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Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito

Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito

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Sentença reconheceu a ilegalidade do exercício do poder de polícia de fiscalização do trânsito por Guarda Municipal, anulando multas aplicadas e condenando o Município em danos materiais e morais.

Ação: anulatória de autos de infração de trânsito e reparatória civil

Incidente: impugnação de pedido de assistência judiciária

Autos nº: 033.07.024282-0

Autor: DEMIAN CAMPOS LEITE

Réu: MUNICÍPIO DE ITAJAÍ(SC)

Vistos etc.


I – RELATÓRIO

DEMIAN CAMPOS LEITE, já devidamente qualificado nos autos, por sua procuradora legalmente habilitada (art.36 do Código de Processo Civil – CPC) ajuizou ação anulatória de autos de infração de trânsito e reparatória civil por danos materiais e morais contra o MUNICÍPIO DE ITAJAÍ, pessoa jurídica de direito público interno, também já qualificada nos autos, buscando anulação dos autos de infração de trânsito nº 54525611B, 54525547B, 54525548B e 54525549B (fls.27-32), que teriam sido lavrados por agentes do Réu sem competência para tanto e com abuso de autoridade lhe ocasionando danos materiais e morais.

Entendeu que a guarda municipal não tem competência para fiscalizar o trânsito, mas somente proteger os bens e instalações do Município, muito menos reter CNH de condutores ou apreender seus veículos, de maneira a eivar de ilegalidade as autuações de trânsito lavradas. Lucubrou ainda sobre a inexistência de concurso público para a contratação dos agentes, que seria inconstitucional.

Contou que não agiu contrário a nenhuma norma de trânsito quando, no dia 03/04/2007, às 18h20min, transitava com seu veículos Ford Escort GLX, 1997, renavan 680720464, placas MAW9000, na Avenida Abrahão João Francisco, próximo ao Posto Universitário, para desviar de um outro veículo e por motivo de segurança, freou bruscamente antes de uma faixa de pedestre, e foi abordado pelos agentes da Guarda Municipal Gama e Edinei, que agiram com abuso de autoridade ao tomar conhecimento de sua profissão de Advogado (BO 00481-2007-04910 de fl.35). Destaca que os agentes lhe lavraram as quatro autuações, apreenderam seu veículo e retiveram sua CNH sumariamente, sem qualquer fundamento legal e sem a observância de procedimento administrativo para tanto (fl.36), além de que teriam provocado tumulto desnecessário na via com a abordagem e tentado retirar a chave do carro da ignição sem o seu consentimento, motivos pelos quais devem ser anulados os autos de infração.

Asseverou, ainda, que, quando da apreensão do seu veículo, foi obrigado a pagar o serviço de guincho e estacionamento no pátio do Réu. Ressaltou que o veículo foi levado em bom estado, mas, quando da sua retirada, apresentava avarias diversas, conforme fotos e orçamento anexos (fls.34 e 41-47), o que enseja indenização pelos danos materiais e morais ocasionados diante da responsabilidade objetiva do Réu.

A tutela foi antecipada pela decisão de fls.47-63 (art.273 do CPC).

O MUNICÍPIO DE ITAJAÍ, citado com as advertências do art.285, 2ª parte, do CPC, apresentou resposta na forma de contestação (art.300 do CPC), onde, meritalmente, disse que o Autor descreve os fatos de forma dissonante da realidade, pois transitava em velocidade excessiva e quase ocasionou o atropelamento do pedestre Maurício Heloy de Jesus, alterando-se em razão da abordagem dos agentes Ewerton Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade.

Afirmou que os autos de infração foram lavrados corretamente; e especificamente, sobre o recolhimento da CNH, que estava irregular com o plástico destacado do papel moeda, o que motivou a retenção do documento. Argumentou que a Guarda Municipal tem competência para fiscalizar o trânsito e que os danos materiais não foram comprovados, sendo que os morais se constituem em enriquecimento ilícito. Pugnou, finalmente, pela improcedência do pedido inicial com a condenação do Autor às penas da litigância de má-fé e aos ônus de sucumbência.

A seguir, foi determinada a intimação do Autor para se manifestar sobre a contestação apresentada (art.326 e 327 do CPC) pelo que rebateu as alegações do Réu e repisou os termos da inicial.

Vieram os autos conclusos, pelo que se passa à decisão.


II – TUDO BEM VISTO E ANALISADO, DECIDO:

As condições da ação estão satisfeitas – possibilidade jurídica do pedido, interesse processual e legitimidade (art.267, IV, do CPC) – e concorrem os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo (art.267, VI, do CPC). Não houve reconhecimento de pedido, renúncia a direito nem tampouco prescrição ou decadência (art.269, II a V, do CPC). O órgão para julgamento é competente para tanto com sua investidura e imparcialidade necessárias (art.5º, LIII, da CF). As partes têm capacidade para litigar, estando preenchidos os requisitos da petição inicial (art.282 do CPC) e sendo válida a citação do Réu.

Não há necessidade de produção de outras provas versando a questão de mérito unicamente sobre direito e fatos já comprovados documentalmente, encontrando-se ordenado o processo, de maneira a comportar o julgamento antecipado, nos termos do art.330, I, do CPC, salientando que "o julgamento antecipado da lide, antes de ser uma faculdade do julgador, é um dever, quando presentes os elementos para tanto, tendo-se em vista os objetivos de celeridade, efetividade e economia processual" (TJSC, AC nº 1998.003753-0, Des.Rel.PEDRO MANOEL ABREU, Indaial/SC).

Não há prejudiciais nem preliminares a serem analisadas.

Ab initio, parece ser a presente ação complexa, tendo em vista a aparente necessidade de comprovação de muitos fatos e análise de constitucionalidade das leis aplicáveis e tudo mais.

Entretanto, de uma forma objetiva e com a clareza e concisão que devem ser buscadas para a entrega do provimento jurisdicional e produtos jurídicos em geral, verifica-se que toda a celeuma gira em torno da legalidade do procedimento dos agentes públicos Ewerson e Edney quando autuaram o Autor, seja por, como guardas municipais, não terem competência para fiscalizar o trânsito, seja por terem agido com abuso de autoridade.

