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O contrato de transporte de pessoa à luz da dignidade humana e a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça:

paradoxo interpretativo

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05/04/2007 às 00:00
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Quem será o culpado pelos assaltos no interior de ônibus? A transportadora que detém condições para evitá-los ou o passageiro que tem que se valer desse meio de locomoção?

I – Introdução.

Temos assistido, com tamanha infelicidade e pavor d´alma, o aumento da criminalidade em nosso país e, para agravar, os constantes assaltos à mão armada no interior de ônibus.

A jurisprudência, principalmente a do Superior Tribunal de Justiça, tem sofrido um movimento pendular, isto é, em certa medida entendem que o dito nefasto equipara-se ao caso fortuito e à força maior, rompendo, desta forma, o nexo causal e exculpando a empresa transportadora, e, de outro lado, atento ao panorama atual dos movimentos delitivos, entrevendo ser previsível e até certo modo evitável essa fatídica ocorrência se envereda por condenar dita empresa.

Neste escrito, calcado em uma história que se dera no átrio do Estado de Mato Grosso do Sul, busca-se alinhar argumentos favoráveis à indenizabilidade, mormente ante a uma empresa de vulto como sói ocorrer com as que procedem ao translado de pessoas a nível interestadual.


II - Da narração do caso concreto.

A sentença, como se entrevê, resume a matéria posta em juízo, verbis: "... em viagem (...) embarcaram alguns homens que anunciaram um assalto, havendo troca de tiros entre os meliantes e o Policial Militar que estava dentro do ônibus (...) No caso em apreço, os danos alegados pela autora resultaram de tentativa de assalto, onde houve troca de tiros entre um policial militar e delinqüentes que embarcaram no ônibus em que a mesma viajava. Nesta troca de tiros, a requerente acabou sendo atingida. Vê-se que o assalto e os tiros constituem fatos estranhos ao contrato de transporte, já que foi dado causa por terceiros que embarcaram no ônibus como passageiros comuns e agiram de forma imprevisível e inesperada. (...) Constata-se que o assalto e o tiroteio onde causou danos a requerente são alheios ao contrato de transporte, pois resultou de força maior, já que os efeitos eram impossíveis de evitar ou impedir." (cf. processo nº 001.04.024840-3, Oitava Ofício Cível, comarca de Campo Grande; ausentes parênteses e reticências no original).

O nó górdio está em saber se este infausto quebra ou não o nexo de causalidade.


III – Dos pontos que subsidiam a tese da responsabilidade da transportadora de passageiros.

III.1 - Da concessão de transporte e suas conseqüências jurídicas.

A transportadora, mediante processo de licitação, onde para lograr-se vitoriosa estabeleceu um preço na contratação de seus serviços para com o Estado, daí ter-se tornado concessionária do serviço público de transporte.

Naturalmente, a referida empresa sabia dos riscos que seu empreendimento atrairia, dentre eles, é certo, os tão propalados assaltos e, com isso, seria imoral e antijurídico que a mesma somente intentasse obter lucros.

O eminente e culto Professor Desembargador Martinho Garcez Neto, em sua obra "Prática da Responsabilidade Civil", 3ª Edição, Saraiva, pág. 103, ensina: "As empresas de transporte, para conseguirem a concessão do serviço público, que exploram vantajosamente, assumem prévia, consciente e deliberadamente a obrigação de transportar incólume o passageiro do ponto inicial ao terminal da viagem. Sabem que assumem um risco contratual que as torna responsáveis no caso de acidente com o passageiro no curso da viagem. Não podem, portanto, honestamente, desembaraçar-se dessa obrigação, atirando a responsabilidade sobre os ombros do terceiro, cujo procedimento não podia deixar de entrar em suas cogitações, por isso que vinculado à exploração comercial da transportadora."

A parte que propusera a demanda, uma jovem psicóloga, tivera sua vida de toda alterada após o sinistro, passando a ser portadora de síndrome pós-traumática (com habitual acompanhamento psicológico), e deficiência motora em sua mão esquerda (onde sequer consegue segurar a sua bebezinha para a amamentação), impedida de dirigir veículo por conta da ausência de força muscular no referido braço, sem contar que a dor psíquica que assenhoreara dela foi tão grande que a obstou de continuar o seu tão sonhado curso de mestrado, ou seja, o medo a rodeia ininterruptamente.

Mesmo assim, a transportadora que conduzira a vítima, desenvolvendo uma atividade lucrativa por imperativo da concessão em que fora agraciada, deveria, embora fazendo às vezes do Estado, ser extirpada da responsabilização pelo assalto ocorrido no interior do seu veículo, atirando toda essa sorte de desgraças nos ombros da passageira?

Ora, tanto a Constituição Federal quanto as leis de escalão menor, sinalizam pela necessidade de indenização, até mesmo em homenagem ao maior cânone dos tempos contemporâneos: a dignidade da pessoa humana.

Como bem leciona o insigne Ministro Eros Grau, em sua obra "A Ordem Econômica na Constituição de 1988", 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 179: "A dignidade da pessoa humana é dotada pelo texto constitucional concomitantemente como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e como fim da ordem econômica (mundo do ser) (art. 170, caput – "a ordem econômica ... tem por fim assegurar a todos existência digna"".

E prossegue, ob. cit, p. 180, o jurisconsulto: "Quanto a ela, observam José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira que fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos fundamentais – direitos individuais e direitos sociais e econômicos ─ mas também à organização econômica. Isso, sem nenhuma dúvida, torna-se plenamente evidente no sistema da Constituição de 1988, no seio do qual, como se vê, é ela – a dignidade da pessoa humana – não apenas fundamento da Republica Federativa do Brasil, mas também o fim ao qual se deve voltar a ordem econômica (mundo do ser)" (sublinhamos).

Concluindo, o Mestre, ob. cit., p. 181, pontifica que: "A dignidade da pessoa humana comparece, assim, na Constituição de 1988, duplamente: no art. 1º como princípio político constitucional conformador (Canotilho); no art. 170, caput, como princípio constitucional impositivo (Canotilho) ou diretriz (Dworkin) – ou, ainda, direi eu, como norma-objeto. (...) Logo, o exercício de qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado àquela promoção expressará violação do princípio duplamente contemplado na Constituição".

É oportuno, ademais, o ensinamento do Desembargador Mello Tavares, integrante da Décima Primeira Câmara Cível do TJ/RJ, na apelação cível nº 99.001.3913, onde vaticina: "A matéria é palpitante e tem suscitado inúmeros pronunciamentos, até o advento da Carta Magna de 88, cujo artigo 37, § 6º impôs a chamada responsabilidade pelo risco, às empresas concessionárias de serviço público. Conforme dispõem o artigo 17, do Decreto nº 2681, o artigo 14 da Lei 8078, Código de Defesa do Consumidor e artigo 175, parágrafo único, inciso IV da Constituição Federal, a apelada, por ser prestadora de serviço público de caráter essencial, responde, independentemente de existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores, por ocasião da prestação do serviço (...)" (grifo nosso e inocorrentes parênteses e reticências na fonte).

Não se afigura crível que a concessionária não tenha tido em mente a grandeza que é transportar vidas humanas, porque, se desejasse apenas o logro dos bônus sem o malogro dos riscos, haveria de ter se pautado pela carga de animais já defenestrados, como, por exemplo, se dá com os "caminhões baús", onde se trasladam carnes e vísceras de bovinos e suínos.

Perora-se, uma vez mais, com o magistério de Martinho Garcez Neto, ob. cit., onde assesta: "... que, sendo um acontecimento inevitável, mas podendo o devedor prevê-lo, quando celebra o contrato, não exonera da responsabilidade por falta de cumprimento, porque o obrigado não devia ter assumido temerariamente o compromisso quando já era possível prever que haveria de ser inibido de realizar o convencionado."

Seria lógico, humanamente aceitável, que a concessionária, quando pactuou com o Estado incumbência do transporte de pessoas, tivesse deslembrado de que assaltos e roubos não viessem ocorrer no trajeto que sua frota perfaz?

