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O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo

O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo

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O Chefe do Executivo pode se deparar com normas inconstitucionais. Qual o meio adequado para a Administração afastar a sua incidência?

1. Introdução

Ao pesquisar sobre o tema, nota-se que a doutrina o aborda de forma muito tímida. Grande parte dos estudiosos do direito, ao tratar do controle de constitucionalidade, influenciados pelo movimento neoconstitucionalista, vem debruçando seus estudos e discussões sobre os meios de controle exercidos pelo Poder Judiciário, mais precisamente pelo Supremo Tribunal Federal, dando pouca importância à discussão das formas de controle exercidas por outros órgãos, reforçando o papel do referido Tribunal como guardião supremo da Constituição e contribuindo para uma supervalorização do judiciário em detrimento aos demais poderes.

O Chefe do Executivo, ao exercer suas funções, pode se deparar com legislações inconstitucionais. O controle de constitucionalidade exercido de forma prévia, ou seja, antes que a norma ingresse no ordenamento jurídico, pode se revelar insuficiente.

Embora as normas jurídicas, uma vez editadas, possuam uma presunção relativa de constitucionalidade, não é muito raro que, por diversos motivos, as normas vigentes nas esferas Municipal, Estadual e Federal, possam estar em desacordo com os preceitos Constitucionais.

Diante dessa problemática, qual seria o meio adequado para que a Administração Pública afaste a incidência de aplicação de tais normas?

O presente artigo tem como objetivo principal analisar a possibilidade de uma Autoridade Administrativa (Chefes do Executivo Municipal, Estadual e Federal) abster-se de cumprir uma lei que considere inconstitucional e quais seriam os fundamentos que legitimam tal descumprimento.


2. Posicionamento Doutrinário e Jurisprudencial sobre o Tema

O poder de rejeição das normas inconstitucionais nada mais é do que uma forma de exercício do controle de constitucionalidade repressivo, exercido pelo Executivo, uma das exceções ao controle jurisdicional adotado no Brasil.

Ao tratar da possibilidade de não-cumprimento das normas inconstitucionais, alguns doutrinadores têm apresentado posicionamento favorável ao exercício desse meio de controle, embora haja a necessidade de avaliar os motivos determinantes desse exercício pelo Executivo, e a forma como o mesmo se dará, a fim de evitar arbítrios e insegurança jurídica, assegurando o atendimento aos princípios do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, passa-se a analisar os posicionamentos doutrinários existentes sobre o tema, de forma crítica, a fim de clarear aspectos importantes relativos a esse tipo de controle.

Alguns autores como Gilmar Mendes e Pedro Lenza, ao tratar do tema, traçam um retrato histórico sobre a possibilidade de descumprimento, abordando as circunstâncias existentes antes do advento da Constituição Federal de 1988, lembrando que o controle de constitucionalidade concentrado surgiu no Brasil somente com a Emenda Constitucional nº. 16/65, que estabelecia como único legitimado ativo à propositura de ADI o Procurador Geral da República. [01]

Portanto, nesse primeiro momento, doutrina e jurisprudência consolidaram o entendimento de que o Chefe do Executivo poderia deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional, cabendo-lhe ainda, baixar determinação enquanto superior hierárquico, para que os seus subordinados também não cumprissem a lei. [02]

Essa possibilidade de descumprimento fundava-se no fato de haver um único legitimado ativo para a propositura de ADI, o Procurador Geral da República, o que impedia os Chefes do Executivo de discutirem de forma direta a inconstitucionalidade das normas infraconstitucionais perante o STF.

Nesse mesmo sentido era o entendimento da jurisprudência do STF, conforme citado abaixo:

Representação nº 980 / SP – São Paulo – Relator(a): Min. Moreira Alves – Julgamento: 21/11/1979 – Órgão Julgador: Tribunal Pleno – Publicação DJ 19-09-1980 pp-07202 – Vol. 01184-01 – pp. 00100.

Ementa: É constitucional decreto do Chefe do Executivo Estadual que determina aos órgãos a ele subordinados que se abstenham da prática de atos que impliquem a execução de dispositivos legais vetados por falta de iniciativa exclusiva do Poder Executivo. Constitucionalidade do Decreto nº. 7.864, de 30 de abril de 1976, do Governador do Estado de São Paulo. Representação julgada improcedente. [03]

Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1998, afirma a doutrina que o tema perdeu relevância, uma vez que o Presidente e o Governador ganharam legitimidade ativa para propositura da ADI, conforme disciplina do art. 103 da Carta Magna. [04]

Dessa feita, alguns doutrinadores passaram a defender o entendimento de que com o advento da Constituição Federal de 1988, não havia mais legitimidade dos Chefes do Executivo (Presidente e Governadores de Estado) para o exercício do descumprimento, conforme abaixo destacado:

Não obstante, com o advento da Constituição Federal de 1988, que reconheceu inclusive aos Governadores de Estado – mas não apenas ao Presidente da República – a legitimação para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, observada a temática da lei impugnada, parece-me incompreensível permitir-se ao Chefe do Executivo lançar mão da verdadeira autotutela do Direito Constitucional. [05]

Cabe ressaltar que já havia quem defendesse a impossibilidade de descumprimento mesmo antes do advento da Constituição Federal de 1988, ao argumento de que com a Emenda 16/65, já dispunha o Chefe do Executivo (Presidente) da possibilidade de representação ao Procurador Geral da República. Nesse sentido, destaca-se o posicionamento do então Ministro do STF Prado Kelly, extraído de um trecho do voto do Ministro Oscar Saraiva, em decisão de Mandado de Segurança, proferida em dezembro de 1966:

O SR. MINISTRO PRADO KELLY (RELATOR) – Consista V. Exa. só para avivar a nossa memória, recordar bem como se sistematiza o debate. Sustentava-se que, até a Emenda Constitucional nº 16, era reconhecida, quer na prática norte-americana, quer em nosso direito, a possibilidade de reagir o Presidente da República – estava em causa a pessoa do Presidente – à lei que reputasse inconstitucional, porque, de qualquer maneira, a aplicação do dispositivo importava numa ação entre a lei hierarquicamente superior e a lei ordinária invocada.