Importante destacar que não há dúvida quanto ao vínculo empregatício dos agentes Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade. Ambos fazem parte da Guarda Municipal de Itajaí. Isso porque o Autor assim se referiu a eles na sua petição inicial (fl.05) e o Réu, ao impugnar as razões e contestar o pedido inicial, não negou tal vínculo, ou cargo, dos agentes autuadores. Ao contrário, defendeu suas condutas e cargos, afirmando:

"A atribuição da competência para fiscalizar o trânsito e aplicar multas não fere a Constituição ao contrário pretende efetivar o direito fundamental à vida (CF, art.5º, caput), atende ao princípio da eficiência imposta à Administração Pública (CF, art.37, caput) e está dentro dos limites materiais da competência constitucional da Guarda Municipal pois se trata de serviço essencial de Segurança Pública.

A guarda municipal pode investir-se da competência para fiscalizar o trânsito podendo legitimamente aplicar multas de modo a preservar a vida e incolumidade das pessoas (...)" (ipsis literis fls.106 e 107 – peça contestatória do Município de Itajaí).

Portanto, embora não tenha vindo aos autos a efetiva comprovação de que tipo de vínculo, se estatutário ou celetista, nem o efetivo cargo dos agentes que lavraram as autuações de trânsito contra o Autor, ou a que órgão estão vinculados, constata-se ser fato incontroverso nesta demanda que ambos os Agentes mencionados pertencem à Guarda Municipal de Itajaí, eis que assim admitidos pelo Réu.

No dizer de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, "Se a afirmação de determinado fato não é contrastada por uma afirmação oposta, colidente com ela, não há controvérsia e em princípio o reconhecimento do fato não depende de prova alguma (art. 334, inc. II)", e enfatiza que "A controvérsia gera a questão, definida como dúvida sobre um ponto, ou como ponto controvertido. Se não há controvérsia, o ponto (fundamento da demanda ou da defesa) permanece sempre como ponto, sem se erigir em questão. E mero ponto, na técnica do processo civil, em princípio independe de prova" (in Instituições de Direito Processual Civil. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.59).

Dispõe o CPC: "Art. 334. Não dependem de prova os fatos: (...) II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - admitidos, no processo, como incontroversos; (...)".

NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY lecionam que "São incontrovertidos os fatos alegados pelo autor e não contestados pelo réu, que se presumem verdadeiros (art. 302, caput)" (in Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.535).

Então, ponto fulcral para solução da quaestio juris, fazendo parte, aliás, do MERITUM CAUSAE é a verificação (1)da legitimidade da Guarda Municipal para autuar e aplicar multas oriundas de infração de trânsito; (2)da responsabilidade civil do Município de Itajaí em relação aos danos materiais e morais ocasionados ao Autor.

1. COMPETÊNCIA DA GUARDA MUNICIPAL

Sem maiores delongas, de uma primeira leitura dos arts.24, VI e art.280, §4º, ambos do CTB (Código de Trânsito Brasileiro), poderia se entender pela possibilidade de autuação e aplicação de multas pelos integrantes da Guarda Municipal.

Tal ilação, todavia, viola o regramento constitucional, especificamente o art.144, §8º, da CF, eis que lá consta quais são as funções da Guarda Municipal, a saber: "Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei".

Vê-se que dentre as finalidades da Guarda Municipal não figura o policiamento de trânsito em geral nem a autuação de condutores e lançamento de multas. Tais atos consubstanciam-se em guarda e fiscalização de trânsito.

E a guarda e fiscalização de trânsito urbano compete à Polícia Militar, nos exatos termos do art.107, I, ´e´, da Constituição Estadual de Santa Catarina:

"Art. 107. À Polícia Militar, órgão permanente, força auxiliar, reserva do Exército, organizada com base na hierarquia e na disciplina, subordinada ao Governador do Estado, cabe, nos limites de sua competência, além de outras atribuições estabelecidas em Lei:

I – exercer a polícia ostensiva relacionada com: (...)

e) a guarda e a fiscalização do trânsito urbano".

Se de um lado o exercício de poder de polícia da Guarda Municipal é reconhecido e prestigiado nos moldes da norma constitucional, em contrapartida não se pode dizer que os componentes daquela estejam investidos em função pública, quanto à autuação e aplicação de penalidades a condutores de veículos.

Tal questão já foi bem equacionada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que reconhece repetidamente a invalidade de tais atos administrativos:

"Guarda-Municipal. Representação por Inconstitucionalidade. Indelegabilidade das funções de segurança publica e controle de transito, atividades próprias do Poder Publico. As atividades próprias do Estado são indelegáveis pois só´ diretamente ele as pode exercer; dentre elas se inserem o exercício do poder de policia de segurança publica e o controle do transito de veículos, sendo este expressamente objeto de norma constitucional estadual que a atribui aos órgãos da administração direta que compõem o sistema de transito, dentre elas as Policias Rodoviárias (Federal e Estadual) e as Policias Militares Estaduais. Não tendo os Municípios Poder de Policia de Segurança Publica, as Guardas Municipais que criaram tem finalidade especifica - guardar os próprios dos Municípios (prédios de seu domínio, praças, etc) sendo inconstitucionais leis que lhes permitam exercer a atividade de segurança publica, mesmo sob a forma de Convênios. Pedido procedente" (TJRJ, 2001.007.00070 - repres. por inconstitucionalidade, DES. GAMA MALCHER, j.05/08/2002 - ORGÃO ESPECIAL).

E mais recentemente:

"Administrativo. Constitucional. Vistoria e licenciamento de veículo. Existência de multas anteriores, inclusive pela Guarda Municipal. Pretensão de realização do ato sem pagamento daquelas e cancelamento das emitidas pela Municipalidade. Pagamento das multas no curso do feito. Extinção sem resolução do mérito quanto ao pedido de realização de vistoria e obtenção de licenciamento anual independentemente do pagamento daquelas e improcedência do pedido de anulação dos autos de infração aplicados pela Guarda Municipal reputando válidas as autuações. Apelação. Atuação dos agentes municipais, em controle de trânsito reconhecido como violando o estatuto constitucional. Prevalência do art. 144, § 8º da carta política sobre a lei no. 9.503/97. Matéria decidida pelo Colendo Órgão Especial na representação por inconstitucionalidade no. 2001.007.00070. Lei municipal 1.887/92 que autorizou a criação da Guarda Municipal que deve se adequar ao comando constitucional. Precedentes deste Tribunal de Justiça. Inviabilidade de exercício de poder de polícia de trânsito por empregados públicos não regularmente investidos de função pública.Provimento do apelo, reconhecimento de nulidade das infrações de lavra da Guarda Municipal e seus reflexos e modificação das verbas de sucumbência" (TJRJ, 2007.001.24015 - apelação cível, JDS. DES. PEDRO FREIRE RAGUENET - Julgamento: 31/07/2007).

