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O usuário e o traficante na Lei nº 11.343/2006.

Reflexões críticas sobre os aspectos diferenciadores

O usuário e o traficante na Lei nº 11.343/2006. Reflexões críticas sobre os aspectos diferenciadores

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Os critérios distintivos estabelecidos no § 2º do art. 28 da Lei de Drogas ou não são aplicados pelos juízes ou, se aplicados, a interpretação desses critérios se ocorre de modo inadequado.

RESUMO

O presente trabalho monográfico objetiva analisar e discutir acerca dos critérios da Lei nº. 11.343/2006, para diferenciar o usuário do traficante. Nesse sentido, trata-se de um estudo de cunho exploratório, de revisão bibliográfica sobre os estudiosos da matéria e ainda de caráter qualitativo, optando, dentro desse modelo, por estudo de caso. Para tanto, o capítulo inicial contextualizou o tema, expondo, em linhas gerais, a concepção de drogas e a evolução histórica da política dessa categoria no mundo e no Brasil. O capítulo seguinte abordou o ordenamento jurídico nacional, examinando a temática desde as Ordenações Filipinas até a Nova Lei de Drogas. A incursão posterior buscou considerar os objetivos e as inovações advindas desse diploma legal, sobretudo no que se refere aos aspectos previstos para estabelecer a distinção entre o uso e o tráfico de substâncias psicoativas. Por fim, com o objetivo de qualificar a discussão, procedeu-se, ainda, ao estudo de três decisões condenatórias prolatadas por magistrados da Vara de Tóxicos de Feira de Santana, para análise dos discursos desses representantes do Poder Judiciário, quanto aos critérios diferenciadores entre usuário e traficante, no momento da aplicação da Lei nº. 11.343/2006. As razões finais do estudo enfatizaram, de modo especial, que os critérios distintivos estabelecidos no § 2º do art. 28 da Lei de Drogas ou não são aplicados pelos juízes ou, se aplicados, a interpretação desses critérios se ocorre de modo inadequado, causando, com isso, graves prejuízos aos destinatários da Lei.

Palavras-chave: Drogas -Lei nº. 11.343 – usuário – traficante - critérios diferenciadores.

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO. 2 POLÍTICA DE DROGAS: CONTEXTO HISTÓRICO. 2.1 O QUE É DROGA . 2.2 O MUNDO E AS DROGAS. 2.3 A POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL. 2.4 UMA ABORDAGEM SOCIOCRIMINOLÓGICA SOBRE AS DROGAS. 3 AS DROGAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. 3.1 EVOLUÇÃO NORMATIVA. 3.1.1 Posição Constitucional. 3.1.2 Das Ordenações Filipinas à Reforma de 1984. 3.1.3 A legislação especial de drogas. 4 A NOVA LEI DE DROGAS, O USUÁRIO E O TRAFICANTE: O QUE ACONTECEU?. 4.1 CONHECENDO A PROPOSTA DE INOVAÇÃO. 4.2 O QUE É SER USUÁRIO?. 4.3 E O TRAFICANTE?. 4.4 O TRAFICANTE E O USUÁRIO NA NOVA LEI DE DROGAS: UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA DOS ASPECTOS DIFERENCIADORES.. 5 REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE OS DISCURSOS DO JUDICIÁRIO DE FEIRA DE SANTANA DIANTE DO USUÁRIO E DO TRAFICANTE: UM ESTUDO DE CASO. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7 REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

A Lei de Drogas, nº. 11.343 de 2006, instituiu o SISNAD (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas) e aderiu a dois modelos dicotômicos. Por um lado acenou com a prevenção do uso de drogas e reinserção social de usuários e dependentes; por outro, postulou a repressão à produção e ao tráfico de drogas.

Esse diploma legal elenca como princípios a autonomia da vontade e a liberdade, dispostas como direitos fundamentais da pessoa humana, representando quanto a isso, um avanço. Todavia, tais princípios dirigem-se, especificamente, aos usuários, incidindo apenas sobre eles a promoção dos valores de cidadania.

A Lei alega, explicitamente, que, para produção e venda da droga, deve imperar o modelo repressivo, possuindo como escopo assegurar o bem estar social e a garantia da estabilidade.

Assim, no mesmo passo em que o legislador buscou inovar no tratamento dado ao usuário e ao traficante com o advento da Nova Lei de Drogas, não faltam críticas doutrinárias a esse diploma, especialmente no que se refere aos seus critérios e à forma de utilização pelos agentes que atuam no enquadramento da conduta praticada por cada indivíduo.

Vale frisar que o critério utilizado para determinar se o dolo é de uso ou é de tráfico permite todo tipo de arbitrariedades. Isso porque promove a construção do estereótipo criminal, na medida em que o juiz atentará além da quantidade da droga, para as circunstâncias sociais e pessoais, bem como, para a conduta e os antecedentes criminais. Desse modo, certos indivíduos estarão mais propensos a serem pinçados pelo tipo penal do tráfico, em função de sua condição social, inserida em substratos mais baixos da população, aptos, portanto, à captura seletiva da polícia e dos magistrados.

Nessa perspectiva, este trabalho monográfico quer indagar em que medida a aplicação dos critérios diferenciadores entre usuário e traficante na Lei nº. 11.343/2006 tem promovido divergências judiciais causadoras de graves consequências para os destinatários da lei.

A abordagem metodológica disposta para a confecção do trabalho monográfico será de cunho exploratório e histórico, com fundamentação teórica na pesquisa de livros, revistas e artigos publicados na rede mundial de computadores pela doutrina especializada sobre o tema, e, ainda, pesquisa qualitativa, com exame de três casos concretos, a fim de analisar os discursos dos membros do Poder Judiciário de Feira de Santana quando prolatam sentenças condenatórias com base na Lei nº 11.343/2006.

Dentro desse contexto, é importante assinalar que no capítulo inicial se buscará realizar o resgate histórico da política de drogas no Brasil e no mundo, assim como será feita uma abordagem sociocriminológica acerca das substâncias entorpecentes.

O capítulo seguinte discorrerá acerca dos diversos diplomas que trataram sobre a matéria, desde as Ordenações Filipinas, passando pelas Constituições Brasileiras, pelas Leis Especiais que regeram a temática, até chegar à Lei nº. 11.343/2006, Nova Lei de Drogas.

Em sequência, outro capítulo discutirá os objetivos da Nova Lei de Drogas, assim como as modificações dela decorrentes em relação às condutas de uso ou tráfico de substâncias psicoativas.

Um estudo de caso encerrará a abordagem, e ali se analisará como vem ocorrendo a aplicação das disposições advindas do novo regramento sobre drogas especificamente no âmbito do Poder Judiciário na Comarca de Feira de Santana.

Por fim, as apreciações conclusivas, a partir das informações debatidas no estudo e da análise dos discursos extraídos das decisões condenatórias trazidas para este texto monográfico.


2 POLÍTICA DE DROGAS: CONTEXTO HISTÓRICO

2.1 O QUE É DROGA?

Estabelecer, de modo a não deixar dúvidas, o conceito de um objeto é enfrentar a dificuldade do conceito do próprio conceito, em virtude de sua complexidade, porque conceituar um objeto significa encontrar os termos exatos para sua compreensão, de modo tal que ao expressar o nome de imediato o objeto aparece na sua representação material.

Nesse sentido, antes de qualquer incursão sobre o tema que se elegeu para discorrer neste texto monográfico é importante trazer à discussão como a sociedade concebeu as drogas, ao longo da história.

Durante a Antiguidade e a Idade Média os povos utilizavam as drogas com finalidades religiosas ou rituais, seja em práticas medicinais, ou em atividades bélicas, ou ainda em atividades produtivas (Karam, 1996, p. 52). Entre os incas, por exemplo, o consumo de folhas de coca era um privilégio dos nobres, ficando o uso pelos servos e soldados condicionados à autorização real.

Na Modernidade, com a Expansão Européia até a Revolução Industrial, as substâncias psicoativas deixaram de ser consideradas elementos divinatórios e lustrais, para se converterem em produtos comerciais. O marco deste processo foram as Guerras do Ópio (1839-1841), a partir das quais os ingleses garantiram o monopólio internacional.

No mundo contemporâneo, a partir do século XIX, com a popularização do consumo de drogas, vislumbraram-se impactos e desdobramentos sociais como overdose e complicações sérias a saúde. Nessa conjuntura, fez-se necessário a elaboração de políticas públicas, com a finalidade de solucionar os prejuízos causados pela massificação do consumo de substâncias psicoativas.

O termo "droga" vem, provavelmente, da palavra droog, em holandês, que significa folha seca. A Organização Mundial da Saúde, 1981 (apud Cebrid, 1997) define droga como "qualquer entidade química ou mistura de entidades (mas outras que não aquelas necessárias para a manutenção da saúde, como, por exemplo, água e oxigênio), que alteram a função biológica e possivelmente a sua estrutura".

A doutrina elabora outra concepção para a droga entendida, para alguns estudiosos como "qualquer substância capaz de modificar a função de organismos vivos, resultando em mudanças fisiológicas ou de comportamento" (Liliane Castelões, 2002).

Na Língua Portuguesa, principalmente no Brasil, droga pode significar, em sentido figurado: "coisa de pouco valor; coisa enfadonha; desagradável" (Novo Dicionário Aurélio, 2004). Ou ainda "gíria: coisa ruim, imprestável; interjeição: exclamação que exprime frustração no que se está fazendo". (Enciclopédia Mirador Internacional).

As instituições de controle, por sua vez, entendem como droga "toda e qualquer substância psicoativa", ou seja, qualquer substância que altere a consciência, a percepção ou as sensações.

De acordo com a OMS, 1981, (apud Cebrid, 1997), as drogas psicoativas "são aquelas que alteram comportamento, humor e cognição". Isso quer dizer que essas drogas agem preferencialmente nos neurônios, afetando o Sistema Nervoso Central (SNC), ou seja, a "mente".

Drogas Psicotrópicas, ainda na leitura da OMS, 1981, (apud Cebrid, 1997) são aquelas que "agem no Sistema Nervoso Central (SNC) produzindo alterações de comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora sendo, portanto, passíveis de auto-administração" (uso não sancionado pela medicina). Em outras palavras, essas drogas levam à dependência. Ao exame da origem etimológica de psicotrópico já se constata sua capacidade de ação no cérebro. Psico vem de psique, o que quer dizer "mente" e tropismo, por sua vez, tem origem em tropismo, ação de aproximar.

Questão interessante a ser enfrentada no tema é a discussão sobre o conceito de drogas lícitas e ilícitas. Isso porque tanto uma quanto a outra contém substâncias capazes de induzir à dependência. O que se registra neste debate é a aceitação social e cultural das drogas lícitas, que sempre ocupam os primeiros lugares nas pesquisas referentes ao consumo, tanto entre jovens quanto entre os adultos.

Feitas essas digressões iniciais importa trazer ao debate a relação que se estabeleceu entre o mundo e as drogas, nas várias fases em que a sociedade foi se constituindo.

2.2 O MUNDO E AS DROGAS

Drogas não constituem novidade para a história das sociedades que por vários períodos sempre contaram com esse elemento na sua formação. Desse modo, as mudanças que ocorreram podem ser verificadas na finalidade e na utilização das drogas, que em fases pretéritas eram usadas para fins medicinais, religiosos, afrodisíacos, bélicos para citar alguns. No mundo moderno, entretanto, a droga muda radicalmente o seu foco e passa a ser um elemento altamente rentável, ou seja, o comércio ilegal de drogas se torna uma indústria financeira produtiva

Nesse instante percebeu-se a necessidade dos governos intervirem para controlar e regular a produção, o tráfico e o uso de substâncias psicoativas.

Nesse sentido, leciona Rosa Del Olmo (2002, p. 65):

Hoje em dia se fala das drogas como um problema e se assinala que a cada dia aumenta sua produção e consumo, mas não se procura verificar por que, nem se aceita que ao longo da história as drogas nem sempre foram um "problema". Converteram-se em "problema" quando deixaram de ter exclusivamente valor de uso para adquirir valor de troca e converterem-se, assim, em mercadorias sujeitas às leis da oferta e da procura.

Essa concepção mercantilista desperta o interesse das Nações Unidas de estudar a problemática das drogas através da compilação de documentos. Nesse diapasão, os objetivos internacionais da Estratégia Nacional de Controle de Drogas da Casa Branca mudam seu foco, como se constata em um de seus documentos:

A Estratégia de Controle de Drogas de 1994 convoca a mudar a forma pela qual são encarados os programas internacionais de controle de drogas. O tráfico internacional de drogas é uma atividade criminal que ameaça as instituições democráticas, alimenta o terrorismo, os abusos aos diversos humanos e solapa o desenvolvimento econômico... Os objetivos internacionais da Estratégia são os seguintes... 2. intensificar os esforços internacionais das drogas e destruir suas organizações (The White House, 1994:4, grifo nosso)."

No entendimento da ONU, de acordo com os termos da Convenção sobre Criminalidade Organizada Transnacional, revelado por Rosa Del Olmo (2002, p. 72):

Na última década, os grupos de criminalidade organizada expandiram mundialmente seu alcance e suas atividades e atualmente são uma ameaça global, representando um perigo específico à comunidade internacional, empregando estratégias sofisticadas e diversos modus operandi para levar a cabo suas atividades nos mercados lícitos e ilícitos. Em conseqüência, são capazes de infiltrar-se nos sistemas financeiros, econômicos e políticos de países do mundo todo.

2.3 A POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL

E o Brasil? Qual o tratamento desse país à questão das drogas?

A partir da Lei 11.343/2006 entra em cena a política de drogas, pela qual o Estado cria programas a fim de reduzir os danos, visando à saúde pública e os direitos humanos elencados no art. 3º da Lei de Drogas, ou seja, prevenir o uso indevido de drogas e reinserir o usuário e dependente de tais substâncias no seio social. Isso porque a Nova Lei de Drogas não mais impõe pena de prisão ao usuário, não obstante o consumo, no país, continuar sendo conduta ilícita, tanto que a Lei reprime ou proíbe a produção não autorizada e o tráfico ilícito de drogas. Em sede posterior este trabalho traz a debate a polêmica doutrinária sobre a Nova Lei de Drogas se descriminalizou, despenalizou ou se trata de uma contravenção sui generis.

Cabe lembrar que o sistema nacional de políticas públicas sobre drogas preconiza, dentre os seus princípios e objetivos estão elencados nos arts 4º e 5º:, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade; a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados. Além disso, objetiva promover a integração entre as políticas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao tráfico ilícito e as políticas públicas setoriais dos órgãos do Poder Executivo da União, Distrito Federal, Estados e Municípios.

Vale comentar o percurso histórico-político da política de drogas e sua inspiração no modelo norte-americano que teve início com um combate conhecido como "guerra contra as drogas". A visão dessa política era fundamentada de forma autoritária, ou seja, repressiva. Segundo Nilo Batista (1997, p. 130) essa fase ficou marcada e identificada pelo derramamento de sangue que promoveu. Essa política de "combate as drogas" era regida através de Conselhos de Entorpecentes em nível Federal, Estadual e Municipal da década de 80 até 1998, com a finalidade de propor políticas públicas sobre a matéria e velar pela sua aplicação.

A partir de 1998, uma medida provisória extingue os conselhos e cria a SENAD e suas secretarias correspondentes estaduais e municipais. O SENAD continua com a mesma política de combate ao uso, tráfico e produção não autorizada de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou psíquica, de acordo com a Lei 6.368/76.

