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Investigação de "casamentos brancos" e a reserva da intimidade da vida privada.

Uma análise do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de dezembro de 2009

Investigação de "casamentos brancos" e a reserva da intimidade da vida privada. Uma análise do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de dezembro de 2009

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Analisa-se um acórdão de tribunal de Lisboa sobre o pedido de autorização de residência em território português em virtude do casamento de uma cidadã do Brasil e um cidadão de Portugal, à luz dos princípios da reserva da intimidade e vida privada e familiar.

SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO. 2.PRINCÍPIO DA RESERVA DA VIDA PRIVADA E FAMILIAR. 2.1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO. 2.1.1. DO HABEAS DATA AO BIG BROTHER: A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA DA RESERVA DA INTIMIDADE. 2.2. ENQUANDRAMENTO LEGAL. 2.2.1. PLANO INTERNACIONAL. 2.2.2. PLANO NACIONAL. 2.3. ESTRUTURA DO PRINCÍPIO DA RESERVA DA VIDA PRIVADA.3.CASAMENTOS BRANCOS. 4.ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL DE 17 DE DEZEMBRO DE 2009.. 4.1. PONTOS (FATOS) PRINCIPAIS DO ACÓRDÃO. 4.1.1.MATÉRIA DE FATO. 4.12.ALEGAÇÕES DA AUTORA. 4.1.3MATÉRIA DE DIREITO. 4.2.ANÁLISE DO ACÓRDÃO. 5.CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA. LEGISLAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA

RESUMO: Este artigo é fruto da análise do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (situado em Lisboa) de 17 de Dezembro de 2009, sobre o pedido de autorização de residência em território português em virtude do casamento de uma cidadã de país terceiro (Brasil) e um cidadão nacional (Portugal), estando ligado a esta situação a análise do Principio da Reserva da Intimidade e Vida Privada e Familiar, verificando se há um respeito pelo princípio quando na prática a Administração através de seus órgão deverá decidir se concede ou não o direito a residir em solo português. Sendo então necessário um profundo estudo do conteúdo do Princípio da Intimidade, que ocorre em uma primeira fase do artigo, para em seguida analisar o acórdão em si e a aplicação do princípio ao mesmo. Através deste artigo se poderá também conhecer um pouco do procedimento intrínseco a esta situação a que todos os estrangeiros, em especial àqueles que não têm nacionalidade de um Estado-Membro da União Européia estão sujeitos.

"Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada…"

(Art. 12º Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948)


1.INTRODUÇÃO

O presente artigo incide sobre a análise do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17 de Dezembro de 2009, situado em Lisboa, Portugal, cujo tema é a Investigação de "Casamentos Brancos" e o Princípio da Reserva da Vida Privada.

O acórdão visa a apreciação de um recurso a uma sentença de 1ª Instância (Tribunal Administrativo de Círculo), em que foi negado o pedido de autorização de residência a uma cidadã não membro de um país da União Européia, em concreto, uma cidadã de nacionalidade brasileira, em virtude de ser casada com um cidadão membro, de nacionalidade portuguesa.

Além deste foco analisado no acórdão, a questão central deste artigo envolve a análise do Princípio da Reserva da Intimidade e da Vida Privada e Familiar, consagrada no art. 26º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e art. 80º do Código Civil Português (em seguida apenas, CC).

Sendo assim, faz-se mister um primeiro entendimento do que seja o Princípio da Reserva da Intimidade da Vida Privada e Familiar, o seu percurso histórico e entendimento seja no passado seja no presente, para assim podermos compreender a sua aplicação ao acórdão e verificarmos se há uma plena aplicação de direito do mesmo ou se estamos diante de uma violação a Reserva da Vida Privada.