Repugna ao senso comum que um ente que representa o Estado, dada à concessão deste, se preocupe mais com o lucro do que com a incolumidade física de seus passageiros transportados! Nenhum sistema jurídico seria capaz de permitir que o interesse privado fosse superlativo ao interesse público e a vida humana, em toda sua dimensão e largueza (bem maior que a humanidade consagra). Do contrário, tanto o Estado Democrático de Direito, quanto à própria finalidade da ordem econômica, estariam derruídos pela completa ausência dos comandos da sociabilidade e da eticidade, pois o selo que encobriria essa desataviada conduta receberia a chancela da abjeta ganância, peculiar à vetusta época de um Estado liberal.

III.2 – Do contrato de transporte, garantia implícita da incolumidade física, avença de adesão protegida pela lei consumeirista.

A transportada, como é curial, ao adquirir o bilhete de passagem da empresa, supunha que esta lhe oferecesse, no decorrer do trajeto, todo bem estar e segurança a que fazia jus.

Aliás, o transportador tem o dever jurídico de manter hígido o transportado, como se espraia da verve de Rodrigo Binotto Grevetti, na matéria "Contrato de transporte e responsabilidade civil", publicada no site Boletim Jurídico (www.boletimjuridico.com.br), acessado em 07/03/2007, ao anotar que: "Uma das mais importantes características do contrato de transporte é a chamada cláusula de incolumidade. Essa cláusula, implícita no contrato de transporte, implica no fato de não ser a obrigação do transportador apenas de meio ou de resultado, mas também de garantia. Ou seja, tem o transportador o dever de zelar pela incolumidade do passageiro, a fim de evitar que qualquer dano possa emergir durante a vigência do contrato. O transportador assume a obrigação de conduzir o passageiro incólume ao seu destino e fica obrigada a reparar o dano por ele sofrido. Uma vez descumprida essa obrigação de levar o passageiro são e salvo ao seu destino, exsurge o dever de indenizar do transportador, independentemente de culpa." (destacamos).

De efeito, as transportadoras sequer guarnecem seus ônibus de meios tecnológicos mínimos para a assecuração da inteireza física de seus clientes, bastando verificar que não dispõem de rádio comunicador, muito menos de qualquer modalidade de rastreamento por satélite e, para piorar, nem câmeras dentro do interior dos veículos se fazem presentes.

Frente a tamanho descaso, quer nos parecer que a subentendida cláusula de garantia jamais está sendo, nem de longe, observada por esta modalidade empresarial, que pouca ou nenhuma importância acomete à indelével vida humana. É lamentável!

Não fosse isso suficiente, em bastas vezes, quando da aquisição da passagem nos pontos que medeiam os percursos, inexistem maiores cuidados quanto à identificação de passageiros, já que, é certo, se na porta de cada ônibus houvesse um singelo detector de metal, evidentemente os meliantes não embarcariam como se passageiros comuns fossem.

Na hipótese em comento, a própria sentença, por diversas vezes, deixa escandido que: "delinqüentes que embarcaram no ônibus em que a mesma viajava (...) terceiros que embarcaram no ônibus como passageiros comuns" (autos cit., apusemos parênteses e reticências).

Então, se os bandidos se fazem passar, cotidianamente, por inocentes passageiros, isso se dá pelo fato de que as transportadoras não dotam seus ônibus de nenhum mecanismo que possa coibir a entrada de pessoas suspeitas, ou seja, não se preocupam – como deveriam – com a incolumidade física de sua clientela, o que, por si só, já é o bastante para deixar clara a ofensa à cláusula implícita de salvaguarda física dos transportados.

Em outras palavras, os serviços prestados pelas empresas de ônibus, com raras exceções, no que tange ao mote da segurança daqueles que estão sob seus cuidados, vêem-se enodoados de defeitos, vilipendiando, assim, os arts. 14 e 22, ambos do Código de Defesa do Consumidor.

Não se tem qualquer dúvida que, nos dias que correm, os assaltos à mão armada dentro de ônibus tem se avultado, não mais podendo ser ignorada essa realidade pelas empresas transportadoras, que, quando instadas a indenizar os que se viram vitimados, alegam que as ditas condutas delitivas não eram esperadas e muito menos tidas na conta de previsíveis.

Não é a toa que o provecto Desembargador Mello Tavares ob. cit., averba: "O assalto, hoje, se insere nos riscos próprios do deslocamento. É mais provável o passageiro ser assaltado, do que sofrer danos decorrentes do próprio transporte. Ora, diante da previsibilidade de assalto, não se pode sustentar de que se trata de fato de terceiro, excludente de responsabilidade civil da transportadora."

Neste sentido, o julgamento dos Embargos Infringentes nº 415/93, realizado pelo 1º Grupo de Câmaras Cíveis do extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio de Janeiro, sendo Relator o então Juiz Gustavo Leite, verbis: "Não é força maior capaz de excluir a responsabilidade da transportadora a ocorrência de assalto ao ônibus, ensejando a causalidade adequada às lesões sofridas pela vítima, se tal fato, de tão repetido, é previsível e, com cautela, seria evitado." (Consultor Jurídico, no site eletrônico http://conjur.estadao.com.br/static/text/18771,1, cujo título é "Responsabilidade Objetiva – empresa de ônibus responde por assalto a passageiro", matéria escrita por Drault Ernanny Filho, datada de 03/11/2000; acessada em 08/03/2007).

Deslembrar da trivialidade de um assalto seria tão bisonho quanto imaginar que o Pantanal Sul Mato-Grossense não tivesse períodos de alagamento, ou, perdoado o vocábulo coloquial, constituir-se-ia em "tapar o sol com a peneira"!

Toma-se de empréstimo a fabulosa lição de Arnaldo Medeiros da Fonseca, em sua obra "Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão", 3ª edição, p. 159, onde preleciona: "Um temporal é um fenômeno da natureza que não podemos obstar, mas podemos prevenir e devemos prever, numa cidade como o Rio de Janeiro, periodicamente a ele sujeita às suas conseqüências, sobretudo quando se trata do desmonte de morro a cavaleiro de ruas e logradouros públicos... A concepção que aceitamos recusa-se a admitir esse critério apriorístico (de que existia uma categoria de acontecimentos por si mesmos constitutivos de força maior)."

Tem sido até mesmo patético o desleixo das empresas quanto à garantia da incolumidade física de seus passageiros, já que, em certos casos, estes últimos se defendem quando da materialização de assaltos, como se vislumbra deste noticiário da internet: "Passageiros de ônibus reagem e quase lincham bandidos durante assalto.

O desempregado Edson Carlos Gomes, conhecido como "Mata Rato", residente no Anjo da Guarda, preso na madrugada de ontem, depois de uma tentativa frustrada de assalto ao ônibus da empresa Taguatur, que faz linha para o Anjo da Guarda, prestou um longo depoimento ao delegado Paulo Roberto, titular do 5º DP, naquele bairro.

O assalto aconteceu horas antes da prisão de "Mata Rato", quando ele e os comparsas, no caso três adolescentes, anunciaram a ação criminosa já nas proximidades da garagem da empresa. Cansados de serem assaltados, tão logo anunciaram o crime, um passageiro que portava um facão investiu contra "Mata Rato"; tentou golpeá-lo no pescoço, mas este se defendeu ao colocar o braço e recebendo um profundo golpe.

Logo em seguida, um outro passageiro não identificado, assim como o primeiro, sacou de um revólver e efetuou alguns disparos, dos quais um atingiu um adolescente em um dos pés. O quarteto empreendeu fuga, mas logo em seguida, quando procurava atendimento no Socorrão I, "Mata Rato" acabou sendo preso e delatando os comparsas, presos em seguida. (...)"(in http://www.jornalvejaagora.com.br/2006/8/17/Pagina15970.htm, acessado em 09/03/2007; não figuram parênteses e reticências no original).

E nem se diga que as transportadoras não detêm ciência de que outros ônibus seus, no território brasileiro, já foram assaltados, onde a giza de exemplo se verifica: "Simples viagem de ônibus pode virar pesadelo: em 10 dias, 2 assaltos a ônibus.