Nessa época, aumentou o tráfico de substâncias psicoativas e o usuário de drogas não tinha a devida assistência com essa política. Isso porque o usuário ficava em segundo plano, o que significava a inexistência de uma política de drogas preocupada com esse usuário que era tratado como um caso a ser tratado no âmbito da ciência médica mais exatamente, psiquiátrica.

Sobre esse tema, pondera Karam (2001, p. 139):

Esta política proibicionista, desvincula de reais preocupações com a saúde pública, derivando sua (ir)racionalidade da concepção que faz da pessoa humana um mero subsitema funcional do sistema existente e de sua reprodução, impõe sérias limitações ao controle terapêutico-assistencial, especialmente ao livre desenvolvimento dos programas de redução de danos, associados a um consumo abusivo ou descuidado das drogas qualificadas de ilíticas.

Ainda de acordo com a autora (2001, p. 139),

Aceitando as evidências de que a maioria das pessoas não deixará de consumir tais substâncias e que a atitude mais racional e eficaz para minimizar as conseqüências adversas do consumo de drogas – lícitas ou ilícitas – está no desenvolvimento de políticas de saúde pública que possibilitem que este consumo se faça em condições que ocasionem o mínimo possível de danos ao indivíduo consumidor e à sociedade, tais programas seguem uma linha terapêutico-assistencial que, afastando-se da (ir)racionalidade dominante, questiona a uniformidade do enfoque negativista dado às drogas tornadas ilícitas e rompe com as generalizadas premissas demonizadoras das pessoas que com elas se relacionam.

Seguindo essa mesma linha, a atual Política Nacional sobre Drogas (2001) continuou com a estratégia, quando elencou na sua intencionalidade político-jurídica a prevenção, a repressão, o tratamento, a recuperação, a reinserção social e redução de danos.

A PNAD – Política Nacional sobre Drogas, atualizada e aprovada por resolução em 2005, se afirma com a finalidade de estabelecer uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas, sendo que os seus pressupostos estão ligados ao incentivo, à orientação e ao aperfeiçoamento da legislação para a garantia da implementação de fiscalização de ações decorrentes dessa política.

É a partir desse contexto que surge a Nova Lei de Drogas e a política adotada em face dos usuários com um caráter exclusivamente preventivo, de redução de danos e de assistência e reinserção social, afastando-se, desse modo, da política repressiva.

No que se refere ao traficante, a lei em exame foi mais severa além do que ainda trouxe inovação quanto ao conceito de traficante de drogas de acordo com o Sisnad, qual seja a diferenciação entre quem cede eventual e gratuitamente uma porção de droga a outra pessoa e aquele que vende a droga. De acordo com a lei anterior, mesmo quem fornecesse gratuitamente pequena quantidade de droga a um amigo, a fim de consumirem juntos, estaria sujeito à pena prevista para o tráfico.

Importante acentuar que a PNAD está fundamentada no princípio da responsabilidade compartilhada, concentrando esforços dos mais diversos segmentos sociais e governamentais em prol da efetividade de ações, no sentido de obter redução da oferta e o consumo de drogas, do custo social a elas relacionado e das conseqüências adversas do uso e do tráfico de drogas ilícitas.

2.4 UMA ABORDAGEM SOCIOCRIMINOLÓGICA SOBRE AS DROGAS

Neste trabalho monográfico, a abordagem sobre a política de drogas a partir do exame da Nova Lei que disciplina a matéria, não quer se pautar apenas em regras penais, mas se dispõe a enfrentar, ainda que de modo resumido, um debate sobre o tema com a leitura criminológica e sociológica. Nesse sentido, registre-se, a princípio, o estudo da política criminal que se pauta na relação adotada pelo senso comum que analisa as drogas a partir da criminologia etiológica.

Cirino dos Santos (2006, p. 693) ensina que essa criminologia está vinculada as drogas,

cujos programas de política criminal consistem em indicaçõestécnicas de mudanças da legislação penal para corrigir disfunções identificadas por critérios de eficiência ou de efetividade do controle do crime e da criminalidade – com os desastrosos resultados práticos conhecidos.

Sendo assim, a criminologia etiológica tradicional tratou de identificar as causas do comportamento delitivo sem a inserção desse comportamento no curso vital do indivíduo, ou seja, o delito é considerado de maneira estática, fazendo uma abstração da mudança que experimenta todo ser humano com o passar dos anos e o que isto implica.

Acontece que essa fase não alcançou êxito, pois não conseguiu reduzir a criminalidade e a violência. A partir daí surge um novo modelo criminológico, o labeling approach, que traça novos rumos para o que se constitui a criminologia crítica e o controle social, ou seja, o sistema penal e o fenômeno do controle, pois estes criam a criminalidade através dos agentes do controle social formal que estão a serviço de uma sociedade desigual.

A teoria do labeling approach é uma corrente de pensamentos que serviu como transição do paradigma etiológico-determinista, para nova orientação de cunho crítico. Ressalte-se, nessa perspectiva, que o paradigma da reação social deslocou a atenção da ciência criminal da pessoa do criminoso e das causas do crime, para questionar quem é definido criminoso, porque tal definição e que efeitos surgem da atribuição da condição desviante. Em razão disso, concentrou-se um estudo dos processos sociais que descambam na criminalização de condutas e no poder de defini-las.

Na lição de Baratta (1999, p. 86):

Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias.

Na interpretação ainda desse criminólogo (1999, p. 86), este sujeito, não obstante realize a conduta reprimida, não recebe da sociedade o tratamento de delinqüente. Desse modo,

[...] o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. Sob este ponto de vista tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de acusação pública e dos juízes.

A partir do insucesso do instituto da pena como caminho para a paz social, com a inibição da prática de condutas delituosas e a ressocialização do criminoso, começaram a surgir dentre os teóricos do Direito novas ideias, como as advindas do abolicionismo e do minimalismo.

Evandro Lins e Silva (1998, p. 15) aponta o final da Segunda Guerra Mundial como o nascimento do movimento abolicionista:

À fase tecnicista sucedeu, logo após a terminação da Segunda Guerra Mundial, uma forte reação humanista e humanitária. O Direito Penal retomava o seu leito natural, no caminho que vem trilhando desde Beccaria. Não surgiu propriamente uma nova escola penal, mas um movimento sumamente criativo, que vem influindo de modo intenso na reforma penal e penitenciária da segunda metade do século XX.

A doutrina abolicionista crê no emprego do individualismo e humanismo na resolução dos conflitos penais. Assim, a resolução das lides deve estar direcionada para as experiências passadas por cada indivíduo. A aplicação do princípio da igualdade vislumbra a diferenciação equilibrada entre os indivíduos, chegando-se, pois, ao verdadeiro humanismo.

Nessa esteira, a concepção abolicionista de Hulsman (1997) pauta seu pensamento abolicionista no entendimento de que o sistema penal caracteriza-se como um problema em si mesmo, trata-se de um sistema de enorme inutilidade e incapacidade de resolução dos problemas para os quais se propõe solucionar. Ou seja, uma ineficácia total para resolver os conflitos existentes na convivência civil.

O minimalismo penal ou Direito Penal Mínimo, por sua vez, é uma corrente nascida a partir das propostas elaboradas principalmente por Luigi Ferrajoli e Alessandro Baratta, sendo que Eugenio Raul Zaffaroni também é grande propulsor deste movimento. De acordo com essa teoria, o Direito Penal apenas deve ser utilizado em casos relevantes, como ultima ratio, quando não há possibilidade de aplicação de outros institutos do Direito.

É nesse sentido a doutrina de Fragoso (1991, p. 17), segundo o qual:

uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas anti-sociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais.

De acordo com Zaffaroni e Pierangelli (2007, p. 101), as atuais tendências do Direito penal nos países centrais são no sentido de não se associar a sanção penal que caracteriza a lei penal a qualquer conduta que viola normas jurídicas, e sim quando aparece como inevitável que a paz social não poderá ser alcançada salvo prevendo para estas hipóteses uma forma de sanção particularmente preventiva ou particularmente reparadora, que se distinga da prevenção e reparação ordinárias, comuns a todas as sanções jurídicas"

Restringe-se, pois, a atuação estatal, às condutas que causem à sociedade dano de que ela se ressinta intensamente.

Outra questão sociocriminológica interessante a ser abordada nesse momento é o que os doutrinadores denominam de seletividade. A rigor, a norma penal é dirigida a todas as pessoas, não importando a classe social a que pertença, entretanto, é a reação social que seleciona quais as pessoas que serão "rotuladas", ou "etiquetadas" como delinquentes. Assim, o delito não existe por si só, ele é uma criação da sociedade, as pessoas incumbidas dessa tarefa é que determinarão quais condutas deverão ser rotuladas como delitivas.

Nas expressão de Molina e Gomes (1997, p. 385):

A desviação social não é uma qualidade intrínseca da conduta, senão uma qualidade que lhe é atribuída por meio de processos de interação social, processos estes altamente seletivos e discriminatórios.

Esse entendimento é defendido de forma complementar por Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 69) na seguinte medida:

Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente "vulneráveis" ao sistema penal, que costuma orientar-se por "estereótipos" que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior perseguição pro parte da autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a estigmatização social do criminalizado.

Portanto, a seleção que deveria satisfazer a aspectos genéricos, abstratos, e gerais, e apenas isso, simula eleger condutas para na realidade criminalizar pessoas ficando, pois, seletivo e altamente discriminatório. Essa seletividade pode ser avaliada de dois modos, mentalizando campos diversos do sistema penal, no instante de definir as condutas puníveis e quais as penas atribuídas a cada qual delas; e também até mais exacerbadamente, no instante de selecionar quais indivíduos serão efetivamente punidos por executarem condutas proibidas.

Nessa perspectiva, a seletividade pode ser muito bem percebida, também, na avaliação da conduta delitiva como tráfico de drogas ou uso de tóxicos, na medida em que os agentes aplicadores da norma penal irremediavelmente valer-se-ão de conceitos preconcebidos no momento de determinar se determinado cidadão deve ser enquadrado como traficante ou usuário.


3 AS DROGAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1 EVOLUÇÃO NORMATIVA

Um recuo histórico na evolução do controle de drogas leva à percepção de que no Brasil, até o desfecho do século XIX, inexistia, preocupação direta do Estado, tampouco discussão acerca do controle do uso de qualquer substância alucinógena. Tal período é denominado pela melhor doutrina de fase da anomia.

Destaca-se quanto a essa questão, a utilização dos conteúdos jurídicos das Ordenações Filipinas, enquanto conjunto assistemático de normas de caráter eminentemente alienígena, como a pioneira forma de incriminação do uso, porte e comércio de determinadas substâncias tóxicas no país.

Somente em 1851 se fez apresentar, no Brasil, um regramento, de origem própria, que tratava de certa maneira a respeito das substâncias psicoativas. Cuidava-se do Regulamento nº. 828 que disciplinava a polícia sanitária e a venda de substâncias medicinais e de medicamentos.

O Código Criminal do Império, de 1830, não cuidou da matéria. Posteriormente, advieram os Códigos Penais de 1890 e de 1940, uma série de Decretos, e, por fim, diversas Leis Especiais, todos esses ordenamentos tratando da "onda de toxicomania" que invadia o país.

Vale o registro de que todos esses ordenamentos foram se superando, todos na tentativa de contemplar estratégias de efetivo combate às drogas. Isso terminou deixando patente significativa evolução quanto a essa matéria, até que se chegou à atual legislação objeto deste estudo, qual seja, a Lei 11.343/2006.

Para melhor compreensão de como a matéria foi disciplinada no Brasil é importante lembrar o contexto de sua discussão constitucional.

3.1.1 Posição Constitucional

As Constituições brasileiras de 1824, 1891, 1934, 1937 e 1946 escusaram-se de tratar a respeito das drogas, sendo que somente com o advento do Texto Constitucional de 1967 é que se pode observar a Lei Maior do estado brasileiro cuidar do tema, adotando, já naquele momento, um modelo repressivo de tratamento ao tráfico. O referido Texto de 1967, ao dispor, em seu Capítulo II, acerca da competência da União, prescreveu que:

Art 8º - Compete à União:

VII - organizar e manter a policia federal com a finalidade de prover:

b) a repressão ao tráfico de entorpecentes;

Em 1969, como é de notório conhecimento, o Diploma Constitucional de 1967 foi emendado, sofrendo uma série de modificações em seu texto. Essas mudanças atingiram também o dispositivo constitucional que tratava sobre as substâncias entorpecentes, acrescendo à norma a necessidade da prevenção, assim como ampliando o texto para alcançar, ainda, as drogas afins. Destarte, o dispositivo constitucional passou a contar, a partir daquele momento, com a seguinte redação:

Art. 8º Compete à União:

VIII - organizar e manter a polícia federal com a finalidade de:

b) prevenir e reprimir o tráfico de entorpecentes e drogas afins;

No ano de 1988, com o fim da Ditadura Militar, foi promulgada a atual Carta Magna brasileira, a qual fazendo jus a sua vocação eminentemente analítica, dispondo sobre as mais diversas matérias em seu corpo, não se escusou de tratar das substâncias psicoativas.

É assim que a Lei Maior da nação, já em seu art. 5º, ao dispor sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, passou a caracterizar como inafiançáveis e insuscetíveis de graça o tráfico ilícito de entorpecentes. Tal dispositivo não encontra similar nas Constituições anteriores. Desse modo, a Constituição de 1988 inscreve no seu art. 5º, XLIII:

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

A leitura dos ensinamentos de Greco Filho (2009, p. 74) leva à compreensão de que o art. 5º da Constituição de 1988 também

referiu-se ao tráfico ao dispor que o brasileiro naturalizado poderá ser extraditado, desde que comprovada a sua participação em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas, independentemente se o crime cometido foi antes ou depois da naturalização (art. 5º, LI). O estrangeiro poderá ser, em regra, extraditado, salvo se se tratar de crimes políticos ou de opinião.

Ao tratar da segurança pública, especificamente sobre as atribuições destinadas à polícia federal, a Magna Carta de 1988, em seu art. 144, disciplina que:

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

No instante em que cuidou dos direitos e deveres de proteção da família, da criança, do adolescente e do idoso também não se olvidou a Carta Constitucional em vigor de dispor sobre a necessidade de se elaborar programas de combate às drogas e acolhimento de dependentes, particularizados à questão da criança e do adolescente. É nesse sentido que dispõe o Artigo 227 do Texto Maior de 1988:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

Não escapou ao legislador constitucional de 1988 a imposição de regra expropriatória aplicada às glebas cujo cultivo se reserva a plantações ilícitas e ao destino dos bens oriundos da traficância censurável pelo sistema penal. É na lição de Greco Filho (2009, p. 75), que se extrai o pensamento doutrinário sobre a Constituição Federal que, como debate este autor,

Dispôs no seu art. 243 e parágrafo único que as glebas cultivadas com plantações ilícitas serão expropriadas, assim como os bens decorrentes do tráfico ilícito serão apreendidos, confiscados e utilizados em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

3.1.2 Das Ordenações Filipinas à Reforma de 1984

Visto, em breve síntese, o percurso constitucional da discussão sobre drogas no Brasil é importante ainda discorrer sobre as disposições legislativas que abordaram a matéria ao longo da história dos mecanismos repressivos do sistema penal.

