse sim é ato discricionário da Câmara. Os Deputados Federais analisam, nesta fase, a viabilidade da acusação no momento social que o país vive [197]. Este procedimento secundário é explicado no artigo 21 da Lei 1.079/50, onde o relator responderá o cada um dos cinco representantes de cada partido, que poderão falar por uma hora, cada, sobre o parecer da comissão. Sampaio Dória explica brilhantemente a característica de conveniência político- social desta fase, não sendo, portanto, ato arbitrário:

Entre o mal da permanência do cargo de quem tanto mal causou e poderá repeti-lo, além do exemplo da impunidade, e o mal da deposição numa atmosfera social e política carregada de ódios, ainda que culpado o Presidente, a Câmara dos Deputados poderá isentá-lo do julgamento, dando por improcedente a acusação [198].

Desta feita, o critério utilizado é plenamente político, onde a averiguação do crime de responsabilidade não significa a acusação pela Casa. A conveniência feita é vinculada à situação político- social do país [199].

2.4.4 Da acusação

Discutido o parecer, inicia-se a votação na Casa sobre a formalização ou não da acusação. Esta votação é nominal, ou seja, o voto é público e defeso o anonimato do Deputado a votar [200]. Cretella salienta que o quórum dessa votação é de dois terços dos membros da Câmara, isto é, necessária a maioria absoluta dos membros da Casa [201], em acordo com o inciso I do artigo 51 da CF [202]. O papel da Câmara dos Deputados termina com a votação sobre a procedência da acusação. É nesta fase que se exaure a competência desta Casa legislativa. Caso haja decisão de inviabilidade da acusação, a denúncia será arquivada. Se o voto de no mínimo dois terços da Câmara dos Deputados decide pela instauração do impedimento, passa-se então para a fase de processo e julgamento do Presidente no Senado Federal [203].

A formalização da acusação ao Senado será feita por decreto. Entrementes, ainda que o julgamento não tenha se iniciado, os efeitos da acusação ao Senado Federal serão a suspensão do exercício do Presidente e baixa de seu salário no equivalente à metade [204].

2.4.5 Do julgamento

O julgamento do acusado será acompanhado por uma comissão de três membros da Câmara [205], sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Remetido o processado da Câmara dos Deputados ao Senado Federal, este não poderá fazer juízo de admissibilidade sobre o recebimento e o julgamento do processo, esta atribuição já foi exercida pela Casa competente. O Senado Federal transforma-se, nas palavras de José Afonso da Silva, em um verdadeiro "tribunal político" [206].

A partir daí, o processo deve seguir os trâmites da Lei 1.079/50 [207]. O contraditório e a ampla defesa são configurados quando o Presidente do julgamento remete cópia do processo de acusação ao acusado e o comunica da data do julgamento [208]. No dia do julgamento, serão lidos o libelo da acusação e a peça de defesa do acusado, ao que iniciar-se-á a inquirição das testemunhas, que poderão ser reperguntadas por acusação e defesa [209]. O acusado não é obrigado a comparecer ao Plenário, podendo se fazer representar por seus advogados [210]. Se, por ocasião do julgamento, o acusado não comparecer, nem seu advogado, o Presidente designará novo dia para julgamento e nomeará advogado para o Presidente da República acusado, podendo este ter acesso às peças do processo [211]. Além dessas previsões legais, o artigo 86, §3° da CF ainda reza:

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. (...) §2°. Se decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo [212].

A votação se dá após os debates de acusação e defesa e, após retiradas as partes, dos membros do Senado. Os votos são realizados de forma nominal. Se da votação restar o Presidente absolvido, o processo será arquivado [213]. Se, por outro lado, a conclusão for no sentido da condenação do Chefe do Poder Executivo Federal, aplicar-se-á a pena de inabilitação por oito anos ao réu, que será destituído imediatamente do cargo Executivo [214].

Afonso da Silva ensina que é somente neste fechamento do voto de condenação que se aponta o verdadeiro impeachment. "A regra, como se vê, declara que a decisão do Senado se limita à decretação da perda do cargo (a decisão decreta o impeachment), com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública" [215]. Ou seja, o que ocorre com a condenação é a confirmação do afastamento do Presidente, já aplicada quando da denúncia pela Câmara dos Deputados, mais a aplicação da pena de inabilitação. Em termos jurídicos, poderia se dizer que se houver condenação do Senado, seria o mesmo caso do Juiz que concede liminar e a torna permanente por conta de sentença que for procedente ao pedido inicial. Trata-se de dar efeito permanente àquilo que era provisório.

Encerrada a fase de explicação sobre a forma do instituto, no próximo capítulo poderá ser compreendida a análise do caso concreto do impeachment aplicado ao ex-Presidente Fernando Afonso Collor de Mello, de maneira a completar o estudo, com a investigação de um caso prático ocorrido no Brasil.

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Sobre a autora
Maria Cecília Schmidt

bacharel em Direito, técnica judiciária auxiliar do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHMIDT, Maria Cecília. Impeachment aplicável ao Presidente da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1362, 25 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9653. Acesso em: 20 abr. 2024.

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