"APELAÇÃO. AÇÃO VISANDO A ANULAÇÃO DE AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO, IMPUTANDO AO AUTOR TRANSPOSIÇÃO DE BLOQUEIO VIÁRIO SEM AUTORIZAÇÃO. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO AFASTADA PELA PROVA DOCUMENTAL PRODUZIDA. CONDUTOR DO VEÍCULO QUE É POLICIAL MILITAR E NO DIA E HORA DA SUPOSTA INFRAÇÃO, ENCONTRAVA-SE PRESTANDO SERVIÇO NO VIGÉSIMO TERCEIRO BATALHÃO, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. ADEMAIS, A GUARDA MUNICIPAL NÃO PODE SER INVESTIDA DE PODER DE POLÍCIA DE TRÂNSITO, SENDO NULAS DE PLENO DIREITO AS MULTAS POR ELA APLICADA. PRECEDENTES DESTA EGRÉGIA CORTE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE SE REFORMA PARA ANULAR O AUTO DE INFRAÇÃO, BEM COMO DETERMINAR O CANCELAMENTO DA PONTUAÇÃO NEGATIVA IMPOSTA. RECURSO PROVIDO" (TJRJ, 2006.001.50281 - apelação cível, DES. LUIS FELIPE SALOMAO - Julgamento: 24/04/2007).

"Duplo Grau de Jurisdição - Multa - Infração à Lei do Trânsito - Correta a sentença que dá pela nulidade de multa de trânsito, porque aplicada por pessoa que não ostenta as qualidades funcionais necessárias à legalidade do ato. Apenas os Guardas Municipais, regularmente nomeados, estão titulados à fiscalização do cumprimento das regras do Cód. de Trânsito Brasileiro. Empregado celetista ao qual não se pode atribuir esta competência. Decisão confirmada" (TJRJ, 2006.009.02103 - duplo grau obrigatório, DES. JAIR PONTES DE ALMEIDA - Julgamento: 12/04/2007).

Para corroborar o entendimento acima exposto, embora evidentemente não vinculante, importante trazer à luz os pareceres nº 1206 e 1409/06 da Consultoria Jurídica do MINISTÉRIO DAS CIDADES, acerca da atuação das guardas municipais como agentes de trânsito, que foi levado ao conhecimento dos dirigentes dos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Estados e Municípios, por meio do Ofício-Circular nº 002/2007/CGIJF/DENATRAN, no mês de janeiro deste ano de 2007.

A Consultoria referida conclui que falece à Guarda Municipal competência para atuar na fiscalização de trânsito, incluindo o procedimento relativo à aplicabilidade de multas, como, também, não detém legitimidade para firmar convênio com os órgãos de trânsito para tal fim. Transcreve-se o parecer nº 1409/06 na íntegra para melhor entendimento:

"PARECER CONJUR/MCIDADES Nº 1409/2006

GUARDA MUNICIPAL – COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL: As guardas municipais são desprovidas de competência para atuar no campo da segurança publica, não podendo, pois, ser investidas de atribuições de natureza policial e de fiscalização do trânsito. Sua atuação se restringe à proteção dos bens, serviço e instalações do entre municipal (inteligência do art. 144, §8º, da CF/88). (Processo nº 80001.004367/2006-25)

Trata-se de exame de legalidade da atuação da guarda municipal, referente a consulta formulada pela associação das guardas municipais do estado de São Paulo. A indagação circula em torno da competência da guarda municipal na função de agente de trânsito. Os autos foram instruídos com vasta documentação referente a tema. A informação nº 020/2006/CGIJF/DENATRAN (cópia as fls. 112/115) noticia que a matéria já tramita há algum tempo perante o DENATRAN, obtendo pareceres que divergentes entra si. Pelo capacho de fl.120, a coordenação geral de instrumental jurídico e de fiscalização determinou o apensamento dos presentes autos aos autos dos processos nº 80001.015031/2006-98; 80001.011467/2005-27; 80001.014211/2006-52, dando-se o respectivo desapensamento nos termos do DESPACHO CONJUR/MCIDADES nº2663/2006 (fls.153/154). É o relatório.

