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Impeachment aplicável ao Presidente da República

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25/03/2007 às 00:00
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Capítulo 03

ANÁLISE DA APLICAÇÃO POLÍTICO- BRASILEIRA DO IMPEACHMENT: CASO COLLOR

Neste capítulo explanar-se-á o primeiro – e até agora único - caso de impeachment ocorrido no Brasil. Esboçar-se-á um brevíssimo histórico da vida de Fernando Afonso Collor de Mello, ao que se abordarão os fatos que culminaram com a decretação do impedimento do então Presidente. Ao final será feita uma reflexão histórica e sociológica sobre o papel que este acontecimento teve na vida política do Brasil.

3.1 COLLOR: UM RÁPIDO HISTÓRICO

Thomas Skidmore faz no início de seu artigo "A queda de Collor: uma perspectiva histórica", uma rápida e objetiva narração comparativa sobre os acontecimentos que envolveram a imagem de Fernando Collor, extrai-se:

Um jovem e telegênico presidente (chamado por George Bush de "Indiana Jones" brasileiro), um irmão disposto a desmascará-lo, um sinistro traficante de influências com um avião apelidado de "morcego negro", uma mãe calejada na política, embora emocionalmente perturbada, uma mulher que gastava milhares de dólares pelas butiques européias – tudo isso é tema para as telenovelas brasileiras, e não para o terreno sério da política na nona economia industrial do mundo [216].

Fernando Collor de Mello tomou posse no mandato de Presidente do Brasil aos 15 de março de 1990. Aos 42 anos de idade, galgou o maior posto de poder do país, numa eleição que tinha candidatos do mais alto naipe da política: Lula da Silva, Leonel Brizola, Mario Covas, Paulo Maluf, Guilherme Afif Domingos e Ulysses Guimarães. Antes de vencer Lula da Silva em segundo turno [217], exercia o mandato de governador de Alagoas. Foi o primeiro presidente da república eleito por eleições diretas, trinta anos depois de um regime militar que congelou a história política brasileira [218], sendo o mais longo regime autoritário da América Latina [219]. Não faltaram holofotes para a história que tomou dimensões internacionais. Os acontecimentos que sucederiam seu exercício na chefia do Poder Executivo foram também chamados de "Collorgate", em alusão ao semelhante caso Watergate, acontecido nos Estados Unidos, durante a presidência de Nixon [220].

Collor já tinha herança genética na política. Seu pai, Arnon de Mello, fora senador pelo Estado de Alagoas, e sua família vinha de uma casta oligárquica nordestina, enriquecida pela cultura da cana-de-açúcar. O Nordeste, tido como sede de pistolagem política, fora palco inclusive de um homicídio cometido por Arnon Mello contra um ex-senador em visita pelas terras alagoanas. O coronelismo, como se constata, era – e ainda é – traço marcante do domínio político no nordeste do Brasil. De outro lado, o Sudeste passou a ser o cenário de influência política a partir de 1945, mostrado-se dinamicamente como a região de maior potencial em vários setores estratégicos nacionais, inclusive o político [221].

Collor teve formação escolar carioca e brasiliense, pouco estudou em seu Estado natal. Além do mais, tinha grande apoio televisivo pois o pai era sócio de Roberto Marinho e a família Collor tinha a concessão de estação subsidiária da TV Globo em Alagoas. Neste sentido, Skidmore afirma que Fernando Collor era a "ponte entre esses dois mundos", ao se referir ao imperial nordeste e o progressivo sudeste, veja-se:

Assim, Collor transmitia uma identidade política esquizofrênica; em parte rebento de um antiquado clã político nordestino, em parte o dinâmico e jovem representante de um Brasil "moderno". (...) Collor era produto do sistema em outro sentido [222].

Desta forma, chega à presidência deste país, galgado na esperança do povo que via refletido no semblante do promissor presidente, a imagem de um agente que governaria estrategicamente, com base em um governo audaz, novo e eficiente.

