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LC 178/21: retrocesso na responsabilidade fiscal e ofensa à igualdade e ao pacto federativo

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A Lei Complementar 178/2021 promoveu um retrocesso na governança pública do País à medida que flexibilizou de modo implausível regras elementares de responsabilidade fiscal.

Com o advento da nefasta pandemia da covid-19, legisladores em todo mundo emitiram regras para priorizar a saúde e destinar dotações orçamentárias para protegê-la.

No entanto, a Lei Complementar brasileira 178, de 13.01.21, embora almeje promover um plano de equilíbrio fiscal no período de crise sanitária e humanitária, bem como tenha aprimorado alguns parâmetros de apuração dos gastos com pessoal, alongou de forma superlativa o prazo para reenquadramento ao limite legal de gastos, sem uma justificativa plausível, para órgãos e poderes dos Entes da Federação que por acaso extrapolaram em 2020 e 2021 os limites de despesas com pessoal. Veja-se o referido preceito da Lei 178:

Art. 15. O Poder ou órgão cuja despesa total com pessoal ao término do exercício financeiro da publicação desta Lei Complementar estiver acima de seu respectivo limite estabelecido no art. 20 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, deverá eliminar o excesso à razão de, pelo menos, 10% (dez por cento) a cada exercício a partir de 2023, por meio da adoção, entre outras, das medidas previstas nos arts. 22 e 23 daquela Lei Complementar, de forma a se enquadrar no respectivo limite até o término do exercício de 2032.

§ 1º A inobservância do disposto no caput no prazo fixado sujeita o ente às restrições previstas no § 3º do art. 23 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

§ 2º A comprovação acerca do cumprimento da regra de eliminação do excesso de despesas com pessoal prevista no caput deverá ser feita no último quadrimestre de cada exercício, observado o art. 18 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

§ 3º Ficam suspensas as contagens de prazo e as disposições do art. 23 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, no exercício financeiro de publicação desta Lei Complementar.

§ 4º Até o encerramento do prazo a que se refere o caput, será considerado cumprido o disposto no art. 23 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, pelo Poder ou órgão referido no art. 20 daquela Lei Complementar que atender ao estabelecido neste artigo.

Impende frisar, por outro prisma, que a Carta Magna, artigo 169, a partir da redação conferida pela Emenda 19/98, preconizou o monitoramento sobre os dispêndios com pessoal e que se instituísse um limite visando a evitar o crescimento progressivo descontrolado das folhas de pagamentos. Isso para não apenas instituir um acompanhamento sobre tal elemento de despesa, mas mormente haver recursos orçamentários para direcionar para outros gastos num País de crônicas desigualdades e carências. Dessa forma, cabe destacar que o Legislativo Federal editou leis para tal desiderato:

  • editou em 2000, a Lei Complementar 101, Lei de Responsabilidade Fiscal, instituindo regras elementares para se auferir uma gestão fiscal responsável. Entre as disposições, definiu tetos para órgãos e poderes dos entes federados, artigos 19 e 20, bem como, nos artigos 22 e 23, previu-se tanto alertas aos gestores quando se ultrapassar 95% do limite de gastos, quanto, ultrapassado, prazo razoável de dois quadrimestres para recondução ao limite: reduzir em pelo menos um terço no primeiro quadrimestre e o total do excesso no quadrimestre seguinte. Também contemplou situações especiais, artigo 66, duplicando prazos para recondução em caso de baixo crescimento do PIB;
  • advento da Lei Federal n° 10.028, Lei de Crimes Fiscais, de 19 de outubro de 2000, que no artigo 5°, IV, definiu como infração administrativa, punida com multa proporcional à remuneração do chefe de órgão ou poder, aos que inobservarem, entre outros preceitos da LRF, as regras de recondução ao limite legal de gastos com pessoal;
  • posteriormente, por força da pandemia e buscando restringir mais os possíveis acréscimos de gastos com pessoal, editou a Lei Complementar 173, de 27 maio de 2020, que, entre outras disposições do Programa Federativo de Enfrentamento à covid, no artigo 8º, IX, vedou a expansão da despesa de pessoal até mesmo em relação às hipóteses de crescimento vegetativo da folha no período entre 28 de maio de 2020 a 31 de dezembro de 2021, salvo, conforme § 5º, daquele artigo, para gastos com profissionais de saúde e de assistência social se pertinentes a medidas de combate à calamidade pública, no caso, da pandemia decretado para o intervalo citado;
  • a LC 173 também estipulou transferências, mediante auxílios financeiros, ao entes da Federação, o que aumentou as receitas públicas em geral e em tese a relação entre despesas com pessoal e a Receita Corrente Líquida, assim como, artigo 7º, suspendeu o dever de recondução ao limite de gastos com pessoal dos órgãos e poderes enquanto houver um estado calamidade pública que o Congresso Nacional reconheça;
  • ainda se editou a LC 191, de 8 de março de 2022, que no artigo 2º, alterou a LC 173/2020 para ressalvar também quanto ao crescimento de gastos os servidores públicos civis e militares da área de saúde e da segurança pública.