2.PRINCÍPIO DA RESERVA DA VIDA PRIVADA E FAMILIAR

2.1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO

Para uma melhor compreensão do alcance, sentido e limitação da Reserva da Intimidade é preciso ir à sua gênese que remonta ao século XIV, marcado por crise em toda a Europa, pois é o período de aceleramento e decadência do Feudalismo que historicamente marca o fim da Idade Média na Europa Ocidental. Em Portugal vivenciamos a crise de sucessão após a morte de D. Fernando (1345 - 1383), que deixa como herdeira Beatriz, de Portugal, casada com João I de Castela, o que implicaria uma perda de independência caso a mesma subisse ao trono. O que dá origem a um ano depois à Batalha de Aljubarrota (1385), com a vitória do Mestre de Avis, que recebe o título de D. João I, iniciando a Dinastia de Avis.

É em meio a esta esfera de crise política e econômica que temos juridicamente reconhecida o que seria a primeira manifestação do Princípio da Intimidade, o Caso I. de S. et uxor v. De S., que data de 1384 em França:

"O réu propondo-se comprar vinho de madrugada, batera à porta da taberna, propriedade dos autores. Como o não atendessem, golpeara com uma machada o batente da janela da casa daqueles, em consequência do que foi condenado a pagar uma indemnização pelos «males» causados, embora no processo se não houvesse logrado provar qualquer dano material, além do resultante da destruição do batente." [01]

Outro caso precursor remonta a Inglaterra Vitoriana, séc. XIX, auge da Primeira Revolução Industrial, com o Caso Prince Albert v. Strange, em que o Príncipe Albert marido da então Rainha Vitória,

"obteve uma injunction contra […] Willian Strange, o qual adquirira cópia de desenhos e gravuras que a Rainha e o príncipe haviam feito para seu exclusivo divertimento e tencionava expor ao público tais reproduções e vender um catálogo com a respectiva impressão e descrição" [02].

Foram estes durante muito tempo, em particular nos países da Common Law, designados como as primeiras manifestações do Princípio ou Direito à Privacidade, contudo ao analisarmos hoje essas decisões, concluímos que fundam-se em verdadeiras violações ao direito de propriedade, sobre a casa e sobre os desenhos/gravuras respectivamente.

Entretanto, parece ser indiscutível para a doutrina que a origem do Princípio da Reserva da Vida Privada tem como ponto de partida o artigo de título "The Right to Privacy" publicado pela revista Harvard Law Review em 1890 nos Estados Unidos da América. O artigo foi de autoria de dois advogados, Samuel Warren e Louis Brandeis (que tornou-se juiz do Supremo Tribunal Federal) em que o fato subjacente foi a publicação de uma crônica no jornal de Boston na qual divulgava a lista dos convidados do casamento e pormenores da cerimónia da filha de Warren. O estudo alertava para o perigo dos jornais de grande circulação e defendiam que "[…] a Common Law teria evoluído da protecção da personalidade física, para a tutela dos «pensamentos, emoções e sensações do individuo»" [03], atribuindo ao ofendido o direito à indenização por danos.

Distante deste fato, em 1902 em NovaYork (EUA), o Caso Roberson v. Rochester Folding Box Co., no qual a Court of Appeals de Nova York "[…] indeferiu o pedido de indemnização da Srª. Roberson cuja imagem ilustrara, sem a sua autorização, anúncios de uma determinada marca de farinha" [04]. A tese de Warren foi rejeitada mas a partir desse caso surge uma lei no Estado de Nova York que sancionava a utilização não consentida e para fins publicitários, da imagem ou nome de uma pessoa.

No Estado da Geórgia (EUA) em 1905, temos o Caso Pavesich v. New England Life Insurance Co. A Companhia de Seguros New Engand "[…] foi condenada a pagar uma indemnização ao Sr. Pavesich cuja imagem fora publicada juntamente com depoimento que lhe era falsamente atribuído, e em que recomendava, vivamente, ao público a celebração do contrato de seguro […]" [05] com a empresa. Em consequência o Supremo Tribunal do Estado da Geórgia decidiu que o direito a privacidade existia e que o ofendido tinha direito à indenização.

