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Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade

Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade

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O trabalho estuda a Lei nº 9.882/1999, que introduziu no sistema jurídico nacional a viabilidade, ainda que restrita, de controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Escopo do controle abstrato – 3. Objeto do controle abstrato – 4. Escopo da arguição de descumprimento de preceito fundamental – 5. Objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental – 6. Noção de preceito fundamental – 7. Inexistência de outro meio eficaz – 8. A competência municipal – 9. Considerações finais.


1.

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Nos termos da Constituição da República (CR), compete ao Supremo Tribunal Federal (STF), precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal [art. 102, I, a, na redação da Emenda Constitucional (EC) n° 3, de 17.3.1993]. É o que se denomina de controle abstrato (ou concentrado) de constitucionalidade dos atos normativos, através do qual a Suprema Corte analisa e decide sobre sua compatibilidade com as normas constitucionais. A ação direta de inconstitucionalidade (ADIN ou ADI) e a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) são os mecanismos mais empregados para o controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais, com primazia para o primeiro deles (a ADIN).

O texto constitucional elegeu a lei ou o ato normativo federal ou estadual como objeto específico da ADIN; quanto à ADC, o objeto é unicamente a lei ou o ato normativo federal. Ele não contempla a lei ou o ato normativo municipal, embora os Municípios formem com os Estados, através de união indissolúvel, a República Federativa do Brasil (CR, art. 1°), aos quais foi atribuída competência própria (CR, art. 30), inclusive de natureza tributária (CR, art. 156).

A jurisprudência do STF é pacífica quanto à impossibilidade de controle abstrato de lei ou ato normativo municipal por via de ação direta de inconstitucionalidade. Sua constitucionalidade apenas pode ser discutida na esfera do controle difuso, "exercido incidenter tantum, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento de cada caso concreto" (Reclamação 337, RDA 199/201, RTJ 164/832; ADIN 1.268-2-MG, DJU de 20.10.1995, entre outros).

A Constituição da República estatui, também, que "a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei" (CR, art. 102, § 1°).

Onze anos depois de promulgada a Constituição foi editada a Lei 9.882, de 3.12.1999, dispondo sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Seu art. 1° prescreve que a arguição "terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". Ela também a admite na hipótese de ser "relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição".

A Lei 9.882, de 1999, introduziu no sistema jurídico nacional a viabilidade, ainda que restrita, de controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais. O escopo destas observações é ressaltar a importância desse novo instrumento processual, que permite o controle abstrato de constitucionalidade de atos do Poder Público municipal, entre eles suas leis e atos normativos.


2. ESCOPO DO CONTROLE ABSTRATO.

As ações de controle abstrato de constitucionalidade não objetivam dirimir conflitos envolvendo pretensões relativas a direitos subjetivos, ainda que esses litígios envolvam a interpretação de normas constitucionais. Elas visam, essencialmente, à preservação da integridade da Lei Magna e, por tal razão, os processos que as veiculam são denominados de objetivos. Como decidido e reiterado pelo STF "não se discutem situações individuais no âmbito do controle abstrato de normas, precisamente em face do caráter objetivo de que se reveste o processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade"; consequentemente, a tutela jurisdicional de situações individuais alicerçadas em controvérsia de natureza constitucional "há de ser obtida na via do controle difuso de constitucionalidade, que, supondo a existência de um caso concreto, revela-se acessível a qualquer pessoa que disponha de legítimo interesse" [ADIN (AgRg) 1.254-1-RJ, RT 747/801, RTJ 170/801]. Dada a natureza e a finalidade do controle abstrato de constitucionalidade, se ocorrer, após o ajuizamento da ação, a revogação do ato normativo por ela questionado, a revogação "realiza, em si, a função jurídica constitucional reservada à ação direta de expungir do sistema jurídico a norma inquinada de inconstitucionalidade", razão que acarreta a prejudicialidade da ação por perda do objeto (ADIN 709-2, RDA 197/180, RTJ 154/401; ADIN 2.515-5-CE, RT 798/181, entre muitos outros julgados).

Embora denominada de ação direta de inconstitucionalidade e, em regra, quem a propõe tenha por finalidade obter a declaração de inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, ela serve à declaração de sua constitucionalidade. É o que sucede quando o tribunal, rejeitando o pedido, julga-a improcedente, ou seja, declara que o ato normativo questionado não contraria a Lei Magna. O mesmo ocorre em relação à ação declaratória de constitucionalidade. Por esta objetiva seu autor a proclamação da compatibilidade do ato legislativo com a Constituição, mas se a decisão for pela improcedência do pedido o tribunal estará, efetivamente, declarando a inconstitucionalidade do ato normativo que constitui seu objeto. Tratando da representação de inconstitucionalidade prevista na Constituição de 1967/1969, Gilmar Ferreira Mendes observa que ela "tinha, em verdade, caráter dúplice ou natureza ambivalente, permitindo ao Procurador-Geral (então o único legitimado para sua propositura) submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal quando estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma ou, mesmo quando convencido da higidez da situação jurídica, surgissem controvérsias relevantes sobre sua legitimidade" [01]. Por tal razão, certamente, prescreve o § 2° do art. 102 da Constituição que "as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal". Ao referir-se às decisões definitivas de mérito, o preceito compreende as que julgam procedente ou improcedente as ações diretas de inconstitucionalidade e as ações declaratórias de constitucionalidade, isto é, as que decidem pela incompatibilidade ou pela compatibilidade com a Lei Suprema dos atos normativos que constituem seu objeto.