Infelizmente tem sido assim nos últimos meses, especialmente no trecho entre Goiânia e Aragarças, GO-060 e BR-158, quadrilhas especializadas e até amadoras sem nenhuma reserva estão interceptando e assaltando ônibus nas referidas rodovias. O último assalto aconteceu na madrugada de 8 de dezembro, por volta de 1 hora, quando um elemento, segundo os passageiros, embarcou no ônibus da Viação Andorinha, procedente de Rondônia para Brasília, com 22 passageiros, e no km 18, próximo a Bom Jardim de Goiás, o assaltante anunciou o assalto fazendo que o motorista entrasse 2 quilômetros numa estrada vicinal, quando chegaram mais dois comparsas e iniciou o saque causando prejuízo em torno de R$ 15.000,00 aos passageiros, (...)" (in http://www.jlocal.com.br/geral.php?pesquisa=8; acessado em 09/03/2007).

O mais lamentável, entristecedor mesmo, é que, por exemplo, a empresa Andorinha possui grandeza inenarrável no ramo do transporte de cargas, em relação ao de passageiro, já que para a primeira a segurança é sua preocupação maior, como dimana do estampado no seu próprio site eletrônico, verbis:

"Segurança - Toda frota da Andorinha Cargas conta com equipamentos de rastreamento via satélite de alta órbita e gerenciamento24 horas feita por empresa especializada. Além disso, toda carga transportada tem cobertura de seguro contra acidente, incêndio e roubo. Segurança é o grande diferencial da Andorinha Cargas." (in: http://www.andorinhacargas.com.br/novo/IfastGerencia.php?8,2534,f9b013a7c4e62ea; acessado em 0903/2007, destacamos).

A bem da verdade, máxime no caso da Andorinha, ocorrerá dupla versão: a de primeiro mundo para cargas (rastreador por satélite de alta órbita) e a de última categoria para o transporte de seres humanos (prisão no bagageiro, ferimentos no tiroteio), ou seja, ao invés do rastreador, sobra-lhes apenas o último fonema: a dor!

Poderíamos valer da luminar doutrina de Suzana de Toledo Barros, "O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais", 3ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, pp. 84 e 88, respectivamente, quando trata do princípio da proporcionalidade: "Muitas vezes, um juízo de adequação e necessidade não é suficiente para determinar a justiça da medida restritiva adotada em uma determinada situação, precisamente porque dela pode resultar uma sobrecarga ao atingido que não se compadece com a idéia de justa medida. Assim, o princípio da proporcionalidade strictu sensu, complementando os princípios da adequação e da necessidade, é de suma importância para indicar se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim perseguido. A idéia de equilíbrio entre valores e bens é exalçada (...) Um tal controle proposto, pela verificação da proporcionalidade entre meios e fins, pode, porém, ser empreendido segundo orientações que se vão firmando nos Tribunais, de modo a constituir-se em idéias objetivas de justa medida. Assim, por exemplo, o Tribunal Constitucional alemão criou três critérios, a partir dos quais faz a ponderação dos meios em relação aos fins, em se tratando de direitos fundamentais: a) quanto mais sensível revelar-se a intromissão da norma na posição jurídica do indivíduo, mais relevantes hão de ser os interesses da comunidade que com ele colidam; b) do mesmo modo, o maior peso e preeminência dos interesses gerais justificam uma interferência mais grave; c) o diverso peso dos direitos fundamentais pode ensejar uma escala de valores em si mesmo, como ocorre na esfera jurídico-penal (o direito à vida teria preferência ao direito à propriedade)".

Em síntese, os famigerados assaltos à mão armada que se dão em ônibus não se cuidam da ocorrência de força maior, mas sim, do descumprimento das transportadoras de passageiros quanto à cláusula implícita de resguardo da incolumidade física dos transportados, porque aquelas primeiras não têm tido qualquer preocupação em se valer de recursos tecnológicos – e até humanos – para, se não coibir de todo, pelo menos inibir a ação de criminosos dentro de seus veículos. Descuram-se do princípio da proporcionalidade, meio jurídico apropriado à pretensão de equilibrar situações, afim de que a dignidade humana veja-se respeitada em seu máximo grau.

É bem por isso que Eros Grau, ob. cit., p. 222, quanto a função social da propriedade, aqui de todo aplicável às transportadoras de pessoas, enfatiza que: "... o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário - ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade..." (reticências ausentes na fonte).

Assim sendo, o não agir das empresas de ônibus, por si mesmo, já significa ferimento à cláusula tácita de incolumidade, consumando o ato ilícito.

III.3 –Do assalto à mão armada perpetrado em ônibus, reiteração que gera sua previsibilidade e possibilidade

de se obstar ou dificultar a ação dos meliantes.

Infelizmente, o cenário pátrio tem exibido, à mão cheia, a ocorrência de assaltos dentro dos veículos de transportes coletivos de pessoas, como se infere da pesquisa de "Avaliação da satisfação dos usuários dos serviços das empresas de transportes terrestres", extraída do site www.antt.gov.br, acessado em 09/03/2007, onde se vislumbra:

Mesmo diante do alarmante índice de assalto em ônibus, em nenhum momento as empresas de transportes de passageiros, em sua maioria, tomam as providências necessárias com o fito de evitar, quiçá minorar, as conseqüências advindas de situações de tal infortúnio, pois sequer possuem aparelho de rádio amador nos seus veículos, o que dirá outros equipamentos de segurança como câmeras, rastreadores por satélite com cobertura nacional pelo sistema GPS, que conta com botão para pronto atendimento em caso de pânico.

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Esses recursos, por sinal, são largamente utilizados pelas empresas de transporte de cargas, que também transladam pessoas. Apenas, é bom que se diga, na primeira hipótese se busca proteger os bens materiais deslocados pelas rodovias, já igual cuidado não se tem quanto ao tráfego de passageiros.

Aliás, estas condutas criminosas estão tão repetidas que perderam o signo da imprevisibilidade, porque, como alinhado no gráfico acima, o volume é tão crescente que já se incorporara na triste rotina do povo brasileiro. Por curial, se existe um grau de previsão deve, na mesma medida, se fazer presente um meio de as alijar ou evitá-las com grande otimização.

Daí porque o Desembargador Renato Mimessi, que compõe o Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, em seu brilhante voto enfatiza que: "Ora, se o fato é previsível ele pode de alguma forma ser evitado, seja por meio dos atos ostensivos, como a contratação de seguranças para as linhas de maior periculosidade, seja com atitudes preventivas, como a contratação de seguro que garanta o ressarcimento a eventuais danos dos contratantes do serviço, ou até mesmo por meio do monitoramento dos veículos via satélite, expediente este utilizado há longa data para a segurança de cargas valiosas inanimadas..." (Processo nº 02.001761-8 - Apelação Cível. P. 1º/10/2002; no texto primitivo não se tem as reticências).

E diante da inércia das empresas de transporte de pessoas, as quais não têm se preocupado em cumprir na integralidade a disposição contida no art. 730, do Código Civil, muito menos a Lei Consumeirista (arts. 14 e 22), não se adaptando à realidade de seu negócio, como, v.g., equipar seus carros com aparelhos de segurança, ao menos algum que possibilite comunicação rápida para pedidos de socorro, como um simples rádio-amador, os tribunais pátrios têm se posicionando desta maneira: "RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. ASSALTO NO INTERIOR DE ÔNIBUS. LESÃO IRREVERSÍVEL EM PASSAGEIRO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO PELA DIVERGÊNCIA, MAS DESPROVIDO PELAS PECULIARIDADES DA ESPÉCIE.

Tendo se tornado fato comum e corriqueiro, sobretudo em determinadas cidades e zonas tidas como perigosas, o assalto no interior do ônibus já não pode mais ser genericamente qualificado como fato extraordinário e imprevisível na execução do contrato de transporte, ensejando maior precaução por parte das empresas responsáveis por esse tipo de serviço, a fim de dar maior garantia e incolumidade aos passageiros. Recurso especial conhecido pela divergência, mas desprovido. (STJ. Processo nº REsp 232649/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Barros Monteiro, rel. p/ acórdão Min. César Asfor Rocha, DJU 30.06.2003, p. 250; destaques são nossos).

Ademais, atenta à triste realidade social e preocupada com as sérias conseqüências que vêm atingindo uma gama de passageiros, por conta do descaso das empresas de transporte de pessoas, relativamente à segurança destas, haja vista pouco, ou nenhum investimento, têm sido feito em suas frotas, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, na esteira de outros pretórios, vem reconhecendo a responsabilidade objetiva dessas empresas em casos de assaltos ocorridos a passageiros no itinerário da viagem, vez que, durante a vigência do contrato de transporte, elas têm o dever de primar pela segurança e pela incolumidade de seus transportados até o local de destino de cada qual, em estrita obediência à regra insculpida no § 6º do art. 37, da Carta Política e no art. 730, do Código Civil.