Podemos assim concluir que o Princípio da Reserva da Vida Privada decorria indirectamente da "[…] protecção legal do nome, da imagem, da honra e da liberdade e segurança individual […]" e ganha autonomia na época da chamada "civilização industrial" [06], em que temos a criação das técnicas de fotografia e impressa em larga escala, aparecimento do aparelho de telefone e telégrafo, possibilitando maior difusão das técnicas de informação e crescimento urbano.

Até a década de 70 do séc. XX, domina a expressão "right to be alone" cunhada pela primeira vez pelo juiz federal Thomas Cooley, porém hoje tal expressão encontra-se em crise por ser considerada demasiada individualista.

Atualmente, o Direito à Intimidade encontra-se influenciado pelo "The Right to Privacy" da literatura anglo-saxônica, traduzindo a ideia de direito à vida tranquila, direito ao anonimato contra a ingerência legítima e arbitrária, contudo tem uma compreensão mais ampla do que a concepção portuguesa, pois tem sido do entendimento dos tribunais norte-americanos que é de interesse deste princípio assuntos como o direito a abortar, a eutanásia, a usar cabelos compridos como cita Rita Cabral (1988) em sua obra, elevando assim os Estados Unidos a serem considerados a "[…] pátria da protecção legal autónoma da vida privada […]" [07].

Em Portugal, temos o entendimento conforme o Parecer da Procuradoria-Geral da República, nº 121/80, de 23 de Julho de 1981 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 309, pág. 142):

" […] a intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, compreende aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e até, por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a natureza dos cargos e a elevação das posições sociais: em suma, tudo: sentimentos, acções e abstenções que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que delas faz o público em geral" [08].

É portanto necessário apurar os limites e extensões da vida privada. Sabendo que estamos diante do dilema entre a dicotomia interesse público e interessa privado.

2.1.1.DO HABEAS DATA AO BIG BROTHER: A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA DA RESERVA DA INTIMIDADE

Como ponto autônomo na análise do Acórdão, aproveitando o ensejo do item anterior (Evolução Histórica do Princípio da Reserva da Intimidade) o estudo nos leva a aclararmos determinados pontos. Falamos da chamada "civilização industrial" e do surgimento das técnicas de informação que se dá com o desenvolvimento urbano, para tanto não poderíamos deixar de mencionar que o grande problema da salvaguarda da privacidade, como consta no título da obra de Manuel Gomes (1982), é a criação do computador e sua "[…] enorme possibilidade de retenção de informações, de interligação e de rápida elaboração de conclusões […] através do tratamento de dados integrados em ficheiros e memórias, um conhecimento ilimitado e indiscriminado sobre aspectos de vida das pessoas […]" que leve a doutrina a construir uma nova garantia de nome "habeas data" [09].

O progresso tecnológico fez com que a doutrina norte-americana fosse dividida em três fases:

a)Era pré-tecnológica (1780 – 1880)

b)Era do primeiro desafio tecnológico (1880 – 1950): marcado pela descoberta do microfone (1870), da fotografia instantânea (1880), do telefone (1880) e da gravação de sons (1890)

c)Era do segundo desafio tecnológico (de 1950 – dias atuais) [10].

É justamente com esse progresso tecnológico e em consequência da evolução dos meios de comunicação de massa que se consagra o direito à liberdade de expressão e liberdade de informação, a que a doutrina vem designar também por liberdade de comunicação social ou liberdades publicistas. Assim passamos a analisar qual a finalidade prosseguida por esse meio de comunicação e o bem pessoal da privacidade, sendo que a doutrina mais recente como destaca Gomes Canotilho, sublinha que expressões como "[…]privacidade e intimidade devem ser interpretadas na sua dependência contextual […] na sua essência, o direito à privacidade consiste na possibilidade de a pessoa controlar, tanto quanto possível, a massa de informações sobre si mesma a que outros podem ter acesso". Acrescenta o autor que do ponto de vista jurídico-constitucional "uma pessoa que decide tornar públicos comportamentos geralmente protegidos pela reserva da intimidade da vida privada não está, por esse motivo, a renunciar a esse direito, mas sim a exercê-lo autonomamente de acordo com suas próprias preferências." [11]