Nesse sentido, vale relembrar o que se discorreu em item anterior que a primeira disposição legislativa a regular, no Brasil, as substâncias entorpecentes apareceu durante o período colonial, com as Ordenações Filipinas. Esse regramento, na realidade, não era eminentemente português ou brasileiro, como se afirmou antes. Tratava-se de um diploma legal promulgado por um monarca espanhol em 11 de janeiro de 1603 (Filipe III, na Espanha, ou Filipe II, quando rei em Portugal) e que aqui no Brasil teve plena aplicabilidade, em grande parte, até 16 de dezembro de 1830.

Essas ordenações eram uma compilação jurídica que sofriam influências do Direito Romano, Canônico e Germânico, considerados a base do Direito Português.

As regras repressivas estão dispostas no Livro V, Título LXXXIX que prescreve:

Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender, rosalgar branco, nem vermelho, nem amarello, nem solimão, nem agua delle, nem escamonéa, nem opio, salvo se for Boticario examinado, e que tenha licença para ter Botica, e usar do Officio.

E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender, perca toda sua fazenda, ametade para nossa Camera, e a outra para quem o accusar e seja degredado para Africa até nossa mercé.

E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fóra, e as vender as pessoas, que não forem Boticarios.

E os Boticarios as não vendão, nem despendão, senão com os Officiais, que por razão de seus Officios as hão mister, sendo porém Officiais conhecidos por elles, e taes, de que se presuma que as não darão á outras pessoas.

E os ditos Officiais as não darão e nem venderão a outrem, porque dando-as, e seguindo-se disso algum dano, haverão a pena que de Direito seja, segundo o dano fôr.

Continua o referido Título do Livro V das Ordenações Filipinas:

E os Boticarios poderão metter em suas mesinhas os ditos materiaes, segundo pelos Medicos, Cirurgiões, e Escripitores fôr mandado.

E fazendo contrario, vendendo-os a outras pessoas, que não forem Officiais conhecidos, pola primeira vez paguem cincoenta cruzados, metade para quem accusar, e descobrir.

Como se constata, o mencionado dispositivo legal restringia aos Boticarios licenciados e aos Officiais a posse de determinadas substâncias, à época tidas como entorpecentes, impondo severas sanções àqueles que estivessem na posse dos referidos materiais ilícitos, assim como àqueles Boticarios e Officiais que os transmitissem a outras pessoas não autorizadas.

Foi apenas em 1851, no período imperial, que o Brasil passou a dispor de um regramento, aqui nascido, que tratava de certo modo a respeito das substâncias psicoativas. Cumpre destacar que não foi o Código Criminal que abordou a temática, mas sim o Regulamento nº. 828, publicado em 29 de setembro daquele ano, que disciplinava acerca da polícia sanitária e da venda de substâncias medicinais e de medicamentos (GRECO FILHO, 2009, p. 61).

Logo a seguir, já no período republicano, adveio o Código Penal de 1890, que buscava implementar novas percepções a respeito da ordem social, assim como criar mecanismos de administração dessa ordem. Este Codex,especificamente em seu art. 159, considerava crime "expor à venda, ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem formalidades previstas nos regulamentos sanitários".

Não obstante, a disposição contida naquele diploma legislativo revelou-se, por si só, ineficaz ao fim a que se destinava. Essa informação de insucesso normativo pode ser extraída do entendimento de Vicente Greco (2009, p. 61/62):

Tal dispositivo, porém, isolado foi insuficiente para combater a onda de toxicomania que invadiu nosso país após 1914; Em São Paulo chegou a formar-se, à semelhança de Paris, um século antes, um clube de toxicômanos. Tentando coibir tal estado de coisas, foi baixado o Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, inspirado na Convenção de Haia de 1921 e modificado pelo Decreto nº 15.683, seguindo-se regulamento aprovado pelo Decreto nº 14.969, de setembro de 1921. Por falta de condições de efetivação da legislação, também ainda incipiente, os resultados da repressão foram precários, tendo sido, em janeiro de 1932, editado o Decreto nº 20.930, modificado pelo Decreto nº 24.505, de junho de 1934. Grande impulso na luta contra a toxicomania foi dado pelo Decreto nº 780, de 28 de abril de 1936, modificado pelo decreto nº 2.953, de agosto de 1938.

Ao exame de textos que abordam o tema constata-se que, durante um longo período, cerca de cinquenta anos, vários foram os Decretos promulgados com a finalidade de complementar o Código Penal de 1890, e, finalmente, dar efetividade real ao combate à denominada "onda de toxicomania", que assolou o país, a partir de 1914, sendo caracterizada pelo uso desenfreado de substâncias psicoativas, culminando até mesmo na formação de clubes de toxicômanos, tal como ocorrera em Paris no século XIX. Entretanto, um após o outro, os regramentos que despontaram se demonstraram ineficazes para tal mister.

Foi assim, após uma série de insucessos no embate contra as substâncias psicoativas, que se chegou ao ano de 1940, com a publicação de um novo Código Penal Brasileiro.

Esse diploma legal repressivo "fixou as normas gerais para cultivo de plantas entorpecentes e para extração, transformação e purificação de seus princípios ativo-terapêuticos" (GRECO FILHO, 2009, p. 63). Assim, estabelecia o art. 281 desse regramento, em sua redação original:

Art. 281. Importar ou exportar, produzir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ministrar ou entregar de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar.

Pena - reclusão, de 1 (um) a 6 (seis) anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.

Tal dispositivo, todavia, por diversas vezes foi alterado buscando abranger o âmbito punitivo e viabilizar a real efetividade do regulamento. Desse modo, ocorreu alteração em 1964, com a lei nº. 4.451, que acrescentou ao tipo penal a ação de "plantar". E, em 1969, o Decreto-Lei nº. 753, de 11 de agosto, atuou no sentido de complementar as disposições relativas à fiscalização de laboratórios que produzam ou manipulem substâncias ou produtos entorpecentes e seus equiparados, de firmas distribuidoras ou depositárias das referidas substâncias, e distribuição de amostras.

No percurso legislativo da disciplina, merece destaque a contribuição recebida pela lei nº. 5.726/71, de 29 de outubro de 1971, que dispôs sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica. Esse diploma legal deu nova redação ao art. 281 do Código Penal e alterou o rito processual para o julgamento dos delitos previstos nesse artigo, representando a iniciativa mais completa e válida na repressão aos tóxicos no âmbito mundial na sua época (GRECO FILHO, 2009, p. 68).

Após tantas idas e vindas e, sobretudo, em razão da expansão desenfreada do consumo de drogas em nível mundial, o legislador pátrio viu por bem elaborar uma legislação especial no tocante à repressão das substâncias psicoativas. É assim que se chegou à Lei nº. 5.726, de 29 de outubro de 1971, que será objeto de estudo no próximo tópico.

No percurso legislativo da disciplina merece destaque a contribuição dada pela lei nº. 5.726/71, de 29 de outubro de 1971, que dispôs sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, deu nova redação ao art. 281 do Código Penal e alterou o rito processual para o julgamento dos delitos previstos nesse artigo, representando a iniciativa mais completa e válida na repressão aos tóxicos no âmbito mundial na sua época (GRECO FILHO, 2009, p. 68).

Após tantas idas e vindas e, sobretudo, em razão da expansão desenfreada do consumo de drogas em nível mundial, o legislador pátrio viu por bem elaborar uma legislação especial no tocante à repressão das substâncias psicoativas. É assim que se chegou a lei nº. 5.726, de 29 de outubro de 1971, a qual será objeto de estudo no próximo tópico.

3.1.3 A legislação especial de drogas

A primeira lei especial a tratar sobre drogas foi a Lei nº 5.726/71, de 29 de outubro de 1971, regulamentada pelo Decreto nº. 69.845, de 27 de dezembro do mesmo ano. Esse dispositivo legal dispôs sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, deu nova redação ao art. 281 do Código Penal e alterou o rito processual para o julgamento dos delitos previstos neste artigo, representando a iniciativa mais completa e válida na repressão aos tóxicos naquele momento histórico.

Em linhas gerais, procurava a Lei nº. 5.726/71 ressaltar a importância da educação e da conscientização geral na luta contra os tóxicos, único instrumento realmente válido para se obter resultados no combate ao vício, representando a iniciativa mais completa e válida na repressão aos tóxicos no âmbito mundial na sua época (GRECO FILHO, 2009, p. 70). Além disso, deixava de considerar o dependente como criminoso, porém, escondia faceta ainda perversa, que é de não diferenciar o usuário eventual ou experimentador do traficante.

Essa legislação, ainda, mantinha o discurso médico-jurídico vislumbrado na década antecedente e seu evidente efeito de delimitar o usuário habitual como dependente – estereótipo da dependência – e traficante como delinquente – estereótipo criminoso. Não obstante essa falsa realidade, distorcida e extremamente maniqueísta de segmentar a sociedade entre "bons" e os "maus", aquele diploma legal representou um real avanço em relação ao Decreto pretérito e deu iniciou o processo de substituição do modelo repressivo. (CARVALHO, 1996, p.28)

Desse modo, conforme se explicitou, o mencionado regramento não atingiu plenamente o seu propósito, sobretudo porque, naquele momento, inexistia uniformização das leis anti-drogas no Brasil. Na verdade, o que se constata é a prevalência do discurso médico sobre o jurídico, tornando inevitável e imprescindível incrementar a repressão e criar uma nova estratégia político-criminal. Essa realidade político-jurídica impôs a elaboração de nova ordem de caráter especial que disciplinasse a matéria, o que se fez materializado através da Lei nº. 6.368, de 21 de outubro de 1976.

Esse regramento teve como inspiração a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961 e também as pesquisas realizadas e divulgadas pelo ASEP (Acordo Sul Americano sobre Estupefacientes e Psicotrópicos), firmado em 1973, após a visita do Grupo de Estudos do Congresso Norte-Americano à América Latina.

Não escapou a Salo de Carvalho (1996, p. 35), a incompatibilidade que marcava as proposições norte-americanas, por razões que se pautavam não apenas quanto ao tipo de droga que liderava a preferência dos consumidores latino-americanos quanto pelas pautas preventivas e repressivas das propostas. Desse modo, para esse autor,

As propostas trazidas pelos Estados Unidos não condiziam com o padrão nem com o perfil do consumidor latino-americano, haja vista que a droga de eleição deste era a maconha, enquanto na Europa e nos Estados Unidos as principais drogas consumidas eram a cocaína e heroína. Desta forma, a importação do modelo em nada condizia com o padrão e o perfil do consumidor latino-americano. Igualmente, os programas, tanto repressivos quanto preventivos e de tratamento, eram totalmente obsoletos nesta avaliação empírica.

Assim, a Lei nº. 6.368/76 instaurou, no final dos anos setenta, um novo arquétipo de controle que acompanhava novamente as tratativas internacionais, ou seja, as estruturas exógenas comandavam a agenda do controle de drogas no país. Quanto a essa incapacidade revelada de construir perspectivas próprias para lidar com as questões territoriais, cabe razão a Rosa Del Olmo (p. 296), quando defende a necessidade de "romper com tais estruturas, abandonar a intenção de 'adotar ideologias dos países hegemônicos e começar a construir paradigmas a partir de nosso contexto sociopolítico".

A escassez do discurso médico-jurídico, no que concerne à repressão, deu lugar ao sistema eminentemente jurídico, baseado em legislação severa que, ao mesmo tempo em que mantinha resquícios do antigo sistema – discurso médico-jurídico – elaborava e legitimava um novo discurso, enfatizando o jurídico-político.

As alterações promovidas pelo novo Diploma Legal no aspecto relativo aos crimes foram de pouca relevância, tanto assim que permaneceram quase inalteradas as composições típicas da Lei nº. 5.726/71. Registre-se, nessa discussão, o que interessa ao crime de tráfico de drogas, que passou a agregar ao tipo três novos verbos – "remeter", "adquirir" e "prescrever" – além de exacerbar a pena que passou a ser de reclusão, de três a quinze anos, e multa. Preocupou-se ainda com as condutas equiparáveis ao tráfico de drogas, às quais eram atribuídas as mesmas penas.

Não descuidou o novo Documento Legislativo de disciplinar a questão relacionada à posse do maquinário destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, assim como a conduta relativa à associação de pessoas para o cometimento de crimes atinentes ao tráfico. Assim dispuseram os artigos 13 e 14 da Lei nº. 6368/1976:

Art. 13. Fabricar, adquirir, vender, fornecer ainda que gratuitamente, possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Art. 14. Associarem-se 2 (duas) ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos Arts. 12 ou 13 desta Lei:

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

A orientação procedimental foi também objeto de abordagem da Lei de Drogas de 1976, no momento em que assemelhou tal procedimento aos que orientam os crimes apenados com detenção, como flui da lição de Nascimento, (2005, p. 53), ao tratar da matéria:

A Lei 6368/76 tratou de abreviá-lo, escoimando o resquício inquisitorial do juizado de instrução, previsto, para as hipóteses de prisão em flagrante do indiciado, nos artigos 15 e 16 da Lei nº 5.726/71, tornando o novo procedimento semelhante àquele aplicável aos crimes apenados com detenção.

Depois de vinte e seis anos de vigência, não surpreende a nova leitura que a doutrina, a jurisprudência e, sobretudo, o corpo social fizeram sobre o uso de substâncias entorpecentes, promovendo alterações a partir da visão desses atores sobre a matéria. O momento agora era o de transitar de uma concepção proibicionista para uma política abolicionista, impulsionada pela falência da pena privativa de liberdade.

Nesse sentido, o legislativo buscou refletir na ordem legal os impactos gerados pelas discussões que a sociedade promovia sobre o tema, ora confrontando tendências que apregoam a falibilidade da pena exacerbada, ora acolhendo posicionamentos do pensamento médico-científico quanto à matéria. Sobre esse posicionamento legislativo, vale transcrito o que debatem Mendonça e Carvalho (2008, p.15-16),

O legislador, por sua vez, não se manteve inerte. Bem ou mal, movimentou-se no sentido de fazer refletir, no ordenamento jurídico, as discussões que se multiplicavam na sociedade civil. Em alguns pontos, premido pelo clamor popular que constantemente pressiona pela efetividade da segurança pública, contrariou tendências de setores da doutrina penal que pregam pela insubsistência do agravamento das penas como meio de refrear as práticas criminosas. Por outro lado, acatou outras tendências, discutidas com ênfase pela comunidade médico-científica, e pareceu, aos olhos da população, estar tratando com maior leniência a questão das drogas.

Foi nesse contexto que surgiu a Lei nº. 10.409/2002, por meio da qual objetivava o legislador sintonizar-se com as novas tendências mundiais de embate contra as drogas, mormente, mitigando o tratamento anteriormente dispensado ao usuário e ao dependente de psicoativos, buscando criar um fosso intransponível entre as suas condutas, o que já vinha sendo acolhido pela construção pretoriana ao longo do período de vigência da Lei nº. 6.368/76.

Em abordagem sobre a sintonia entre a legislação brasileira e as de outros ordenamentos alienígenas, assinala Sérgio Habib (2002, p. 13) que:

A novatio legis buscava, assim, harmonizar-se com as legislações mais avançadas em todo o mundo, a exemplo de Portugal, que conseguem separar nitidamente o traficante ou o terceiro, que se beneficia de uma forma ou de outra com o tráfico ilícito das drogas, do usuário ou do dependente, aquele que é vítima do consumo de drogas que, por isso mesmo, não pode mais ser tratado igualmente pelo sistema criminal.

Manifestando-se ainda sobre a matéria, continua esse autor, (2002, p. 13):

A nova lei, ora sob comento, buscou despenalizar e desprisionalizar o uso e o consumo de drogas, desde que o portador ou o usuário fosse encontrado com pequena quantidade de substância tóxica, o que, afinal, não vingou em face do veto total a esse capítulo pelo Presidente da República.