Consoante já anotado no relatório supra, cuida-se de exame de competência das guardas municipais, aí se incluindo a legitimidade para afirmar convênio com órgãos de trânsito para fins de fiscalização. Observamos, inicialmente, que o sistema de repartição de competência adotado pelo nosso ordenamento jurídico segue o critério da predominância do interesse. Assim, as matérias pertinentes ao interesse nacional serão atribuídas ao órgão central, ficando reservadas aos estados membros e aos municípios as matérias relativas aos interesses regionais e locais, respectivamente. As competências, a teor do próprio texto constitucional, são ditas legislativa e administrativa. A legislativa se expressa no poder de a entidade estabelecer normas gerais, enquanto a administrativa, ou material, cuida dos atos concretos do ente estatal, da atividade administrativa propriamente. Fincadas essas balizas preliminares, cabe atentar para o que estabelece a constituição federal na repartição da competência dos entes federativos no tocante a segurança pública, tema no qual esta inserida a matéria ora em estudo, dispondo no seu art.144, caput, e §8º: ´Art.144. A segurança pública, dever do estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem publica e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Policia Ferroviária Federal e Policias civis Policias militares e corpos de Bombeiros militares (...) §8º - Os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas a proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Os dispositivos acima estabelecem competência administrativa, ou seja. Poder para o exercício de certas atividades típicas do poder publico. E como se vê, independentemente de se tratar de interesse local, regional ou nacional, o constituinte nominou expressamente aqueles entes a quem atribuiu as funções de segurança públicas não constando entre eles o ente municipal, cabendo acrescentar que o critério do interesse local, inserto no art.30, inciso I, da CF, refere-se a competência legislativa do município. A inserção do município no contexto da segurança pública foi por restrita. Com efeito, atribuiu-lhe o constituinte, no parágrafo 8º, do art. 144, o poder de constituir guardas municipais, mas cuidou em fechar o parêntese, estabelecendo que as atribuições destas, no campo material, ficariam limitadas a proteção dos bens, serviços e instalações da municipalidade, na forma da lei. O texto constitucional remeteu a matéria ao legislador ordinário, daria vida plena ao comando da norma. Mas a lei disporia apenas sobre os modos de execução e demais fatores relacionados as nuances administrativas, nunca ampliando o campo de atuação, para acrescentar competência que o constituinte não estabeleceu, como, por exemplo, inserido o município, por intermédio da sua guarda municipal, no contexto da segurança publica. É claro que poderiam, a União, os Estados e os Municípios cuidar da segurança pública, conciliando as suas atribuições de acordo com o interesse verificado. Tal sistemática, alias, é noticiada no direito comparado, consistindo em prática recorrente em diversos países. Isto, por certo, nesses tempos de exacerbada violência urbana, receberia aplausos da sociedade brasileira. Poderíamos muito bem ter uma polícia federal, estadual e municipal. Entretanto, definitivamente, esta não foi a vontade do constituinte. A inclusão da municipalidade no sistema nacional de trânsito, por intermédio dos seus órgãos e entidades executivas de trânsito, nos termos dos arts. 5º e 7º, da Lei nº 9.503/1997 (Código Brasileiro de Trânsito), apenas autoriza o município a atuar na condição de coadjuvante junto aos verdadeiros detentores da competência no cenário da segurança publica, nas atividades relacionadas ao trânsito. Não investiu o ente municipal de competência para atuar na segurança pública, com poderes para os servidores de policia ostensiva, de preservação da ordem pública, polícia judiciária e aplicação de sanções, porquanto tal competência haveria que ter sido atribuída pela própria Constituição Federal, e isto efetivamente não se deu. Aliás, neste sentido vêm se posicionando diversos órgãos do nosso poder judiciário, a exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo teor de decisão ora transcrevemos: "As guardas municipais só podem existir se destinadas a proteção dos bens, serviços e instalações de municípios. Não lhes cabem, portanto, os serviços de policia ostensiva, de preservação da ordem pública, de policia judiciária e de apuração das infrações penais, essa competências foram essencialmente atribuídas a policia militar e a policia civil" (TJPS – Acr 288.556-3- Indaiatuba -7ªC. Crim – Rel. Dês. Celso Limongi – J. 22.02.2000 – JURIS SINTASE, verbete 13044322). Por último, se não compete à guarda municipal atuar na fiscalização de trânsito, incluindo o procedimento relativo a atuação de condutores, pelos mesmos fundamentos também não detém legitimidade para firmar convênio com os órgãos de trânsito para tal fim. Ante o exposto, manifesta-se esta consultoria jurídica, sob a baliza do disposto no conteúdo do art.l 144 da Constituição Federal, no sentido de que falece a guarda municipal competência para atuar na fiscalização de trânsito, incluindo o procedimento relativo a aplicabilidade de multas, também não detendo legitimidade para firmar convenio com os órgãos de trânsito objetivando tal fim. À consideração superior, com sugestão de restituição ao DENATRAN.

CLEMILTON DA SILVA BARROS

Advogado da União.

De acordo. Restituam-se os autos, como proposto, ao Departamento Nacional de Trânsito.

Ministério das Cidades, em 30 de novembro de 2006.

ANA LUISA FIGUEIREDO DE CARVALHO

Consultora jurídica".

O parecer acima foi retirado de Ata Sessão Ordinária n.º 009/2007 do CETRAN de Santa Catarina (Conselho Estadual de Trânsito), datada de 27/02/2007, corroborando o fato de que existem recentes orientações internas no âmbito dos órgãos responsáveis pelo trânsito no sentido de rechaçar as autuações e multas aplicadas pelas guardas municipais.

Conforme acima já destacado, evidentemente que tal parecer não vincula o Juízo, mas serve para reforçar o entendimento aqui adotado da incompetência dos agentes do Réu Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade, que, como Guardas Municipais, autuaram o Autor por suposta infração de trânsito.

Enfim, considero inválidas as autuações nº 54525611B, 54525547B, 54525548B e 54525549B, lavradas pelos agentes Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade, bem como as respectivas penalidades impostas, visto que, como integrantes da guarda municipal, não detêm competência para guardar e fiscalizar o trânsito, conforme art.144, §8º, da CF.


2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO E A INDENIZAÇÃO

A indenização, após longo período de controvérsia, alcançou o status constitucional, conforme se observa do disposto no art.º, V e X, da CF: "Art. 5º (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Ademais, prevê o art.186 do Código Civil: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

Já o art.927 do mesmo diploma legal: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

MARIA HELENA DINIZ, tecendo comentários, preleciona:

"O ato ilícito é praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando o direito subjetivo individual. Causa dano a outrem, criando o dever de repará-lo. Logo, produz efeito jurídico, só que este não é desejado pelo agente, mas imposto pela lei. Para que se configure o ato ilícito, será imprescindível que haja: a) fato lesivo voluntário, causado pelo agente, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência; b) ocorrência de um dano patrimonial ou moral, sendo que pela Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça serão cumuláveis as indenizações por dano moral e material decorrentes do mesmo fato; e c) nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente" (in Código Civil Anotado. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.169).

Mas a responsabilidade do Município de Itajaí deve ser aferida frente ao disposto no art.37, §6º, da CF, que estabelece: "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

Nesse mesmo sentido, JOSÉ DA SILVA PACHECO, apresentou considerações sobre o tema: "Houve, pelo art. 37, § 6º, da CF de 1988, alteração no concernente à responsabilidade civil, inspirada no princípio basilar do novo Direito Constitucional de sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, aos ditames da ordem jurídica, de modo que a lesão aos bens jurídicos de terceiros traz como conseqüência para o causador do dano a obrigação de repará-la" (em parecer publicado na RT-635:103).