A finalidade dessas ações é, portanto, preservar a integridade das normas constitucionais quando ocorrentes dúvidas a respeito de atos normativos que suscitem controvérsia sobre sua conformidade com a Constituição.


3. OBJETO DO CONTROLE ABSTRATO.

O art. 102, inciso I, letra "a" da Constituição restringe o objeto da fiscalização abstrata de constitucionalidade. A ação direta de inconstitucionalidade pode versar, apenas, sobre lei ou ato normativo federal ou estadual; a ação declaratória de constitucionalidade unicamente sobre lei ou ato normativo federal. Compreende-se como lei a medida provisória e a emenda constitucional.

O ato normativo, aí inclusa a lei formalmente editada pelo Poder Legislativo, deve, no entanto, ser dotado de generalidade. Vale dizer, deve ser de aplicação geral, abstrato, aplicável a qualquer pessoa que se encontre na situação jurídica nele prevista.

Ainda que formalmente veiculado por lei, a jurisprudência do STF não admite o controle abstrato de atos de efeitos concretos, "como sucede com as normas individuais de autorização que conformam originariamente o orçamento da despesa e viabilizam sua alteração no curso do exercício" (ADIN 1.716-DF, RTJ 170/438). Como tal também se qualifica, em geral, a "lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata" (ADIN 2.484-DF, DOU de 3.12.2003). Da mesma forma os atos, ainda que sob a forma de lei, relativos a reestruturação de empresa pública (RTJ 173/466), ou "emenda parlamentar que encerra tão-somente destinação de percentuais orçamentários, visto que destituída de qualquer carga de abstração e de enunciado normativo" (RTJ 173/483). Mas as leis relativas à criação, ao desmembramento ou à alteração de limites de municípios são passíveis de controle abstrato (ADIN 733-5-MG, RTJ 158/34; ADIN 1.262-TO, RTJ 178/606, ADIN 2.632-1-BA, DOU de 31.3.2004).

Atos normativos editados sem a vestimenta formal de leis (ou de medidas provisórias ou emendas constitucionais) também podem ser objeto de controle concentrado. O tribunal admitiu o controle abstrato de parecer da Consultoria Geral da República, que "assumiu caráter normativo, por força dos arts. 22, §§ 2° e 23 do Decreto n° 92.889, de 7.7.1986, e, ademais, foi seguido de circular do Banco Central, para o cumprimento de legislação anterior à Constituição de 1988" (ADIN 4, RDA 195/85). Também o admitiu em relação a portaria, quando "vem a estabelecer prescrição em caráter genérico e abstrato" [ADIN (MC) 962-1, DJU de 11.2.1994; ADIN (MC) 1.088-PI, RTJ 155/430], bem assim quanto a assento regimental de tribunal estadual (ADIN 29, RTJ 129/955, objeto de embargos infringentes in RTJ 133/955), resolução administrativa de tribunal regional eleitoral (ADIN 666-PE, RTJ 152/444), decisão administrativa de tribunal regional do trabalho (ADIN 683-SC, RTJ 150/50), resolução administrativa de tribunal de contas (ADIN 870-DF, RTJ 151/423) e outros atos de natureza similar sempre que neles vislumbrou caráter normativo genérico [02].

O tribunal também admitiu o controle abstrato de dispositivos de decreto regulamentar quando revestidos de "contornos de verdadeiro ato normativo autônomo" (ADIN 1.396-SC, RTJ 167/397) e quando "o decreto impugnado não é de caráter regulamentar de lei, mas constitui ato normativo que pretende derivar o seu conteúdo diretamente da Constituição" (ADIN 1.282, RTJ 185/437). No entanto, não é admissível o controle abstrato de decretos e de outros atos de estatura inferior à lei quando a controvérsia diz respeito aos limites do poder regulamentar, porque quando esses atos ultrapassam o conteúdo da lei ou se afastam de seus limites, comete-se "ilegalidade e não inconstitucionalidade, pelo que não se sujeita, quer no controle concentrado, quer no controle difuso, à jurisdição constitucional" (RE 189.550-SP, RTJ 166/611; RE 154.027-SP, RTJ 166/584; ADIN 763-SP, RTJ 145/136).

Esses precedentes referem-se a atos normativos federais ou estaduais e não a atos normativos municipais, porque, quanto a estes, é pacífica a jurisprudência do STF quanto à impossibilidade de controle abstrato de lei ou ato normativo municipal por via de ação direta de inconstitucionalidade. Essa interpretação decorre da letra do art. 102, inciso I, letra "a" da Constituição, que lhe atribui competência para o processamento e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, não contemplando, portanto, os editados pelos municípios. A constitucionalidade destes apenas podia ser discutida na esfera do controle difuso, "exercido incidenter tantum, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento de cada caso concreto" (Reclamação 337, RDA 199/201, RTJ 164/832; ADIN 1.268-2-MG, DJU de 20.10.1995, entre outros). É inquestionável que essa exegese, considerada a competência legislativa constitucional própria dos municípios, inclusive quanto ao direito tributário, impediu o controle abstrato de inúmeros atos normativos. No entanto, ela encontra amparo no texto constitucional e este, quiçá propositadamente, não incluiu os atos normativos municipais entre os objetos possíveis desse controle diante da imperiosa necessidade de impedir que a Suprema Corte, na composição que a Lei Maior que conferiu, viesse a tornar-se um tribunal impossibilitado de desempenhar, com um mínimo desejável de eficiência, suas relevantes funções. Essa motivação, aliás, consta de veto presidencial a dispositivo da Lei 9.882, de 1999, que permitia a propositura da arguição de descumprimento de preceito fundamental a qualquer pessoa e não apenas aos legitimados para a propositura da ação direta. Sustenta o veto que "a admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais", fazendo "presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal", não havendo dúvida de que "a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais poderes e as normas infraconstitucionais" [03].