O SR. MINISTRO OSCAR SARAIVA – Aliás, ouvi o argumento.

O SR. MINISTRO PRADO KELLY (RELATOR) – Entretanto, sobreveio a Emenda Constitucional 16, que permitiu na letra K, do inciso I, do artigo 101, representação ao Procurador Geral da República contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual. Já agora, a questão perdeu ênfase, porque o Executivo dispõe de meios aptos para fazer valer, se procedente o seu ponto de vista, a autoridade da Constituição sobre a lei impugnada e, ao mesmo tempo, ressalvar a sua responsabilidade, não precisando mais optar entre uma ou outra norma.

Agradeço a V. Exa. a atenção.

O SR. MINISTRO GONÇALVES DE OLIVEIRA – Então Ministro Prado Kelly, na opinião de V. Exa., em face da Emenda Constitucional nº 16, cessou esse poder do Presidente da República de descumprir a lei.

O SR. MINISTRO PRADO KELLY (RELATOR) – É o que sustento, porque aí o Chefe da Nação pode, através do Ministério Público, provocar, imediatamente, o pronunciamento da Corte Suprema, para decidir acerca do assunto. [06]

Com a legitimidade para a propositura de ADI, pelos Chefes do Executivo (Presidente e Governador), conforme disposto no art. 103 da Constituição Federal de 1988, parte da doutrina passou a defender apenas a possibilidade de descumprimento de norma inconstitucional editada anteriormente à Constituição Federal de 1988, tendo em vista a impossibilidade de discussão de sua inconstitucionalidade perante o STF por via da ADI, bem como a possibilidade de descumprimento pelos Prefeitos, uma vez que não possuem legitimidade para propositura de ADI com o objetivo de discutir a inconstitucionalidade de norma municipal perante o STF. [07]

Se entender – como parece razoável – que o Executivo, pelo menos no plano estadual e federal, não mais pode negar-se a cumprir uma lei com base no argumento de inconstitucionalidade, subsistem ainda algumas questões que poderiam legitimar uma conduta de repúdio. [08]

Em sentido inverso, outros defenderam a impossibilidade de tal afirmativa, tendo em vista que consistiria em maior atribuição de poderes aos Chefes do Executivo Municipal em prejuízo aos chefes do Executivo Estadual e Federal, o que causaria desequilíbrio entre os poderes atribuídos aos entes federativos. Sendo assim, autoriza-se a possibilidade de descumprimento da norma inconstitucional pelo Executivo nas três esferas de poder. [09]

Outra vertente analisa o tema sobre o enfoque de dois pólos confrontantes o princípio da legalidade, que vincula a Administração às leis vigentes e o princípio da vinculação aos direitos fundamentais.

No que diz com a relação entre os órgãos da administração e os direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da administração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos devem executar apenas as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de forma constitucional, isto é, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais. [10]

Nesse sentido, alguns doutrinadores, ainda que reconheçam a dificuldade de atribuir esse tipo de controle ao Executivo, admitem excepcionalmente a possibilidade de descumprimento de lei que afronte de forma inequívoca direitos fundamentais, bem como quando o cumprimento da lei constituir prática de crime. [11]

Há também consenso no sentido de que, em determinados casos limites, o agente pode deixar de cumprir a lei, por entendê-la inconstitucional – em especial quando o direito fundamental agredido o for francamente e puser em imediato risco a vida ou a integridade pessoal de alguém, resultando da aplicação da lei invalida o acometimento de fato definido como crime. [12]

Sem dúvida alguma há algum acerto no referido posicionamento, contudo a citada doutrina encara o problema da inconstitucionalidade das normas infraconstitucionais de forma muito restritiva, não solucionando o problema das normas inconstitucionais que versem diretamente sobre outros temas ou apenas indiretamente de direitos tidos por fundamentais.

Ao tratar do tema na obra intitulada "O poder de rejeição das leis inconstitucionais pela autoridade administrativa no direito português e no direito brasileiro", Ana Cláudia Nascimento Gomes defendeu a possibilidade extraordinária de descumprimento pelo Executivo das normas que considere inconstitucionais apenas em determinadas hipóteses. [13]

A autora trabalha seis hipóteses, quais sejam: 1) leis que já tenham sido objeto de decisão de inconstitucionalidade por parte da Corte Constitucional; 2) leis manifestamente inconstitucionais; 3) leis inconstitucionais violadoras da essência dos direitos, liberdades e garantias; 4) determinadas situações em que a autoridade administrativa é chamada a proferir decisões essencialmente baseadas em critérios de justiça material, em âmbitos estreitamente relacionados com a proteção dos direitos fundamentais; 5) Leis supervenientemente inconstitucionais; 6) reserva da Administração em face do legislador, como instrumento de defesa do espaço administrativo exclusivo contra as investidas legislativas ilegítimas. [14]

Com a devida vênia, o referido posicionamento não pode subsistir, uma vez que pois embora pareça abarcar um maior número de casos, ainda restringe o campo de atuação do Executivo no exercício do descumprimento das normas inconstitucionais.