3.2 DO PROCESSO DE IMPEACHMENT SOFRIDO POR COLLOR

No início de 1992, denúncias de Pedro Collor de Mello, irmão do Presidente Collor, começam a desmantelar o que seria a esperança de avanço de um país devassado pelo regime militar que sofrera durante trinta anos [223].

Pedro Collor vai à imprensa e expõe uma malha de corrupção dentro do governo. Relata o irmão que Fernando Collor mantinha uma espécie de sociedade criminosa com o tesoureiro de sua campanha presidencial, Paulo César Farias, formando o que se passou a chamar de "esquema Collor- PC" [224]. Em 30 de março daquele ano todos os Ministros de Governo formalizam uma renúncia coletiva de seus cargos de confiança.

Foi montada uma CPI integrada por 22 parlamentares [225] para a apuração do caso, dentre vários, pode-se apontar alguns crimes que Paulo César Farias supostamente teria cometido e que a Comissão Parlamentar de Inquérito investigou:

-Fazia tráfico de influência usando o nome do Presidente Collor. A conclusão baseia-se nas notas fiscais frias de alto valor emitidas pela EPC pra grandes empresas. É crime de exploração de prestígio (...)

-Utilizou informações falsas para criar correntistas fantasmas, através dos quais realizava suas operações bancárias (...)

-Sonegou impostos, já que as suas verdadeiras transações bancárias estavam escondidas nas contas dos fantasmas (...)

-Supriu os gastos pessoais do Presidente Collor, de sua ex-mulher, de sua mãe e da primeira dama Rosane Collor através dos correntistas fantasmas. É corrupção ativa (...)

-Montou empresas em nome de testas-de-ferro para movimentar no exterior dinheiro não declarado e sem origem. É evasão de divisas [226].

A CPI investigou por cerca de três meses as acusações feitas pelo irmão Pedro Collor, muitas pessoas foram ouvidas, provas documentais foram colhidas e, a princípio, a Comissão não conseguia encontrar um elo entre as ações criminosas de Paulo César Farias e Fernando Collor [227].

Em meados de Julho de 1992, porém, a CPI colocou as mãos em uma grande quantidade de extratos bancários e cheques que serviriam como prova cabal para a finalização dos trabalhos. Eram aproximadamente quarenta mil cheques que apontavam a quadrilha formada por Collor e PC, num esquema de lavagem e desvio de dinheiro e, principalmente, tráfico de influência [228].

Dentre as conclusões que a vasta prova documental trazia, podia-se constatar que havia um esquema de contas bancárias para que o dinheiro sujo pagasse as contas pessoais de Collor e sua família sem que houvesse ligação direta entre os valores:

Eles documentam que o ex-caixa do presidente montou uma constelação bancária com uma equipe de fantasmas para bancar as despesas da Casa da Dinda. Por caminhos diversos, PC pagava água e luz da residência presidencial, o salário do mordomo- mor da Dinda (...), e engordava as contas da primeira-dama Rosane Collor (...), e de sua ex- mulher Lilibeth Monteiro de Carvalho [229].

Para tanto, contas bancárias eram abertas em nome de fantasmas, os quais movimentavam o dinheiro, fazendo-o chegar, geralmente, na conta da secretária do Presidente Collor, Ana Acioli. Acioli, por sua vez, encarregava-se de fazer chegar os valores nas mãos de seu chefe ou de sua esposa, a primeira-dama [230].

Dentre essas dezenas de milhares de provas, chama a atenção a existência de um cheque no valor de 250 milhões de cruzeiros, ou o equivalente a 3,5 milhões de dólares, pelo câmbio da época, emitido pela EPC, empresa de PC Farias. O cheque, que fora assinado pelo próprio PC, fora depositado na conta da Viplan, empresa de propriedade de Wagner Canhedo. A data do depósito do cheque coincidiu com a época da venda da Vasp de São Paulo, que foi arrematada por Canhedo por 4,2 milhões de dólares. Collor já havia exposto que o governo teria muito interesse na privatização da Vasp, o que culminou com a conclusão, pela CPI, da ligação entre Collor e PC na compra da empresa aérea [231].