E, nas palavras do Ministro GARCIS VIEIRA:

"Para obter a indenização, basta que o lesado acione a Fazenda Pública e demonstre o nexo causal entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) e o dano, bem como o seu montante. Comprovados esses dois elementos, surge naturalmente a obrigação de indenizar. Para eximir-se dessa obrigação incumbirá à Fazenda Pública comprovar que a vítima concorreu com culpa ou dolo para o evento danoso. Enquanto não evidenciar a culpabilidade da vítima, subsiste a responsabilidade objetiva da Administração. Se total a culpa da vítima, fica excluída a responsabilidade da Fazenda Pública; se parcial, reparte-se o quantum da indenização" (STJ, REsp nº. 38.666, Min.GARCIA VIEIRA, in RSTJ 58/396).

É a teoria do risco administrativo, sobre o qual obtempera TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO no seguinte sentido:

"No risco administrativo, há duas nuances fundamentais. Sua própria compreensão e a deslocalização do ônus probatório. Nele, basta o A. provar o dano sofrido e seu nexo causal com a atividade estatal prestada. O respeito à esfera jurídica alheia, patrimonial ou moral é que gera a obrigação de indenizar. A responsabilidade nasce de uma presunção: houve falta anônima da administração pública, o que, na doutrina francesa, se chama faute de service. O A. da ação não necessita comprovar qualquer culpa ou dolo, visto ser a responsabilidade objetiva, nem comprovar que existiu a falta anônima. Tanto a culpa quanto a falta do serviço são presumidas. A nosso sentir, trata-se, quanto à primeira, de presunção absoluta, não se admitindo prova em contrário; quanto à segunda, só se admitem específicas excludentes.

No entanto, a carga probatória, para se eximir da responsabilidade, passa a ser do Estado, e assim mesmo limitadamente. Não basta comprovar a inocorrência de culpa de seu agente, ou do próprio Estado, ou se pretender provar que não houve, concretamente, falta anônima da administração. Prova neste sentido é irrelevante e desimporta ao julgamento da causa ou à definição do ressarcimento. O que passa a ser ônus do Estado e, em compreensão, útil à isenção da responsabilidade é provar uma das excludentes admitidas: culpa exclusiva da vítima, ou de terceiro que não agente público em atividade, e caso fortuito ou força maior (...)" (in Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Aide, 1993. p.19).

Logo, se configurado o nexo causal necessário à imputação da responsabilidade civil objetiva ao ente público e não produzida nenhuma prova que puder dar ensejo ao reconhecimento da culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou motivo de força maior, merece ser indenizado o Autor, o que será analisado nos tópicos seguintes.

2.2. DANOS MATERIAIS

Por conta dos procedimentos deflagrados pela guarda municipal do Município de Itajaí, reconhecidos nesta sentença, como sem competência para agir na guarda e fiscalização de trânsito, o Autor teve seu carro apreendido, conforme faz prova o "termo de apreensão de veículos nº 737" de fl.34, onde atesta as condições do veículo no momento em que foi guinchado, dando conta que não havia nenhuma avaria na sua lataria. Isso no dia 03/04/2007, às 18h20min.

O Autor alega e traz as fotos de fls.42/43 para comprovar que, quando foi retirar o seu veículo Ford Escort GLX, 1997, renavan 680720464, placas MAW9000, no dia 04/04/2007, percebeu uma série de arranhões e amassados na lataria, cuja restauração totalizaria valores variantes entre R$1.900,00 e R$4.890,00.

Além disso, para a retirada do carro do pátio da empresa que detém a concessão da guarda de veículos, GHR CONCESSIONÁRIA, teve que despender R$101,00 (cento e um reais), conforme fl.41.

Então, na esteira do delineado no item anterior, não resta dúvida quanto ao acontecimento do evento (conduta ilegítima de agentes do Réu) e o dano no veículo do Autor, sendo o nexo de causalidade claro.

Já julgou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

"REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS OCORRIDOS EM ACIDENTE DE TRÂNSITO – VEÍCULO DO ENTE PÚBLICO QUE COLIDE NA RETAGUARDA – BOLETIM DE OCORRÊNCIA APONTANDO PARA A RESPONSABILIDADE DESTE – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA – NEXO DE CAUSALIDADE SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADO – INDENIZAÇÃO DEVIDA – DEMORA DO AUTOR NO AJUIZAMENTO DA ACTIO – IRRELEVÂNCIA – TERMO A QUO PARA A INCIDÊNCIA DOS JUROS MORATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA CORRETAMENTE FIXADOS – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO

- ´A presunção juris tantum de veracidade de que goza o boletim de ocorrência só será desconstituída por prova robusta em sentido contrário´ (AC n. 2005.042349-2, de Itajaí, Rel. Fernando Carioni, j. 20.07.2006)

- ´Comprovado pelo autor o evento lesivo, o dano e o nexo de causalidade, incumbe ao réu alegar e provar as causas que o eximem da responsabilidade, tais como a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro ou o caso fortuito ou força maior. Do contrário, impõe-se-lhe a obrigação de reparar o dano´ (AC n. 2002.009409-4, de Joaçaba, Rel. Des. Sônia Maria Schmitz, j. 30.06.2006)

- Sendo o caso em espécie de responsabilidade extracontratual, a questão encontra-se pacificada pelos verbetes 54 do STJ e 562 do STF, dos quais extrai-se que o prazo inicial para a incidência dos juros moratórios é data do evento danoso, restando nítido o acerto da vergastada sentença.

- ´É devida a correção monetária dos danos decorrentes do ilícito desde o momento em que tais danos foram tornados líquidos, seja pela comprovação do desembolso efetuado, seja pela apresentação do orçamento adotado como idôneo para apuração do quantum a ser ressarcido´ (REsp. 168366/DF, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 21.09.1998, p. 0202)" (TJSC, Apelação cível n. 2007.004294-4, da Capital, Relator: Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j.22/03/2007).

E "A indenização mede-se pela extensão do dano" (art.944 do Código Civil).

Portanto, merece o Autor ser ressarcido no valor de R$2.001,00 (dois mil e um reais), atualizados monetariamente, relativos aos danos causados por prepostos do Réu na lataria do seu veículo – menor orçamento de fl.44 – e pelo gasto para retirá-lo do pátio após a apreensão indevida (fl.41).