Fato a registrar é que as intenções positivas do legislador infraconstitucional realçadas por Habib não bastaram para que o regramento em epígrafe resultasse no sucesso esperado, até mesmo porque foi, em parte expressiva, vetado pelo Chefe de Estado brasileiro.

Cabe lembrar, ainda sobre esse assunto, o comentário de Greco Filho (2009, p. 72), quanto a Lei nº. 10.409/2002, que tinha por pretensão, enquanto projeto, substituir a Lei nº. 6.368/76 integralmente. Ocorre que esse objetivo não poderia ser alcançado em razão do sintoma de maior negatividade constatado na Lei 20 409, que era a ausência de definição dos crimes, lapso que patrocinou a veto, pelo Poder Executivo, de todo o Capítulo III "Dos Crimes e das Penas".

Nessa esteira de ocorrências, o Diploma Legal em exame alterou a Lei de Drogas precedente apenas nos dispositivos de caráter processual. Essa afirmação pode ser sustentada com a leitura que faz Eneida Orbage de Britto Taquary (2002, p. 16), quando verbera que:

Não houve qualquer alteração quanto a crimes e penas, tampouco na exigência de se formalizar o procedimento perante a autoridade policial, via do Inquérito Policial, porque o capítulo III – Dos Crimes e das Penas (do art. 14 ao art. 26) da Lei nº. 10.409/02 foi totalmente vetado porque argüido vício de inconstitucionalidade, com fundamento no descumprimento dos princípios da reserva legal e individualização da pena, insertos no art. 5º, XXXIX, e XLVI, da Constituição Federal (...).

A fim de esclarecer os verdadeiros motivos que conduziram ao veto presidencial de um dos capítulos mais destacáveis da Lei nº. 10.409/2002, qual seja o capítulo III, fundamental transcrever as suas razões:

Cabe indagar neste estudo pelos motivos que teriam submetido a Lei 10.4108/2002 ao veto presidencial em um de seus mais destacados capítulos, qual seja, o Capítulo III. Aponte-se, de início, para a crítica extraída do veto "ao vício de inconstitucionalidade no art. 21" que, nos moldes do pronunciamento, termina por contaminar a íntegra de outros artigos do mencionado capítulo.

Vale ressaltar o alerta das razões do veto sobre o princípio da legalidade, acolhido tanto pelo Art. 5º XXXIX da Constituição Federal de 1988 quanto pelo Art. 1º do Código Penal do Brasil. De modo igual o veto clama pelo princípio da individualização da pena, contido no Art. 5º XLVI do Texto Político de 1988 e pela coibição à prisão perpétua, como impõe o Art. 5º, XLVII "b" da Carta Maior.

A leitura do arrazoado aponta ainda que

O projeto, lamentavelmente, deixou de fixar normas precisas quanto a limites e condições das penas cominadas. Diferentemente do que ocorre nos casos de conversão de penas restritivas de liberdade em restritivas de direitos e vice-versa, o projeto não contém limites temporais expressos que atendam aos princípios constitucionais.

Em matéria tão sensível, não se deve presumir a prudência das instituições, pois a indeterminação da lei penal pode ser a porta pela qual se introduzem formas variadas e cruéis de criminalidade legalizada.

A inconstitucionalidade apontada contamina os artigos 19 e 20, na medida em que estes descrevem tipos penais cujas penas são as presentes no art. 21.

Outra crítica subtraída do veto presidencial se relaciona ao Art. 14 do primeiro capítulo do Projeto que ora se debate, no sentido de o tipo penal em exame já é objeto de disciplina no Art. 12 da Lei nº. 6.368/76 inclusive, com igual quantum de pena cominada. Apesar disso, dois outros verbos "somaram-se aos verbos do tipo vigente: ‘financiar’ e ‘traficar ilicitamente’. [...] contêm o risco inadmissível, ainda que remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico".

As ponderações do veto vão mais além, para noticiar o debate jurídico sobre a possibilidade de "evasão de traficantes das prisões" estimulada pela redação proposta pelo projeto, no Art. 14. Isso porque, na explicitação do veto,

O verbo ‘traficar’ acrescentado pelo projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como ‘produzir’, ‘ter em depósito’, por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o ‘traficar’. Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei nº 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei nº 8.072/90.

Na linha de raciocínio transitada pelo veto, essa tese, não obstante seja "de duvidosa plausibilidade, divulgada ‘ad terrorem’ não é do interesse público que se corra risco algum a respeito do tema". Desse modo, levando-se em conta a remissão expressa ao Art. 14 em diversos artigos, "a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei nº 6.368/76". Deve-se isso, explana mais o veto, "porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal".

Quanto ao Art. 18 do projeto, já é conteúdo do Art. 1º, I, da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que disciplina os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores, (conhecido como "lavagem de dinheiro"), além da "prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei" e ainda "cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF". Aqui a pena cominada, por ser superior, deve ser mantida, como opina o veto, por razões de interesse público.

Aqui merece comentar o expresso alinhamento do veto aos movimentos radicais de criminalização ditados pela política criminal do Movimento de Lei e Ordem do "tolerância zero", principalmente quanto à justificativa de que a "lavagem de dinheiro" merece repressão diferenciada, pois é reconhecido como uma das bases do crime organizado, nacional e transnacional".

Em síntese derradeira, o veto faz alusão aos "sensíveis avanços contidos no projeto, mas prejudicados por inconstitucionalidade reflexa" que não serão esquecidos, uma vez que "se estuda, para breve, o encaminhamento de proposta legislativa que tratará de forma adequada da matéria constante do presente capítulo".

Fato a comentar é que os vetos presidenciais, porque não sofreu obstrução apenas o Capítulo III, a Lei 10.409/ 2002 resultou de vigência bastante desfigurada. Essa (des)qualificação legal é objeto de abordagem por Mendonça e Carvalho (2008, p. 16), para quem o ordenamento passou a ser composto de diplomas esparsos no tempo e na intenção, passando a valer, conjuntamente, as Leis 6.368/76 e 10.409/2002.

Ocorre que essa vigência simultânea, causava uma série de discussões no campo doutrinário e jurisprudencial, gerando enorme insegurança jurídica. Assim, buscando ser a solução para todos os problemas existentes até então, despontou no ordenamento jurídico pátrio a Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006, denominada "Nova Lei de Drogas", que entrou em vigor no dia 8 de outubro de 2006 e instituiu mudanças sensíveis na normatização brasileira acerca das drogas. No expressar de Renato Marcão (2007, p. 01),

O novo Diploma legal, apesar de estar permeado de imperfeições e suscitar várias discussões evitáveis, em sua maior parte é virtuoso, e, sem sombra de dúvida, uma de suas maiores virtudes consiste em resolver a celeuma criada com a vigência simultânea das Leis n.º 6.368/76 e 10.409/2002, pois, desde 28 de fevereiro de 2002, quando esta entrou em vigor, houve total rompimento com o princípio da segurança jurídica, sendo conhecida de todos a discussão que se estabeleceu a respeito da aplicação dos dispositivos nela contidos.

Ainda discorrendo sobre a nova normatização brasileira sobre as drogas, Mendonça e Carvalho entendem que, de qualquer sorte, o resultado do esforço legislativo, ao final, é de qualidade superior à das normas que vigiam desde as Leis 6.368/1976 e 10.409/2002.

De acordo com Gentil (2007, p. 15), a entrada em vigor da Lei nº. 11.343/2006 trouxe, dentre outras novidades, uma causa de redução de pena para autores de tráfico ou delitos a ele equiparados, previstos no seu artigo 33, aplicável se o réu for primário, de bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Sobre esse tema, leciona Castro (2006, p.18), que:

A nova Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, indica medidas para prevenir a utilização indevida, cuidados especiais bem como recuperação social de usuários e dependentes de substâncias tóxicas, estabelece ainda, normas para reprimir a produção não autorizada e o tráfico ilícito de alucinógenos além de definir os respectivos crimes.

A uma análise menos crítica e mais tendente aos processos criminalizantes pode-se até admitir que o Diploma Legal sobre o controle de drogas em vigência, conseguiu, de certa maneira, atingir o objetivo desejado quando da elaboração da Lei nº 10.409/2002. Com isso o que se quer dizer é que a Lei 11.343/2006 se alinhou às novas disposições mundiais de combate a psicoativos, sobretudo, diferenciando o tratamento prestado ao usuário e ao dependente de substâncias alucinógenas, procurando criar uma barreira impenetrável entre as suas condutas.

As manifestações a respeito da matéria logo se fizeram presentes, no sentido de identificar na legislação novel nesgas de preocupação mais tolerantes e menos repressivas quando se trata de porte para uso próprio. Assim Pierobom de Ávila (2006, p. 19), ao anunciar que:

A preocupação central da nova legislação com o dependente químico não é mais a repressão à conduta de portar substância entorpecente para uso próprio, e sim conferir-lhe atenção e reintegração social. [...] Assim, estabelece a lei que a conduta do usuário de drogas deverá receber reinserção social, enquanto a conduta de produção e tráfico deverá receber repressão.

As reflexões até agora trazidas neste estudo traçaram um breve histórico das questões relativas á evolução do processo criminalizador dos que usam, portam, trafica, vendem, dentre outros núcleos verbais, substâncias tóxicas. Não obstante manifestações dos estudiosos apontem para momentos positivos do legislador quanto trata da matéria, notadamente nos espaços abertos aos usuários, o novo comando legal vem suscitando sérios questionamentos no momento de se identificar e classificar determinado indivíduo como usuário ou traficante de drogas.

Nessa perspectiva, a questão crucial que se levanta para enfrentar neste estudo se centraliza na pergunta sobre quais critérios devem ser utilizados para marcar as diferenças entre os dois protagonistas que mais suscitam o debate quanto ao tema, ou seja, o usuário e o traficante. Afinal, como distinguir um do outro, no momento da concretude da lei.de drogas?

Essa a temática objeto de discussão no próximo capítulo deste estudo monográfico.


4 A NOVA LEI DE DROGAS, O USUÁRIO E O TRAFICANTE: O QUE ACONTECEU?

4.1 CONHECENDO A PROPOSTA DE INOVAÇÃO

Os primeiros noticiários propagados nos principais meios de comunicação do Brasil foram favoráveis à Nova Lei de Drogas (Lei n. 11.343/06), tendo sido dado ênfase na mídia que "com a nova lei de drogas, usuário não poderia mais ser preso". Vale registrar, apesar disso, que foram duradouros e penosos os percursos pelos quais passaram os projetos de leis de drogas que tramitaram no Congresso Nacional até que se chegasse ao novo diploma, ora em vigor.

Inicialmente, o Poder Executivo, após a realização dos vetos, enviou ao Congresso um novo projeto de lei (nº. 6.108/02), que tramitou por dois anos na Câmara dos Deputados, e foi apensado ao Projeto de Lei nº. 7.134/02, originário do Senado Federal (PLS nº. 115/02). A Câmara ponderou sobre os dois conjuntamente e aprovou no Plenário, em 2004, o Substitutivo da Câmara de Deputados (PLS nº. 7.134-B). Devido às alterações feitas pela Câmara, o projeto retornou ao Senado, onde tramitou como SCD n. 115/02, que deu origem à nova lei de drogas (nº. 11.343/06).

Muito bem explanada e minuciosa é a narração acerca do percurso legislativo da Nova Lei de Drogas exposta por Mendonça e Carvalho (2008, p. 17-18), tendo como ponto de partida a entrada em vigor da "retalhada" Lei nº. 10.409, em 28 de fevereiro de 2002:

Ainda no ano de 2002, o Poder Executivo, responsável pelos vetos, encaminhou ao Congresso Nacional, em regime de urgência, o Projeto de Lei 6.108, que previa novas alterações à Lei 10.409/2002, recém-aprovada. Em tramitação na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e Narcotráfico da Câmara dos Deputados, o Projeto foi alterado integralmente pela aprovação de uma nova versão consubstanciada em um substitutivo. Paralelamente, a Comissão Mista de Segurança Pública do Congresso Nacional, formada por parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, elaborou novo anteprojeto de lei, disciplinando integralmente a matéria.

Ainda de acordo com os autores (2008, p. 17-18), esse anteprojeto foi apresentado diretamente no Senado Federal, "recebendo a designação de Projeto de Lei do Senado 115, de 2002. Aprovado naquela casa legislativa, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, onde recebeu o número 7.134".

E prosseguem os autores para informar os encaminhamentos. Já agora na Câmara dos Deputados, em 2002, juntos e apensados todos os projetos e versões sobre a matéria, sob a rubrica de Projeto de Lei nº. 7.134/2002. No entanto, segundo esses autores (2008, p. 17-18),

A despeito da celeridade inicial na tramitação dos projetos que visavam a corrigir as imperfeições da legislação sobre tóxicos, o requerimento de urgência acabou por ser retirado e o Projeto de Lei nº. 7.134/2002 passou a tramitar sob o rito ordinário inexplicavelmente, a matéria foi novamente considerada urgente ao cabo do ano de 2003, sendo incluída na pauta da convocação extraordinária do Congresso Nacional, que iria ter lugar no mês de janeiro de 2004. Na ocasião, o então Projeto de Lei 7.134/2002 estava em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Na mesma esteira informativa, os autores se referem ao grupo de trabalho constituído por equipe multidisciplinar, com leituras diversas sobre a questão das drogas. Assim, técnicos de diversos setores do Poder Executivo e do Poder Legislativo se reuniram para elaboração do texto final da Lei, substitutivo do projeto de lei em tramitação. Não obstante os aplausos dos autores (2008, p 17-18), a complexidade do projeto exigia tempo maior de discussão e não apenas duas semanas "no curso de uma convocação extraordinária da Câmara dos Deputados". E continuam para dizer que a "urgência, mais uma vez, foi inimiga da perfeição" tanto assim que dois anos e meio foi o tempo para o Senado Federal aprovar o projeto que retornou à Câmara Federal por força das alterações ali efetivadas.

Poucas foram as alterações, mas alguns dispositivos tiveram redação diversa por incompatíveis com o "restante do substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados". (2008, p. 17-18)

É o caso, por exemplo, dos parágrafos do art. 28, que versa sobre o crime de porte para consumo pessoal em que o Senado Federal acabou por misturar as disposições da proposta anterior com a aprovada pela Câmara, as quais divergiam em tudo. Trata-se de mais uma razão para as imperfeições da nova lei sobre drogas. Após vetos presidenciais que não alteraram a essência do projeto, acabou por ser sancionada a Lei 11.343/2006.

Como se percebeu, o Projeto de Lei n.º 7.134/02 teve um longo e tempestuoso caminho até tornar-se a Lei nº. 11.343/2006. Tal diploma, inovadoramente, ambicionava uma abordagem mais contemporânea e extensa a respeito da questão das drogas, constituindo políticas públicas modernas e apropriadas, a partir da coleta, análise e disseminação de informações sobre drogas.

Ademais, era nítida a preocupação com as diligências de atenção e reinserção de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo notadamente a responsabilidade da rede pública de saúde – SUS – na criação e aperfeiçoamento de programas de cuidado ao usuário e ao dependente de drogas, consoante diretrizes a serem instituídas pelo Ministério da Saúde.

4.2 O QUE É SER USUÁRIO?

Uma indagação é importante formular, neste texto monográfico, porque se refere a um dos protagonistas importantes na discussão sobre drogas.

Qual o conceito de usuário, para a criminalização objeto deste estudo?