Um dos maiores flagrantes constatados na CPI foi a compra de um carro modelo Fiat Elba, por um dos fantasmas criados por um sócio de PC Farias. PC era um dos proprietários da empresa Brasil- Jet Táxi Aéreo, sendo que a conta bancária ficta fora aberta por seu sócio, o comandante Jorge Bandeira de Melo, ex-piloto de Fernando Collor. A concessão de veículos à família presidencial não se resumia ao caso da Fiat Elba. No ano anterior, já haviam denúncias no sentido da disposição de carros pela Brasil- Jet à clã Collor de Mello. A empresa cuidava de aluguéis de carros em Brasília e cedia, por exemplo, um Santana para o uso da secretária Ana Acioli, assim como um Opala que era usado alternadamente por PC e a secretária presidencial. Outro escândalo também já havia estourado antes das denúncias de Pedro Collor, quando se constatou o uso do Opala Diplomata blindado e avaliado pelo preço de 80 mil dólares, pelos filhos de Fernando Collor, no Rio de Janeiro. O combustível usado para abastecer a frota vinha da empresa AL Táxi Aéreo, de propriedade de Oswaldo Salles, também integrante da presidência da república [232].

Além das acusações destinadas ao então Presidente e seu tesoureiro, Collor perdera muito de seu prestígio com o confisco dos valores depositados em poupança entre maio e junho de 1990 [233], o povo, desta feita, iniciou um movimento de pressão para que o processo de impeachment do Presidente fosse iniciado. Estudantes vão as ruas e o povo reage às notícias de corrupção:

Foram momentos poéticos, nos quais se confundiram ficção e realidade, passado e presente, a minissérie Anos Rebeldes e a CPI de PC. Alegria, alegria: a rebeldia juvenil está de volta, juntando mauricinhos e militantes, skatistas e esquentados. Em Brasília a disputa política encalacrou num intricado jogo de interesses, com senhores engravatados trocando favores sórdidos, ressuscitando a velharia do é-dando-que-se-recebe, e engavetando os valores fundamentais da justiça, da ética e da moralidade [234].

O movimento surtiu efeitos no desfecho da CPI. Aos 26 de agosto de 1992, Amir Lando, relator da Comissão Parlamentar de Inquérito, obteve êxito em suas conclusões, na confirmação de seu relatório por 16 votos a 05.

Com a finalização da CPI, as figuras jurídicas que encabeçavam o impeachment começaram a mexer os pauzinhos para a formalização do pedido à Câmara dos Deputados. A acusação formal foi pensada e redigida por um grupo seleto de dezoito juristas altamente gabaritados do país, dentre eles: José Eduardo Faria, José Carlos Dias, Dalmo Dallari, Antonio Carlos Penteado de Moraes, Miguel Reali Junior, Márcio Thomaz Bastos, Evandro Lins e Silva, Antonio Carlos de Almeida Castro, Luis Francisco de Carvalho Filho, Fernando Lutemberg, Sergio Bermudez, Eduardo Seabra Fagundes e Benedito Patti [235].

O requerimento da acusação foi feito por duas pessoas: o jornalista e escritor Barbosa Lima Sobrinho, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa, que aos 95 anos, à época, fora testemunha de muitos dos acontecimentos político-sociais do país; e Marcelo Lavenère Machado, na ocasião presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. A petição foi entregue pessoalmente pelos requerentes ao Presidente da Câmara dos Deputados, Ibsen Pinheiro [236].

O procedimento se instauraria nos moldes da Lei 1.079/50, mas a dúvida pairava na questão do voto dos Deputados Federais para que procedessem ou não a denúncia, se seria este aberto ou secreto. Conforme já visto, tem-se que o voto deva ser nominal, ou seja, voto aberto. Porém, o Regimento interno da Câmara na ocasião, em seu artigo 188, dirigia que as votações da Câmara deveriam ser secretas:

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Era quanto a essa última questão que o governo mais batalhava, (...) tentando fazer prevalecer a tese da votação secreta. O motivo é que dessa forma seria facilitada a tática de alugar consciências, uma das poucas que lhe restam a esta altura dos acontecimentos [237].