"É que, numa sociedade composta por milhões de indivíduos portadores das mais diversas […] concepções mundividenciais e valorativas, e frequentemente portadores de interesses e objectivos completamente diferentes, é impossível e indesejável impor a todos eles uma determinada concepção de privacidade e muito menos transformar unidimensionalmente o direito à privacidade num dever de privacidade." [12]

É na sequência deste entendimento que o grande mestre Canotilho afirma que os programas de Reality Shows, em especial o Big Brother, mais do que exaltar o exibicionismo e dar projeção a pessoas e suas profissões que dantes seria impensável, é em realidade o reconhecimento de que essas pessoas orientam a sua vida de acordo com valores próprios, interesses e objetivos, ou seja, as pessoas comuns não estão formatadas com conceitos jurídicos-dogmáticos do que seja a dignidade humana, o livre desenvolvimento da personalidade logo dos limites da reserva da intimidade. É a vontade de ser tornar pessoas públicas que faz com que elas próprias restrinjam a sua esfera intima, a isso que nós dizemos ser o consentimento previsto no art. 81º do CC.

Em suma, o que entendemos é que o consentimento dado pelos cidadãos comuns, com a finalidade de um suposto e meteórico sucesso, é que dá razão aos realitys shows e uma restrição-permitida da Intimidade da Vida Privada. Porém, ressalvamos posições contrárias, e bem fundamentadas como as de Ulrike Hinrichs, autora alemã para a qual programas como Big Brothers são verdadeiras violações à dignidade da pessoa humana, consagrada no art. 1º da Constituição de Bona.

2.2. ENQUANDRAMENTO LEGAL

O Princípio da Reserva da Intimidade da Vida Privada encontra-se consagrado em vários diplomas tanto em nível internacional quanto nacional. Previsto em todos os ordenamentos jurídicos, pelo menos nos países ocidentais, pertence ao elenco dos Direitos Fundamentais, tal a sua importância sendo sagrado também em normas supranacionais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A seguir destacaremos algumas normas que prevêem a Reserva da Intimidade.

2.2.1.PLANO INTERNACIONAL

Destacaremos três normas supranacionais, que prevêem a proteção da Reserva da Intimidade, sendo que alguma delas têm força vinculativa para os Estados signatários. Em relevo temos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 10 de Dezembro de 1948, publicada no Diário da República I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março de 1978 que trata em seu art. 12º:

«Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.»

Relacionado ao art. 12º temos os arts. 6º e 15º DUDH que tratam do reconhecimento da personalidade jurídica e ao direito a nacionalidade.

Destaca-se o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ratificado pela Resolução 2200ª (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de Dezembro de 1966, assinado por Portugal em 7 de Outubro de 1976, entretanto só entra em vigor a 15 de Setembro de 1978. Apresenta em seu art 17º:

«1. Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação.

2. Toda e qualquer pessoa tem direito à protecção da lei contra tais intervenções ou tais atentados.»

Relaciona-se com o art. 17º o art. 16º do PIDCP sobre o direito de personalidade.

Por fim, destacamos a Convenção Européia dos Direitos do Homem, modificada pelo Protocolo 11, adotada em 4 de Novembro de 1950, entrando em vigor na ordem internacional a 3 de Setembro de 1953, assinada por Portugal a 22 de Setembro de 1976, contudo entra em vigor na ordem jurídica portuguesa em 9 de Novembro de 1978, no qual trás em seu art. 8º com o seguinte caput "Direito ao respeito pela vida privada e familiar", com destaque ao seu nº 2:

«1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

2.Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.» (grifo nosso).

2.2.2. PLANO NACIONAL

No quadro interno, o divisor de águas é o Código Civil Português de 1966, que antes desse ano apresenta uma consagração indireta de proteção à intimidade da vida privada através de dois preceitos:

- Reconhecimento legal da inviolabilidade do domicílio.