O tribunal também não considera viável o controle abstrato, por via da ação direta de inconstitucionalidade, de atos normativos, inclusive federais e estaduais, anteriores à Constituição. Vale dizer, os atos normativos editados antes da Constituição não constituem objeto idôneo de controle abstrato pela via da ação direta, embora sua constitucionalidade, aferível à luz da Lei Magna revogada sob a qual foram editados, possa ser discutida no âmbito do controle difuso. Gilmar Ferreira Mendes [04] relembra o debate travado a respeito do tema já na vigência da Constituição de 1988 (ADIN 2, RTJ 169/763). O Ministro Paulo Brossard, relator da referida ação, sustentou a inviabilidade, enquanto o Ministro Sepúlveda Pertence advogou a tese oposta. Segundo o Ministro Brossard, "as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá a revogação, dado que, por outro princípio elementar, a lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponham". Em outro julgado o tribunal reafirmou esse entendimento, declarando que a ação direta "não se revela instrumento juridicamente idôneo ao exame da legitimidade constitucional de atos normativos do Poder Público que tenham sido editados em momento anterior ao da vigência da Constituição sob cuja égide foi instaurado o controle normativo abstrato", eis que necessária a existência "de uma relação de contemporaneidade entre o ato estatal impugnado e a Carta Política sujo cujo domínio normativo veio ele a ser editado" (RTJ 145/339).

Dessa resenha quanto ao objeto do controle abstrato de constitucionalidade, destaca-se, para a finalidade destas notas, a orientação jurisprudencial do STF que não o admitia em relação às leis e atos normativos municipais e às leis e atos normativos anteriores à promulgação da Constituição vigente, ainda que federais ou estaduais.


4. ESCOPO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.

A finalidade da disposição contida no art. 102, § 1° da Constituição, é a integridade dos preceitos fundamentais da Constituição. Como explicitado pelo caput art. 1° da Lei 9.882, de 1999, esse instrumento tem "por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". Embora a norma constitucional não tenha estabelecido qualquer restrição quanto à origem do descumprimento de preceito fundamental, a lei limitou o objeto da arguição a lesão resultante de ato do Poder Público.

A Lei 9.882 estabelece que "caberá também" a ADPF "quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição" (art. 1°, § único, I). Ambas as hipóteses têm por pressuposto comum a lesão a preceito fundamental.

Tendo a ADPF por finalidade a preservação do conteúdo normativo dos preceitos constitucionais fundamentais, nela também não se discutem pretensões relativas a direitos intersubjetivos. A arguição, como modalidade de controle abstrato de constitucionalidade, destina-se a evitar ou a reparar lesão a preceito fundamental e a decisão proferida pelo tribunal deve fixar "as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental" (Lei 9.882/1999, art. 10). Por força dessa peculiaridade é que "a decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público" (Lei 9.882/1999, art. 10, § 3°). Se o ato do Poder Público ofender direitos subjetivos de qualquer pessoa, sua reparação terá de ser demandada pelo legitimado ativo contra o Poder responsável através de ação própria. É evidente que no julgamento dessa demanda, em sendo o caso, o juiz deve atentar para o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental estabelecido pela decisão do STF.


5. OBJETO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.

De acordo com o caput do art. 1° da lei, a arguição é cabível contra ato do Poder Público que cause lesão a preceito fundamental. O inciso I, do parágrafo único, diz que "caberá também" a arguição "quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição".

O ato do Poder Público hábil à propositura da arguição não precisa ser de índole normativa. Podendo ser de outra natureza, cabível, em tese, a arguição contra, por exemplo, ato administrativo. Essa possibilidade inexistia no ordenamento jurídico nacional. Dessa lacuna decorria que qualquer ato administrativo, ainda que ostensivamente afrontoso de preceitos fundamentais de magna envergadura, somente podia ter sua constitucionalidade apreciada e decidida no âmbito do controle difuso. É inequívoco que o desrespeito às normas constitucionais, aí inclusos os preceitos fundamentais, não é apanágio dos atos de natureza normativa. No desempenho da atividade administrativa, o Poder Público, notadamente o Poder Executivo, graças à multiplicidade de sua ação e à plêiade de seus agentes, transgride-as inúmeras e reiteradas vezes. Os tribunais estão abarrotados de ações propostas contra o Poder Público onde se questiona a compatibilidade de atos administrativos com as normas constitucionais.