Muitas foram as tentativas processuais jurídicas dos advogados de Collor para que o procedimento de impeachment fosse cancelado ou que cessasse. Dentre elas, Collor ajuizou ação perante o STF para que o voto da Câmara fosse secreto, perdendo a contenda às vésperas da votação. A pressão para que Collor renunciasse era grande, mas o Presidente não cogitava a idéia da renúncia, tentando "escapar das acusações entupindo o Supremo com artifícios jurídicos" [238].

Mesmo com as tentativas frustradas do Presidente, aos 29 de setembro de 1992 a Câmara dos Deputados Federais vota pela procedência da denúncia contra o Presidente. Foram 441 votos a favor da denúncia ao Senado, contra 38 votos pela não continuação do procedimento, em um acontecimento que paralisou o Brasil, sendo inclusive televisionado para todo o país [239].

Dias antes do julgamento no Senado Federal, Collor concede uma entrevista à Revista Veja, afirmando que não renunciaria ao cargo. Mais do que isso, Collor afirmara que voltaria ao cargo de Presidente pois acreditava que seria absolvido pelo Senado por não haver qualquer prova contra ele. Lê-se, nas palavras de Collor:

Sou inocente. Não vou renunciar. Num julgamento isento, serei inocentado. Não existem provas contra mim. Sofri uma quartelada parlamentar. Serei absolvido e estou pronto para assumir a segunda fase de meu governo [240].

A revista fala sobre uma espécie de chantagem emocional que Collor estaria fazendo com os cidadãos e público brasileiro. O Presidente estaria se colocando em uma posição de vítima pois acreditava que, mesmo que fosse condenado pelo crime de responsabilidade, tinha a certeza de que seria absolvido pelo STF nos crimes comuns a que fora denunciado. Desta maneira "se proclamaria inocente na Justiça e vítima dos políticos" [241].

A última peripécia de Collor foi, na véspera do dia marcado para o julgamento – que se instauraria no dia 22 de dezembro de 1992– enviar duas cartas ao Senado Federal, uma delas comunicava a destituição de seus advogados, que acompanhavam seu processo desde outubro daquele ano. Na outra, fez uma "Carta à Nação", dizendo-se "vítima de uma campanha difamatória sem precedentes na história do país" [242].

No dia seguinte à entrega das cartas, Collor entrega sua carta de renúncia ao Senado:

A carta de renúncia chegou ao Senado dentro da pasta do advogado Moura Rocha. Pouco depois das 8 da manhã, quando ainda se preparava para sair de casa, Rocha recebeu um telefonema de Collor. "Espere aí, que um funcionário vai lhe levar uma carta", avisou o presidente. Em seguida, orientou o advogado para só abrir o envelope caso o presidente do STF, Sydney Sanches, mantivesse o julgamento (...) [243].

A carta de renúncia de Collor resumia-se a quatro linhas formadas por 37 palavras, as mesmas usadas por Jânio Quadros quando renunciou em 1961 [244].

Collor acreditava que com tal manobra, ficaria ileso à pena de perda dos direitos políticos pelo período de oito anos, aviltando a possibilidade de se reeleger nos dois anos seguintes e alcançar a imunidade nos crimes comuns que lhe desfavoreciam no STF [245].

Finalmente, aos 29 de dezembro de 1992, o Senado votou por 76 votos a 03 e decretou o impeachment do Presidente Fernando Afonso Collor de Mello. Era o fim da era presidencial Collor [246].