- Direito ao segredo profissional e ao sigilo da correspondência.

A consagração autônoma e direta da Intimidade da Vida Privada ocorre com a aprovação e publicação do Código Civil de 1966, proclamando em seu art. 80º a previsão legal de tal princípio, sendo Portugal um dos primeiros países a conceder tutela civil expressa e direta. O art. 80º do atual Código Civil Português nos trás:

(Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada)

1. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.

2. A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.

A Lei 3/73, de 5 de Abril, apresentava nos artigos intitulados Base I e Base II a previsão do Princípio em causa, porém é revogado pelo DL nº 400/82, de 23 de Setembro, atual Código Penal:

«BASE I

1. Será punido com prisão até um ano e multa correspondente aquele que, sem justa causa e com o propósito de devassar a intimidade da vida privada de outrem:

a) Intercepte, escute, registe, utilize, transmita ou divulgue, sem consentimento de quem nela participe, qualquer conversa ou comunicação particular;

b) Capte, registe ou divulgue a imagem de pessoas ou de seus bens, sem o consentimento delas;

c) Observe, às ocultas, as pessoas que se encontrem em lugar privado.

2. Quando o agente utilizar instrumento especialmente adequado à prática da infracção, a pena será a de prisão e multa correspondente.

BASE II

1. Será igualmente punido com prisão até um ano e multa correspondente aquele que, devassando sem justa causa a intimidade da vida privada de outrem e sem o seu consentimento, forneça elementos a um ficheiro, base ou banco de dados, gerido por ordenador ou por outro equipamento fundado nos princípios da cibernética.

2. As mesmas penas serão aplicadas àquele que fizer uso dos elementos referidos no número anterior para fins não consentidos por lei.»

Com previsão constitucional temos Título II – Direitos, Liberdades e Garantias – da CRP de 1976, em destaque o art. 33º:

«(Direito à identidade, ao bom nome e à intimidade)

1. A todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias»

Atualmente a tutela ao Princípio da Intimidade está gravada no art. 26º da CRP e nos arts. 190º a 198º do Código Penal no Capítulo VII – Dos crimes contra a reserva da vida privada.

2.3. ESTRUTURA DO PRINCÍPIO DA RESERVA DA VIDA PRIVADA

O Princípio da Reserva da Intimidade da Vida Privada e Familiar não possui no ordenamento português um conceito ou definição legal, ficando a cargo do juiz a sua interpretação e adaptação da norma genérica ao caso em concreto.

Compreendemos com o estudo do Princípio que a reserva da intimidade evoluiu ao longo dos tempos de uma tutela da propriedade privada para o domínio das liberdades fundamentais, porém não sendo simples a determinação objetiva do mesmo.

Todavia, o art. 80º/2 do CC e 26º/2 da CRP nos apresenta dois critérios que socorrem o aplicador do direito, um quanto ao seu objeto outro quanto ao conteúdo, que passaremos a analisar [13].

Quanto ao objeto, o art. 80º/2 do CC consagra dois elementos, um subjetivo e outro objetivo:

«A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso (II) e a condição da pessoa (I)»

(I)Condição da Pessoa ou Elemento Subjetivo: está ligado à vida particular do individuo e depende do modo de ser e a forma como esse se insere na sociedade. Temos então que a profissão ou o modo de vida podem tornar a pessoa de interesse público, passando estas a terem uma esfera da intimidade reduzida. Como exemplo de pessoas que sofrem dessa redução temos as pessoas públicas como políticos e artistas televisivos.

Sendo assim, percebemos que os limites da vida privada são diferentes consoante estejamos diante de um cidadão comum ou de uma figura pública, havendo em torno destes uma colisão de direitos: direito à privacidade e direito à informação.

Porém, reduzir o campo da intimidade não significa suprimir, ficando fora do direito à informação tudo o que não tenha relação com a profissão.

Poderíamos então questionar se essa variação da intimidade não seria uma violação ao Princípio da Igualdade. Conclui a doutrina que essa distinção entre as pessoas com mais ou menos espaços íntimos constitui uma exceção material a Igualdade.