Abebera-se, neste comenos, de lapidares julgados da referida Corte de Justiça: "APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – ASSALTO A ÔNIBUS DE PASSAGEIROS – FREQUENTE OCORRÊNCIA – NÃO-CONFIGURAÇÃO DAS HIPÓTESES DE FORÇA MAIOR OU CASO FORTUITO –RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR – AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE – PROVIDO. Em caso de freqüente assalto a ônibus de passageiros, as hipóteses de força maior ou caso fortuito não se configuram, visto a previsibilidade do evento. Assim, responde o transportador pelos danos causados a passageiros durante assalto, ante a ausência de medidas protetivas tomadas." (. Processo nº 2005.007676-7/0000-00. Terceira Turma Cível. Rel. Des. Oswaldo Rodrigues de Melo, j. 08/08/2005); "APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – ASSALTO A ÔNIBUS DE PASSAGEIROS – NÃO-CONFIGURAÇÃO DE HIPÓTESE DE CASO FORTUITO – AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE – PROVIDO. O caso de assalto a ônibus de passageiros, dada à lamentável freqüência com que ocorre, não configura a hipótese de caso fortuito, uma vez que é evento perfeitamente previsível, respondendo a empresa pelos danos ocasionados, inclusive os morais." (Processo nº 2004.014530-6/0000-00. Terceira Turma Cível. Rel. Des. Oswaldo Rodrigues de Melo, j 21/02/2005).

Recentemente, uma vez mais, o fulgor do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, traz a círio, o quanto segue: "Em sã consciência, não se pode pôr em dúvida que no Brasil dos dias correntes o assalto nos meios de transporte de carga e de pessoas é fato previsível e até corriqueiro. Falar, pois, em caso fortuito nessa hipótese é afastar ou ficar insensível ao óbvio. Na aplicação da lei, o intérprete deve louvar-se no método evolutivo-histórico, de aproximação da regra jurídica à realidade presente, dando-lhe a inteligência e o alcance condizentes com o novo quadro formado pelas vicissitudes sociais.

Assim, o assalto à mão armada nos meios de transporte de cargas e passageiros deixou de revestir esses atributos (imprevisibilidade e inevitabilidade), em face da habitualidade de sua ocorrência, não sendo lícito invocá-lo como causa de exclusão da responsabilidade do transportador, implicando, de conseqüência, no pagamento da indenização pleiteada ante a ausência de medidas protetivas tomadas." (TJMS. Processo nº 2000.001484-2/0000-00 – Dourados (Embargos Infringentes). Segunda Turma Cível. Rel. Des. Paulo Alfeu Puccinelli, j. em 11/11/2002; grifos nossos).

Entrementes, o Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que: "A Segunda Seção desta Corte já proclamou o entendimento de que o fato inteiramente estranho ao transporte em si (assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo) constitui caso fortuito, excludente de responsabilidade da empresa transportadora." (Processo nº REsp 726371/RJ. Quarta Turma. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 07/12/2006).

É de indagar: é realmente estranho ao contrato de transporte a possibilidade de assalto que ocorre durante os itinerários? Não se tornaram habituais essas práticas delitivas? Ou são elas verdadeiramente imprevisíveis e inevitáveis?

Para responder às questões levantadas acima, sem fugir da realidade sócio-político-jurídica de nosso país, devemos principiar, por dizer, que é tão factível a ocorrência de um assalto dentro de um ônibus, máxime porque segundo as estatísticas essa malsinada conduta vem se constituindo numa nova modalidade de apropriação de bandidos sobre o dinheiro alheio, haja vista que, em tal circunstância, se fazem presentes inúmeras pessoas e desguarnecidas, em regra, de qualquer modalidade protetiva, tornando-se presas fáceis desses agentes do crime.

Se assim o é, mormente para não se dar às costas à cláusula implícita da proteção da incolumidade física dos transportados, as empresas desse ramo mercantil haveriam de ser mais ciosas com seus clientes, oferecendo-lhes alguma sorte de mecanismo eletrônico que os protegessem, uma vez que não deve ser deslembrado que quando estão a transportar cargas, a situação é bem diversa, ou seja, dotam sua frota com os mais modernos rastreadores.

Tristemente, ao que parece, o Superior Tribunal de Justiça, guardadas as honrosas exceções dos prudentes Ministros que formaram a minoria vencida na Segunda Seção, tem avalizado o descuido das transportadoras, porque estas sabem, de antemão, que bastará assercionar que os assaltos seriam estranhos ao contrato de transporte e restarão alforriadas. Quem paga com essa decisão? As vítimas, que no geral, ou são feridas, mortas ou estupradas e, ainda assim, seria mero caso fortuito!

Se outra fosse a orientação do Superior Tribunal de Justiça, como é óbvio, as sociedades transportadoras, ao se verem na obrigação de indenizar, redobrariam suas cautelas, celebrariam contratos de seguros, equipariam sua frota... Enfim, os dispositivos do Código Civil e do Estatuto de Proteção ao Consumidor passariam a ter aplicabilidade efetiva; já, como está no momento, neste tanto, eles figuram como simbólicas peças decorativas.

Porém, em continuidade às inquirições formuladas dantes, ninguém pode ignorar que os assaltos no interior de ônibus são tão freqüentes como os outros que se dão nas cidades, no âmago das residências. Deste modo, entender que essas atitudes criminosas são imprevisíveis e inevitáveis? É esconder-se da realidade fática. Por exemplo, as atuais residências são guarnecidas por cerca-elétrica, monitoramente eletrônico... O transporte de passageiro não carece dessas comezinhas precauções, porque, se vir a dar-se um assalto, é mera força maior!

Com todo o respeito que este escritor nutre pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, não consigo entender como se cogitar de justiça que, desde a concepção romana já se fizera intitulada com o signo de "dar a cada um o que é seu", quando se confere à vítima, que pagara sua passagem e se vira menoscabada em sua higidez físico-mental, o veredicto de que estará também desprotegida quanto ao ressarcimento e, por outro lado, a transportadora fora vitimada, esta sim, por um episódio calcado na força maior e no caso fortuito.

Bem se aquilata que, sem embargo de opinião diversa, a interpretação lançada pela Corte da Cidadania, neste caso, passa totalmente ao largo do próprio conceito de cidadão, já que não pesa, nem de longe, a dignidade da pessoa humana, prestigiando o viés patrimonialista, sepultado, ou que deveria sê-lo, pelos novos diplomas legais que se dirigem e se norteiam pelo timbre da sociabilidade e da eticidade.

As referidas decisões, é bom que se diga, chocam-se com a dinâmica constitucional, porque outro seria o ângulo se se seguisse a trilha exegética preconizada por Daniel Samerto, in "Direitos Fundamentais e Relações Privadas", 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumene Júris, 2006, p. 124, onde grafa que "A eficácia irradiante, neste sentido, enseja a "humanização" da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional."

E dá seguimento o mestre, ob. cit, p. 125: "... em razão da riqueza axiológica da Constituição de 1988, que conferiu absoluta centralidade e primazia aos direitos fundamentais e está fortemente impregnada por valores solidarísticos, de marcada inspiração humanística. Assim, toda a legislação infraconstitucional (civil, penal, processual, econômica etc.), muitas vezes editada em contexto axiológico diverso, mais individualista ou mais totalitário, terá de ser revisitada pelo operador do direito, a partir de uma nova perspectiva, centrada na Constituição e em especial nos direitos fundamentais que esta consagra. Trata-se do fenômeno da filtragem constitucional, que exige do aplicador do direito uma nova postura, voltada para a promoção dos valores constitucionais em todos os quadrantes do direito positivo."

Ensina, de lês a lês, o jurista prediz, ob. cit., p. 127: "A eficácia irradiante dos direitos fundamentais manifesta-se sobretudo em relação à interpretação e aplicação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, presentes na legislação infraconstitucional. Conceitos como boa-fé, ordem pública, interesse público, abuso de direito, bons costumes, dentre tantos outros, abrem-se, pela sua plasticidade, a uma verdadeira reconstrução, edificada à luz dos direitos fundamentais".