Em sentido geral, as hipóteses trazidas pela autora são de difícil verificação e enquadramento aos casos concretos, além do que a citada autora não apresenta fundamentação adequada que justifique tal restrição ao exercício do descumprimento da norma inconstitucional considerada pela mesma uma legitimidade extraordinária do Poder Executivo.

Ressalta-se sobretudo que, em relação à primeira hipótese, trazida pela autora, não se trata de legitimidade extraordinária do poder Executivo quanto ao descumprimento, e sim do efeito vinculante da ADI, ou seja, na declaração de inconstitucionalidade realizada no controle concentrado, os demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública se vinculam à decisão do STF, sendo que a não aplicação da lei declarada inconstitucional não se trata de poder extraordinário da Administração, conforme defendido pela autora, e sim de um dever constitucionalmente previsto, conforme determina o § 2º do artigo 102 da Constituição Federal. [15]

Lado outro, as justificativas meramente formais para a possibilidade de descumprimento da lei inconstitucional (a ausência de legitimidade para a propositura da ADI) não subsistiram com o advento da Constituição Federal de 1988 e nesse sentido afirma Pedro Lenza que a doutrina buscou outra justificativa para continuar mantendo o posicionamento anterior ao texto constitucional de 1988, "o atendimento ao princípio da supremacia da constituição". [16]

Gustavo Binenbojm, ao abordar o tema, apresenta razões para afastar o posicionamento meramente formalista como justificativa para o descumprimento, rebatendo o argumento da legitimidade para a propositura de ADI, enfraquecido a partir da Constituição Federal de 1988. [17]

Nesse sentido, afirma o citado autor que o poder-dever do Chefe do Executivo de negar cumprimento à lei inconstitucional não se daria em virtude da ausência de legitimidade para a propositura da então chamada representação de inconstitucionalidade, e sim uma observância ao princípio da supremacia da Constituição.

O descumprimento da lei reputada inconstitucional era – e é – uma decorrência, ou antes, uma exigência do princípio da supremacia da constituição. Em última análise, o pressuposto para que o Poder Executivo, em determinada situação, cumpra a Constituição é que deixe de cumprir uma lei que lhe contrarie o sentido. Por outro lado, o que pretendem os partidários da tese contrária é que o Poder Executivo pratique atos reconhecidamente inconstitucionais sob o especioso argumento de que está cumprindo a lei. [18]

Cabe destacar que, corroborando a tese apresentada pelo citado autor, anteriormente a Constituição Federal de 1988, doutrina e jurisprudência já haviam defendido o mesmo posicionamento, justificando o descumprimento como atendimento ao princípio da supremacia da Constituição.

Em nosso ordenamento jurídico é imprescindível, para que uma norma seja válida, que a mesma seja conforme as normas constitucionais. Nesse sentido, já afirmava parte da doutrina que diante de norma que afronta os preceitos constitucionais, o Executivo estaria sim legitimado ao descumprimento, uma vez que as normas inconstitucionais não possuiriam em virtude de seu vício de constitucionalidade força para vincular os atos do Executivo, conforme posicionamento abaixo destacado:

Surgiria aqui o problema da "inexistência" da lei inconstitucional, inexistência que colocaria o Poder Executivo em situação cômoda, pois que se veria diante do vazio, isto é, de um diploma sem nenhuma eficácia, o que legitimaria o seu comportamento. [19]

Nesse mesmo sentido, posicionou-se a jurisprudência, conforme trecho extraído do Acórdão do STF, em decisão de Representação, proferida em 21/11/79, abaixo destacado:

Não tenho dúvida em filiar-me à corrente que sustenta que pode o Chefe do Poder Executivo deixar de cumprir – assumindo os riscos daí decorrentes – lei que se lhe afigura inconstitucional. A opção entre cumprir a constituição ou desrespeitá-la para dar cumprimento à lei inconstitucional é concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. Não o será ao Chefe de um dos Poderes do Estado para a defesa, não do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituição que estrutura o próprio Estado? [20]

Embora haja muita aplicabilidade dessa modalidade de controle na prática administrativa, o STF ainda não se manifestou de forma suficiente sobre o tema, o que faz com que existam poucos precedentes a serem observados, uma vez que poucos são os que reclamam o descumprimento em juízo.

Ainda assim, cabe destacar um dos poucos posicionamentos do Supremo Tribunal sobre o tema, observado em decisão de ADI em sede de controle concentrado de constitucionalidade, conforme abaixo destacado:

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 221 / DF – Distrito Federal – Relator: Min. Moreira Alves – Julgamento: 16/09/1993 – Órgão Julgador: Tribunal Pleno – Publicação DJ 22-10-1993, pp-22251 – Vol. 01722-01 – pp-00090.

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, medida provisória. Revogação. Pedido de Liminar.

- Por ser a medida provisória ato normativo com força de lei, não é admissível seja retirada do congresso nacional a que foi remetida para o efeito de ser, ou não convertido em lei.

- Em nosso sistema jurídico, não se admite declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo com força de lei por lei ou por ato normativo com força de lei posteriores. O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia – e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimidade ativa na ação direta de inconstitucionalidade – podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais.

[...] Vistos relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata de julgamentos e notas taquigráficas, à unanimidade, em julgar prejudicado, si et in quantum, o pedido de liminar, não porém, a Ação Direta. [21] (GRIFO ACRESCIDO)

De forma mais veemente, manifestou-se o STJ em decisão de Recurso Especial, cuja ementa segue colacionada abaixo:

Recurso Especial nº. 23121 / GO – Goiás – Relator: Humberto Gomes de Barros – Julgamento: 06/10/1993 – Órgão Julgador: T1 – Primeira Turma – Publicação DJ 08-11-1993, p. 23521 LEXSTJ Vol. 55, p. 152.