( II)Natureza do Caso ou Elemento Objetivo: é o identificador da situação concreta, que não depende do sujeito envolvido ou o caráter histórico do evento. Neste item analisamos o fato e a sua ocorrência, como por exemplo, se o fato ocorre em local público não será a sua divulgação considerada violação a intimidade.

Em complemento a esta análise, temos a Teoria das Três Esferas, de origem alemã, no qual podemos diferenciar:

a)Vida Intima: preenchido com os aspectos relativo ao mundo sentimental, da existência biopsíquica, da sexualidade (hábitos de higiene, comportamento e orientação sexual) [14], que segundo as palavras de Rita Cabral devem tais eventos serem subtraídos do conhecimento de outrem. [15]

b)Vida Privada: compreende os acontecimentos que cada individuo partilha com um número restrito de pessoas. [16]

c)Vida Pública: enquadra-se os eventos de conhecimento de todos, diz respeito a participação de cada individuo na vida coletiva, ou seja, em sociedade [17].

O Direito à Intimidade da Vida Privada é tutelado pela primeira esfera, da vida íntima, no qual intimidade corresponde ao passado da pessoa, seus sentimentos, saúde, situação patrimonial, valores ideológicos, entre outros, não abrangendo a atividade profissional.

Por esta delimitação feita no art. 80º/2 do CC, levou a doutrina a discutir se seria uma limitação ao art. 26º e 18º/2 da CRP, que dispõe não poderem os Direitos, Liberdades e Garantias serem restringidos senão nos próprios casos previstos na própria CRP [18].

A conclusão doutrinal é que a lei civil intervém apenas para concretizar a norma constitucional, não acrescentando e nem retirando nada ao direito consagrado no art. 26º da CRP. Não sendo uma intervenção restritiva não precisa de autorização constitucional, estando em conformidade com o art 18º da CRP. Como escreve Bachof "a lei não faz mais do que aclarar os limites imanentes de um direito fundamental" [19].

Quanto ao conteúdo do direito à intimidade é necessário delimitar se a reserva da vida privada compreende apenas uma oposição à divulgação da vida privada ou se também diz respeito a uma oposição à investigação sobre a vida privada.

O legislador constitucional não esclarece sobre essa questão, sendo o problema qualificar ou não como ilícito a apreensão de informações acerca de fatos abrangidos pela intimidade da vida privada e as devidas consequências dessa prática.

O art. 26º/2 da CRP também não esclarece quanto a este ponto, prevendo apenas que a lei oferece garantia contra a utilização abusiva de informações sobre as pessoas. O que nos leva a indagar qual é o limite? Como se sabe se a utilização de certa informação será abusiva ou não? A doutrina interpreta o art. 26º/2 da CRP como garante da não divulgação de fatos referentes à vida provada, pelo menos nas zonas mais profundas (ou seja, na vida íntima, primeira esfera da Teoria das Três Esferas), enquanto não existir o consentimento do titular [20].


3.CASAMENTOS BRANCOS

"Casamentos brancos" ou Casamentos por Conveniência é a outra temática presente no Acórdão em análise.

Por casamentos por conveniência entende-se atos matrimoniais falsos, com intuito de uma ou ambas as partes obterem algum benefício, sendo os casos mais comuns de obtenção de autorização de residência ou visto de residência e nacionalidade [21].

A previsão legal encontra-se no art. 186º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, no qual diz ser o casamento por conveniência aquele em que o único objetivo é o de proporcionar obtenção de autorização ou visto de residência, sendo punido com pena de prisão de 1 a 4 anos [22].

Também encontramos o casamento por conveniência previsto na Lei 38/2009, de 20 de Julho (Lei Quadro da Política Criminal), que pretende reduzir, prevenir e reprimir a criminalidade promovendo a defesa de bens jurídicos, proteção das vítimas e reintegração do agente na sociedade (conforme art. 1º). Tendo em conta a gravidade dos crimes e a necessidade de evitar a sua prática futura que encontramos no art.4º/f desta lei a previsão do casamento branco enquadrado como crime de investigação prioritária ao lado de crimes como terrorismo, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico e mediação de armas.