Do que até aqui fora exposto, se extrai, com segurança, que para o transporte de carga, tratamento preferencial; para o de gente, migalhas! Ter alguém morto, ferido gravemente, ou, quiçá, uma filha estuprada numa viagem de ônibus, face assalto engendrado no imo deste, é caso fortuito ou força maior. Para quem? Para os indiferentes, para os não dotados de sensibilidade jurídica, para os tecnocratas da legislação!

Eu imagino, de mim para comigo mesmo, uma filhinha órfã, porque seu pai fora vitimado dentro de um ônibus, em virtude de um assalto, tendo sua mãe, doravante, minguado recurso a lhe oferecer e, explicando-se ao depois, que a justiça nada dera como reparação do dano que postulara, porque o seu genitor tivera uma infelicidade única, de todo o semelhante a um raio que cai em uma árvore. E esta mesma criancinha, olhando para o prédio do lado, já que o seu habitat era um morro, questionar à sua mãe: "Porque não usar um pára-raios para o papai?" O que esta mãe responderia, senhores Ministros?

Prefiro ficar com as "Páginas da Vida", de uma ficção de novela, que espelha a dura realidade dos dias atuais, do que a miragem jurídica de uma decisão que enuncia ser um roubo em ônibus um fato pouco corriqueiro e, por isso, distante do laço obrigacional cravado no contrato de transporte de pessoas. Tenhamos a ardência na consciência de justiça para não nos chamuscarmos no cotidiano de nossas vivências. Esse é o papel do aplicador realístico da norma jurídica e que se espera da vera Corte da Cidadania!

Em igual senda, está o indisputável Daniel Sarmento, ob. cit., p. 261, que assim defende: "... um dos fatores primordiais que deve ser considerado nas questões envolvendo a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é a existência e o grau de desigualdade fática entre os envolvidos. Em outras palavras, quanto maior for a desigualdade fática entre os envolvidos, mais intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada" (ausentes as reticências no original).

Brada ainda Sarmento, ob. cit., p. 263 "Desnecessário frisar que , no caso brasileiro, diante da nossa gritante desigualdade social, esta questão assume um relevo ímpar. Aqui, a enorme vulnerabilidade de amplos setores da população justifica, com sobras de razão, um reforço à proteção dos seus direitos fundamentais, no âmbito das relações travadas com outros particulares mais poderosos, como os empregadores e os fornecedores de bens e serviços".

Quanto distonia hermenêutica vem sufragando a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça! Entrementes, os tribunais estaduais, voltados à proteção da dignidade da pessoa humana, têm dado ganho de causa aos passageiros acometidos pela telada infração de meliantes, já, como se disse, o guardião da legalidade tem se postado neste comenos bem distante dela.

Pá de cal sobre o assunto, encontra-se no fúlgido excerto jurisprudencial, do seio do tribunal mineiro, em que assevera sobre a inescondível responsabilidade das empresas de transportes no caso de assalto a ônibus, in expressis: "AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - EMPRESA DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - ASSALTO A ÔNIBUS - NEXO CAUSAL - DANO MORAL - DEVER DE INDENIZAR EXISTENTE. O dever de indenizar, por parte de empresa concessionária de serviços encontra respaldo na responsabilidade objetiva, salvo, se a empresa concessionária não consegue demonstrar que o assalto em que se envolveu um ônibus de sua propriedade, constitui um caso de força maior, ou seja, não eram corriqueiros e de seu conhecimento, tais acontecimentos na região. Aplicação dos artigos 37, § 6º, da CF e 14 e 22 do CDC." (Processo nº 2.0000.00.392891-2/000(1). Rel. Des. Unias Silva, j. DJMG 18.06.2003).

E no voto do notável Desembargador Unias Silva, que ementara o aresto supra, asseverara que: "A matéria discutida nestes autos, deve ser apreciada sob o prisma da responsabilidade objetiva, pois a empresa-ré presta serviço público, equiparando-se à Administração Pública para os fins do § 6º, do art. 37, da Constituição Federal, que dispõe: ‘As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.’ A jurisprudência desta egrégia Corte de Alçada assim já decidiu: ‘Nos casos de responsabilidade objetiva, a obrigação de indenizar decorre da simples comprovação do dano ou prejuízo e do nexo de causalidade entre ele e a conduta do agente. A culpa deste é elemento subjetivo, não sendo essencial para a sua responsabilização.’ (Apelação Cível nº 331.718-6 - 2ª Câmara Cível do TAMG - Relator Juiz Edgard Penna Amorim). Como se não bastasse essas assertivas, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 22, dispõe, in verbis: ‘Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código’. E ainda, o Decreto n. 2.681, de 7.12.1912, em seu artigo 17, adotou a teoria da responsabilidade objetiva, que já está consagrada, em casos que tais, na Constituição Federal, como alhures exposto, considerando sempre presumida a culpa. Por certo, a teoria objetiva não alcança extremos do risco integral, em que sempre se afirma a responsabilidade da pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviços públicos, visto que há um limite para essa responsabilidade, que pode ser atenuada ou mesmo excluída se houver concorrência das seguintes hipóteses: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior. Hipóteses estas que, in casu, não existem. As provas produzidas nos autos comprovam claramente que em primeiro lugar, a autora não teve nenhum tipo de culpa no evento. Em segundo, não há que se falar em caso fortuito ou força maior, eis que, era de notório conhecimento da ré os freqüentes assaltos a ônibus no local onde se deram os fatos e, nada foi feito para evitar os acontecimentos que eram plenamente previsíveis. Bem se sabe que o dever maior de proteção e vigilância é do Estado, mas, em casos desta natureza, sem sombra de dúvidas, até mesmo por obrigação legal (artigo 37, §6º da CR/88; artigo 22 do CDC; Decreto nº: 2.681 de 1912), a empresa concessionária do serviço público de transporte deve procurar meios de dificultar ou impedir, fatos iguais a este, até mesmo por sua previsibilidade, pois a imprensa, como um todo, noticia todos os dias casos similares, sendo de notória sabença que a região onde se deram os fatos possui alto índice de assaltos à mão armada. Assim, o dever de cautela se impunha com rigor. (...) Como dito pela douta Juíza sentenciante, também entendo que: ‘Na época atual, como se vê dos noticiários da imprensa, é comum a ocorrência de assaltos a ônibus de passageiros, especialmente nos horários noturnos, quando a vigilância policial é menor, assim como há maior dificuldade de identificação dos passageiros colhidos no trajeto. Logo, não se trata de caso fortuito ou força maior, para eximir o transportador de indenizar o passageiro que venha a ser assaltado no curso da viagem.’ (fls.70-TA). (...) Como muito bem dito, pelo eminente Juiz Nilson Reis, ex-membro desta egrégia 7ª Câmara Cível, quando do julgamento da Apelação Cível nº: 330.215-6, que apreciou o mesmo assalto narrado nestes autos, temos que: ‘...houve negligência por parte da transportadora apelada no momento em que tinha a mesma conhecimento do risco de assalto na região, tendo inclusive outros veículos seus sido envolvidos em assalto, conforme os documentos retromencionados, sem que, para tanto, tomasse qualquer medida de segurança e até mesmo preventiva a fim de se evitar ou até mesmo dificultar a ação dos bandidos.’ Entendo que já está passando da hora de os órgãos competentes exigirem das empresas concessionárias do serviço público de transporte de passageiros a criação de sistemas preventivos de segurança ou , no mínimo, providenciar a contratação de serviços de segurança. Não criando nenhuma medida concreta, por certo, deverão ditas empresas continuar a responder por eventos desta natureza. (...) Pelo exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso, mantendo-se incólume a r. sentença recorrida." (ausentes parênteses, reticências e grifos no texto primígino).

III.4 – Do ingresso de assaltantes como se passageiros comuns fossem, fortuito interno, forjador da não exclusão da responsabilidade da transportadora.

Apenas para argumentar, suponha-se que o assalto seja realmente categorizado como um fato imprevisível, ainda assim estar-se-á frente ao denominado fortuito interno.