Ementa: Lei Inconstitucional – Poder Executivo – Negativa de eficácia. O Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional. Acórdão por unanimidade, dar provimento ao Recurso. [22]

Diante dos argumentos expostos, razoável se faz a possibilidade de descumprimento da norma que não seja compatível com o texto constitucional.


3. Análise Principiológica do Tema

Os princípios, no modelo pós-positivista, assumem um lugar de destaque no ordenamento jurídico. A partir do século XX a proposta pós-positivista veio difundindo a proclamação da eficácia normativa dos princípios, a partir de então tidos como espécie de normas, capazes de solucionar conflitos. O ordenamento jurídico, na visão pós-positivista é formado por normas jurídicas de duas espécies, regras e princípios. Alguns autores pós-positivistas se ocuparam em estabelecer formas de se diferenciar regras de princípios, destacando-se a contribuição fundamental de Robert Alexy sobre o tema. Alexy estabelece como principal aspecto de diferenciação entre regras e princípios as questões afetas a sua forma de aplicação. [23]

Segundo Alexy as regras são normas que são ou não aplicáveis, em um tipo de aplicação tudo ou nada, através de subsunção. Os conflitos na aplicação de regras são solucionáveis através dos critérios de solução de antinomias, utilizados na solução de casos fáceis, quais sejam: critério cronológico, de especialidade, de hierarquia.

Quanto aos princípios, alerta Alexy que diante de uma colisão, não será possível utilizar-se de critérios de validade, uma vez que ambos os princípios serão válidos no ordenamento jurídico, não podendo ser afastados de forma absoluta como no conflito de regras. Sendo assim, a solução para o conflito de princípios, diante de sua aplicação ao caso concreto, será através de ponderação, que possibilitará a aplicação do princípio de maior relevância para o caso, tendo o outro princípio sua aplicação mitigada naquele caso específico.

Nesse sentido, à luz dos ensinamentos de Alexy, busca-se avaliar a aparente, possibilidade de colisão de princípios aplicáveis ao caso em análise, o princípio da legalidade (no sentido de dever de cumprir a lei, em sua visão mais tradicional e positivista) e supremacia da constituição (em uma visão pós-positivista do texto constitucional e de seus princípios).

Trata-se de dois princípios constitucionais de grande importância, ambos fundamentais para a implementação do Estado Democrático de Direito.

O princípio da legalidade é um postulado do estado de direito e funciona como um garantidor de direitos individuais visando combater o exercício de poder arbitrário do Estado. Sendo assim, está consagrado no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, que preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Dessa forma, os indivíduos só terão seus direitos restringidos por lei, devidamente válida e integrante do ordenamento jurídico. [24]

Enquanto ao particular é autorizado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, a chamada "liberdade em sentido fraco", para Administração Pública a lei se mostrará como pressuposto autorizativo para sua atuação.

O princípio da legalidade, previsto no art. 37 caput da Constituição Federal, exerce um papel importante em relação ao controle da Administração Pública, principalmente no que se refere ao controle da discricionariedade, funcionando como uma limitação à atuação administrativa e garantia da segurança jurídica.

O princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita.

Não custa lembrar, por último, que, na teoria do Estado moderno, há duas funções estatais básicas: a de criar a lei (legislação) e a de executar a lei (administração e jurisdição). Esta última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legisferante. Por isso é que administrar é função subjacente à de legislar. O princípio da legalidade denota exatamente essa relação: só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente com o dispositivo da lei. [25]

Destaca-se ainda que, devido a vários fatores, o referido princípio transmutou-se em princípio da juridicidade, para atendimento aos demais princípios e normas constitucionais que compõe o sistema jurídico. O princípio da legalidade, na visão tradicional de vinculação positiva à lei, que defende que administrar é fazer só o que a lei autoriza, não mais atende à realidade existente. A Administração Pública em seu atual papel não é mera cumpridora de lei. Nesse sentido, o princípio da legalidade administrativa, transmutou-se em princípio da juridicidade, com vinculação direta à Constituição e aos princípios gerais do Direito.

Hoje, portanto, caminha-se para a construção de um princípio da legalidade não no sentido da vinculação positiva à lei, mas de vinculação da Administração ao Direito. O princípio da legalidade ganha, assim, a conotação de um princípio da juridicidade. Não sendo possível a inteira programação legal da Administração Pública contemporânea, é forçoso, contudo, mantê-la totalmente subordinada aos princípios e regras do ordenamento jurídico, especialmente do ordenamento constitucional. [26] (GRIFO ACRESCIDO)

Dessa forma, o princípio da legalidade deixou de ser somente a vinculação da Administração Pública à lei votada pelo Legislativo (ainda que constitucional), mas principalmente, vinculação desta aos preceitos constitucionais que norteiam todo o ordenamento jurídico.

Quanto ao princípio da Supremacia da Constituição, trata-se de princípio basilar do Estado, uma vez que é a Constituição, aquela que assenta-se no mais alto nível normativo do ordenamento jurídico, e que dá validade a toda a forma constituída de Estado, e a todas as demais normas, sendo ela o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico Estatal.

Nesse sentido, a Constituição, fruto da vontade do povo, externada através do Constituinte originário, possui uma hierarquia sobre as demais normas e em decorrência disso, apresenta-se como parâmetro de validade para o exercício legislativo do constituinte derivado, na criação das normas de um dado Estado.