O ato impugnável pode ser de natureza normativa. Exige-se, em tal caso, que seja relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo. Não basta, portanto, que o ato normativo atente contra preceito fundamental. Segundo a lei, é indispensável que haja controvérsia constitucional a respeito do ato normativo impugnado e, pior ainda, que seja relevante seu fundamento. A contrário, ainda que o ato normativo viole preceito fundamental, se sobre ele não houver controvérsia constitucional ou se esta não repousar sobre fundamento relevante, descaberia a arguição.

Em tese, concebe-se um ato normativo que, apesar de infringente de preceito constitucional fundamental, não tenha suscitado controvérsia constitucional. A incompatibilidade do ato normativo com a Constituição nem sempre é aferida de imediato. A lei, apesar de vigente, pode demorar a produzir efeitos. Ainda que os gere desde logo, aqueles que os sofrem nem sempre dispõem de condições de avaliação de sua constitucionalidade, ou, até mesmo, podem não ter se apercebido de sua invalidade. A controvérsia constitucional pode emergir exatamente com a arguição de descumprimento de preceito fundamental, não havendo amparo para ser erigida à condição de pressuposto de sua propositura. Essa exigência é inconstitucional: afronta o § 1°do art. 102, da Constituição, e também o devido processo legal substancial (CR, art. 5°, LIV).

Difícil, no entanto, é conceber ato normativo, que tenha ensejado controvérsia quanto a sua conformidade com preceito fundamental, cuja polêmica não seja relevante. Se a controvérsia sobre a higidez constitucional de ato normativo tiver por suporte sua (in) compatibilidade com preceito fundamental, a divergência instaurada é, por sua própria natureza, de relevância inegável. Ou, então, não se trata de dissenso relacionado a preceito constitucional substancial. Se o dissenso não envolver interpretação e aplicação de preceito fundamental, a arguição será incabível por não caracterizado como tal o preceito tido por vilipendiado e não pela irrelevância de seu fundamento.

A ADPF encontra campo fértil para tornar-se um instrumento eficaz de controle abstrato de constitucionalidade, sempre que algum ato administrativo de qualquer dos Poderes Públicos, inclusive municipais, atente contra preceito fundamental da Constituição. Ela é o remédio para evitar ou reparar lesão a preceito dessa natureza, sempre que a ameaça ou a efetiva lesão resulte de ato do Poder Público, consoante deflui do caput do art. 1° da Lei 9.882, de 1999.

A ADPF foi erigida pelo constituinte como instrumento de controle da obediência a preceitos fundamentais constitucionais, sempre que inviável a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Sua finalidade é o respeito à integridade desses preceitos, tidos como normas essenciais do arcabouço jurídico. Se o legislador merece aplausos ao eleger como objeto da ADPF ato do Poder Público capaz de causar lesão a preceito fundamental, ele deve ser censurado, quando, tratando-se de ato normativo, pretende submeter seu cabimento à existência de controvérsia constitucional sobre referido ato e à relevância de seu fundamento.

Não se pode olvidar que atos do Poder Público, ainda que não normativos, irradiam seus efeitos sobre significativa parcela do contingente dos administrados. A arguição prevista no § 1°, do art. 102 da Constituição, e regulada pela Lei 9.882, de 1999, na medida em que deve evitar que esses atos venham a consolidar lesões a preceito fundamental ou deve reparar as que eventualmente tenham se verificado, é contribuição valiosa para a tão almejada redução do número de processos judiciais.


6. NOÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

Nem a Constituição nem a lei dizem o que é preceito fundamental. A primeira limita-se a prescrever que a arguição de seu descumprimento é da competência do STF; a segunda, que essa arguição tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito dessa natureza.

Preceito é norma, regra, ordem, determinação. A Constituição é o conjunto basilar das normas e regras do sistema jurídico. Sob esse aspecto, qualquer disposição constitucional poderia ser compreendida como preceito fundamental, porque as normas constitucionais consubstanciam os alicerces do ordenamento jurídico. Mas se toda e qualquer norma constitucional pudesse ser, para essa finalidade, considerada preceito fundamental, então o enunciado do art. 102, § 1°, da Constituição, compreenderia toda e qualquer disposição da Lei Maior e a ADPF se confundiria com outras ações de índole constitucional, especialmente com a ADIN e a ADC.

Fundamental é o que serve de base, que é essencial, necessário, indispensável. É o que não deve faltar, que não pode ser acidental.

Se não podemos, sob esse enfoque, reputar como preceito fundamental toda e qualquer norma constitucional, impõe-se restringir sua noção àquelas que servem de pilares estruturantes do ordenamento constitucional, às que constituem o suporte do sistema, às que se identificam com o solo firme sobre o qual ele se apóia.

Para Luís Roberto Barroso [05], que sinaliza para "aquelas que se singularizam por seu caráter estrutural ou por sua estatura axiológica", sua noção "importa o reconhecimento de que a violação de determinadas normas – mais comumente princípios, mas eventualmente regras – traz consequências mais graves para o sistema jurídico como um todo". Esse autor cita, exemplificativamente, as normas que albergam "os fundamentos e objetivos da República, assim como as decisões políticas estruturantes, (...) agrupados sob a designação geral de princípios fundamentais" (arts. 1° a 4°), "os direitos fundamentais (...), o que abrangeria, genericamente, os individuais, coletivos, políticos e sociais" (art. 5°e seguintes), "as normas que se abrigam nas cláusulas pétreas (art. 60, § 4°) ou delas decorrem diretamente", bem como "os princípios constitucionais ditos sensíveis (art. 34, VII), que são aqueles que por sua relevância dão ensejo à intervenção federal" [06].

