Como amplamente veiculado nos meios de comunicação o Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1.977.124, decidiu que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada para o caso de mulher transexual vítima de violência doméstica e familiar.
Logo de início, em seu judicioso e humano voto, o Ministro-Relator Rogerio Schietti Cruz expurga de nosso ordenamento jurídico pátrio a ideia de que a Lei Maria da Penha teria sido editada tendo em mente razões de ordem eminentemente biológica, a supostamente assegurar sua aplicação exclusivamente às mulheres portadoras dos cromossomos XX em sua constituição genética.
Com inegável maestria, pontifica o Ministro-Relator, a respeito da necessidade de proteção jurídica à complexidade de relações e interações humanas:
“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”.
Em trechos de seu voto, o Ministro-Relator bem fundamenta a necessidade de aplicação da Lei Maria da Penha entre os conceitos de gênero, como, p. ex., transexuais, transgêneros, cisgêneros, travestis e pessoas não binárias, “tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher”.
O veredicto final do REsp 1.977.124 vai ao encontro da Recomendação nº 128, de 15 de Fevereiro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual delibera sobre a adoção do "Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero" no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
O ponto nodal do julgamento do REsp 1.977.124, a qual debruçou-se o STJ, foi sobre a definição do gênero feminino, para efeito de aplicação ou não da Lei Maria da Penha. “Mulher trans mulher é”, para efeito do Art. 5º desse Diploma salvífico, foi a conclusão do STJ. O Ministro-Relator foi categórico: “Lei Maria da Penha deve proteger mulheres, crianças, jovens, adultas ou idosas e, no caso, também as trans”.
Para o leitor apressado, o REsp 1.977.124 teria tão-somente assegurado a aplicação das medidas protetivas de urgência à vítima mulher transexual, previstas nos Arts. 22 e 23 da Lei Maria da Penha.
Não! Não foi somente isso que disse o REsp 1.977.124. Disse muito mais! E disse o mais importante: as portas dos Juizados de Violência Doméstica do País devem, também (!), estar abertas à mulher transexual.
Como não poderia deixar de ser, o STJ não fracionou ou mutilou a aplicação da Lei Maria da Penha. A conclusão do REsp 1.977.124 é a de que a integralidade da Lei Maria da Penha deve tutelar a vítima mulher transexual, inclusive e notadamente seu Art. 14.
Quando se fala de competência protagonista dos Juizados de Violência Doméstica deve se ter em mente sua articulação direta e indissociável com todos os demais órgãos sentinela de enfrentamento a essa violência de gênero, como Delegacias de Polícia, Núcleos da Defensoria Pública e do Ministério Público, Casas-Abrigo, Equipes Multidisciplinares etc, todos especializados, próprios desse juízo. Agora, todos também servientes à proteção integral da vítima mulher transexual, por força do REsp 1.977.124.
E, aqui, nem se alegue derrogação do Art. 5º da Lei Maria da Penha e do que restou sedimentado no REsp 1.977.124 pelo STJ em razão de disposição de código de organização judiciária local em sentido diverso ou lapso orçamentário. O calouro sabe bem da hierarquia das normas num sistema federativo e do raquitismo da teoria da reserva do possível em tema de dignidade da pessoa humana, é intuitivo. Desnecessária qualquer consideração: “lex superior derogat legi inferior”.
A esse respeito, consignou o Ministro-Relator Rogerio Schietti:
“Diante de tudo o que foi considerado, o que importa, para fins de resolução desta demanda, é constatar que, no caso que se está a analisar, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei Maria da Penha, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente – especializado – para processar e julgar a ação penal.
Logo, reputo descabida a preponderância de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, com todo o seu arcabouço protetivo, inclusive a competência jurisdicional para julgar ações penais decorrentes de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres”.
Frise-se: “Inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente”. Para mim, este o ponto de maior destaque e vital importância do REsp 1.977.124. A vítima mulher transexual não está mais só. A par da competência absoluta do Juizado de Violência Doméstica, todos os demais órgãos e entidades do Art. 8º da Lei Maria da Penha, sem nenhuma exceção, são agora convocados para defesa e proteção da vítima mulher transexual. E, bom lembrar: “mediante atendimento específico e humanizado” (Arts. 8º e 28 da Lei Maria da Penha).
Em conclusão, os Juizados de Violência Doméstica têm competência absoluta para processar e julgar casos de vítimas mulheres transexuais – aí incluindo-se transgêneros, cisgêneros, travestis e pessoas não binárias, conforme o REsp 1.977.124 – , suas ações penais e medidas protetivas de urgência deflagradas, com a participação ativa e imprescindível de todos os demais atores do sistema de enfrentamento à violência de gênero, mediante atendimento específico e humanizado.