Nesse sentido, destaca-se o conceito de princípio da supremacia da Constituição, adotado por Pedro Lenza:

Trata-se do princípio da supremacia da constituição, que, nos dizeres do Professor José Afonso da Silva, reputado por Pinto Ferreira como "pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político", "significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas". Desse princípio, continua o mestre, "resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam com fundamento de validade das inferiores. [27]

Considerando que a Constituição é essencial para a organização política e social do Estado e parâmetro para a criação, alteração, extinção e interpretação das normas existentes no ordenamento jurídico, toda vez que uma norma infraconstitucional afrontar seus preceitos, aquela prevalecerá dada a sua supremacia e a sua capacidade de se impor diante das demais normas vigentes no ordenamento jurídico. Nesse mesmo sentido, é o posicionamento da boa doutrina:

O conflito de leis com a Constituição encontrará solução na prevalência desta, justamente por ser a Carta Magna produto do poder constituinte originário, ela própria elevando-se à condição de obra suprema, que inicia o ordenamento jurídico, impondo-se, por isso, ao diploma inferior com ela inconciliável, de acordo com a doutrina clássica, por isso mesmo, o ato contrário à Constituição sofre de nulidade absoluta. [28]

Dessa feita, embora não haja previsão expressa na Constituição de possibilidade de descumprimento da norma inconstitucional pelos Chefes do Executivo, reafirma-se a possibilidade de descumprimento, uma vez que seria este um meio adequado para que se alcance a proteção do texto constitucional, atendendo assim, de forma satisfatória ao princípio da supremacia da Constituição.

De outro modo, se ao argumento de respeito à separação de poderes, seja em relação à legitimidade do legislativo dada democraticamente pelo voto e pelas competências constitucionalmente previstas, de criar leis, seja em relação ao poder de guarda da Constituição atribuído ao STF, obriga-se ao executivo o cumprimento da lei inconstitucional, ou mesmo, a possibilidade de descumprimento apenas nos casos de concessão de liminar pelo judiciário, estariam sendo feridos outros dispositivos constitucionais, qual sejam: o artigo 85 da Constituição Federal, que dispõe que "São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: VII- o cumprimento das leis e das decisões judiciais."; e o artigo 23 que dispõe que "É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público".

O Executivo ao negar aplicação à lei inconstitucional não estará afrontando ao princípio da separação dos poderes e a legitimidade de criar normas do Poder Legislativo, uma vez que a legitimidade de criar leis, conferida ao Legislativo, consubstancia-se no dever de criação de normas que guardem compatibilidade com a constituição e não de criar normas inconstitucionais. Além disso, o judiciário é o órgão que detém constitucionalmente a primazia de interpretar o texto constitucional, dando a palavra final sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis.

Todos os Poderes da República interpretam a Constituição e têm o dever de assegurar seu cumprimento. O Judiciário, é certo, detém a primazia da interpretação final, mas não o monopólio da aplicação da Constituição. De fato, o Legislativo, ao pautar sua conduta e ao desempenhar a função legislativa, subordina-se aos mandamentos da Lei Fundamental, até porque a legislação é um instrumento de realização dos fins constitucionais. Da mesma forma o Executivo submete-se, ao traçar a atuação de seus órgãos, aos mesmos mandamentos e afins. Os órgãos do poder Executivo, como órgãos destinados a dar aplicação às leis, podem, no entanto, ver-se diante da mesma situação que esteve na origem do surgimento do controle de constitucionalidade: o dilema entre aplicar uma lei que considera inconstitucional ou deixar de aplicá-la, em reverência à supremacia da Constituição. [29]

Embora a Constituição também tenha previsto o dever do Executivo de dar cumprimento às leis, ressalta-se que apenas há esse dever em relação às normas que guardem compatibilidade com o texto constitucional.

Por isso mesmo, desautorizar o descumprimento de norma inconstitucional pelo Chefe do Executivo por atendimento ao princípio da legalidade não seria adequado, uma vez que a norma inconstitucional também não atende ao princípio da legalidade, tendo em vista que fere os procedimentos formais e/ou materiais necessários para a sua validade.

Verifica-se, pois que o princípio da legalidade na visão moderna do direito administrativo, nada mais é do que uma decorrência do princípio da supremacia da Constituição, que no modelo pós-positivista tem o poder de influenciar a realidade jurídica e política do Estado, através de sua força de determinar a ordem social, vinculando sujeitos a obrigações de fazer ou de não-fazer, por ser essa conduta ou omissão incompatível com o texto constitucional, condicionando a criação das demais normas do ordenamento jurídico. [30]

O princípio da supremacia da Constituição não estará em colisão com o princípio da legalidade no caso de descumprimento da norma inconstitucional, uma vez que o princípio da legalidade não será prejudicado no caso de descumprimento, ao contrário, zelar pela supremacia da Constituição é em última análise zelar pelo cumprimento apenas das normas que sejam legalmente válidas.

Ressalta-se que, muito embora, exista a possibilidade de controle das leis e atos normativos (Federais e/ou Estaduais) em face da Constituição Federal pelo STF e o controle das leis ou atos normativos (Estaduais e/ou Municipais) em face da Constituição Estadual pelos Tribunais, e que após o advento da Constituição Federal de 1988 houve um alargamento do rol de legitimados do art. 103 para a propositura de ADI, a possibilidade de descumprimento direto pelo Executivo se mostra razoável uma vez que, é um meio direto e rápido e não impede o exercício das demais formas de controle de constitucionalidade, considerando que o judiciário sempre poderá se manifestar sobre o tema, sendo o legitimado pela Constituição a dar a última palavra em matéria constitucional.