2.3. DANOS MORAIS

Como se tudo isso não bastasse, o Autor ainda teve sua carteira de habilitação apreendida pelos mesmos agentes sob o fundamento do art.220, II, do CTB, que dispõe: "Art. 220. Deixar de reduzir a velocidade do veículo de forma compatível com a segurança do trânsito: (...)II - nos locais onde o trânsito esteja sendo controlado pelo agente da autoridade de trânsito, mediante sinais sonoros ou gestos; (...)Infração - grave; Penalidade – multa".

Mesmo que os agentes da guarda municipal do Réu fossem competentes para lavrar autuações, conforme já delineado na decisão que antecipou a tutela, é possível aplicar toda e qualquer penalidade na legislação prevista, desde que se dê ciência ao infrator e, se for o caso, se instaure previamente o competente processo administrativo.

A hodierna legislação inegavelmente trouxe certa moralidade ao trânsito quando chamou à ordem aquele condutor que, portando sua carta de habilitação, cometia absurdos nas vias públicas escorado na impunidade institucionalizada.

Andou bem o legislador em condicionar a aquisição ou suspensão do direito dirigir veículos motorizados ao comportamento do motorista. Contudo, impôs uma contraprestação à Administração Pública: dar ciência ao administrado tanto das infrações cometidas quanto das decisões proferidas em defesa prévia e em processo administrativo. Terminado este, então, e havendo penalidade a ser imputada, é que poderia ter sido retido o documento.

Isso porque, procedendo de modo diverso, a autoridade não oportuniza ao cidadão defender-se da penalidade que lhe é imputada.

O due process of law é previsto no art.5º, LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil, quando diz que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". E também no art.5º, LV, da CF, in verbis: "(..) aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º, LV, da CF).

A esse respeito, o Ministro LUIZ FUX, do Superior Tribunal de Justiça, comenta: "O princípio do contraditório é reflexo da legalidade democrática do processo e cumpre os postulados do direito de defesa e due process fo law. A inserção do contraditório em sede constitucional timbra de eiva de inconstitucionalidade todo e qualquer procedimento que o abandone" (FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 254).

Não poderia seguir outra linha de raciocínio o diploma de trânsito: "Art.265. As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa".

Portanto, os agentes do Réu, além de incompetentes para a prática dos atos fiscalizatórios do trânsito, transgrediram regra basilar do Código de Trânsito Brasileiro e da Constituição da República Federativa do Brasil, pois tolheram o direito do cidadão de se defender contra a retenção de sua CNH, o que veio a prejudicar a sua normal rotina, eis que experimentou dissabores originados da inacessibilidade ao seu veículo de trabalho e inassiduidade às aulas do curso de pós-graduação que freqüenta.

As alegações do Réu de que a CNH teria sido recolhida por conta de adulterações, não restaram comprovadas. Muito pelo contrário, segundo o documento de fl.36, expedido pela Delegacia Regional de Polícia de Itajaí, a CNH do Autor foi apreendida com embasamento no art.220, II, do CTB (Código de Trânsito Brasileiro), entretanto, este dispositivo "não comina penalidade de suspensão do direito de dirigir, tampouco, a medida administrativa de recolhimento da CNH, portanto, não se obteve a clarividência atinente ao cometimento de infrações que incidam em procedimento administrativo punitivo" (ipsis literis fl.36).

O boletim de ocorrência de fl.35 reforça tal interpretação, eis que confeccionado 40min após dos fatos deflagradores desta ação, e não contestado de forma robusta pelo Réu. E "A presunção juris tantum de veracidade de que goza o boletim de ocorrência só será desconstituída por prova robusta em sentido contrário" (TJSC, AC nº 2005.042349-2, de Itajaí, Rel.FERNANDO CARIONI, j.20/07/2006).

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina já teve oportunidade de se manifestar em caso semelhante:

"MANDADO DE SEGURANÇA - CONSTATAÇÃO DE ÁLCOOL EM NÍVEL SUPERIOR AO PERMITIDO POR LEI - RETENÇÃO DA CARTA DE HABILITAÇÃO - PROCESSO ADMINISTRATIVO POSTERIOR - ATITUDE PREMATURA DA AUTORIDADE DE TRÂNSITO - ILEGALIDADE CARACTERIZADA.

Fere direito líquido e certo, defensável pelo writ of mandamus, a apreensão pela autoridade administrativa da habilitação para dirigir sem que seja assegurado o exercício da ampla defesa.

Em que pese o esforço despendido pela autoridade de trânsito em fazer cumprir a Legislação pertinente, esqueceu-se ela de que a atitude extrema em reter o documento só é viável posteriormente ao processo administrativo, se dele resultar penalidade a ser imputada" (TJSC, Apelação cível em mandado de segurança n. 00.013158-0, de Blumenau, Relator: Des. Volnei Carlin, j.31/05/2001).

Os danos morais estão incutidos na esfera subjetiva da pessoa, cujo acontecimento tido como violador atinge o plano de seus valores mais íntimos, repercutindo em aspectos referentes tanto à reputação perante os demais membros da sociedade ou mesmo no tocante à mera dor interior.

Sobre o tema, leciona YUSSEF SAID CAHALI: "Dano moral, portanto, é a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado, sem repercussão patrimonial. Seja dor física - dor-sensação, como a denomina Carpenter - nascida de uma lesão material; seja a dor moral - dor-sentimento, de causa material" (in Dano e Indenização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p.7).

O fato de o Autor ter ficado privado de seu veículo, ilegalmente apreendido, mais o fato de ter que se defender administrativa e judicialmente contra as autuações contra si lavradas já evidencia seu sofrimento e incômodo, caracterizando-se assim o prejuízo extrapatrimonial passível de ressarcimento.

Some-se, ainda, o fato de ter sua CNH apreendida sumariamente em procedimento absolutamente arbitrário por parte da guarda municipal que é incompetente para tanto, o que faz sobrepujar o quão desagradável e penoso foi todo o ocorrido.

Conforme ensina CARLOS ALBERTO BITTAR : "Qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o dá própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social)" (BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. p.45).