4.ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL DE 17 DE DEZEMBRO DE 2009.

4.1.PONTOS (FATOS) PRINCIPAIS DO ACÓRDÃO

Pedido: Recurso da sentença do Tribunal Central Administrativo de Lisboa, que julgou improcedente a ação administrativa especial, na qual se pede a anulação do ato praticado pela Subdiretora Regional de Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo, de 6 de Agosto de 2008, que indeferiu o pedido do cartão de residência com dispensa de visto, e que tal ato seja substituído por outro que ordene a emissão de cartão de residente requerido por "A".

4.1.1.MATÉRIA DE FATO

- "A" (autora), nacionalidade brasileira, contraiu casamento civil, em 4 de Julho de 2006, com cidadão português "B".

- No mesmo dia, pediu emissão de cartão de residente ao abrigo do art. 15º da Lei nº 37/06, de 9 de Agosto [23] que pressupõe que o requerente seja familiar de cidadão nacional, neste caso através do casamento.

- Instaurado o processo administrativo pelo órgão competente (SEF) para averiguar se a relação matrimonial invocada consubstancia uma ligação familiar efetiva, de acordo com art. 26º CRP constatou-se:

  • Em visita ao endereço falou-se com o marido e este afirmou não morar com "A" e que não sabe onde ela está;
  • Que conheceu "A" em Janeiro de 2006, no bar "D…";
  • Que foi "A" quem o pediu em casamento;
  • Que o marido podia pedir a esposa 1.500,00€ por ter casado com ela, mas que acabou por não fazer;
  • Que no dia 07.11.2006 disse aos inspetores do SEF, que "A" estava em Lisboa quando na verdade sabia que ela estava no Algarve, logo mentindo.

- Em 15 de Janeiro de 2008, "A" foi sujeita a uma entrevista, conforme prevê o art. 54º/3 do Decreto Regulamentar nº 84/2007, de 5 de Novembro [24] e o art. 56º Código de Procedimento Administrativo [25], sendo questionada sobre a existência de familiares residentes legalmente em território português, ao passo que esta respondeu que os familiares presentes são as sobrinhas, não citando o marido.

- Em Março de 2008 foi introduzido no processo a informação fornecida pelo Inspetor-Adjunto do SEF:

  • "Analisando a secção "Convívio" dos Classificados do jornal diário "Correio da Manhã", foi detectado um anúncio relativo a Faro. […] Efectuado o contacto telefónico […] para apurar a identidade da cidadã responsável pelo anúncio, foi estabelecida comunicação com uma cidadã de sotaque brasileiro […].
  • […] realizada uma acção de fiscalização à zona junto à porta do Hotel Eva, tendo sido detectada a cidadã portadora do telemóvel relativo ao referido anúncio […]".

- Era a mesma cidadã "A".

- Foram efetuadas várias diligências no sentido de averiguar e apurar, junto do requerente a existência de vida em comum, chegando a conclusão que não existe indícios de vida em comum.

- "A" foi notificada do Projeto de indeferimento sobre o pedido de cartão de residente em 07.03.2008.

- Sendo inferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo Sul (1ª Instância) o pedido de concessão da autorização de residência em conformidade com o despacho da Subdiretora Regional do SEF.

4.1.2.ALEGAÇÕES DA AUTORA

- O único fato que poderá ter relevância na aplicação do direito é a não coabitação de "A" com o marido.

- A sentença recorrida interpreta o art. 15º da Lei 37/2006, de 9 de Agosto em conjugação com a definição legal de casamento (art. 1577º CC), sendo exigível ao cônjuge "não […] um casamento formal, mas uma efectiva relação matrimonial de facto […]".

- Nos termos dos arts. 1627º, 1628º e 1631º todos do CC é válido o casamento civil, não existindo causas de inexistência jurídica ou de anulabilidade.