A possibilidade de afastamento da aplicação da norma inconstitucional pelo Chefe do Executivo pode funcionar como importante instrumento não só para que se evite inúmeras ações diretas de inconstitucionalidade perante os tribunais e o STF sobre temas já consolidados na jurisprudência, colaborando assim com a economia aos cofres públicos e contribuindo para maior eficiência e celeridade do judiciário, como não prejudica a análise do judiciário nos casos levados à sua apreciação.

Ademais, esse tipo de controle é capaz de promover um maior amadurecimento constitucional dos Chefes do Executivo, ocasionando o que Peter Haberle denomina "democratização da interpretação constitucional" [31], que visa difundir a interpretação do texto constitucional a um maior número de intérpretes em geral, podendo refletir consequentemente em uma maior cautela dos legisladores na elaboração dos textos normativos.

Por outro lado, exigir obrigatoriamente a propositura de ADI perante aos órgãos competentes do Poder Judiciário, STF em casos de afronta à Constituição Federal, de lei ou ato normativo estadual e federal e Tribunais em caso de afronta à Constituição Estadual, de lei ou ato normativo Municipal ou Estadual, não parece razoável, uma vez que, se a recusa ao cumprimento for bem fundamentada, e observados os precedentes dos tribunais, dificilmente haverá entendimento diverso do judiciário.

Nesse sentido, caso haja convencimento sobre a inconstitucionalidade da norma, fundamentado de forma responsável, o judiciário estará atuando como ratificador do posicionamento adotado pelo Executivo no momento do veto e/ou do descumprimento, o que mais uma vez reforça a idéia de desnecessidade da propositura da ADI pelos Chefes do Executivo nestes casos, em que poderão por si só, afastar a aplicação da lei inconstitucional.

Destaca-se que o Executivo deverá propor ADI perante o Judiciário sempre que pairar dúvida sobre a real inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, para que não incorra em responsabilização por seu descumprimento, caso posteriormente a lei tenha sua constitucionalidade declarada pelo judiciário.

Verifica-se pois que ao descumprir a Constituição para dar cumprimento à norma inconstitucional os Chefes do Poder Executivo estarão afrontando de forma grave o princípio da Supremacia da Constituição, ao passo que se optar o Chefe do Executivo por descumprir a norma inconstitucional estará optando por prestar obediência à Carta Maior de nosso ordenamento jurídico, e o princípio da legalidade não estará sendo afetado, uma vez que a norma inconstitucional não atende aos preceitos de validade para que seja considerada uma norma legal, não havendo assim, que se falar em colisão de princípios e sim de dois princípios que se coadunam.

O princípio da legalidade, que norteia a Administração, não é infringido quando se nega cumprimento á ele substancial ou formalmente inconstitucional, porque tal ato, embora emanado do Poder Legislativo, é apenas formalmente lei. Tem feição de lei, mas não a eficácia necessária à formação de direitos subjetivos. [32]

No mesmo sentido, destaca-se o posicionamento do STJ, conforme trecho extraído do voto do Ministro Humberto Gomes de Bastos, em análise de Recurso Especial, em Outubro de 2003:

Diante do ato legislativo em que percebe ilegalidade, a Administração coloca-se na alternativa:

a) executa a lei, desprezando a Constituição;

b) homenageia a Constituição, desconhecendo o preceito legal.

Parece-me que esta última é a opção correta.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no Acórdão trazido à colação no recurso especial, destaca arguta observação de Francisco Campos. Dizia o festejado jurista:

...os tribunais só opinam mediante provocação. Assim, cada um dos poderes do Estado vê-se na contingência de efetuar o controle imediato da constitucionalidade. Do contrário, estar-se-iam estes poderes relegando-se à inércia e fugindo de suas responsabilidades para com o Estado de Direito.

Quando negou execução ao dispositivo que lhe pareceu inconstitucional, o Estado, através dos atos impugnados pelos impetrantes, mostrou-se zeloso com o primado da Constituição. [33]

Dessa forma, tem-se como possível que os Chefes do Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, neguem aplicação à lei considerada inconstitucional, em atendimento ao princípio da supremacia da Constituição.


4. Formas de Controle do Poder de Rejeição

Um dos aspectos que mais preocupa os que se opõem ao descumprimento pelo Executivo de lei que considere inconstitucional são os aspectos relacionados à concentração de poder no Chefe do Executivo e a insegurança jurídica que poderá ocorrer devido ao grande número de titulares ao exercício desse direito (Presidente, Governadores e Prefeitos).

Nesse sentido, passa-se a análise de formas de controle desse exercício apontadas pela Doutrina, a fim de garantir uma maior segurança jurídica quando da negativa de aplicação da lei inconstitucional pelos Chefes do Executivo no âmbito Federal, Estadual e Municipal.

Uma das formas de buscar uma maior uniformidade da ação administrativa é o posicionamento, defendido amplamente pela doutrina de que, o Chefe do Executivo é o único legitimado a afastar a aplicação da lei tida por inconstitucional, não sendo possível o exercício pelos demais servidores. Destacam-se abaixo os posicionamentos sobre o tema:

O que parece, porém, fora de dúvida é que, conforme entende Lúcio Bittencourt, somente aos escalões superiores da administração pode-se reconhecer esse poder, sob pena de amesquinhar-se um processo, conduzindo-se a uma completa anarquia administrativa. [34]

Alerta ainda Ana Cláudia Nascimento Gomes que tal prerrogativa não pode ser dada aos servidores em geral, sob pena de causar sérios riscos à segurança Jurídica e a "unidade da ação administrativa". [35]

Nesse mesmo sentido é o entendimento de Gilmar Mendes que, aponta a existência de consenso sobre o assunto:

Verifica-se, é certo, algum consenso doutrinário, no sentido de que, em princípio, os agentes administrativos não dispõem de competência para apreciar a lei segundo critério constitucionais, devendo, no caso em que entenda haver inconstitucionalidade, provocar a autoridade hierarquicamente superior a respeito. [36]