Todavia, consoante se indicou, a LC 178 já nos primeiros dias de 2021 promoveu de forma inédita um alongamento superdimensionado do prazo de recondução ao limite de despesa de pessoal para uma década, entre 2023 e 2032, para os órgão e poderes que extrapolaram em 2020 e 2021 o teto de despesas. Isso à razão de 10% ao ano e com 12 meses de carência, não se exige redução em 2022.

Nada obstante a ampliação desmesurada e redução anual módica, a Lei Complementar 178 não estabeleceu qualquer requisito para os poderes e órgãos, que em princípio se desviaram de uma gestão fiscal responsável, tenham um prazo hiper dilatado. Também suspendeu os preceitos da LRF, artigo 23, de contagem de prazo para recondução ao limite legal dos que não observaram tais disposições em 2021.

Ademais, tal LC, artigo 15, § 2º, dispõe que a verificação do cumprimento do percentual de redução deve ser apenas apurado no último quadrimestre de cada exercício financeiro, avaliando-se apenas o Relatório de Gestão Fiscal do 3° quadrimestre. Apenas se não respeitados tais preceitos haverá a configuração da infração administrativa prevista na Lei de Crimes Fiscais, artigo 5°, IV.

O Legislador ordinário, contudo, haveria de ao menos preconizar que apenas se comprovasse de um lado, que houve queda ou estagnação das receitas, por outro, elevação de gastos com pessoal com servidores públicos civis e militares da área de saúde, da segurança pública e de assistência social no combate a pandemia de covid 19.

As LC 173/2020 e 191/2022, artigo 8º, § 8º, reitera-se, excetuaram a proibição de aumento de gastos durante o estado de calamidade para despesa com esse profissionais precisamente para viabilizar o combate à situação de crise, vedando aumentos aos demais servidores no intuito de haver recursos orçamentários suficientes para um enfrentamento efetivo.

Importante frisar também que se editou a Lei Complementar 178 em janeiro de 2021, desse modo, todos os chefes de poder submetidos a LRF tiveram ciência que se inobservassem o limite nesse ano, sem atender a qualquer exigência, teriam prazo de carência de um ano, 2022, seguido de uma década para reduzir gradualmente, em apenas dez por cento ao ano.

Nada obstante, o dever de recondução demasiadamente alargado gerou obrigações aos futuros chefes de órgãos e poderes em face da alternância de poder num regime democrático.

Vislumbra-se, dessa forma, que a LC 178 apenas formalmente declara na ementa visar a um gestão responsável, mas nas disposições em boa medida desnaturam tal desiderato, indo de encontro diretamente a preceitos da Carta Magna e da LRF, redação original, de que se deve observar limites prudenciais e total do teto de dispêndios, bem assim reduzir, regra geral, em até dois quadrimestres, o percentual superado.

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Por consequência, instituir um prazo de um ano de carência para promover medidas para reduzir a extrapolação, os dozes meses de 2022, e em seguida uma década para reconduzir ao limite legal, até o longínquo 2032, bem assim à proporção de dez por cento ao ano não condiz com uma gestão fiscal responsável por meio planejamento, transparência e controle de receitas e despesas, a fim de auferir um equilíbrio das contas públicas e se tenha condições de promover um desenvolvimento socioeconômico sustentável.