Da mesma forma, o Senado também decidiu que, mesmo com a renúncia do ex-Presidente, Collor deveria sofrer a pena imposta pela legislação, isto é, perder o exercício dos direitos políticos por oito anos [247]. José Afonso da Silva explica:

No caso Collor de Mello, o Senado teve que se pronunciar precisamente, porque a renúncia se dava exatamente no momento do julgamento e cumpria verificar, à falta de precedentes, se o processo se encerrava ou se prosseguia o julgamento para concluir pela aplicação da pena de inabilitação par função pública pelo prazo de oito anos. A decisão foi no sentido de que o julgamento prosseguia e, em prosseguindo, conclui, como não poderia ser diferente, pela inabilitação, considerando esta uma pena autônoma. Contudo, não tem ela autonomia para, em se aplicando a pena de perda do cargo, deixar de aplicá-la. Aí ela decorre por força de conseqüência da norma em análise [248].

Outrossim, mesmo com a condenação política, Collor fora absolvido pelo Supremo, em 1994, dos crimes a que fora acusado [249]. Em dezembro do ano corrente – 2006 – faz quatorze anos do impeachment de Collor, num dos acontecimentos políticos mais importantes na história de nosso país e, Fernando Collor é eleito, na última eleição de 01 de outubro, para o cargo de Senador do Estado de Alagoas.

3.3 REFLEXÕES HISTÓRICAS

A formação da Constituição Federal de 1988 e sua conexão com a história do presidencialismo constitucional brasileiro são a explicação para uma das causas do acontecimento do impeachment de Fernando Collor. A partir do pioneiro impeachment decretado em desfavor do ex-Presidente Collor de Mello, as instituições político-nacionais passaram a ser vistas sob outro ângulo. Há tempos as divergências entre Congresso e Presidência demonstram a rivalidade existente entre os dois órgãos. Veja-se que a partir de 1974, o Congresso teve um importante papel de força na defesa da redemocratização do sistema político, na tentativa do enfraquecimento do poder militar e estruturação do estado democrático de direito [250].

Com as eleições diretas para governadores dos Estados da Federação, em 1982, iniciou-se um movimento social que defendia a eleição direta para todos os Chefes do Executivo de todos os entes da Federação, transparecendo a vontade popular pelo sistema presidencialista de governo. Ao que parecia, o Executivo ganhava, em face do Legislativo, maior força nesta fase de transição política brasileira. Neste viés, Legislativo e Executivo passam a travar uma luta pelo sistema que mais lhe apropria poderes, qual seja, parlamentarismo e presidencialismo [251].

O ideal parlamentarista tomou força em 1980 e surgiu como "elemento central da reforma constitucional" [252]. Em 1985 o então Presidente José Sarney nomeou o jurista Afonso Arinos para que elaborasse um projeto da nova Constituição Brasileira [253]. Amaury de Souza explica em que sentido a reforma adotara o sistema parlamentar de governo:

O projeto delineou os contornos básicos de uma grande reforma institucional, incluindo (...) a adoção de um sistema parlamentarista de governo (...) A comissão propôs um modelo dual de parlamentarismo no estilo francês, com um primeiro ministro aprovado pelo Congresso e um presidente eleito por voto popular [254]

A proposta da implantação do sistema dual parlamentarista foi derrubada por 344 votos a 212. Não obstante, a constituinte prorrogou a decisão final sobre a implantação do sistema de governo em artigo constante dos atos de disposições constitucionais transitórias [255], delegando ao povo que escolhesse, por plebiscito, o sistema de governo que o Brasil deveria adotar. O povo foi às urnas e escolheu pela continuidade do sistema presidencialista de governo.

Desta maneira, a partir de então definitivamente, o sistema presidencialista teria que continuar a vigorar dentro de um molde constitucional parlamentar.

A partir daí, a reforma institucional transformou-se em verdadeira colcha de retalhos, com conseqüências previsivelmente desastrosas. O presidencialismo foi sobreposto a uma Constituição cuja definição das prerrogativas do Congresso revelavam a intenção original dos redatores de adotar um sistema parlamentarista de governo [256].