Alexandre de Moraes, ao abordar o exercício do descumprimento, cita Elival da Silva Ramos, que afirma ser esta legitimidade de descumprimento, exclusiva do Chefe do Executivo, por tratar-se de medida suscetível de consequências sérias. Caso o servidor vislumbre o vício de constitucionalidade da lei, deverá levar o tema à análise do Chefe do Executivo que, decidirá sobre a necessidade ou não do descumprimento. [37]

A mais importante forma de controle do exercício de descumprimento, se dará através da possibilidade de posterior exame da constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário. Ao judiciário caberá sempre a legitimidade conferida pela Constituição de análise da controvérsia sobre a constitucionalidade da lei e consequentemente a determinação de sua aplicação, seja no controle difuso, de forma incidental por qualquer juiz ou tribunal, seja no controle concentrado, através de ADI, perante o STF por afronta à Constituição Federal de lei ou ato normativo Estadual ou Federal e, perante os tribunais por afronta à Constituição Estadual de lei ou ato normativo Estadual ou Municipal.

Sendo assim, aquele que se sentir prejudicado com o ato do Chefe do Executivo de negar aplicação à lei inconstitucional, deverá reclamar em juízo a sua pretensão de direito. "Parte seria o Estado contra os que teriam de beneficiar com uma lei inconstitucional". [38]

Caso haja entendimento pela inconstitucionalidade da lei o Judiciário estará ratificando, convalidando o posicionamento de descumprimento do Chefe do Executivo, conforme afirmado por Gustavo Binembjm:

Por outro lado, a decisão da Chefia do Poder Executivo estará sempre sujeita a ulterior reexame pelo Poder Judiciário, o que poderá dar-se tanto em sede de controle concreto, como no âmbito da fiscalização abstrata. À Administração Pública caberá alegar em sua defesa que o descumprimento da lei deveu-se à sua incompatibilidade com a Constituição. Caso o argumento seja acolhido, a conduta da Administração estará sendo, a fortiori, validada pelo Poder Judiciário. [39]

Lado outro, caso o entendimento do Judiciário seja pela constitucionalidade da lei, o Executivo ficará sujeito à responsabilização por ter-lhe negado cumprimento, conforme determina o art. 85, VII, da Constituição Federal, ficando ainda, obrigado a dar cumprimento à lei, conforme posicionamento abaixo destacado:

Proclamada ao revés, a constitucionalidade da lei até então enjeitada, fica o Chefe do Executivo à mercê dos procedimentos constitucionais e legais tendentes à sua responsabilização político-administrativa. Com efeito, ao optar por simplesmente negar aplicação à lei, ao invés de ajuizar uma ação direta de inconstitucionalidade – caso cabível – o agente político o faz por sua conta e risco, submetendo-se aos ônus daí decorrentes. [40]

Cabe destacar ainda que Ana Cláudia Nascimento Gomes trabalha em obra dedicada ao estudo do tema objeto desse trabalho, aspectos procedimentais que denominou de "como fazer". Nesse sentido, buscou a citada autora, estabelecer procedimentos que devem ser observados pelo Chefe do Executivo, para o exercício do descumprimento de lei considerada inconstitucional, nos casos em que a mesma defende sua possibilidade, conforme trecho abaixo colacionado:

Quanto aos aspectos formais do legítimo ato de desaplicação da lei inconstitucional, descreveu-se como encargos da autoridade administrativa o cumprimento dos seguintes deveres: (i) dever de elaborar fundamentação expressa; (ii) dever de notificar o MP, em integrais termos do ato de desaplicação, (iii) dever de notificar, em integrais termos, a entidade administrativa tutelar; (iv) dever de dar pleno conhecimento público do ato desaplicação, especialmente para fins de ciência do poder legisferante autor do ato normativo desaplicado e para fins de responsabilização pelos transtornos e prejuízos advindos do ato de desaplicação.

Na verdade, os aludidos requisitos formais do legítimo ato de desaplicação (para além daqueles que decorrem do fato desse se tratar de um ato administrativo em termos genéricos) visam propiciar a maior transparência possível à decisão de rejeição da lei inconstitucional; o seu imediato controle (ou aval) por parte dos tribunais competentes e a implementação de seus eventuais efeitos civis (responsabilidade civil da entidade), administrativos (responsabilidade administrativa da autoridade e o exercício dos poderes de tutela) e políticos (fiscalização parlamentar da atividade administrativa). [41]

Ressalta-se que, embora certos atos possam atribuir uma maior segurança jurídica em relação ao ato administrativo do Chefe do Executivo, de negar cumprimento à lei inconstitucional, não poderá ser exigido qualquer tipo de formalidade como critério de validade do ato, uma vez que sua essência está na supremacia da Constituição e não propriamente no ato do Chefe do Executivo, ou em requisitos de validade e eficácia (agente competente, objeto, forma, motivo e fim), como nos demais atos administrativos. Posicionamento este adotado no trecho de julgado abaixo destacado:

[...], sendo lícito ao Executivo recusar-se a cumprir leis inconstitucionais, é claro que não importará a forma como isso seja determinado no âmbito da Administração. Se pode o Governador, verbalmente ou mediante simples despacho, ordenar a seus Secretários e demais subordinados que não cumpram determinada lei eivada de vício de inconstitucionalidade, por qual razão não poderia fazê-lo mediante um decreto simplesmente diretivo, como o de que ora se cuida. [42] (GRIFO ACRESCIDO).

O que estará sendo analisado pelo judiciário não será o ato de descumprimento em si, mas sim a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei descumprida.