Denomina-se usuário, conforme o artigo 28 da nova Lei de Drogas, aquele que: "adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar".

Conceitualmente, adquirir é comprar, passar a ser proprietário, ou seja, dono do objeto. Já a conduta guardar é ocultar, esconder, não publicar a posse. A conduta de ter em depósito significa manter sob controle, à disposição. Agora, transportar traz a idéia de deslocamento, ou seja, de um local para outro. E, por último, o comportamento de trazer consigo é o mesmo que portar a droga, tendo total disponibilidade de acesso ao uso.

Cumpre destacar que as condutas descritas no artigo 28 do novo diploma legal, apenas contemplam a forma dolosa, ou seja, saber e querer ter a posse da droga. Não se admite a forma culposa, com isso, ignora as categorias da imprudência, imperícia e negligência na modalidade. Desse modo, o agente que tiver a posse da droga sem saber do que se trata, encontra-se em erro de tipo.

O tipo requer, ainda, outro elemento subjetivo, qual seja, a intenção especial do agente em ter a droga para consumo pessoal. Assim, se o sujeito tem a posse da droga para destinação a terceiros, outra será a infração, não incidindo mais o artigo 28. Nesse sentido, a partir dos ensinamentos de Guimarães (2007, p. 108), o elemento subjetivo do tipo é o dolo específico, isto é, consubstanciado com a intenção do agente de financiar ou custear o tráfico ou os crimes assemelhados.

Como elemento normativo, deve-se atentar para a expressão "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar", cabendo ao julgador verificar a ocorrência ou não de tal componente no caso concreto.

A Nova Lei de Drogas veio dar tratamento diferenciado aos usuários de substâncias entorpecentes. Cuida-se de uma mudança benéfica àqueles que usufruem dos mencionados substratos que vem causando polêmica na comunidade jurídica por ter aberto uma série de questionamentos acerca da natureza jurídica da conduta descrita no art. 28. Afinal, a Lei 11.343/2006 procedeu à descriminalização (abolitio criminis), à modificação para uma infração penal sui generis, elaborou um tipo para uma modalidade de contravenção especial, promoveu a despenalização da posse para consumo próprioou a conduta do usuário continua sendo crime?

Registre-se, a propósito, que o artigo 28 da Lei de Drogas não prevê pena de reclusão nem de detenção, por isso há quem entenda que, na hipótese, não há crime ou contravenção cometida. Na lição de Thiago André Pierobom de Ávila (2006, p.159), tal inteligência fundamenta-se no art. 1º do Decreto 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais). Dispõe o referido regramento:

Art 1º. Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Desse modo, partindo de uma interpretação literal da norma transcrita, como a conduta prevista no art. 28 da nova Lei de Drogas não impõe nenhuma das penas mencionadas no dispositivo acima, o melhor entendimento é de que essa conduta não deve ser enquadrada na premissa de crime ou contravenção penal.

Em outra linha de entendimento, a ideia de que a conduta do usuário de drogas passou a ser uma infração penal sui generis édefendida por Gomes e e Sanches (2009) quando indagam se o legislador, no trato com o agente que tem a posse de drogas para consumo pessoal que teria contemplado um crime, uma infração penal sui generis ou uma infração administrativa. Para esses autores (2009),

Houve descriminalização formal (acabou o caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena de prisão para o usuário de droga). O fato (posse de droga para consumo pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão ou detenção (art. 1º da LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há cominação de qualquer pena de prisão), se não se pode admitir tampouco uma infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal sui generis.

Nessa linha de intelecção é também o entendimento de Leal (2006, p. 61):

A Lei Antidrogas criou uma nova infração penal, que não se enquadra na classificação legal de crime, nem de contravenção penal. Criou, simplesmente, uma infração penal inominada, punida com novas alternativas penais e isto não contraria a diretiva genérica de classificação das infrações penais, emanada do referido dispositivo da Lei de Introdução ao Código Penal.

Há quem entenda, como Thiago André Pierobom de Ávila (2006, p.163), citado acima, de modo diferente e defendem que a posse drogas para consumo pessoal passou a ser uma modalidade de contravenção. Essa interpretação é justificada sob o argumento de que tal como ocorrem com as demais contravenções penais, a conduta sob análise não permite o tipo tentado. Além disso, a referida infração é passível de ação pública incondicionada, que deve observar o rito sumaríssimo estabelecido na Lei nº. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais).

E, o mais importante, ao se confrontar o disposto no art. 28 da Lei nº. 11.343/2006 com os princípios da proporcionalidade e da lesividade, resulta cristalina a relação intrínseca entre a natureza da infração penal e a intensidade e natureza da pena.

De acordo com Ávila (2006, p.19),

Uma interpretação sistemática desse novo delito com os demais crimes e contravenções deve necessariamente classificá-lo ao lado das contravenções penais. Não é possível que haja uma contravenção com pena de prisão simples de até dois anos (LCP, art. 24) e exista um crime sem pena privativa de liberdade.

Vale comentar que as teses até aqui trazidas encontram oposição na doutrina majoritária e no Supremo Tribunal Federal. Para essa outra linha de entendimento, a hipótese em análise trata-se de caso de despenalização da conduta, e, portanto, a posse de drogas para consumo pessoal continua sendo crime.

É o que leciona Capez (2007, p. 60):

Entendemos, no entanto, que não houve descriminalização da conduta. O fato continua s ter a natureza de crime, na medida em que a própria Lei o inseriu no capítulo relativo aos crimes e às penas (Capítulo III); além do que as sanções só podem ser aplicadas por juiz criminal e não por autoridade administrativa, e mediante o devido processo legal (no caso, o procedimento criminal do Juizado Especial Criminal, conforme expressa determinação legal do art. 48, parágrafo 1º, da nova Lei.

E é nesse sentido que entendeu a Primeira Turma do STF, em 2007, quando tratou da questão no julgamento do RE 430105, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. No referido recurso a Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado o apelo em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76.

Nele, considerou-se que a conduta descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois essa posição acarretaria sérias consequências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e haveria dificuldade na definição de seu regime jurídico.

Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade.

Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Veja-se, nesse sentido, parte da ementa do julgado:

[...] Não se pode, na interpretação da Lei 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo ‘rigor técnico’, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado ‘Dos Crimes e das Penas’, só a ele referentes.

Salientou-se, outrossim, a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da Lei nº. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal.

Portanto, segundo a doutrina majoritária e o STF, ter-se-ia operado, com o advento do artigo 28 da Lei 11.343/06, uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade, mas não uma redução do tipo para contravenção, criação de uma infração sui generis ou descriminalização (abolitio criminis) do porte de drogas para consumo pessoal, que continua a ser crime.

4.3 E O TRAFICANTE?

No pensamento atual, denomina-se traficante o sujeito ativo do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Entretanto, ao discorrer sobre o mencionado delito, o Silva Franco (2006, p. 145) chega à conclusão que:

A exemplo da lei anterior, também a atual Lei Antidrogas não indica expressamente qual a conduta (ou condutas) portadora deste nomen juris. Nem o art. 33, seus parágrafos e incisos, nem nenhum outro dispositivo incriminador são assinalados com a rubrica ou a denominação legal de tráfico de drogas.

Comente-se, a propósito, que a doutrina penal e a jurisprudência têm utilizado, de forma corrente e sem divergência, a expressão tráfico ilícito de drogas para denominar o crime anteriormente descrito no art. 12, caput, da Lei 6.368/76 e agora tipificado no art. 33, caput, da Lei Antidrogas.

O dispositivo contido no diploma vigente estabelece,

Art. 33 - Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Para melhor entendimento do tipo descrito no artigo, imprescindível se faz a análise de cada um dos elementos nele constantes. Nessa ótica, vale transcrito o que aduzem Mendonça e Carvalho (2008, p. 90-91), sobre esse tema:

Em relação ás condutas nucleares, importar significa introduzir a droga no território nacional, enquanto exportar significa a via inversa, de fazer a droga sair dos limites espaciais do território brasileiro. Remeter significa enviar, destinar, por qualquer meio e se consuma com a mera remessa, independentemente de ter chegado ao destinatário. Preparar, produzir e fabricar possuem sentidos semelhantes, mas o que diferencia as condutas é que, enquanto no preparar há composição ou decomposição química de substâncias, o verbo produzir maior atividade criativa, como a atividade extrativa. Por fim, fabricar traduz a utilização de meios mecânicos e industriais na criação da droga.

E prosseguem os autores,

Adquirir é obter, gratuita ou onerosamente, e se consuma com o ajuste, ou seja, no instante em que há o acordo de vontades sobre o objeto e o preço, independentemente da entrega efetiva. Vender significa alienar. Expor à venda consiste em deixar à mostra para a venda. Oferecer significa ofertar, colocar à disposição de terceiro para a sua aceitação. Ter em depósito significa [...] principalmente a retenção provisória e a possibilidade de deslocamento rápido da droga de um lugar para outro, enquanto guardar se conceituaria como a mera ocultação da droga. Transportar, por sua vez, significa a conduta de levar de uma local a outro por intermédio de algum meio de locomoção que não pessoal, pois nesse caso configurar-se-ia o trazer consigo. O verbo trazer consigo se configura quando o agente traz a droga junto ao corpo ou em seu interior (dentro da cavidade abdominal, por exemplo). Prescrever significa receitar, enquanto ministrar significa inocular, introduzir no corpo de alguém.

E continuam esses autores (2008, p. 90-91)

Entregar consumo ou fornecer drogas ainda que gratuitamente são as normas de encerramento que visam abarcar as condutas não enquadráveis nos demais núcleos. Entregar consumo e fornecer trazem a idéia de tradição da droga, de dar a droga a terceiro. A distinção entre entregar e fornecer é a continuidade, pois enquanto entregar se aproxima mais da tradição única, esporádica, o fornecimento se liga à idéia de continuidade no tempo, de tradição contínua durante determinado lapso temporal.

Ainda referente a essa definição encontrada na Lei, Guimarães (2007, p. 59/60) ensina que:

A forma fundamental do crime de tráfico de drogas, descrito no caput do presente artigo, compreende dezoito verbos que indicam as condutas típicas que, prima facie, vão muito mais além do seu significado etimológico. Tráfico, portanto, ganha um sentido jurídico-penal muito mais amplo do que o comércio ilegal: a expressão abrangerá desde os atos preparatórios às condutas mais estreitamente vinculadas à noção lexical de tráfico. Isto indica que a intenção do legislador penal continua como sendo a de oferecer uma proteção penal mais ampla ao bem jurídico tutelado.

Busca clarificar o autor que a aplicação da Lei nº. 11.343/2006 visa a determinar que o narcotráfico não exige, em sua necessidade, atos de comércio. Confirma Guimarães (2007, p. 60), em jurisprudência:

Apelação criminal. Tráfico de entorpecentes. Substância apreendida na posse do acusado juntamente com instrumentos utilizados para esse fim. O crime de tráfico de entorpecentes, previsto no artigo 12 da Lei 6.368/76, não exige à sua configuração a venda de substância tóxica a terceiros. Basta à sua consumação a posse, guarda ou depósito dessa mesma substância. In: AP. Crim. 00.0219-7, de Florianópolis, rel. Dês. Genésio Nolli (RJTJSP 70/371).

Não é unânime, todavia, esse entendimento, como se comprova na decisão contrária lembrada por Guimarães (2006, p. 60):

Tráfico de entorpecentes. Falta de provas da comercialização. Desclassificação do art. 12 para artigo 16 da Lei 6.368/76.

[...] a quantidade apreendida não basta, por si só, ao reconhecimento da traficância, e nem mesmo o fato de estar acondicionada em tabletes envoltos por invólucros plásticos.

A condenação por tráfico de substância entorpecente exige prova segura e concludente da comercialização não sendo suficiente a mera presunção. Havendo qualquer dúvida, deve prevalecer a solução mais favorável ao agente, ou seja, a desclassificação para a infração mais branda (Lei 6.368/76, artigo 16). TACRIM/PR – 3º Cerim. – AP. 131.169-9, Rel. Desig. Leonardo Lustosa, vencido relator originário Renato Neves Barcellos – j. em 22.06.1999, m.v.).

Ao cotejar o art. 33 da nova Lei com o seu precedente constante da Lei nº. 6.368/76, da Arruda (2007, p. 51/52) verificou existir praticamente uma equivalência entre as condutas encontradas nos dispositivos mencionados. Nesse sentido, ele concluiu que:

Entre os dois dispositivos há uma quase total identidade no que diz respeito à descrição das condutas. O legislador reformador limitou-se a modificar a ordem de alguns verbos e trouxe para o fim do rol a expressão "ainda que gratuitamente", a qual poderá ser considerada como se referindo também à conduta de entregar a droga a consumo. Embora a criação de alguns tipos penais novos vá permitir um enquadramento mais perfeito de condutas antes subsumidas genericamente ao revogado art. 12, o crime ora em análise tende a continuar sendo o mais relevante da Lei de Drogas.

A mais significativa inovação do atual regramento sobre drogas, todavia, foi prescrever o aumento das penas privativa de liberdade e pecuniária. A pena mínima cominada ao delito foi aumentada de 3 (três) para 5 (cinco) anos, enquanto a pena pecuniária foi elevada de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa para 500 (quinhentos) a 1500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Ao debruçar-se sobre a elevação da pena privativa de liberdade incrementada pela vigenteLei de Drogas, cotejando-a com os antecessores diplomas que cuidavam desse tema, Greco Filho (2009, p. 162/163) dispôs que:

A pena privativa de liberdade que já havia sido exacerbada pela Lei nº 6.368, comparando-se os textos de 1940, do Decreto-Lei nº. 385, e da Lei nº 5.726, foi ainda mais recrudescida pela atual lei. O aumento da pena mínima para cinco anos foi para evitar a substituição por penas restritivas de direito, mens legis expressa no § 4º, possibilidade que causava grande divergência doutrinária e jurisprudencial em face da Lei nº. 6.368, cuja pena mínima prevista era de três anos. A justificativa da exacerbação, desde a Lei nº. 6.368, sempre foi em virtude da distinção feita entre aquele que traz consigo, adquire ou guarda para uso próprio (atualmente para "consumo pessoal"), agora punido com as penas não privativas de liberdade do art. 28, assim como a de outras condutas punidas de maneira diferenciada, como os §§ 2º e 3º, agora previstas.

Ademais, tendo em vista que a precípua finalidade do traficante é o lucro, entendeu por bem o legislador aumentar a sanção pecuniária para desestimular a prática delitiva (MENDONÇA e CARVALHO, 2008, p. 89).

Aplaudindo tal premissa, Arruda (2007, p. 52) asseverou que:

O legislador pretendeu certamente asfixiar o tráfico também por meio de sanções financeiras, o que obedece a lógica de apenar pecuniariamente as condutas criminosas que propiciam lucro elevado aos agentes.

Insta salientar, ainda, que de acordo com § 4º do art. 33 da Lei de Drogas, nos delitos descritos no dispositivo citado poderá haver redução de pena de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa. Cria-se, desse modo, uma espécie de tráfico privilegiado, em benefício do infrator recém-ingressante na mercancia ilícita.

Ao exame da matéria Marcão (2007, p. 137) aduz que:

A previsão é saudável na medida em que permite uma individualização mais adequada e proporcional da pena; contudo, deverá ser analisada com redobrada cautela, impondo ao magistrado cuidadosa apuração dos requisitos legais no curso da instrução, visando evitar conceder ou negar o benefício fora das hipóteses pretendidas pelo legislador.