No que tange ao valor a ser arbitrado a título de indenização por danos morais, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR assinala que "resta, para a Justiça, a penosa tarefa de dosar a indenização, porquanto haverá de ser feita em dinheiro, para compensar uma lesão que, por sua própria natureza, não se mede pelos padrões monetários" (in Alguns aspectos da nova ordem constitucional sobre o direito civil. Revista dos Tribunais, 662/7-17).

É, pois, de se ter sempre em mente que a indenização deve compensar a sensação de dor da vítima e representar "uma satisfação, igualmente moral, ou, que seja, psicológica, capaz de neutralizar ou anestesiar em alguma parte o sofrimento impingido" (RT 650/66), levando-se em conta a gravidade do dano, a personalidade da vítima, a personalidade do autor do ilícito e o patrimônio dos envolvidos (vítima e autor do evento danoso).

Por outro lado, não há que se falar em limites do valor da reparação. O quantum devido deverá sempre ser arbitrado levando em consideração os fatores pertinentes a cada caso específico, equacionando a dor sentida e o valor devido a título de indenização, chegando a uma quantia justa e proporcional.

É óbvio que a quantia não pode ser tão grande que se converta em fonte de enriquecimento sem justa causa. Também não deve ser pequena a se tornar insignificante.

Nada mais oportuno, então, do que a aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que uns chamam de máximas, outros dizem estar implícitos na Carta Magna, e outro, ainda, que aplica-se apenas como forma de interpretação.

As raízes dos postulados sobre razoabilidade derivam do âmbito jurídico processual, mais precisamente, da garantia do due process of law (devido processo legal), a qual veio a consagrar-se como fundamento constitucional apto a permitir o controle dos atos da Administração Pública.

CADEMARTORI registra:

"Em termos históricos mais amplos, a trajetória de consolidação do princípio do devido processo como princípio conexo com o da razoabilidade, observou duas etapas fundamentais. A primeira delas, tida como eminentemente procedimental e oriunda do Direito anglo saxão medieval, enfatizava o caráter estritamente formal e processual (procedural process) do Direito, rejeitando expressamente, qualquer âmbito de análise substancial que permitisse ao órgão julgador examinar aspectos de injustiças ou arbitrariedades materiais das normas. Numa segunda etapa, produto de um avanço paulatino, o devido processo assumiu um caráter substantivo (substantive due process) onde passou a ser avaliada, também, a razoabilidade e racionalidade das normas, num processo de análise baseado na verificação de compatibilidade entre o respeito pelas liberdades individuais, de um lado, e, por outro, as exigências sóciopolíticas que moldam os valores constitucionais do Estado" (CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001, p.116).

Segundo GRINOVER, apesar do nítido sentido processual que à cláusula se imprimiria na sua tradição histórica, "foi sendo imposto um conceito substantivo de due process of law, emergente do amplo significado a ela subsumido, quando foi reconduzido a um critério de razoabilidade" (GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 35).

Pode-se dizer que o razoável não é o correto e nem o irrazoável é o equivocado, tomados estes termos em um sentido absoluto, posto que, segundo o que estabeleceu LORD DENNING no caso Secretary of State for Education and Science vs. Metropolitan Borough of Timeside: "two reasonable persons can reasonablv corne to opposite conclusions" (duas pessoas razoáveis podem chegar a conclusões razoáveis opostas) ou seja que, somente há irrazoabilidade quando a decisão é "so wrong that no reasonable person could sensibly take that view" (tão erradas que nenhuma pessoa razoável poderia manter tal ponto de vista). Portanto, a razoabilidade se explicitará a partir de um juízo básico de senso comum.

Já o princípio da proporcionalidade originou-se na Alemanha, desenvolvendo-se, inicialmente, na esfera do direito administrativo, mais especificamente, nas disposições sobre o exercício do poder de polícia e seus limites, desde o século XIX.

Mais tarde, com o advento da atual Constituição da Alemanha, isto é, após 1949, o princípio da proporcionalidade passou a ser reconhecido, na esfera jurídico-constitucional, como parâmetro vinculante de toda a atividade legislativa. Entende-se que a matriz da proporcionalidade encontra-se no princípio do Estado de Direito sendo que este, na condição de princípio constitucional fundamental, vincula o legislador, na medida em que serve de fundamento para o princípio da reserva da lei proporcional.

Mais uma vez URQUHART CADEMARTORI ensina:

"A jurisprudência alemã desenvolveu o conteúdo do princípio da proporcionalidade em três níveis. Assim, a norma, para corresponder ao princípio da reserva legal proporcional, deverá, simultaneamente ser adequada (geeinet), necessária (notwenndig) e razoável (angemessen). Os requisitos de adequação e da necessidade significam, primacialmente, que o objetivo traçado, seja pelo legislador, seja pelo administrador, bem como o meio utilizado por eles, deverão ser ambos, como tais, admitidos, ou seja, possíveis de ser utilizados. Paralelamente a isto, o meio utilizado deverá ser adequado e necessário" (CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001, p.116).

No âmbito doutrinário brasileiro, autores, como Celso Antonio Bandeira de Mello e Odete Medauar, deram singular enfoque ao princípio da proporcionalidade ao considerá-lo como uma espécie de desdobramento ou faceta da razoabilidade. Assim, MELLO traz à tona uma concepção que o enquadra dentro da obediência a critérios aceitáveis racionalmente pela autoridade pública e que devem estar em sintonia com o "senso moral das pessoas equilibradas" e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo:Malheiros, 1994, p.54).

A respeito dessa expressão, pode se traçar uma aproximação conceitual entre a idéia de "senso moral" com a idéia de "senso comum". Este pode ser entendido como algo que não está referido a uma capacidade interna ou faculdade que tenham todos os homens e que lhes permita pensar, conhecer ou julgar de forma isolada. Ao contrário disto, refere-se à constatação da existência de um mundo comum a eles e no qual todos se encontram e reconhecem.

Assim, o senso comum não se irradia, então, como uma capacidade solitária, exercida independentemente entre os homens e que, apesar disto, faz que todos deduzam as mesmas conclusões, como ocorre, por exemplo, com as operações matemáticas. Contrariamente a esse entendimento, a base do senso comum é a noção básica das pessoas da existência de um mundo compartilhado (ARENDT. Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense/ Edusp. 1981. p.221).