Contudo, a publicidade do ato de descumprimento, com a devida fundamentação da decisão, publicada no diário oficial, parece adequada para garantir a segurança jurídica e a possibilidade de controle dos demais poderes sobre o ato de descumprimento pelo Executivo, além de, garantir o conhecimento aos possíveis interessados em discutir eventual direito em juízo.

Reafirma-se que sempre que o Chefe do Executivo tiver dúvidas sobre inconstitucionalidade de lei, deverá levar a matéria à apreciação do judiciário para que não incorra em posterior responsabilização pelo descumprimento, caso esteja equivocado em seu entendimento.


5. Conclusão

Diante do exposto, verifica-se que apesar de não haver previsão expressa na Constituição de possibilidade de descumprimento da norma inconstitucional pelos Chefes do Executivo, reafirma-se a possibilidade de descumprimento, uma vez que seria este um meio adequado para que se alcance a proteção do texto constitucional, atendendo assim, de forma satisfatória ao princípio da supremacia da Constituição.

A manutenção do sentimento hoje existente de monopólio da interpretação da Constituição pelo STF mostra-se prejudicial ao amadurecimento constitucional não só dos demais Órgãos, mas dos cidadãos em sentido geral. Não é possível se afirmar que estamos diante de um Estado Democrático de Direito, que tem como base uma Constituição tida como democrática, se esta mesma não possui a força de influenciar o dia a dia dos cidadãos a ela submetidos. Não se pode afirmar ser democrático um país em que a Carta democrática só pode ser lida por um único órgão – o STF.

A possibilidade de descumprimento pelos Chefes do Executivo de lei que considere inconstitucional vai de encontro a esse sentimento de monopólio da interpretação da Constituição pelo STF, na busca de difundir a interpretação do texto constitucional a um maior número de intérpretes e combater essa ascensão judicial, que deve ser vista com maior cautela, buscando a retomada do equilíbrio dos poderes constituídos para que ao final seja alcançada a supremacia constitucional almejada.


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Notas

  1. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade Direto e a Inexecução da Lei pelo Executivo. In: ______ Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 325.
  2. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 140.
  3. Acórdão do STF na Representação nº. 980 – SP, proferido em 21/11/1979. Relator: Ministro Moreira Alves. Disponível em: <http://www.stf.jus.br.> Acessado em: 17/11/2008.
  4. MENDES, op. cit., p. 326.
  5. Cook Junior, P. J. A. A Recusa à Aplicação de Lei pelo Executivo sob o Juízo de Inconstitucionalidade. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_136/r136-32.pdf>. Acessado em: 31 ago. 2009.
  6. Acórdão do STF no Mandado de Segurança nº 16.003-DF, proferido em 06/12/1966. Relator Ministro Prado Kelly. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acessado em: 15 set. 2009.
  7. MENDES, Op. cit., p. 237.
  8. Ibid., p. 327.
  9. LENZA, op. cit., p. 141.
  10. Sarlet, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 331.
  11. andrade, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2 ed.. Coimbra Portugal: Almedina, 2001, p. 233.
  12. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO; Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 248.
  13. GOMES, Ana Cláudia Nascimento. O Poder de Rejeição de Leis Inconstitucionais pela Autoridade Administrativa no Direito Português e no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Ed. Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 117-119.
  14. Ibid., p. 117-119.
  15. LENZA, op. cit., p. 175.
  16. Ibid., p. 141.
  17. BINEMBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional: Legitimidade Democrática e Instrumentos de Realização. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 237.
  18. Ibid., p. 237-238.
  19. CAVALVANTI, Themístocles Brandão. Do Controle da Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 183
  20. Acórdão do STF na Representação 980-SP, proferido em 21/11/1979. Relator Ministro Moreira Alves. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acessado em: 17 nov. 2008.
  21. Acórdão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 221 – DF, proferido em 23/09/1990. Relator: Ministro Moreira Alves. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acessado em: 17 nov. 2008.
  22. Acórdão do STJ no Recurso Especial 23121, proferido em 06/10/1993. Relator Humberto Gomes de Barros. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acessado em: 13/10/2009.
  23. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90-91.
  24. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 41.
  25. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 12-13.
  26. BATISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 108.
  27. LENZA, op. cit., p. 117-118.
  28. MENDES, 2008, p. 237.
  29. BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 64.
  30. HESSE, Konrad. Op. cit., p. 14-15.
  31. HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editor Sérgio Antônio Fabris, 1997, p. 14.
  32. Acórdão do STF na Representação nº 980 SP, proferido em 21/11/79. Relator Ministro Moreira Alves. Disponível em: <http://www.stf.jus.br.> Acessado em: 17 nov. 2008.
  33. Acórdão do STJ no Recurso Especial nº. 23121-1-Go, proferido em 06/10/1993. Relator Ministro Humberto Gomes de Barros. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acessado em: 13 Out. 2009.
  34. CAVALCANTI, op. cit., p. 179-180.
  35. GOMES, op. cit., p. 357.
  36. MENDES, op. cit., p. 224.
  37. MORAES, op. cit., p.703.
  38. CAVALCANTI, op. cit., p. 183.
  39. BINEMBOJM, op. cit., p. 242.
  40. Ibid., p. 242-243.
  41. GOMES, op.cit., p. 357-358.
  42. Acórdão do STF na Representação nº 980 SP, proferido em 21/11/79. Relator Ministro Moreira Alves. Disponível em: <http://www.stf.jus.br.> Acessado em: 17 nov. 2008.

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DAMASCENA, Ana Lúcia. O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2610, 24 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17250. Acesso em: 23 abr. 2024.