Constata-se, portanto, que o legislador buscou com a nova Lei aumentar a distância entre o usuário e o traficante, sobretudo, a partir da diferenciação das penas cominadas para cada uma dessas figuras.

4.4 O TRAFICANTE E O USUÁRIO NA NOVA LEI DE DROGAS: UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA DOS ASPECTOS DIFERENCIADORES

O contexto vivenciado no Brasil deixa evidente que o legislador buscou inovar no tratamento dado ao usuário e ao traficante com o advento da nova lei de drogas, não faltam críticas doutrinárias ao novel diploma, especialmente no que se refere aos critérios e à forma de utilização destes pelos agentes que atuam no enquadramento da conduta praticada por cada indivíduo.

Ao debruçar-se sobre os critérios utilizados, em âmbito mundial, no momento de definir-se estar diante de conduta de tráfico ou conduta de usuário, Gomes (2007, p. 161) doutrina que:

Há dois sistemas legais para se decidir sobre se o agente (que está envolvido com a posse ou porte de droga) é usuário ou traficante: (a) sistema da quantificação legal (fixa-se, nesse caso, um quantum diário para o consumo pessoal; até esse limite legal não há que se falar em tráfico); (b) sistema do reconhecimento judicial ou policial (cabe ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir sobre o correto enquadramento típico). A última palavra é a judicial, de qualquer modo, é certo que a autoridade policial (quando o fato chega ao seu conhecimento) deve fazer a distinção entre o usuário e o traficante.

Destaca, ainda, o referido doutrinador que é da tradição da lei brasileira a adoção do sistema de reconhecimento judicial ou policial, o que ainda ocorre com o atual regramento sobre drogas.

Fato a registrar é que o artigo 28, § 2º, da Lei nº. 11.343/2006, não trouxe qualquer inovação à questão dos critérios diferenciadores entre o usuário e o traficante, perdendo a oportunidade de definir a conduta do dependente de substâncias psicoativas de uso proscrito no país. Certo é que a nova lei conservou a mesma redação dada ao artigo 37 da lei anterior, ou seja, omitiu-se sobre o tema abordado, promovendo divergências judiciais causadoras de graves consequências para os destinatários da lei.

À guisa de análise, faz-se essencial, nesse momento, transcrever o que prescreve o citado artigo 28, § 2º:

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Olinger (2009, p. 11), informa que o fato do dispositivo legal não especificar quantidades determinadas para diferenciar o consumidor do traficante, expondo tão somente que deverá o juiz analisar as circunstancias da infração, perfil do infrator, entre outros, vem sendo discutido nos diversos eventos produzidos após a promulgação do referido diploma. E aduz a autora (2009, p. 12):

Dessa forma existe uma tendência a continuar prendendo negros e pobres como traficantes, já que mesmo que sejam encontrados com uma quantidade muito pequena de droga, tem grande probabilidade de ser acusados, pelas circunstâncias e perfil social, de estar servindo de atravessador/avião, enquanto o menino de classe média vai ter um bom advogado e mostrar que, com seu perfil e condição social, não é traficante.

Seguindo a mesma linha crítica de intelecção perfilhada por Olinger, Rodrigues (2009, p. 10) adverte que,

Ao flexibilizar os critérios de definição de que quantidade da substância poderia ser para consumo próprio e o que caracterizaria tráfico, o Sisnad coloca a cargo da polícia ostensiva a decisão de abrir ou não um processo judicial, permitindo que o policial escolha quem será liberado e quem será encaminhado à Justiça. A nova lei de drogas legaliza a seletividade de sua aplicação. Quem define inicialmente se o indivíduo é traficante ou usuário ainda é o policial.

Desse modo, Rodrigues (2009, p. 10) advoga o entendimento segundo o qual far-se-ia necessário modificar-se o dispositivo contido no § 2º do art. 28 da nova Lei de Drogas, inserindo quantidades determinadas de cada substância entorpecente, de maneira que se pudesse objetivamente enquadrar o indivíduo como usuário ou traficante a partir da quantidade de drogas que possuísse. Essa mudança legislativa decerto contribuiria para a redução de equívocos cometidos pelas autoridades policiais no momento de classificar o agente como traficante ou usuário.

Autores ainda defendem a necessidade de critérios quantitativos específicos na legislação de drogas, destacando sua imperiosidade até mesmo em razão da atuação do magistrado, objetivando salvaguardar a sociedade de eventuais arbitrariedades.

Nesse sentido Pedrinha (2009, p. 5486) ao asseverar que:

A Lei silencia quanto à quantidade específica de droga para classificar o usuário e o traficante, ficando a seleção ao arbítrio dos representantes do Estado. Dessa forma, a condição social, a cor, a raça de certos indivíduos serão fatores determinantes na aptidão à captura seletiva da polícia e dos magistrados

Na esteira do raciocínio de Pedrinha, soma-se o comentário de Nucci (2007, p. 308) quando aduz,

Naturalmente, espera-se que, com isso, não se faça uma juízo de valoração ligado às condições econômicas de alguém. Ex.: Se um rico traz consigo cinco cigarros de maconha, seria usuário porque pode pagar pela drogas. Entretanto, sendo o portador pessoa pobre, a mesma quantidade seria considerada tráfico. [...] Ilustrando, de modo mais razoável: aquele que traz consigo quantidade elevada de substância entorpecente e já possui anterior condenação por tráfico evidencia, como regra, a correta tipificação no art. 33 desta Lei.[...] o agente que traz consigo pequena quantidade de droga, sendo primário e sem qualquer antecedente, permite a conclusão de se tratar de mero usuário [...]. Não há entre os critérios o predomínio de uns sobre os outros, tudo a depender do caso concreto.

Assim, versando por um alinhamento da teoria mais crítica, Nucci entende que o magistrado, para distinguir o usuário do traficante, analisa apenas as circunstâncias sociais e pessoais, bem como os antecedentes do agente, ou seja, se for pobre será traficante, sendo rico será usuário.

Diferentemente dos posicionamentos anteriores que iam de encontro à própria norma contida no § 2º do art. 28, Vilar Lins (2007, p. 250), nas suas observações tão-somente quanto ao modo como os critérios ali estabelecidos devem ser aplicados, assegura que a mera quantidade não seria motivo suficiente para enquadrar a conduta nas hipóteses do art. 28, fazendo-se necessário identificar outros elementos. Nesse sentido:

Impõe-se ao magistrado buscar informações sobre a quantidade máxima de uso de determinada substância, ou seja, o limite de tolerância do organismo, para avaliar se o numerário apreendido poderia ou não ser desarrazoado para o consumo de um único indivíduo. [...] Registra-se, entretanto, que o limite é variável de sujeito para sujeito, bem como, em muitas circunstâncias, a exemplo dos casos de vício, ou seja, de uso habitual, o usuário prefere adquirir em grande quantidade para não se ver compelido a retornar ao mundo do tráfico em um espaço curto de tempo. Verifica-se, ainda, que em diversas oportunidades, um indivíduo está a portar drogas cuja efetiva propriedade é de outrem, que pode ter conferido àquele a incumbência de adquirir ou guardar, temporariamente a droga.

No que se refere à natureza da droga, essa autora (2007, p. 251) parte da premissa de que esse critério não deve ser analisado isoladamente, fazendo-se imprescindível a apreciação juntamente com a quantidade de substância apreendida. Nessa acepção, a mencionada autora dispõe que:

A natureza e a quantidade são critérios que devem ser pontuados conjuntamente, pois, a segunda está, essencialmente, atrelada à especificidade de cada substância. Assim, por exemplo, 100 gramas de cannabis (maconha) poderá ser considerado uma quantidade razoável para um usuário diário desta substância, o mesmo não podendo ser dito em face da cocaína ou heroína, cuja quantidade necessária para se obter o resultado esperado, bem como o seu nível de tolerância, é muito menor do que o da cannabis. A quantidade só será exorbitante, portanto, em face da natureza da substância em particular.

Ainda com fundamento no que entende Vilar Lins (2007, p. 251), em seus estudos sobre os critérios constantes do § 2º do art. 28 da Lei de Drogas, ao discorrer sobre o local e a condição em que desenvolve a ação de confisco da substância ilegal, assevera que:

O local e a condição em que ocorreu a apreensão formarão o cenário e o enredo em que estava inserido o usuário no momento em que foi flagrado. A doutrina fala, por exemplo, em locais em que, normalmente, são vendidas drogas, zona típica de tráfico. É conveniente ressaltar, entretanto, que, se existem essas zonas é porque também existem os usuários que lá transitam; assim, a presença de indivíduos neste loco não é razão suficientemente para enquadrá-lo no tráfico.

A autora verbera ainda sobre as características pessoais e sociais do agente, sua conduta e antecedentes, quando explicita ( 2007, p. 251) que:

As características pessoais e sociais do agente, segundo a lei, também devem ser analisadas pelas autoridades. Dessa maneira, a atividade que o sujeito desenvolve, seu processo histórico, como se dão suas relações, qual sua fonte de renda e patrimônio são características que, em conjunto, formam o que Luiz Flávio Gomes (2006) denominou de modus vivendi do agente.

Esse critério é um dos mais criticados pela doutrina, pois, nesse momento, entra em cena o princípio da seletividade, isto é, na maioria das vezes, apenas as pessoas marginalizadas é que terminam sendo punidas pelo sistema penal. Nessa esteira, Vilar Lins (2007, p. 251) faz sua crítica, expondo que:

A investigação desse ponto deflagra um série de preocupações quanto à sua aplicabilidade e efetividade, em razão da quase iminente e cristalina possibilidade de se acabar atingindo apenas aqueles indivíduos pertencentes a população carente, residentes em favelas e subúrbios.

Na mesma linha de pensamento delineada acima é o entendimento de Arruda (2007, p. 31), segundo o qual:

Tais critérios precisam ser aplicados com especial atenção. Não nos parece adequado que sejam levados em consideração os ‘antecedentes’ ou a ‘conduta social’ do agente como elementos idôneos à verificação da ocorrência de um ou outro delito. Tomando-se essa orientação ao pé da letra serão condenados e presos por tráfico os ‘suspeitos de sempre’, não sendo lícito partir de uma posição pré-concebida de que havendo praticado um delito de tráfico, aquele agente forçosamente voltará a cometê-lo, ou mesmo que tenha mais propensão ao ilícito do que qualquer outra pessoa. Cria-se assim uma rotulação perigosa dos indivíduos. Deixa-se de analisar o fato criminoso objetivamente para realizar uma apreciação subjetiva do agente.

Após discutir sobre os critérios elencados no § 2º do art. 28 da Nova Lei de Drogas, Vilar Lins (2007, p. 252/253) faz uma análise em relação à aplicação da lei para as pessoas que estão à margem da sociedade.

Nesse sentido, segundo a autora,

A atenção, no momento de averiguação destes critérios, quando a autoridade estiver diante de um sujeito miserável, é imperiosa. A análise deverá ser sopesada levando em consideração, sim, a sua realidade e problemática social, mas não para imputar ainda maior lesão ao cidadão, fazendo com que a sua condição social sirva não só de mola propulsora ao encaminhamento ao uso de drogas, bem como seja a própria navalha, apta a lhe proferir novo golpe. A miserabilidade econômica e social de um indivíduo não pode se tornar, ao mesmo tempo, o motivo de seu sofrimento diário e o argumento para concebê-lo como criminoso, sob pena de estar-se a violar a própria política de prevenção trazida pela Nova Lei de Drogas que resguarda uma proteção acrescida aos vulneráveis.

O entendimento da autora, esclareça-se, não se opõe à norma e sim, em à aplicabilidade dos referidos critérios. Desse modo, seu posicionamento, defendendo que:

O estabelecimento de exemplos de situações que deverão ser investigadas para defrontar em qual delito está a incidir o agente é a solução menos arbitrária, pois, de alguma forma, a decisão deverá partir de critérios pré-estabelecidos pelos quais as autoridades, obrigatoriamente, deverão caminhar, na fundamentação de sua decisão. Apenas, aqui se alerta para a aplicabilidade destes critérios, em razão das profundas e abismais diferenças de padrão social e econômico dos indivíduos no Brasil.

As diversas opiniões da doutrina aqui debatidas em redor dos critérios diferenciadores entre o traficante e o usuário na Nova Lei de Drogas, levam à percepção, ainda que inconclusiva, de que a análise desarrazoada desses dispositivos, pelos aplicadores do direito, pode levar a uma série de consequências penosas aos seus destinatários. Isso porque, a partir desses protagonistas e de suas histórias de vida, da forma como fazem a leitura do mundo e das pessoas, das ideologias que adotam nas suas manifestações, pode ocorrer uma penalização onde o alvo principal será apenas a população marginalizada, vista pela sociedade como costumeira infringidora da lei.


5 REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE OS DISCURSOS DO JUDICIÁRIO DE FEIRA DE SANTANA DIANTE DO USUÁRIO E DO TRAFICANTE: UM ESTUDO DE CASO

Para um melhor entendimento sobre o tema abordado, faz-se mister uma análise de três casos concretos, a fim de que se compreenda como tem sido o posicionamento do Poder Judiciário na Comarca de Feira de Santana em relação à problemática trazida pela Nova Lei de Drogas.

O objetivo desse momento metodológico é proceder a algumas reflexões críticas com relação aos discursos da magistratura quando decidiram pela condenação dos protagonistas dos casos apreciados, neste estudo.

Nesse contexto, é importante ressaltar a qualidade do que revelam esses atores do sistema criminal, através da sentença ainda que tenham silenciado a respeito de determinadas crenças ideológicas que são próprias da história de vida de cada um desses atores.

Essa importância das falas (e dos silêncios) se respalda em Orlandi (2003, p. 83), quando argumenta que "o discurso não é apenas o dito, mas também se apresenta pelo não-dito, por ‘formas de silêncio’ que atravessam as palavras, que ‘falam’ por elas, que as calam."

A análise dos discursos desses magistrados é relevante para fundamentar a hipótese aqui defendida, no sentido de que os critérios diferenciadores entre usuário e traficante, de acordo com a Lei nº 11.343/2006, não são aplicados de modo uniforme no momento da prolação das sentenças. Isso porque, ora os juízes ignoram esses aspectos e dele não se apropriam nos seus julgamentos, ora utilizam esses dados de modo incompatível com as prescrições a seu respeito.

É certo que este estudo, até mesmo por sua proposta crítica, não estaria a desconhecer o princípio da individualização da pena, portanto, não é sobre essa garantia constitucional que se está debatendo.

O que se discute é que essa aplicação da Nova Lei de Drogas, ora omissa, ora inadequada, parece se submeter às ideologias e ao modo de interpretar o mundo de cada "operador do direito". E isso, certamente, termina por desigualar os sujeitos que estão sob julgamento, e que têm suas condutas denominadas ilícitas examinadas, às vezes, à luz do "direito penal do autor" e não, do "direito penal do fato", o que prejudica a própria crença na lei e no Direito.

Por fim, analisar o discurso proveniente dos órgãos de controle social formal, no caso, dos magistrados, significa, como expressa Miaille (1994, p. 33),. compreender os fenômenos que envolve esse discurso na sua concepção de "um corpo coerente de proposições abstractas implicando uma lógica, uma ordem e a possibilidade não só de existir, mas, sobretudo, de se reproduzir, de se desenvolver, segundo leis internas próprias".

Por isso, a importância de se desvendar o que falam essas sentenças e quais as perspectivas de reprodução de seus conteúdos, que podem, sim, se constituírem graves riscos para os destinatários das leis aplicadas pelos autores de tais discursos.

Nessa perspectiva é que se passa ao exame crítico dos casos selecionados e dos discursos que os movem.