Célio Armando Janczeski [07] também se refere a rol semelhante de preceitos fundamentais, incluindo os princípios da ordem econômica (art. 170) e da ordem tributária (art. 145 e seguintes).

José Afonso da Silva [08] conceitua-os como "aqueles que conformam a essência de um conjunto normativo constitucional" (...), "que conferem identidade à Constituição". Para ele os preceitos fundamentais "diferenciam-se dos demais preceitos constitucionais por sua importância, o que se dá em virtude dos valores que encampam e de sua relevância para o desenvolvimento ulterior de todo o Direito".

Embora a doutrina desempenhe papel relevante quanto à conceituação do que se deva entender por preceito fundamental, certo é que o STF já decidiu, por votação unânime, ser de sua competência "o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental" (ADPF 1-7-RJ, DJU de 7.11.2003). Nesse precedente, o princípio fundamental que o arguente teve por violado era o da separação de poderes (CR, art. 2°), que o tribunal não questionou como tal. A arguição não foi conhecida, mas o fundamento de tal decisão repousou na natureza do ato considerado como infringente de preceito fundamental: o tribunal entendeu não ser "enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo – que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, – no conceito de ato do Poder Público, para os fins do art. 1°, da Lei n° 9.882/1999". Dessa forma, não há como fugir à realidade: preceito fundamental é ou será aquele que o STF definir como tal.


7. INEXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO EFICAZ

Estabelece o § 1°, do art. 4° da Lei 9.882/1999, ser inadmissível a ADPF "quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade". Ou seja, se existir no ordenamento jurídico instrumento processual apto a remediar o dano, não cabe a propositura da ADPF.

Excluídas as exegeses radicais [09] e para que a ADPF não se transforme em instrumento sem valia e eficácia, deve-se interpretar o preceito legal restritivo de forma a evitar a inutilidade do mecanismo de controle abstrato previsto no § 1° do art. 102 da Constituição.

Qual a compreensão que se deve dar à expressão "outro meio eficaz de sanar a lesividade"? Se a ela se der alcance que englobe as diversas ações que o ordenamento processual contempla, inclusive aquelas de origem constitucional (v.g., mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus, habeas data), certamente a ADPF jamais será admissível, porque dificilmente se imaginaria uma lesão para a qual não houvesse remédio processual tendente a evitá-la ou repará-la. Interpretação dessa amplitude torna inócua a norma constitucional, porque ignora a prescrição de que para a defesa da integridade dos preceitos fundamentais existe a ADPF e de que a competência para decidi-la cabe ao STF. O constituinte não ignorava, certamente, que o ordenamento jurídico, notadamente o direito processual, contempla a possibilidade de qualquer lesão ser passível de deslinde pelo Poder Judiciário, tanto que o inciso XXXV, do art. 5° da Constituição veda, terminantemente que a lei exclua de sua apreciação lesão ou ameaça a direito.

Nesse quadro, se o constituinte instituiu remédios processuais próprios para o desate judicial de determinadas ofensas ao ordenamento jurídico e também criou a ADPF com a finalidade por ele preceituada, esta não se subordina àqueles nem pressupõe o esgotamento dos respectivos trâmites processuais. Não parece razoável, portanto, pretender sujeitar a admissibilidade da ADPF à inexistência de qualquer outro meio processual hipoteticamente hábil à reparação da lesão a preceitos fundamentais.

De outra parte, o legislador ordinário também não subordinou a admissibilidade da ADPF ao vácuo processual; caso o tivesse feito, cometeria afronta ao próprio § 1°, do art. 102 da Constituição. A prescrição legal inadmite a ADPF única e exclusivamente se "houver outro meio eficaz de sanar a lesividade" e não qualquer outro meio. Nos termos da lei, é cabível a concessão de medida liminar na ADPF, inclusive por decisão individual do relator ad referendum do tribunal, podendo essa decisão cautelar "consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes de coisa julgada" (art. 5°). A decisão proferida pelo tribunal, para a qual se exige quorum qualificado (art. 8°), deve fixar "as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental" e "terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público" (art. 10). Que outro mecanismo processual existe apto a produzir eficácia semelhante à da ADPF? Em outras palavras, qual o juiz ou tribunal dotado de poder jurídico capaz de suspender o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais ainda não transitadas em julgado e que possa proferir decisão cujos efeitos se irradiam contra todos e vinculam o Poder Público?

O outro meio eficaz de sanar a lesividade, cuja existência seria capaz de obstar a admissibilidade da ADPF, haverá de ser um remédio processual com a idoneidade de produzir os efeitos que a ADPF pode desencadear. O parâmetro de eficácia do outro meio referido pela lei há de ser a própria ADPF, isto é, esse outro meio obstativo da admissibilidade da arguição deve ser dotado, pelo menos em tese, de eficácia idêntica à da ADPF. Não basta que existam outros instrumentos ou mecanismos processuais hábeis à discussão da ofensa a preceito fundamental; é indispensável que eles possuam eficácia assemelhada à da ADPF. É o que pode ocorrer, por exemplo, em relação à ADIN e ou à ADC, às quais, dadas as circunstâncias de cada caso, podem representar outro meio eficaz de sanar a lesividade, impedindo, destarte, a propositura da ADPF.