Explica-se: na hipótese que se dera no Estado de Mato Grosso do Sul, o juízo monocrático, por várias vezes, deixa grafado que os bandidos adentraram no ônibus como se passageiros fossem (e.g. "já que foi dado causa por terceiros que embarcaram no ônibus como passageiros comuns e agiram de forma imprevisível e inesperada.") e, com isso, passaram a integrar a própria atividade desta última, ou seja, adquiriram passagens se colocando dentro do próprio risco do transporte.

Isso é tão verdadeiro que nada impediria que antes que eles anunciassem o assalto, fossem vitimados por um acidente do próprio ônibus, ou, ainda, que fossem sacrificados por uma outra equipe de bandidos. E se tal tivesse ocorrido, fariam jus, os mesmos, à indenização que deveria ser vertida pela empresa, o que entremostra que estavam englobados também no próprio contrato de transporte, em total igualdade de condições.

Essas evidências, como bem apregoado por Rodrigo Binotto Grevetti, ob. cit., denomina-se fortuito interno, pois o doutrinador faz questão de enunciar que: "O fortuito interno é o fato imprevisível e inevitável que se relaciona com os riscos da atividade desenvolvida pelo transportador. É ligado à pessoa, à coisa ou à empresa do agente. Pode-se citar como exemplo o estouro de um pneu do veículo, a quebra da barra de direção, ou o mal súbito do motorista. Mesmo sendo acontecimentos imprevisíveis, estão ligados ao negócio explorado pelo transportador, razão pela qual o fortuito interno não o exonera do dever de indenizar." (não pertencentes grifos no texto primitivo)

Destarte, se os próprios meliantes se fizeram de passageiros (transportados), acrescido do avultante e iniludível número de assalto a ônibus, o fortuito interno se impõe na espécie, como se aquilata deste julgado: "AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - EMPRESA DE TRANSPORTE - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - ASSALTO A ÔNIBUS - CARACTERIZAÇÃO DE FORTUITO INTERNO - DEVER DE INDENIZAR. - Toda empresa de transporte, seja em razão de ser prestadora de serviço público, seja em razão da incidência do CDC, responde objetivamente pelos danos causados. - Não obstante a força maior e o caso fortuito serem causas excludentes da responsabilidade, entende-se que o fortuito interno (inerente ao próprio negócio) não a elide. - Na atual conjuntura, em que os assaltos a ônibus tornaram-se lugar comum, tal crime passa a enquadrar-se na categoria do fortuito interno, pelo qual tem o dever de responder a empresa contratada." (TJMG. Processo nº 2.0000.00.441881-9/000(1). Nona Câmara Cível. Rel. Des. Márcia de Paoli Balbino, p. DJMG 17/06/2004).

Por mais esta ótica, se desenha a responsabilização, em casos que tais, das empresas transportadoras de passageiros. Isto porque, se num primeiro momento o transportado-assaltante se fizera imiscuir na relação de consumo, adquirindo bilhetes de passagens, não poderá, ao depois, ao tornar-se público seu intento criminoso, desfazer-se a cadeia consumeirista.

Em bom vernáculo, é de se dizer que alguém que se tornara consumidor dos préstimos da transportadora, venha se desatrelar dessa relação antes do final do destino assinalado na passagem que comprara. Inexiste, até mesmo por questão lógico-jurídica, a figura da desconsumeirização, haja vista que, de igual modo, inocorre o fenômeno da desmaterialização do passageiro. Se ladrão ou não, consumidor o era!

III.5 – Do fato de terceiro, aplicação da Súmula nº 187 do STF, o que configura a responsabilidade do transportador.

Uma coisa é certa: a jovem psicóloga foi vitimada pelos tiros em decorrência do assalto que se dera no interior do ônibus da empresa transportadora. Tal sinistro se deveu à ação de elementos que se passaram por passageiros.

De duas, uma: ou se tem como aceita a realidade de que os bandidos se integraram ao próprio negócio jurídico da empresa (fortuito interno), ou que os mesmos são estranhos ao contrato de transporte, figurando, aí sim, como terceiros.

Logo, se os estiver como terceiros, identicamente, não há como deixar de responsabilizar a empresa de ônibus, por força do contido na Súmula nº 187 do Supremo Tribunal Federal.

Em igual rumo, no site eletrônico denominado "Consultor Jurídico" (www.conjur.com.br), acessado em 09/03/2007, cuja matéria foi intitulada "Responsabilidade Objetiva - Empresa de ônibus responde por assalto a passageiro", apreende-se que: "As empresas de transporte coletivo têm responsabilidade sobre o que acontece no interior de seus veículos. Posteriormente, a companhia pode acionar o agressor ou assaltante. Mas, em primeiro lugar, responde a empresa. A decisão foi reafirmada pela 11ª Câmara Cível do Rio de Janeiro ao aprovar, por unanimidade, o voto do desembargador Mello Tavares. A empresa, no caso concreto, foi condenada a pagar a uma passageira que foi assaltada e baleada na cabeça a quantia equivalente a 300 salários mínimos por dano moral; as despesas médicas e hospitalares, a pensão mensal de 1 salário mínimo durante dois anos; e as despesas processuais, custas e honorários advocatícios."

Põe-se fecho neste tópico com o escrito de Werson Franco Pereira Rego, na matéria cognominada "Responsabilidade Civil em Meios de Transporte: Ferrovias, Carros Urbanos, Ônibus, Automóveis, Motocicletas, Aeronaves", publicada no site "Juris Poiesis", onde resta assentado que: "Incide, ainda, à espécie, o verbete nº 187, da Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não admite a atribuição de culpa, pelo transportador, a terceiro, de quem, se for o caso, poderá haver-se, regressivamente."

Deste modo, as transportadoras não sofrerão prejuízo algum ao indenizarem as vítimas por dois singelos motivos, quais sejam: por primeiro, e de modo geral, firmam contrato de seguro e, naturalmente, as seguradoras lhas ressarcirão o que vier a solver e, em segundo passo, ainda que assim não fosse, teriam ação regressiva contra quem ocasionou o dano, ou até em desfavor do Estado, pela fragilidade da segurança ofertada por este ente nas rodovias.

O que não se pode, certamente, é deixar os passageiros à mercê da sorte, mesmo frente ao poderio econômico das sociedades de transporte, que, quando celebraram contratos para transladar pessoas, assumem o risco de tal negócio jurídico (cláusula implícita de resguardo da incolumidade física), devendo, assim, ressarcirem os danos amargados por aqueles.

Derradeiramente, afirma Carlos Alberto Bittar, apud Werson Franco Pereira Rego, ob. cit., que: "as atividades relacionadas a transportes coletivos de passageiros encontram-se, hoje, inseridas na teoria do exercício de atividade perigosa ou, segundo outros, na teoria do aproveitamento econômico, segundo as quais, todo aquele que explora economicamente atividade que pode causar dano a terceiros - e dela se beneficiando, portanto -, assume o risco pela produção desses danos."

III.6 – Da aplicação da teoria do risco-criado/risco–proveito (art. 927, parágrafo único, do Código Civil) aos contratos de transporte de pessoas.

Como gizado acima por Carlos Alberto Bittar, o transporte coletivo de pessoas se insere nas atividades que apresentam periculosidade, isto é, as chamadas atividades de risco.

Não se tem qualquer margem de dúvida que as transportadoras, profissionalmente, exercem uma atividade mediante concessão e, por conta dela, auferem lucros (traduzíveis no que se poderia chamar de bônus). Contudo, quando se defrontam com ato decorrente do exercício de sua própria função (transporte de pessoas) e que venham causar danos aos transportados (ônus), almejam se libertar do dever de indenizar o consumidor.

Ora, até mesmo um acadêmico de Direito entrevê tal instituto, como se dá com Dorine Loth Soares, na matéria nomeada "A responsabilidade objetiva como novo comando do Código Civil de 2002", extraída do site "Direito Net", acessado em 12/03/2007, onde se observa o atual panorama do moderno Direito Civil Brasileiro, litteris: "Verifica-se, por meio dos estudos já realizados, que o Código Civil de 2002 adotou, nos casos de responsabilidade objetiva, a teoria do risco-criado. Assim, toda atividade que, pela própria natureza, implicar em riscos para terceiros, ensejará a reparação, independentemente da comprovação da existência de culpa." (negritamos).