CASO 01 - Processo nº 2475626-3/2009

N.M.S., brasileiro, solteiro, pintor autônomo, natural de Feira de Santana/BA, nascido em 21/03/1972, residente nesta cidade, foi denunciado pela prática do seguinte ato delituoso:

Conforme consta do inquérito policial nº. 010/2009, no dia 2 de janeiro de 2009, por volta das 16h, prepostos da Polícia Militar prenderam em flagrante delito o denunciado, em razão de ter sido encontrado em seu poder, a quantidade de 577 (quinhentas e setenta e sete) "trouxinhas" e 485 (quatrocentos e oitenta e cinco) "dolões" (papelotes), contendo 3.280g (três mil duzentos e oitenta gramas) da substância entorpecente conhecida como "maconha", pronta para comercialização, bem como 01 (uma) balança eletrônica, 10 (dez) tesouras, 01 (um) celular, 20 (vinte) maços de papel de seda e 01 (uma) motocicleta Honda, conforme auto de exibição e apreensão de fl. 07 e Laudo Pericial de fl. 12.

O Representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra N. M. S, dando-o como incurso nas sanções do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

No caso em tela, a materialidade do fato delituoso, para o magistrado, segundo se depreende da decisão condenatória de fls. 75/79, resultou comprovado através do auto de exibição, de apreensão, dos laudos provisório de constatação e definitivo, onde se pode verificar que a substância apreendida em poder do acusado e achada numa casa nas proximidades de sua residência, se tratava de substância entorpecente vulgarmente conhecida como "maconha", de uso proscrito no país e constante na Lista F-2 da portaria 344/98 do Ministério da Saúde.

Apesar de a autoria ter sido negada pelo acusado, por ocasião dos depoimentos prestados em juízo, o fato foi efetivamente praticado por N.M.S, como fica demonstrado a partir dos depoimentos prestados em Juízo às fls. 75/79.

Ao ser interrogado, o réu negou que a droga lhe pertencesse, mas admitiu ter envolvimento com o tóxico por já ter feito uso da maconha no passado.

As testemunhas confirmaram que a droga foi apreendida na casa abandonada próximo à residência do acusado. De acordo com o depoimento da 1ª testemunha, um dos policiais que efetuou a diligência, esse imóvel foi aberto pelo próprio acusado, com uma chave que estava em seu próprio chaveiro, ou seja, na mesma penca de chaves onde estava a chave da residência do acusado. Nessa ocasião, o acusado declarou que recebia semanalmente a maconha procedente de Juazeiro.

A 2ª testemunha, também policial que efetuou a diligência, afirmou que a prisão se deu porque encontraram o acusado com certa quantidade de maconha em forma de trouxinhas não especificando essa dose, mas que na casa do acusado não foi encontrada droga.

A última testemunha, igualmente agente policial que participou da diligência, garantiu que a quantidade de droga encontrada com o acusado era pequena e que o próprio acusado assumiu como sua. Na casa do acusado não encontraram drogas, e sim um celular e uma moto estacionada na rua.

Após análise desse conjunto de provas, o juiz concluiu que o depoimento das testemunhas ouvidas na fase policial e depois em Juízo harmonizavam-se com o interrogatório do acusado, no sentido de que a droga apreendida quando da sua prisão era de pequena quantidade. Entendeu ainda que o restante da droga encontrada numa casa abandonada, não habitada, e que o interrogado afirmou não lhe pertencer e nem saber quem era o verdadeiro dono, poderia ser do acusado ou de outras pessoas, pois a prova testemunhal, em nenhum momento, afirmou que esta droga pertencia ao acusado, ainda que ele próprio tenha levado os policiais até esta casa abandonada.

Não foram arroladas testemunhas de defesa, embora tenha sido apresentada a defesa prévia pelo defensor constituído pelo réu, informando que a casa era habitada por um casal que depois da separação se mudou para outra localidade, juntando inclusive fotos tiradas da casa numa prova de que esta era habitada e não abandonada.

O exame dos autos deixou claro, para o magistrado, que a maior quantidade da droga não foi apreendida com o acusado, mas em uma casa que não lhe pertencia.

A tese da defesa, segundo o magistrado, em parte mereceu guarida, tendo em vista que a maior quantidade da droga não foi apreendida com o acusado e sim numa casa abandonada e em nenhum momento a prova testemunhal afirmou que esta droga era do acusado. Além disso, ele não vendia droga no momento de sua prisão, assim como a quantidade de droga encontrada em seu poder era pequena.

Apesar disso, o juiz apontou para o fato de que o crime de tráfico de drogas possui ação múltipla, não fazendo a Lei qualquer distinção entre o ato de trazer ou guardar drogas com o ato de vender propriamente dito.

Assim, o conjunto probatório constante dos autos levou à conclusão de que o denunciado ao ser preso trazia certa quantidade de droga consigo, o que se conclui que tenha praticado a conduta descrita na lei como tráfico de entorpecente, evidenciando o destino da droga apreendida em seu poder, desprezando-se a outra quantidade apreendida em casa abandonada.

Esses argumentos fizeram com que fosse julgada procedente a denúncia de fl. 02, para condenar o denunciado como incurso nas penas do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006.

A análise do discurso judicial tem significativa importância dentro do contexto desse estudo de caso. Como se percebe, neste processo, o réu, apesar de ter sido encontrado com "pequena quantidade" de drogas, como diversas vezes reafirmado na sentença condenatória emanada do Juízo da Vara de Tóxicos da Comarca de Feira de Santana e ao longo de todas as peças trazidas aos autos, terminou por ser enquadrado no crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da Lei nº. 11.343/06.

O equívoco no enquadramento da conduta praticada pelo réu com o delito de tráfico de drogas é evidente. Vejam-se as falas dos autos:

A segunda testemunha ouvida em Juízo declarou que o acusado foi encontrado com "certa quantidade" de maconha, não especificando em nenhum momento a quanto equivaleria essa "certa quantidade".

A última testemunha, por seu turno, assegurou que a quantidade de droga encontrada com o acusado "era pequena". Ora, se a "certa quantidade" de droga relatada pela segunda testemunha "era pequena", como relata a última testemunha, qual o critério objetivo do magistrado para dar a essas falas o significado que baste à classificação da conduta do acusado como tráfico de drogas?

Afinal, a interpretação dada pelo juiz à "certa quantidade" de maconha encontrada em poder do réu tem um significado que, no discurso com o qual condena esse sujeito, se traduz por uma quantidade suficientemente capaz de se prestar ao comércio, mais que ao simples uso da substância. Tanto é verdade que entendeu tratar-se de tráfico de drogas. Apesar da indefinição, os termos "certa" e "pequena", avaliados de modo subjetivo pela polícia e pelo Ministério Público, foram depois confirmados pelo juiz.

Nesse momento, poder-se-ia pensar então nas drogas encontradas na casa abandonada. Ali haveria quantidade e equipamentos suficientes para configurar-se o delito de tráfico. Observe-se, nesse sentido, que o próprio magistrado asseverou que "há de se presumir que o restante da droga encontrada na casa abandonada poderia ser do acusado ou de outras pessoas, pois a prova testemunhal em nenhum momento afirmou que esta droga pertencia ao acusado". (Grifamos)

A propósito dessa fala, fica a observação de que, a princípio, parece que o magistrado não se arriscou a condenar por mera "presunção", o que é vedado por lei e pelo entendimento jurisprudencial. Logo, o significado atribuído ao "restante da droga" encontrada no local abandonado, nenhuma repercussão teria na sentença, que optou pela "certa quantidade".

Essa análise da fala do magistrado pode ser confirmada quando, ainda na sentença, aduz que "claro restou que a quantidade maior da droga não foi apreendida com o acusado, pois a mesma estava em uma casa que não pertence ao acusado". E, para aniquilar quaisquer dúvidas quanto à questão, o magistrado, no momento de enquadrar o denunciado como traficante fez questão de esclarecer que "a certa quantidade de droga" que o acusado trazia consigo era suficiente para classificar a sua conduta como tráfico, "desprezando-se a outra quantidade apreendida em casa abandonada".(Grifamos)

No entanto, no discurso expresso na sentença, de que o denunciado, "efetivamente, ao ser preso, trazia certa quantidade de droga o que se conclui tenha praticado a conduta descrita na lei como tráfico de entorpecente" (grifamos), o Poder Judiciário decidiu com suporte em mera presunção. Isso porque em nenhum momento ficou afirmado que o acusado foi flagrado "vendendo droga", ou qualquer outro tipo do caput do art. 33.

Ora, a doutrina e jurisprudência são diametralmente opostas à tese sustentada pelo magistrado. Assim, Nucci (2009, p. 308) assegura que o agente que traz consigo pequena quantidade de droga, sendo primário e sem qualquer antecedente, permite a conclusão de se tratar de mero usuário. De modo igual se posiciona a jurisprudência pátria:

EMENTA: TRÁFICO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE -PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INAPLICABILIDADE - TRÁFICO NÃO CARACTERIZADO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não havendo prova robusta da mercancia realizada pelo agente da droga apreendida, deve ser procedida a desclassificação para o crime de posse de substância entorpecente para consumo próprio. (Grifamos)

(TJ-MG Número do processo:1.0278.06.002393-6/001(1), Número CNJ: 0023936-52.2006.8.13.0278, Relator: Alexandre Victor de Carvalho, Relator do Acórdão: Maria Celeste Porto, Data do Julgamento: 24/03/2009, Data da Publicação: 06/04/2009).

Constata-se, assim, que o acusado terminou sendo julgado e condenado como traficante tão somente devido ao fato de ter sido encontrado com uma "pequena quantidade" de drogas, que em nenhum momento foi devidamente especificada durante o curso do processo. Se a quantidade era pequena, também de menor valor deveria ser sua acepção, para, desse modo, se distanciar do sentido de tráfico, exatamente ao revés do que fora deduzido pelo magistrado.

Além disso, não foram analisados, na sentença condenatória, quaisquer dos outros critérios determinados pelo art. 28, § 2º da Lei de Drogas para diferenciar o usuário do traficante. Essa evidência leva à conclusão de que o discurso do magistrado, quanto à conduta do réu, se revelou superficial, sem interpretar ao menos de modo mais crítico, a "certa e pequena" quantidade de maconha apreendida em poder do acusado, que foi condenado pelo delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006.

Outro registro deve ser feito a partir do exame da fala do magistrado, expressada na sentença que se estuda. Parece, no mínimo, um contra-discurso, o fato de a sentença que condena ser a mesma que reconhece ser o acusado "primário, pai de família, domicílio certo, profissão definida, ter sido pequena a quantidade de droga apreendida consigo quando de sua prisão, não registrando antecedentes criminais, não havendo nos autos indícios de que se dedique a atividade criminosa. (Grifamos)

Desse modo, a contradição do discurso do magistrado é clara não só quanto à abstração do significado da quantidade da droga que originou a condenação do acusado, como ainda quanto ao reconhecimento da história do protagonista desse caso não registrar hábitos na atividade criminosa. Ainda assim, a condenação por traficância ilícita.

CASO 02 - Processo nº 1397533-4/2007

L. D. A., brasileiro, casado, natural de Touros/RN, nascido em 30/05/1971, endereço não informado, 1º grau incompleto foi denunciado pela prática do seguinte ato delituoso.

Conforme consta do inquérito policial nº. 003/2007, no dia 11 de janeiro de 2007, por volta das 22h, na BR-324, KM-521, em frente ao Restaurante Minuano, prepostos da Polícia Rodoviária Federal prenderam em flagrante delito o denunciado acima qualificado, transportando, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ½ Kg (meio quilo) de cocaína e portando a quantia de R$ 9.400,00 (nove mil e quatrocentos reais), tudo devidamente apreendido e a droga constatada preliminarmente.

O Representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra o indiciado, dando-o como incurso nas sanções do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

Interrogado na Delegacia, o denunciado afirmou que a droga não lhe pertencia, porém confessou estar transportando a pedido de um caminhoneiro, M.S. que também forneceu o dinheiro apreendido para entregar a uma pessoa, M. C. M., que aguardaria no Largo do Tanque, em Salvador e lhe faria o pagamento de R$ 600,00 (seiscentos reais) acertado pelo transporte.

Em Juízo, o denunciado mais uma vez negou ser proprietário da droga, afirmando que não estava portando a citada substância, sendo que somente estava na posse do dinheiro encontrado. Tal dinheiro teria sido enviado por seu irmão para efetuar a compra de um carro. Declarou ainda que a droga apreendida foi encontrada em um matagal pelos policiais, não sabendo declarar a quem pertencia, mas chegando a informar que o dono do carro sabia de sua existência, mas contudo, não foi preso pelos policiais.

Informou ainda que todas as declarações prestadas na polícia decorreram de imposição das autoridades policiais e do medo da tortura que estava por sofrer tanto assim que assumiu estar transportando o entorpecente.

As testemunhas de acusação, policiais rodoviários federais, declararam em Juízo que no dia do fato efetuaram a abordagem do veículo Gol, onde estavam o acusado e mais cinco pessoas, sendo que, no assoalho do referido veículo, foi encontrada a droga apreendida. Contudo, uma vez que nenhum dos ocupantes do veiculo assumiram a posse do entorpecente, os policias inquiriram essas pessoas até que o telefone celular do acusado tocou e, um dos policiais, simulando ser o acusado, confirmou a partir das declarações prestadas pelo receptor da droga que era L., o portador do entorpecente. Nesse momento foi dado voz de prisão e L. foi conduzido à Delegacia Especializada.

O policial rodoviário federal que testemunhou, em consonância com as declarações prestadas pelos outros policiais, declarou que um dos passageiros afirmou ter sido o acusado quem colocou a droga no assoalho do carro, bem como informou que o acusado disse estar transportando a droga a pedido de um caminhoneiro, sendo que o destino do entorpecente era a cidade de Salvador.

A testemunha de defesa, J. N. C., declarou que o acusado veio até esta cidade para realizar a compra de um carro, aduzindo ainda não ter nenhum conhecimento de que o acusado estivesse envolvido com o tráfico de drogas. A segunda testemunha de defesa, J. M. S. A., também atestou a boa conduta do apenado e o total desconhecimento de que o mesmo tivesse envolvimento com o tráfico.

Diante de tais provas produzidas, conclui-se que o réu praticou o delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, em sua forma de transportar substância de uso proscrito no país, vez que as provas testemunhais produzidas não deixam margem para a dúvida no decreto condenatório. Ademais, esmiuçando as provas produzidas, em especial a prova testemunhal e pericial produzidas, verifica-se que as declarações prestadas pelo acusado durante a fase extrajudicial amoldam-se perfeitamente com as declarações prestadas pelas testemunhas de defesa, assim como o dinheiro apreendido da subsídios para entende-los de propriedade do traficante "M. S." citado pelo acusado em seu depoimento extrajudicial.

Disso registre-se ainda que o acusado informou ser operador de escavadeira, com remuneração de R$ 700,00 (setecentos reais), atualmente em gozo de benefício previdenciário no valor de R$ 280,00 (duzentos e oitenta reais), fatos que excluem a possibilidade dos valores serem do acusado oriundo de atividades lícita do acusado.

No mais, as alegações do acusado de que o proprietário do valor em dinheiro encontrado era seu irmão, somente foram atestados pelo acusado e por uma testemunha de defesa, não vindo sequer o irmão do acusado, proprietário da quantia apreendida, peticionar no feito, trazendo a comprovação da origem lícita do dinheiro, a fim de reivindicá-lo, o que, por conseguinte, extrai qualquer chance da aquisição lícita da quantia apreendida. Assim, conclui-se, também, que a quantia de R$ 9.400,00 (nove mil e quatrocentos reais) apreendidas é fruto do tráfico de drogas exercido pelo acusado.