Essa regra legal está fadada a causar muito polêmica e, quiçá, decisões em diversos sentidos. Num dos casos apreciados, o STF asseverou que "a mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir – impedindo, desse modo, o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental – revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional" [ADPF 17 (AgRg) - AP, RTJ 184/373]. No voto proferido, o relator, Ministro Celso de Mello, referiu-se a outras decisões que, em atenção ao dito princípio da subsidiariedade, não conheceram das argüições propostas (ADPF 3-CE, ADPF 18-CE, ADPF 12-DF, ADPF 13-SP). No caso por ele relatado, o Ministro Celso de Mello acompanhado pela unanimidade de seus pares, também não conheceu da arguição [10], porque "no caso destes autos, ante a exposição objetiva dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido, mostra-se evidente que há outros meios processuais – notadamente a ação popular constitucional – cuja utilização tornará possível neutralizar, em juízo, de maneira inteiramente eficaz, o estado de suposta lesividade decorrente dos atos ora impugnados" (RTJ 184/379). Data vênia, não é a ação popular instrumento processual capaz de impedir a propositura de ADPF, se os demais requisitos desta estiverem satisfeitos, porque a ação popular não é dotada de eficácia similar à arguição.


8. A COMPETÊNCIA MUNICIPAL

O art. 30 da Constituição arrola as matérias de competência municipal. Entre elas destacam-se a de "legislar sobre assuntos de interesse local" (inciso I), a de "instituir e arrecadar os tributos de sua competência" (inciso III), cujo elenco está previsto no art. 156 (impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, sobre transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis e sobre serviços definidos em lei complementar), a de "criar, organizar e suprimir distritos" (inciso IV), a de "organizar e prestar, (...), os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo" (inciso V) e "promover, (...), adequado ordenamento territorial" (planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano – inciso VIII).

A aparente singeleza das matérias de competência municipal desfaz-se quando desdobradas na variedade dos assuntos que elas abrangem. A atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local é questão repleta, há anos, de dificuldades e divergências e debatida no Judiciário com frequência. Por exemplo, a questão relativa à fixação do horário de funcionamento do comércio local, sempre objeto de dissenso, já foi, na vigência da Constituição de 1988, levada inúmeras vezes à apreciação do STF. Este já editara, antes da Constituição em vigor, a Súmula 419 [11], cuja tese não foi suficiente para orientar a interpretação do tema, tendo em 24.9.2003 sido publicada a Súmula 645 [12].

A localização espacial de determinados estabelecimentos comerciais também é assunto compreendido na competência municipal, mas que, dependendo da forma como é disciplinada pode configurar ofensa ao princípio da livre concorrência. A Súmula 646 do STF [13] cristaliza interpretação do tribunal sobre hipótese de ofensa a esse princípio. No entanto, quando julgada lei municipal que exigia, para a instalação de postos de revenda de combustíveis, distância mínima de duzentos metros de estabelecimentos escolares, igrejas e supermercados, ela foi considerada constitucional (RE 235.736-MG, 1ª Turma, RTJ 180/1.144). Outros temas também tem merecido análise do STF (v.g., estacionamento de veículos, limitações ao direito de construir, tarifas de serviço público, serviços funerários) [14].

No campo tributário muitas são também as questões que o STF tem sido chamado a deslindar. Quanto ao imposto sobre serviços, a compatibilidade de legislações municipais com normas e princípios constitucionais é tema que, não raro, está presente nas pautas do tribunal. O imposto sobre a transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis também ocupou espaço na agenda do tribunal, sobrevindo a Súmula 656 do STF [15]. A progressividade do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana foi objeto de várias decisões antes da nova redação dada pela EC 29/2000 ao § 1° do art. 156, dando origem à Súmula 668 do STF [16]. Relativamente às taxas de serviço ou de polícia várias foram as leis municipais cuja constitucionalidade foi discutida no STF, com destaque para as de localização e funcionamento, de conservação de estradas, de limpeza pública e de iluminação.

Essa variedade de temas relacionados à competência municipal só chegou a ser decidida pelo STF depois de longo percurso processual. Como não se admitia o controle concentrado da constitucionalidade de atos dessa natureza, a única alternativa para o deslinde de sua conformidade com a Lei Magna, ainda que esses atos transgredissem preceitos constitucionais fundamentais, era através do controle difuso. Dessa forma, mesmo que ostensivamente inconstitucionais, sua apreciação pelo STF dependia da iniciativa, em cada caso, de pessoa dotada de legítimo interesse, isto é, apenas por meio da solução de litígios intersubjetivos era viabilizada a apreciação da higidez constitucional desses atos.

Não significa dizer, por outro lado, que a ADPF, acaso já disciplinada por lei, fosse o instrumento adequado para a solução de todas essas controvérsias. E, certamente, não o será doravante, se o ato municipal não afrontar preceito constitucional fundamental que autorize sua propositura. Mas é inegável que, a partir da Lei 9.882, de 1999, o deslinde de controvérsia sobre a constitucionalidade de ato do Poder Público municipal ou de lei ou ato normativo municipais pode e deve resolvido pela via da arguição de descumprimento de preceito fundamental, evitando-se efetivamente sua transgressão e, especialmente, o penoso e perigoso percurso da marcha processual a que submetido o controle difuso de constitucionalidade.