Por outro lado, forçoso também ponderar que os demais órgãos e poderes dos entes que observaram preceitos de uma gestão fiscal responsável, entre outros, respeitaram o limite de gastos com pessoal em 2020 e 2021, devem continuar a cumprir as regras da redação original da LRF em 2022 e exercícios seguintes, bem assim também permanecerá sendo mensurado o respeito às disposições legais a cada um dos três quadrimestres de um exercício financeiro.

Em caso de ultrapassarem o teto de despesa, tal como prevê o artigo 23 da LRF, deve-se reduzir o excesso em até dois quadrimestres e isso tendo-se que eliminar: pelo menos um terço da extrapolação no primeiro, cerca de 33,33%, e o total no posterior, sob pena de caracterizar infração administrativa prevista na Lei de Crimes Fiscais.

Evidente, assim, que os preceitos da LC 178 distinguem de modo injustificado órgãos e poderes de entes da Federação em afronta à isonomia e pacto federativo, Carta Política de 88, artigos 1°, 2° e 5°. Privilegia os que descumprirem regras tradicionais de governança e responsabilidade fiscal em detrimento das que em 2020 e 2021 seguiram cumprindo.

Sobre temas debatidos brevemente neste Artigo vale se referir às reflexões de Élida Graziane Pinto (2022) sobre aspectos da LC 178 e despesas com servidores:

... Suspender prazos de recondução a limites tende a postergar o enfrentamento do que não se consegue fazer cumprir há anos, a despeito de se tentar revestir de novo o que já está na LC 101 e, antes dela, na CF e, antes dela, no DL 200!.

Exigir o cumprimento desses dispositivos é dar vazão material ao artigo 169 da CF, onde a redução do excesso de gasto de pessoal deve ser feita a partir de comissionados e servidores não estáveis, cuja dispensa não cause prejuízo ao bom funcionamento e à continuidade dos serviços públicos.

Ao nosso sentir, o próprio limite de alerta e suas vedações, na forma do artigo 22 da LRF, indicam parâmetros de introdução a uma recondução dos limites de gasto com pessoal em consonância com os dispositivos acima citados do DL 200, para que o gestor traga tal gasto para dentro daquela que é a configuração não só de segurança e estabilidade da gestão fiscal, como também de real necessidade do serviço público.

Desse modo, a Lei Complementar 178/2021 promoveu um retrocesso na governança pública do País à medida que flexibilizou de modo implausível regras elementares de responsabilidade fiscal vigentes há vinte anos. Inobstante, a LC 178 também distinguiu de forma injustificada órgãos e poderes dos entes da Federação, inclusive privilegiando os que, embora em princípio em iguais condições, descumpriram o limite de gastos com pessoal, o que viola ainda o postulado da isonomia e o pacto federativo.

Por conseguinte, perante os vários vícios, faz-se necessário haver uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de liminar para suspender os efeitos e, no mérito, expurgar da ordem legal o artigo 15 da multicitada LC 178/2021 ou o Congresso Nacional editar uma nova lei para revogar tal dispositivo legal.


Referências:

BRASIL, Lei Complementar n° 178, de 13 de janeiro de 2021. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp178.htm>. Acesso em 06 ago.22.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1998. Brasil, Congresso Nacional, [1988]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso 06 ago.22.

BRASIL, Lei Complementar n° 101, de 4 de maio de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm>. Acesso em 06 ago.22.

BRASIL, Lei Federal n° 10.028, de 19 de outubro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10028.htm>. Acesso em 08 ago.22.

BRASIL, Lei Complementar n° 173, de 27 de maio de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm>. Acesso em 08 ago.22.

BRASIL, Lei Complementar n° 191, de 8 de março de 2022. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp191.htm>. Acesso em 08 ago.22.

PINTO, Élida Graziane. Falta de controle qualitativo da despesa de pessoal. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-mar-22/contas-vistafalta-controle-qualitativo-despesa-pessoal>. Acesso em 06 ago.22.

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Sobre o autor
Alcindo Antonio Amorim Batista Belo

Bacharel em Direito e Administração pela UFPE. Pós-graduação em Administração Pública e Controle Externo pela FCAP/UPE. Advogado OAB-PE licenciado. Auditor de Controle Externo do TCE-PE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Alcindo Antonio Amorim Batista. LC 178/21: retrocesso na responsabilidade fiscal e ofensa à igualdade e ao pacto federativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6989, 20 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99737. Acesso em: 27 abr. 2024.

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