"Diante do exposto julgo procedente a pretensão estatal e via de conseqüência condeno L. D. M., o acusado pela prática do delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, na modalidade transportar e trazer consigo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar."

Assemelha-se o evento ora em análise ao apreciado no caso antecedente, na medida em que ambos tratam de condenações atinentes à alegação de crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Não obstante, esses casos diferem em relação ao exame efetuado por cada magistrado no momento de avaliar os critérios diferenciadores estabelecidos no § 2º do art. 28 da Lei de Drogas, sobretudo no que alude à quantidade de substância ilícita encontrada com o agente quando de sua apreensão.

Enquanto no caso 01, bastou ao julgador a menção de "pequena quantidade de drogas" para enquadrar o agente como traficante, no presente caso o magistrado foi mais criterioso, buscou, em sua fundamentação, precisar especificamente a quantidade de substância psicoativa apreendida, qual seja ½ kg (meio quilo) de cocaína, sustentando, pois, de modo mais coerente o enquadramento do acusado no crime disposto no art. 33 da Lei de Drogas.

Muito embora seja mais aceitável o discurso do último magistrado ao cotejar a sua fundamentação com a disposta na ação penal alusiva ao caso 01, faz-se necessário avaliar meticulosamente se este julgador realmente valeu-se de todos os aspectos encontrados na Lei para diferenciar o usuário do traficante.

No que se refere às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente, pode-se afirmar que o magistrado olvidou de ponderar acerca de tais premissas, apenas considerando-as em momento posterior, quando da dosimetria da pena na análise dos aspectos dispostos no art. 59 do CP.

Não se pode negar que a fundamentação deste caso tem maior consistência quanto aos fundamentos do discurso do magistrado. Parece, à leitura do processo, que o juiz prolator se cerca de maiores cuidados no momento de aplicar a Lei nº 11.343/2006. No entanto, não escapa essa decisão condenatória a uma crítica no que se refere ao momento em que o magistrado faz presunções sobre o valor apreendido com o acusado e, diante da ausência de elementos que determinem a origem da quantia, resolve concluir que se trata de "fruto do tráfico de drogas exercido pelo acusado".

Dá esse magistrado, dessa forma, à posse do dinheiro o significado de resultado de uma traficância cujo flagrante não consistiu em mercancia e sim, em posse da droga, apreendida pela polícia federal.

Outra questão que também merece comentário é o fato de também estar incluído no discurso desse magistrado o critério estigmatizando do local do fato, quando expressa, na sentença, que "as circunstâncias do crime, que se resumem no lugar do crime, tempo de sua duração e outros são comuns à espécie, sendo o acusado preso em flagrante".

Indaga-se, quais seriam esses "outros" circunstâncias às ou aos quais se refere o magistrado? Seriam de caráter objetivo, expressas na Nova Lei de Drogas?

A omissão quanto a esses elementos é visível.

Também deve ser objeto de destaque o momento da individualização da pena quando o magistrado apesar de reconhecer que "a culpabilidade do réu não é acentuada", "os antecedentes são presumidamente bons", " a personalidade do agente não traz contornos concretos para que se determine que o mesmo está voltado para o crime de tráfico de drogas", ainda que atribuindo à personalidade do réu esses significados de qualidade, termina por condenar esse sujeito e ainda negar que aguarde o transito em julgado da sentença condenatória em liberdade, "por ser de alta periculosidade o delito" (Grifamos)

CASO 03- Processo nº 1690272-7/2007

O terceiro caso a ser examinado, neste estudo, trata também de condenação por trafico de drogas. Em síntese, o relatório apresentado pelo magistrado expressa o seguinte:

D. J., brasileiro, solteiro, nascido em 13/04/1985, residente e domiciliado nesta cidade, foi denunciado pelo Ministério Público como incurso nas penas do artigo 33 da Lei. 11. 343/2006.

Consta do procedimento investigativo que no dia 13 de agosto de 2007, por volta das 09:30 horas, o denunciado foi preso em flagrante delito na posse de 99 (noventa e nove) "dolões" da substância entorpecentes cannabis sativa (maconha), conforme Laudo Pericial, o que corresponde a um total aproximado de 350,0g (trezentos e cinquenta gramas); bem como a quantia de R$ 3,60 (três reais e sessenta centavos) e um isqueiro.

Autuado em flagrante, foi o acusado notificado quando apresentou defesa sem arrolar testemunhas a seu favor.

Interrogado na audiência do dia 25 de março de 2008, confessou em parte o delito, porem tentou justificar que a droga seria para consumo próprio.

Numa única assentada foi colhida a prova testemunhal da acusação já que o Réu não produziu prova em sua defesa.

Encerrada a instrução o Ministério Publico pediu a condenação do Réu nos termos da denuncia. A defesa, depois de negar a condição de traficante para o acusado, a que atribui ser usuário de drogas, concluiu pedindo a pena mínima face a primariedade do seu cliente.

A materialidade do delito imputado ao Réu, tráfico de drogas, através da maconha, substância de uso controlado e proibido por lei, foi devidamente comprovada através de laudo do exame toxicológico de fl. 40 dos autos.

No que diz respeito à autoria, esta é certa e em parte configurada pelo acusado ao tentar justificar a posse de droga em seu poder tão somente para consumo, apesar da quantidade e forma como acondicionada revelar tratar-se de tráfico.

A presente ação penal é pública incondicionada, detendo o Ministério Público a necessária legitimidade para o desenvolvimento válido e regular do processo que até aqui não apresentou.

Nenhuma nulidade a ser sanada, estando ação pronta para enfrentar o mérito, já que ficou demonstrado a autoria delitiva do tipo penal artigo 33 da citada Lei, uma vez que o acusado foi preso porque trazia consigo, pronto para o comércio, 99 (noventa e nove) dolões de maconha.

Sua informação de ser usuário de drogas e que esta quantidade era de uso pessoal não pode militar em seu favor pois tal quantidade naquele momento da prisão num bairro já bastante identificado como ponto de venda de drogas.

Desta forma, resta devidamente configurado o delito do artigo 33, uma vez que a prova testemunhal da acusação conduz a esta conclusão, e o acusado não ilidiu tal prova, no contrário sequer arrolou testemunhas a seu favor, daí porque se falar em insuficiência de provas da conduta do acusado.

Com essas considerações e tudo mais que dos autos consta, o magistrado julgou procedente a denúncia de fls. 02/03 para condenar a acusado D. J., como infrator do artigo 33 da Lei 11.343/2006.

Este caso também apresenta sintomas de uma prática do Judiciário da Comarca de Feira de Santana, quanto aos critérios estabelecidos pelo novo diploma legal sobre drogas, onde, mais uma vez, o magistrado classificou como tráfico a conduta efetuada pelo indivíduo surpreendido pelos agentes policiais.

Nesse sentido, vale comentar o processo de avaliação do julgador a partir dos significados que imprimiu ao seu discurso, no momento de condenar o acusado.

Neste, como no outro episódio, o magistrado se pautou na quantidade e na forma de acondicionamento da substância apreendida para classificar o comportamento do réu como de traficante de entorpecentes, na medida em que este se encontrava na posse de 99 (noventa e nove) "dolões" de maconha.

Ao discorrer acerca do local e das condições em que se desenvolveu a ação, o magistrado destacou o espaço onde o denunciado foi surpreendido pelos prepostos da polícia militar, salientando que a sua alegação de ser usuário de drogas e de que a quantidade de droga apreendida destinava-se ao uso pessoal "não pode militar em seu favor, pois tal quantidade naquele momento da prisão num bairro já bastante identificado como ponto de venda de drogas" conduziria a evidenciar exatamente o contrário. (Grifamos)

Importa, nesse caso, proceder à análise do significado atribuído pelo juiz ao bairro onde o fato narrado aconteceu que, por puro estigma, foi por esse julgador apontado como um local "já bastante identificado como ponto de venda de drogas". Esse elemento isolado, no entanto, não pode ser entendido como um dado objetivo e apto a condenar alguém por tráfico de drogas, apenas porque esse local seria, na interpretação do magistrado, uma evidência desfavorável a esse sujeito.

Registre-se que a doutrina pátria critica essa forma de entendimento à qual se alinha o juiz, na medida em que o fato de o indivíduo se encontrar em local conhecido popularmente pelo mercado de substâncias ilícitas não pode, per si, conduzir à premissa de tratar-se o cidadão de um traficante.

Nessa linha de pensamento leciona Vilar Lins (2007, p. 251):

A doutrina fala, por exemplo, em locais em que, normalmente, são vendidas drogas, zona típica de tráfico. É conveniente ressaltar, entretanto, que, se existem essas zonas é porque também existem os usuários que lá transitam; assim, a presença de indivíduos neste loco não é razão suficiente para enquadrá-lo no tráfico.

Outro comentário a ressaltar é o que alude aos demais critérios, circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente, tal como ocorreu no Caso 2. Aqui, como ali, pode-se assegurar que o juiz "esqueceu" de ponderar a respeito de tais aspectos, apenas considerando-os em instante ulterior, ao cuidar da dosimetria da pena, valendo-se, para tanto, dos critérios estabelecidos no art. 59 do CP.

A diferença entre um e outro discurso reside em que neste caso, pelo menos, a quantidade de droga apreendida foi certa e especificada, ou seja, 99 "dolões" de maconha, o que se compara a 350 gramas da substância. Ainda assim, não se pode entender como robustas as razões que determinaram o magistrado a condenar o réu por tráfico de drogas, fundamentando sua decisão "na quantidade e forma como acondicionada" a droga.

Outro momento do discurso expresso na sentença condenatória que confirma a aplicação inadequada dos critérios da Nova Lei de Drogas nos julgamentos desses ilícitos se evidencia quando o magistrado, ao individualizar a pena, afirma que "o Réu é primário", "tem domicílio certo", "não é residente no mundo das drogas" (Grifamos), "confessado inclusive a posse da droga apreendida, o que o leva a ter conduta social desviada pela prática do delito de tráfico".

O que se pode constatar a partir desse discurso é a contradição que traz nele próprio quando condena o réu por ter sido preso "num bairro já bastante identificado como ponto de venda de drogas", e, na mesma decisão afirma que o condenado "não é residente no mundo das drogas" (Grifamos).

Essas contradições advindas de modos diversos de significar a traficância certamente, terminam por causar sérios riscos aos destinatários, que não são julgados por parâmetros minimamente hegemônicos, pelo menos quanto aos critérios objetivos das regras que disciplinam esses delitos.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo buscou-se fazer uma abordagem crítica acerca dos aspectos distintivos, dispostos na inovação legislativa constante do § 2º do art. 28 da Lei nº. 11.343/2006, que devem ser utilizados no momento de encaixilhar determinado indivíduo como usuário ou traficante.

Inicialmente, foi realizada uma contextualização histórica da política de drogas, onde se procurou perceber como a sociedade concebeu essas substâncias ao longo da história. Nesse percurso, fez-se uma panorâmica de análise no Brasil e no mundo. Além disso, foi realizada uma abordagem sociocriminológica, onde se discorreu acerca de algumas teorias da pena e as suas ingerências na questão específica das drogas.

Em um segundo momento, fez um estudo sobre a evolução do ordenamento jurídico a versar sobre drogas, desde a Lei Maior, passando pelas Ordenações Filipinas, Códigos Penais brasileiros, até, finalmente, chegar às leis especiais que tratam da matéria.

Partiu-se, em seguida, para o ponto crucial desse trabalho monográfico, onde foi feito um estudo minucioso sobre as inovações trazidas pela Lei nº. 11.343/2006. Nesse instante, buscou-se estudar o usuário, analisando a mudança trazida pelo novel diploma no que atine ao uso, no sentido que não existe mais a pena privativa de liberdade como sanção para a conduta de consumo de drogas.

Foi destacado, ainda, como essa mudança gerou vários posicionamentos a respeito da natureza jurídica da comportamento descrito no art. 28 da Nova Lei de Drogas. Nesse diapasão, foi salientado o entendimento do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual ter-se-ia operado, com o advento do artigo 28 da Lei nº. 11.343/06, uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade, mas não uma redução do tipo para contravenção, criação de uma infração sui generis ou descriminalização (abolitio criminis) do porte de drogas para consumo pessoal, como afirma boa parte da doutrina pátria.

Após o estudo do usuário, fez-se necessário compreender a mudança trazida em relação ao traficante, uma vez que, enquanto por um lado, a Lei foi mais benévola com o usuário, por outro, foi mais severa em relação ao traficante. A maior inovação do atual regramento sobre drogas para a conduta de tráfico foi o aumento da pena, seja privativa de liberdade, seja pecuniária. A pena mínima cominada ao delito foi aumentada de 3 (três) para 5 (cinco) anos, enquanto a pena pecuniária foi elevada de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa para 500 (quinhentos) a 1500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Nesse momento, tornou-se imprescindível estabelecer a relação entre usuário e traficante, visto que o presente trabalho buscou analisar a aplicação dos aspectos diferenciadores de maneira a compreender como esses critérios são utilizados para diferenciar o uso do tráfico.

Finalmente, visando a melhor inteligência do estudo monográfico, fez-se necessária a realização de um estudo de caso, onde foram avaliados os discursos em três processos da Comarca de Feira de Santana, objetivando averiguar como o Poder Judiciário, a partir da aplicação do § 2º do art. 28 da Lei nº. 11.343/2006, vem julgando em cada caso concreto se a conduta praticada pelo agente corresponde ao uso ou ao tráfico.

A opção pela análise de discurso se fez com base na autoridade com que se manifestam os que falam e na repercussão dessas falas para a reprodução do sistema. De acordo com Orlandi (2003, p. 40-41), os discursos atuam a partir de determinados fatores, interessando aqui o que se refere à relação de forças, significando que "podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz". E exemplifica: "[...] se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno". "[...] a fala do professor vale (significa) mais do que a do aluno".

Nesse sentido é que reside o perigo dos discursos do judiciário, por sua efetiva possibilidade de fazer com que suas palavras signifiquem um modo diferente a partir do lugar que falam e da autoridade com que falam.

Por fim, com base nas discussões teóricas, na abordagem da normativa sobre a matéria e na análise dos discursos contidos nas decisões condenatórias foi possível demonstrar não só omissão como ainda inadequação na leitura dos critérios diferenciadores entre o usuário e o traficante na Lei nº 11.343/2006.

Esse mau emprego dos aspectos dispostos no § 2º do art. 28 da Lei de Drogas caracterizou-se, precipuamente, pela omissão na aplicação de alguns critérios ali estabelecidos, bem como pelo modo como os critérios são empregados, de maneira a selecionar quais indivíduos serão penalizados, fundamentando-se tal seleção basicamente a partir da quantidade de droga encontrada, do local onde ocorreu o fato e das condições pessoais e sociais do agente.

Desse modo, pôde-se constatar que determinadas pessoas estarão mais predispostas a serem criminalizadas pelo tipo penal do tráfico, em razão de sua condição social, arraigada em nível mais desvalorizado da população, suscetível, pois, à apreensão seletiva da polícia e dos magistrados.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Daniela Araújo dos Santos. O usuário e o traficante na Lei nº 11.343/2006. Reflexões críticas sobre os aspectos diferenciadores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2775, 5 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18435. Acesso em: 19 abr. 2024.