No que é seguido de perto pelo juscivilistas Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho na obra "Novo Curso de Direito Civil", volume III, Responsabilidade Civil, 2ª edição, 2004, Editora Saraiva, p. 156: "Em nosso entendimento, o exercício dessa atividade de risco pressupõe ainda a busca de um determinado proveito, em geral de natureza econômica, que surge como decorrência da própria atividade potencialmente danosa (risco-proveito)."

Na verdade, está aí outra faceta que desemboca na responsabilização das empresas de ônibus pelos nefastos ocorridos no ato de transportar, quando perpetrados assaltos à mão armada, de jeito que se lhes aplicam, integralmente, a teoria do risco.

III.7 – Do contrato de transporte, assalto em ônibus, imprevisibilidade e inevitabilidade, caso fortuito ou força maior, inaplicabilidade ante o Código de Defesa do Consumidor.

Sabidamente, quem mercantiliza o transporte de passageiros, em regra, são grandes empresas, o que lhes garantem o amealhamento de significativo porte de lucro e, no outro lado da balança, encontram-se os consumidores, os quais detêm minguada porção econômico-financeira.

Em socorro à tese eleita por nós, devemos nos associar ao Código de Defesa do Consumidor.

Bem por isso, que Werson Franco Pereira Rego, ob. cit., afiança sobre a lei consumeirista: "Sua principal finalidade, no nosso entendimento, não é privilegiar este ou aquele sujeito que participa da relação jurídica de consumo. Ao revés, visa a estabelecer um equilíbrio entre esses mesmos sujeitos e, na medida em que reconhece a hipossuficiência, em sentido amplo, do consumidor, coloca ao seu dispor institutos e instrumentos que lhe garantirão a efetiva e integral reparação dos danos que lhe tenham sido causados pelo fornecedor de produtos ou serviços."

Seria de indagar: a Lei nº. 8.078/90 incidiria no contrato de adesão firmado entre passageiros e as respectivas transportadoras?

No-lo responde Werson Franco Pereira Rego, ob. cit., verbo ad verbum: "É induvidoso, pois, que este código se aplica aos contratos de transporte coletivo de passageiros, por envolver relação de consumo, na modalidade prestação de serviço (público). Fundamenta-se juridicamente tal afirmação no disposto no artigo 3º, § 2º - que define serviço - e no artigo 22 e seu parágrafo único, onde estabelece-se que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, além de serem obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros, respondem pelos danos que causarem aos usuários, de acordo com a sistemática estabelecida no Código de Proteção e Defesa do Consumidor que, como sabemos, imputa responsabilidade civil objetiva ao fornecedor de produtos ou serviços, nos termos do artigo 14."

Dito isto, mesmo que se admitisse a presença da força maior ou do caso fortuito, no que tange aos assaltos, jamais as empresas em comento poderiam valer-se de tais excludentes, porquanto o que está em jogo é uma relação de consumo, empreendida com defeito.

Em outras palavras, se os passageiros, ao ingressarem no ônibus, estiverem portando excelente saúde física e após ato cometido por bandidos que adentraram no veículo de transporte coletivo como se passageiros fossem, dele saírem baleados, estuprados, mortos e traumatizados, não poderiam estes danos serem tidos como estranhos à relação de consumo.

Calha a fiveleta a ensinança de Werson Franco Pereira Rego, ob. cit., ao registrar que: "O Código de Proteção e Defesa do Consumidor deslocou o centro das discussões, mudando o fundamento da responsabilidade civil do transportador. Esta não mais é o contrato de transporte, senão a própria relação de consumo, contratual ou não. Modificou, também, o seu fato gerador, não mais sendo o descumprimento da cláusula de incolumidade e, sim, o vício ou defeito do serviço, sendo irrelevante que esse defeito seja ou não previsível, o que significa dizer que afastou o caso fortuito e a força maior das causas de exclusão de responsabilidade civil nos contratos de transporte." (apusemos destaques).

Seja em que viés se enxergue o assalto em ônibus, dele dimana uma cristalina conclusão: as transportadoras devem indenizar seus transportados, porque estes últimos foram sacrificados no iter da execução de um contrato de consumo, por um serviço nitidamente defeituoso.

Arrematamos com esta ementa extraída do Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins: "APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ÔNIBUS INTERESTADUAL. PASSAGEIRO ARMADO. ASSALTO. MORTE DE FILHO. GENITORA IDOSA. CONDENAÇÃO DA EMPRESA. PENSÃO MENSAL DURANTE TODA A VIDA DA GENITORA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA REDUZIR A INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS PARA DOIS TERÇOS DO SALÁRIO MÍNIMO E MANUTENÇÃO DOS DEMAIS TERMOS DA SENTENÇA RECORRIDA. 1 - Em razão do princípio do tantum devolutum quantum apellatum apenas os elementos impugnados devem ser analisados em sede de recurso apelatório. 2 - Os gastos com o funeral, os remédios e despesas hospitalares, configuram danos materiais, prejuízos emergentes e a condenação ao pagamento dos mesmos não acarretam julgamento extra petita. 3 - Indeferindo produção de provas e sentenciando o feito, o magistrado não incorre em cerceamento de defesa, pois é soberano na análise das provas produzidas nos autos, devendo, se satisfeito com os elementos probatórios existentes, decidir de acordo com o seu convencimento. 4 - A partir do momento em que as pessoas entram no ônibus a empresa torna-se responsável por elas obrigando-se, por conseguinte, à reparação de eventuais danos causados. A Súmula nº 187 do STF assevera que "a responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva" e, ao mesmo tempo, que a empresa afirma que referido preceito não lhe é aplicável, ante a ausência de sujeito passivo para ação regressiva, repete inúmeras vezes, invocando o artigo 144 da Carta Magna, que é do estado a responsabilidade pela manutenção da segurança pública. 5 - A empresa faz-se responsável pelo óbito decorrente do assalto e por todos os danos causados a genitora do de cujus, pois não proporcionou a devida segurança a seus passageiros e, aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 6 - Em caso análogo o Tribunal de Justiça do mato grosso do sul expôs que, "(...) no Brasil dos dias correntes o assalto nos meios de transporte de carga e de pessoas é fato previsível e até corriqueiro (...) na aplicação da Lei, o intérprete deve louvar-se no método (...) de aproximação da regra jurídica à realidade presente, dando-lhe a inteligência e o alcance condizentes com o novo quadro formado pelas vicissitudes sociais", por isso, a recorrente não deve atribuir a responsabilidade somente ao estado, haja vista que, principalmente em nossa região, os assaltos e mortes em ônibus interestaduais estão cada vez mais freqüentes e, em determinados locais e horários, bastante presumíveis. 7 - Eximir a transportadora da responsabilidade pelos eventos danosos aos passageiros seria aplicar norma inócua para a região em que o fato ocorreu e, conseqüentemente, concordar com a prestação de serviço ineficiente que temos recebido por parte das empresas, ademais, a empresa de transporte deveria ter contratado o seguro para cobertura de danos pessoais e morais de seus usuários. 8 - Quanto à indenização por danos materiais não há controvérsias eis que, o de cujus contribuía para o sustento da mãe e após o fato danoso, a mesma suporta problemas de saúde e não consegue arcar com os gastos de sua manutenção básica, restando evidente, em conformidade com o artigo 948 do Código Civil que, a recorrente havia que ser responsabilizada. No entanto, verifica-se que a apelante tem razão quanto ao percentual de 2/3 (dois terços) do salário mínimo, pois conforme a orientação jurisprudencial a contribuição do filho para o custeio da casa dos pais não corresponde à totalidade de seu salário, posto que, 1/3 (um terço) do vencimento seria o mínimo necessário para as despesas pessoais do descendente. 9 - O período de duração da pensão fora fixada a contento, posto que, conforme a disposição do Código Civil, a prestação de alimentos às pessoas a quem o de cujus os devia, há que ser fixada levando-se em conta a duração provável da vida da vítima e não a idade pré-estabelecida de 25 anos e, considerando a expectativa de vida do brasileiro, média de 71 (setenta e um) anos, e, que na data do óbito o de cujus contava com 18 (dezoito) e sua mãe com 46 (quarenta e seis) anos de idade, mostra-se evidente que se não fosse o homicídio o descendente, conforme ordem natural da vida, sobreviveria a genitora, por isso, a pensão há que ser paga até o fim da vida da mesma. 10 - In casu, qualquer que seja o valor da indenização pelo dano moral, não se mostra suficiente a ceifar o sofrimento da mãe pela perda do filho, no entanto, o quantum fixado afigura-se compatível com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, moderação, prudente arbítrio e parcimônia, posto que, incapaz de enriquecer a autora ou provocar a ruína da empresa e suficiente para alertar a ré. 11 - A expressão "duzentos salários mínimos", contida na sentença não feriu qualquer preceito da Constituição Federal, pois de acordo com a orientação do Supremo Tribunal Federal a condenação em múltiplos de salário mínimo somente é vedada caso esteja vinculada à suas variações futuras e, in casu, trata-se de verba indenizatória fixa, acrescida apenas das correções e juros incidentes desde a citação. (Processo nº AC 4657. Rel. Des. Jacqueline Adorno de La Cruz Barbosa; j. 30/05/2006).