9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Sabido que a ADPF não constitui instrumento processual hábil ao debate de toda e qualquer ofensa à Constituição, mas é remédio idôneo ao deslinde da contrariedade a preceito constitucional fundamental, conveniente ressaltar as cautelas a serem tomadas para deflagrar eficientemente sua propositura.

Combinando-se o discurso da norma constitucional (art. 102, § 1°) com o teor normativo das disposições da Lei 9.882, de 1999, para a propositura da ADPF constituem requisitos materiais indispensáveis (i) um ato do Poder Público (ii) que cause lesão a preceito fundamental, não havendo (iii) qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. Se o ato do Poder Público for normativo, a lei impõe como condição a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental. Já observamos que essa condição legal não se afeiçoa ao texto da Constituição, esperando-se que a jurisprudência a afaste. É suficiente, para desencadear a arguição, que um ato do Poder Público, normativo ou não, descumpra preceito fundamental, não havendo outro meio eficaz para evitar a infringência perpetrada pelo ato, ou para reparar a lesão por ele causada.

Os requisitos formais são os elencados no art. 3° da Lei 9.882, de 1999, que define o conteúdo mínimo da petição inicial, que poderá ser indeferida se não for caso de arguição, faltar algum dos requisitos ou ela for inepta. A comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental só é exigível "se for o caso" (inciso V), vale dizer, se existir a controvérsia e sua demonstração não impuser prova de difícil obtenção. A comprovação da controvérsia, ao contrário do que sugere a letra da lei, não é requisito de admissibilidade da arguição. Ela torna-se indispensável, no entanto, se o autor almejar decisão liminar consistente na suspensão do andamento de eventuais processos em curso ou dos efeitos de decisões judiciais já prolatadas (art. 5°, §3°).

Enquanto a jurisprudência não assentar interpretação que arrede a comprovação da existência de controvérsia relevante, é de boa cautela praticar a distinção entre atos de caráter normativo daqueles que não o são. Não se deve, entretanto, esquecer que qualquer ato não normativo do Poder Público, notadamente o administrativo, é e deve ser praticado, por força do princípio da legalidade, com respaldo em lei. Se o ato administrativo for lesivo a preceito fundamental, ele é que deve ser questionado através da ADPF e não o ato normativo que lhe serve de suporte, sob pena de, impugnado este, correr o autor da ADPF o risco de vê-la inadmitida se não provar a existência de controvérsia judicial relevante, que pode não existir efetivamente, ser desconhecida ou de difícil ciência.

Ainda que a discussão da lesividade do ato envolva a interpretação de seu fundamento normativo, não será este o objeto da ADPF e, consequentemente, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante, se constitucional fosse, não pode ser exigida. Deve-se atentar, outrossim, que o questionamento da lesividade de um ato do Poder Público não passa, necessariamente, pela apreciação da constitucionalidade da lei ou ato normativo que lhe sirva de sustentáculo, ou que tenha, errônea ou indevidamente, sido invocado como seu fundamento legal. Muitas vezes, o ato lesivo emerge da inapropriada interpretação das normas constitucionais, incluídos os preceitos fundamentais, e ou dos atos normativos que o regulam. Vale dizer, a ofensa a preceito fundamental pode ser fruto da atividade exegética do agente público e não do ato normativo correta ou incorretamente considerado como seu suporte jurídico.

A ofensa a preceito fundamental é pressuposto substancial da arguição, como previsto na norma constitucional (art. 102, § 1°). Ainda que o ato do Poder Público municipal, normativo ou não, contrarie várias normas constitucionais, se nenhuma delas for enquadrável no conceito de preceito fundamental, a arguição é inadmissível. Em tal caso, a constitucionalidade do ato somente pode ser discutida através de ação própria aforada pelo legitimado ativo, isto é, no âmbito do controle difuso. É, sem dúvida, questão central que, dada a imprecisão conceitual, obstará, certamente, algumas arguições. Sendo do STF a palavra final sobre o que se deve compreender como preceito fundamental, conforme visto em item precedente, a incerteza predominará até que a jurisprudência venha a fixar orientação mais segura.

A inexistência de outro meio eficaz de sanar ou prevenir a lesividade do ato é outro requisito fadado a gerar divergências. A interpretação deve ser estrita, sob pena de tornar letra morta a norma constitucional e inócua a lei que a regulamenta, como já salientado em item precedente.

Questão de extrema importância prática é a legitimidade para a arguição. O art. 2° da lei contempla, apenas, aqueles que o são para a ação direta de constitucionalidade (inciso I). O veto ao inciso II desse artigo, já referido linhas antes, sepultou qualquer possibilidade da arguição ser proposta por quem não figure no elenco do art. 103 da Constituição. Em relação a atos do Poder Público municipal, o rol taxativo dos legitimados à propositura da arguição constituirá sério empecilho ao ajuizamento. A lei deveria, tendo em conta essa peculiaridade (arguição em relação a ato municipal), ter contemplado, pelo menos, a legitimidade ativa da Mesa da Câmara de Vereadores e ou do Procurador-Geral de Justiça do Estado. Não o tendo feito, resta aos interessados diretos esperarem a iniciativa de algum dos legitimados ativos para a ADIN.