Por essa razão, é que o homem, ao experimentar o senso comum, o faz ciente de compartilhá-lo, inclusive em termos valorativos, com os outros homens e não de forma isolada.

O princípio da proporcionalidade é fundamental para ponderação no momento de equacionar a legalidade substancial, não somente das medidas punitivas a serem adotadas, mas com respeito a quaisquer providências derivadas do Poder Público (MEDINA OSÓRIO, Fábio. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2000. p.171)

Tanto a razoabilidade como a proporcionalidade, são padrões, não somente limitadores, como também de modulação das liberdades individuais.

URQUHART CADEMARTORI termina: "No tocante à proporcionalidade, esta decorrerá da verificação, dentro de uma perspectiva de senso comum, do atendimento destes valores, por parte do emissor do ato estatal, no seu grau necessário e pertinente ao caso concreto, objeto de apreciação, posto que o significado dos direitos fundamentais não é de caráter unívoco" (CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001. p.116).

Enfim, atendendo ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, bem como a gravidade do dano, a personalidade da vítima, a personalidade do autor do ilícito e o patrimônio dos envolvidos (vítima e autor do evento danoso), entendo moderada a indenização pelo dano moral sofrido pelo Autor da quantia de 15(quinze) vezes o valor das multas oriundas das infrações anuladas, que totaliza R$9.576,90 (nove mil, quinhentos e setenta e seis reais e noventa centavos).

Para rematar, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA não decepciona:

"RESPONSABILIDADE CIVIL. MULTA DE TRÂNSITO INDEVIDAMENTE COBRADA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. DANO PRESUMIDO. VALOR REPARATÓRIO. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO

1. Como se trata de algo imaterial ou ideal, a prova do dano moral não pode ser feita através dos mesmos meios utilizados para a comprovação do dano material. Por outras palavras, o dano moral está ínsito na ilicitude do ato praticado, decorre da gravidade do ilícito em si, sendo desnecessária sua efetiva demonstração, ou seja, como já sublinhado: o dano moral existe in re ipsa. Afirma Ruggiero: "Para o dano ser indenizável, ´basta a perturbação feita pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito."

2. É dever da Administração Pública primar pelo atendimento ágil e eficiente de modo a não deixar prejudicados os interesses da sociedade. Deve ser banida da cultura nacional a idéia de que ser mal atendido faz parte dos aborrecimentos triviais do cidadão comum, principalmente quando tal comportamento provém das entidades administrativas. O cidadão não pode ser compelido a suportar as conseqüências da má organização, abuso e falta de eficiência daqueles que devem, com toda boa vontade, solicitude e cortesia, atender ao público.

3. Os simples aborrecimentos triviais aos quais o cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes, engarrafamentos etc. No caso dos autos, o autor foi obrigado, sob pena de não-licenciamento de seu veículo, a pagar multa que já tinha sido reconhecida, há mais de dois anos, como indevida pela própria administração do DAER, tendo sido, inclusive, tratado com grosseria pelos agentes da entidade. Destarte, cabe a indenização por dano moral.

4. Atendendo às peculiaridades do caso concreto, e tendo em vista a impossibilidade de quantificação do dano moral, recomendável que a indenização seja fixada de tal forma que, não ultrapassando o princípio da razoabilidade, compense condignamente, os desgastes emocionais advindos ao ofendido. Portanto, fixo o valor da indenização a ser pago por dano moral ao autor, em 10 (dez) vezes o valor da multa.

5. Recurso especial provido" (STJ, REsp 608918 / RS, Relator(a) Ministro JOSÉ DELGADO, j.20/05/2004).

Lembrando que "as proposições poderão ou não ser explicitamente dissecadas pelo magistrado, que só estará obrigado a examinar a contenda nos limites da demanda, fundamentando a seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice (em juízo) e com a legislação que entender aplicável ao caso concreto" (STJ, Resp nº 792.497/RJ, Relator Ministro Francisco Falcão, j.16/12/2005).

III – DISPOSITIVO

ISSO POSTO, JULGO PROCEDENTES os pedidos formulados na ação nº 033.07.024282-0, ajuizada por DEMIAN CAMPOS LEITE contra o MUNICÍPIO DE ITAJAÍ(SC) para:

a) declarar nulos os autos de infração nº 54525611B, 54525547B, 54525548B e 54525549B, e as penalidades impostas em decorrências deles, eis que lavrados por agentes da guarda municipal sem competência para fiscalizar o trânsito;

b) condenar o Réu a reparar os danos materiais indenizando o Autor na quantia de R$2.001,00 (dois mil e um reais);

c) condenar o Réu a reparar os danos morais indenizando o Autor na quantia de R$9.576,90 (nove mil, quinhentos e setenta e seis reais e noventa centavos);

Declaro a EXTINÇÃO DO PROCESSO ex vi do art.269, I, do CPC.

Na forma do art.20 do CPC, condeno o Réu ao pagamento das despesas processuais – que fica isento, conforme art.35, alínea ´h´, da Lei Complementar nº 156/97 com redação da Lei Complementar nº 161/97 – e dos honorários advocatícios devidos ao Autor, que, consoante art.20, §§4º e 3º, do CPC, fixo em R$2.000,00 (dois mil reais).

Oficie-se ao CODETRAN (Coordenadoria de Trânsito de Itajaí) e ao DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito de Santa Catarina) com cópia desta decisão, para que dêem baixa das autuações no prontuário do condutor ora Autor, bem como não computem a pontuação em sua CNH.

Tendo em vista a ocorrência, em tese, de possível crime de abuso de autoridade (Lei Ordinária Federal nº 4.898/65) por parte do agentes públicos, guardas municipais, Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade, do Réu, forte no art.40 do CPP (Código de Processo Penal - Decreto-Lei nº3.689/41), encaminhem-se cópias de fls.25-38 e desta sentença ao Ministério Público.

Deixo de sujeitar a presente sentença ao duplo grau de jurisdição para o reexame necessário em face de o valor da condenação não exceder a 60(sessenta) salários mínimos, nos termos do art.475, §2º, do CPC.

Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Itajaí(SC), 27 de agosto de 2007.

RODOLFO CEZAR RIBEIRO DA SILVA

Juiz de Direito



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodolfo Cezar Ribeiro da. Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1560, 9 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16806. Acesso em: 27 abr. 2024.