III.8 – Do epílogo: interpretação do art. 734 do Código Civil e, também, responsabilização aquiliana das empresas de ônibus, quando de assalto à mão armada em seu âmago.

Suponha-se que todo texto anterior seja despido de fundamentação jurídica exauriente, isto é, que o caso fortuito seja o bastante para desfazer o nexo-causal na hipótese de assalto, com emprego de violência, levada a cabo em desfavor de passageiro no interior do transporte coletivo.

É de se perguntar: o art. 734 do Código Civil, ao referir-se tão somente à força maior, abarca o caso fortuito?

A nosso sentir, se o legislador civil pretendesse elencar outra modalidade de alforria da responsabilização, como sói ocorrer com o caso fortuito, te-lo-ia feito expressamente.

Nesta trilha, Carlos Roberto Gonçalvez apud Binotto, ob. cit., faz questão de enfatizar que: "o fato do legislador não mencionar o caso fortuito juntamente com a força maior, diferentemente do que ocorre nos demais dispositivos do Código, revela uma intenção do legislador de considerar como excludentes da responsabilidade do transportador somente os acontecimentos naturais, e não os fatos decorrentes da conduta humana."

No que é seguido de perto pelo respeitável Ministro aposentado Ruy Rosado de Aguiar Júnior, na matéria "Contrato de Transporte de Pessoas e o Novo Código Civil", in http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/451/1/Contrato_de_Transporte_de_Pessoas.pdf, acessado em 15/03/2007, onde informa que: "A única exclusão permitida no Código é a da força maior. A lei não mais faz referência a caso fortuito, nem à culpa da vítima, mas à força maior, isto é, àquele fato inevitável, que se reconhece quando o transportador demonstrar que tudo fez para evitar o acidente e o conseqüente dano. Se for assim, o fato era inevitável, e por esse é que haverá a exclusão da responsabilidade. Fora daí, responde."

No ponto, é de todo pertinente o exemplo de Zeno Veloso, inserto em "Novo Código Civil Comentado/Coordenação Ricardo Fuiza", 4ª ed. atual – São Paulo: Saraiva, 2005, p. 676, assim materializado: "... se despencou o raio que destruiu o ônibus, não há responsabilidade civil." (ausentes as reticências na fonte).

É solar, pois, que o intento do Código Civil de 2002, no art. 734, fora liberar o transportador apenas quanto à força maior, porque esta escapa, em regra, de qualquer fórmula de protetividade, mas o caso fortuito, por defluir de conduta humana, pode, evidentemente, ser barrado em muitas situações.

Explicando-se: é incogitável apor um pára-raio em um ônibus, todavia, é possível – e desejável, aliás – que as empresas que transportam pessoas equipem sua frota com mecanismos tecnológicos, o que por óbvio dificultaria, e muito, a sanha de criminosos que colimassem adentrar em tais veículos com o desejo de violar pertences e, talvez até mesmo, a incolumidade física dos passageiros.

Daí porque, repita-se, a única exclusão para o transportador não responder pelo contrato celebrado, em caso de sinistro, radica-se na força maior, o que entremostra mais um ângulo não percebido pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Notável, nessa linha de raciocínio, a judiciosa consideração exposta pela preclara Ministra Fátima Nancy Andrighi, no escrito "A responsabilidade civil das transportadoras de passageiros na visão do Superior Tribunal de Justiça", extraída do site http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/686/1/A_Responsabilidade_Civil_das_Transportadoras.pdf, acessado em 15/03/2007, ao assertivar que: "A responsabilidade civil, em matéria de contrato de transporte, a partir da vigência do Código Civil/2002, consolidou toda essa evolução jurídica adotada pelo CC no texto do seu art. 734: "O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade." Assim, o Código Civil de 2002 assentou, também, que a responsabilidade do transportador é objetiva e que, em face da cláusula de incolumidade, encerra uma obrigação de resultado, qual seja, levar o transportado, são e salvo, ao seu destino. O passageiro, para fazer jus à indenização, terá, apenas, de provar que essa incolumidade não foi assegurada, que o acidente se deu no curso do transporte e que dele decorreu o dano. A única excludente da responsabilidade civil expressa, adotada pelo CC, é a hipótese de acidente causado por motivo de força maior (art. 734), portanto, nem a colaboração da vítima serve para excluir a responsabilidade de indenizar, podendo ensejar, contudo, por causa da concorrência de culpa, uma fixação eqüitativa do valor da indenização, de acordo com o disposto no art. 738, parágrafo único." (os negritos pertencem à escritora).

Portanto, uma vez mais, se infere que as empresas de transporte de passageiros somente se libertarão de condenações por ato ilícito, se o gravame provier de fato da natureza, o que jamais alcança os assaltos à mão armada.

De outro giro, nunca é demasiado imaginar que toda a doutrina, tanto a de nossa lavra quanto a de escritores de nomeada, supedaneada na visão de que as transportadoras de passageiros respondem pelos sinistros praticados em desfavor do patrimônio e da própria higidez física dos transportados, no decorrer da viagem, seja produto de um deslize dogmático e que correto estaria o Superior Tribunal de Justiça, na assentada de sua Segunda Seção.

Porém, existe um quadrante igualmente não visualizado pela Corte da Cidadania, qual seja, o de que, desprezada a responsabilidade objetiva, a sociedade de transporte de pessoas, mesmo tendo ciência plena dos crescentes assaltos à mão armada no interior de seus ônibus, ainda assim silentes quanto ao fortalecimento da segurança dos veículos com a colocação de rádios transcomunicadores, câmeras de filmagens, monitoramento por satélite, dentre outras imprescindíveis medidas, tornam-se culpadas por darem azo à negligência, fazendo incidir na espécie o regrado pelo art. 186 do Código Civil.

Socorre-se aqui, novamente, da preleção de Rodrigo Binotto Grevetti, ob. cit, ao anotar que: "A jurisprudência só tem responsabilizado o transportador quando este é conivente ou omisso com relação aos eventos danosos praticados por terceiro. Se determinado local é comum a prática de roubos ou atentados, cabe à empresa tomar as devidas cautelas para evitar que tal situação continue, ou, ao menos, alertar a autoridade pública para que esta tome as providências necessárias. Em não tomando essas providências, o transportador fica sujeito a responder por eventuais danos causados aos passageiros." (sublinhamos).

A nosso modo de ver, no Brasil atual, já não pode mais ser demarcadas regiões perigosas, uma vez que todas elas têm sido palco de tragédias monumentais, o que nos faz crer que as transportadoras de todo o país haveriam de se precatar quanto à ocorrência desses lamentáveis acontecimentos. Em não o fazendo, chamam para si o risco de trasladarem pessoas sem as maiores garantias e isso, em nossa legislação, tem um nome: imprudência, o que, novamente, deságua no art. 186 da Lei Civil.

Quem será o culpado diante desses aventados assaltos? A transportadora que detém condições para evitá-los ou, de revés, o passageiro que é obrigado a ter de se valer desse meio de locomoção?

As respostas se nos parecem tão ululantes, bisonhas mesmo, que nos negamos a grafá-las!

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Sobre o autor
Emerson Odilon Sandim

Procurador Federal aposentado e Doutor em psicanalise

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDIM, Emerson Odilon. O contrato de transporte de pessoa à luz da dignidade humana e a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça:: paradoxo interpretativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1373, 5 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9700. Acesso em: 18 abr. 2024.

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