O § 1°, do art. 2º da lei, admite que o interessado represente ao Procurador-Geral da República para que este a ajuíze. Evidentemente o interessado deverá elaborar representação consistente, porque deve, inicialmente, convencê-lo da existência dos requisitos substanciais à propositura. A possibilidade dessa representação já era admitida pelo STF em relação à ação direta. Em hipótese na qual entidade sindical pleiteou o ajuizamento de ADIN, o tribunal, considerando a representação formulada como "provocatio ad agendum", reputou legítimo o comportamento da entidade, considerando-o como "pleito que traduz o exercício concreto do direito de petição" [ADIN (MC) 1.247-4, RDA 201/213 e RTJ 168/754].

A representação ao Procurador-Geral não é a única alternativa. A provocação para agir também pode ser endereçada a qualquer outro legitimado ativo, especialmente ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a partido político com representação no Congresso Nacional, dos quais não se exige o requisito da pertinência temática [17] [ADIN 3, RT 142/363; Embargos de Declaração na ADIN 363-1, RT 738/199; ADIN (MC) 1.396-3, RT 731/173 e RTJ 163/530; ADIN 1.407, RTJ 176/578]. Esse requisito é exigível quando a demanda constitucional é aforada por confederações nacionais, entidades de classe de âmbito nacional, Mesas de Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Governadores dos Estados e do Distrito Federal [ADIN (MC) 1.096, RTJ 158/441].

Se a ADPF não constitui o remédio para a moléstia que se alastrou pela estrutura judiciária do País, ela pode contribuir para uma melhor prestação dos serviços judiciários. A responsabilidade pela efetividade desse instrumento processual na solução de controvérsias de natureza constitucional e, por decorrência, para a redução do inusitado volume de demandas que congestiona essa estrutura é de todos. A parcela de maior responsabilidade recai, evidentemente, sobre os legitimados ativos para a propositura da arguição e sobre o Supremo Tribunal Federal, aos quais cabe dar a esse instrumento a melhor e mais profícua utilização. Ao Poder Público em geral, notadamente aos Poderes Executivos, que necessita abdicar de interpretações que satisfaçam, apenas, os interesses individuais ou grupais dos detentores temporários do Poder. E de cada um dos indivíduos, aos quais cabe provocar a atuação das autoridades responsáveis visando a minimização de desvios que, além de rasgarem a Constituição, enfraquecem a sociedade.


Notas

  1. Controle Concentrado de Constitucionalidade, obra conjunta com Ives Gandra da Silva Martins, Saraiva, 2001, p. 53.
  2. Para outras indicações, ver minha Constituição Federal Interpretada pelo STF, 9ª ed., 2008, Editora Juarez de Oliveira.
  3. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e o controle de constitucionalidade da lei tributária municipal. Célio Armando Janczeski, Revista Tributária e de Finanças Públicas, Editora Revista dos Tribunais, Ano 16 – 83 – novembro-dezembro 2008, p. 75.
  4. Controle Concentrado de Constitucionalidade, cit., p. 124.
  5. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, 3ª edição revista e atualizada, 2ª tiragem Saraiva, 2009, p. 266.
  6. O Controle... cit., p. 267.
  7. A Arguição de Descumprimento... cit., p. 80.
  8. Comentário Contextual à Constituição, 6ª edição, Malheiros, 2009, p. 554.
  9. Luís Roberto Barroso (O Controle... cit., p. 273/274) refere autores que sustentam a inconstitucionalidade do dispositivo ou que entendem que a arguição somente deveria ser admitida após esgotadas as vias normais de controle de constitucionalidade.
  10. Segundo o voto do relator, a arguição foi ajuizada pelo Governador do Estado do Amapá, "com o objetivo de obter a declaração de nulidade dos atos de nomeação e de investidura de seis (6) Desembargadores do Tribunal de Justiça local, em ordem a viabilizar a cessação de gravíssimas transgressões que – segundo sustenta – teriam sido praticadas, naquela unidade da Federação, contra princípios constitucionais de valores essenciais, consagrados nos arts. 1°, III, e 5°, XXXVII, LIII e LIV, todos da Carta Política".
  11. Súmula 419: "Os municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas".
  12. Súmula 645: "É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial".
  13. Súmula 646: "Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área".
  14. Ver minha Constituição Federal Interpretada pelo STF, Editora Juarez de Oliveira, 9ª ed., 2008.
  15. Súmula 656: "É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI – com base no valor venal do imóvel".
  16. Súmula 668: "É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional n° 29, de 13.9.2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana".
  17. O requisito da pertinência temática é, segundo deflui de decisões do STF, "a adequação entre finalidades estatutárias e o conteúdo material da norma" [ADIN (MC) 1.114-6, DJU de 30.9.1994]. Exige o tribunal, para reconhecer a legitimidade ativa, por exemplo, das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional, que haja um "vínculo objetivo de pertinência entre o conteúdo material das normas impugnadas (...) e a competência ou os interesses" de quem propõe ação direta de inconstitucionalidade. Esse requisito não é exigível pelo tribunal em relação a alguns legitimados (por exemplo, o Conselho Federal da OAB, os partidos políticos, o Procurador-Geral da República), porque, quanto a eles, entende o tribunal que sua legitimidade é ampla e irrestrita.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2231, 10 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13295. Acesso em: 16 abr. 2024.