Observa-se esta tendência parlamentarista quando a CF/88 restabelece o poder do Congresso em fiscalizar e aprovar o orçamento. Da mesma forma ao Congresso é permitido definir e questionar sobre a organização interna do Executivo. Assim, temos um Congresso mais fortemente estruturado e com poderes que não tinha antes da promulgação da Constituição de 1988 [257].

De outro lado, porém, o Executivo também se fortaleceu, primeiramente pela aprovação da eleição dos Chefes do Poder Executivo por maioria absoluta de votos, o que confirma com maior solidez a verdadeira vontade democrática popular na eleição do Presidente mais votado. Trata-se de uma "conferência de legitimidade" [258] às eleições realizadas.

Outra forma de dar maiores poderes ao Presidente foi o direito dado-lhe pela Constituição de editar as chamadas medidas provisórias. A medida provisória tem força de lei e tem a natureza de decreto do Executivo, tem ainda eficácia imediata, mas prescreve em trinta dias caso não seja aprovada pelo Congresso neste período. Contudo, o STF reconhece o poder presidencial de reeditar medida provisória após o prazo de 30 dias. A exemplo, tem-se que a medida provisória de criação e implantação do plano real fora reeditada doze vezes antes de ser aprovada pelo Congresso Nacional [259]. Da mesma forma, Collor utilizou, e muito, da medida provisória no início de seu governo. O próprio congelamento das poupanças foi fruto de medida provisória, reeditada 141 vezes no ano [260].

Pode-se observar, desta forma, que a separação dos Poderes Executivo e Legislativo misturam-se, tendo a Constituição perdido a função de delimitação exata entre um e outro [261].

Objetivando contrabalançar os poderes outorgados ao Executivo e Legislativo, a Constituição também abriu o sistema de representação político partidário, aumentando a representação de Estados menores na Câmara de Deputados e eliminando as restrições para a formação de novos partidos políticos. O objetivo do aumento da representação dos Estados menores era justamente buscar o apoio político de Estados que provavelmente apoiariam o governo. A maioria desses Estados são da região norte, nordeste e oeste. Tratavam-se de Estados pobres em que a manipulação tornaria-se mais fácil pela troca de votos ou mesmo pela compatibilidade ideológica dos tradicionalistas pró- militares [262].

A partir daí iniciou-se também o crescimento exagerado de novos partidos políticos, diminuindo a fidelidade partidária, sendo que as eleições para Presidente da República em 1989 sugeriam mais uma corrida personalista do que uma disputa presidencial partidária.

Um ano após a promulgação da Constituição, a crença de que uma presidência plebiscitária agiria como força unificadora em face de um Congresso forte porém dividido internamente e de um sistema partidário fracionário foi submetida a uma dura provação. A crise que pôs à prova a Presidência e os demais poderes foi Collorgate [263].

Para se ter uma idéia sobre essa fracionalização partidária, demonstra-se que, no primeiro turno das eleições de 1989, Collor alcançou com o PRN [264] 28,5% dos votos, alcançando apenas 2,6% das cadeiras do Congresso, ao passo que o presidenciável Ulysses Guimarães teve 4,4% de votos com o PMDB [265], chegando a galgar 39,7% das vagas no Congresso [266].

Skidmore explica que esta atitude exageradamente permissiva pode ser explicada por uma "reação retardada à manipulação anterior da legislação eleitoral pelo regime militar". Porém, o legislador desapercebeu-se acerca da função precípua do Presidente, que é de governar, pois sem base política é muito difícil o exercício da função Executiva do Poder [267]. Fernando Collor entrou num governo onde a crise política era latente, e sua situação perante o Congresso era de mínimo apoio político- partidário.

Do lado econômico a situação também era muito delicada, numa cena hiperinflacionária de quase 100% ao mês, a qual necessitava de socorro imediato [268]. Na tentativa de conter a inflação Collor congelou, no dia seguinte à sua posse, as contas de poupança com valores superiores a 1.200 dólares [269]. A dívida externa era alta, o PIB [270] estacionou e a distribuição de rendas fortalecia cada vez mais a desigualdade social [271].

Collor não soube lidar com o Congresso no sentido de colaborar com as investigações da CPI formada dois anos após sua entrada na Presidência, não resolveu o problema da inflação e enfrentou a mídia e oposição de maneira austera.

Neste sentido, o jornal – escrito ou televisionado - foi um dos fatores de derrubada do Presidente Collor. A imprensa brasileira passara a duras penas a fase militar com a notória censura que o governo lhe impunha. Com o fim do militarismo viu-se diante de um escândalo de corrupção que não lhe poderia passar sem a maior cobertura possível. A imprensa também noticiou as denúncias apontadas pelo Presidente Sarney, todavia Sarney tinha uma relação afável com a imprensa, culminando na amenização da pressão da mídia sobre os escândalos de corrupção de seu governo.

A administração Sarney envolveu-se em casos de flagrante corrupção em larga escala, como o favoritismo na construção da ferrovia Norte-Sul, um projeto faraônico e mal planejado visando atender interesses políticos, mas as denúncias na imprensa tinham pouco efeito. Foi apresentada no Congresso uma moção para o impeachment de Sarney, sem nenhuma prova de corrupção pessoal, mas poucos a levaram a sério. Sarney sobreviveu porque era um sagaz manipulador do velho sistema de patronagem e porque era sensível em suas relações com a imprensa [272].

No governo Collor a imprensa teve a grande oportunidade de escancarar os acontecimentos da aventada corrupção e o povo inflou a atitude do jornalismo, mostrando interesse nas notícias sobre os fatos noticiados [273].

Collor não soube ser diplomático, não soube enfrentar a crise. Para Souza o impeachment sofrido pelo então Presidente foi um reflexo da "intenção do presidente e do Congresso de subverter a separação dos poderes" [274]. Demonstrou ser uma pessoa difícil desde os primeiros dias de governo, era pouco concessivo e sua atitude lembrava muito as daqueles "coronéis" nordestinos. Em pouco tempo a charmosa imagem televisiva que encantara até os noticiários internacionais, desmanchou-se sobre a demonstração de uma pessoa inflexível e provinciana. Skidmore fala neste sentido em "autodestruição política" [275] e atitude "politicamente suicida" [276].

Todavia, nem só de infelicidades viveu a presidência de Fernando Collor. A economia brasileira até a chegada dele era uma economia interna e Collor transformou-a numa economia mundialmente aberta [277], estimulando inclusive a competitividade do mercado interno. Collor também iniciou a idéia da privatização daquelas empresas estatais que não necessitavam de gerência governamental. Esta atitude ensejaria na diminuição das folhas de pagamento do governo federal. Mesmo assim, apesar de alguns feitos que serviriam para abrilhantar o governo Collor, sem liderança, nenhum deles prosperaria e, foi o que aconteceu com Fernando Collor, faltou-lhe liderança política [278].

Outrora, diante de todos estes fatos que culminaram com o único caso perfectibilizado de impeachment no Brasil, pode-se extrair uma evolução jurídico- constitucional muito importante e relevante.

Num aspecto, porém, o sistema brasileiro pode ser considerado um sucesso. Conseguiu afastar um presidente de maneira constitucional, sem violência – caso inédito na história do Brasil. Isso levou muitos comentaristas políticos e cidadãos comuns a citarem esse fato como prova de maturidade política de seu país [279].

Neste viés, constata-se que o impeachment de Collor foi uma das maiores exteriorizações da democracia emanadas pelo povo brasileiro. Afinal, a democracia é o fruto da vontade popular atendida, dentro de um processo legal embutido em um estado de direito. As garantias constitucionais foram preservadas e sem guerras ou golpes do povo, por seus representantes, alcançou aquilo que pretendia numa ação conjunta de forças constitucionalmente legais e adequadas.

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Sobre a autora
Maria Cecília Schmidt

bacharel em Direito, técnica judiciária auxiliar do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHMIDT, Maria Cecília. Impeachment aplicável ao Presidente da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1362, 25 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9653. Acesso em: 24 abr. 2024.

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