- O casamento de "A" é plenamente válido e eficaz na ordem jurídica portuguesa.

- Não foi invocado quer na fundamentação do ato cuja suspensão de eficácia se requereu, que na fundamentação da sentença, que o casamento tenha sido celebrado com fraude ou simulação, não se verificando a situação do art. 31º da Lei 37/2006, de 9 de Agosto [26].

- E, as circunstâncias que determinam a recusa ou retirada dos direitos de residência têm de ser reconhecidas previamente por decisão judicial, sob pena de serem materialmente inconstitucionais (art. 1632º CC e 205º CRP), não podendo a polícia substituir-se aos tribunais na apreciação dos fatos.

- E cita o Ac. de 30 de Abril de 2009 do Tribunal Central Administrativo Sul, que considera para efeitos do art. 15º da Lei 37/2006, no seu nº 4, "[…] ser totalmente irrelevante que a ora A. não coabite com o seu marido ou que exerça o "amor" remunerado com terceiros, verificando-se que não estando dissolvido o seu casamento é familiar do marido que é cidadão nacional, não cabendo as averiguações de tais factos que se reportam à reserva da vida privada e familiar dos particulares, em violação do direito fundamental consagrado no art. 26º da CRP".

4.1.3 MATÉRIA DE DIREITO

- A sentença recorrida julgou improcedente a ação administrativa especial, que pede a anulação do ato praticado pela Subdiretora Regional do SEF.

- A recorrente alega interpretação restritiva feita na sentença ao art. 15º da Lei 37/2006, e que o art. 31º desta Lei deve ser interpretado no sentido de que as circunstâncias que poderão determinar a recusa ou retirada dos direitos de residência sejam reconhecidos previamente por decisão judicial.

- Que o art. 31º da Lei 37/2006 não exige um casamento meramente formal, mas uma efetiva relação matrimonial de fato, traduzida na plena comunhão de vida.

-O réu indefere o pedido de cartão de residência com dispensa de visto com fundamento no fato de a requerida não viver em comum com o cidadão português.

-A matéria de fato apurada demonstra que "A" e o marido vivem separados de fato, sem comunhão de vida, mesa e habitação e sem o propósito de vida em comum.

-A existência do casamento formal celebrado entre "A" e o marido cidadão português "B" não foi posta em causa pelo réu.

-A norma do art. 15º da Lei 37/2006 não pode deixar de ser analisada no contexto do diploma em que se encontra inserida, sendo a ratio legis a proteção do interesse da unidade familiar.

-Existe um imperativo legal, resultante da Lei 37/2006 no qual compete ao SEF investigar condutas que possam corresponder às situações designadas como casamentos brancos. Sendo também de sua competência averiguar quanto às solicitações de cartão de residente a existência da relação familiar.

-A situação matrimonial da recorrente não é irrelevante, mas sim questão essencial.

-A Lei 23/2007, de 4 de Julho [27] criminaliza os ditos casamentos brancos (art. 186º/1).

-Não considera irrelevantes as conclusões do SEF apuradas no processo administrativo.

-Não se vê a interferência do SEF como inconstitucional, pois os Direitos, Liberdades e Garantias não são absolutos, admitindo restrições que têm de obedecer a princípios de prossecução do interesse público, de proporcionalidade, de justiça (art. 18º e 266º/1/2 da CRP).

-A interferência do Estado Português na esfera da reserva privada e familiar dos cidadãos não viola a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito (art. 18º/3 CRP), limitando-se para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º/2/ in fine CRP).

-Em conclusão, nega provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida na íntegra.

4.2 ANÁLISE DO ACÓRDÃO

O primeiro passo a ser dado foi da verificação da constitucionalidade da norma em questão, ou seja, do art. 15º da Lei 37/2006, pois é com base no não preenchimento desta norma que a Subdiretora Regional do SEF, o Tribunal Administrativo de Círculo e o Tribunal Central Administrativo negam o pedido da cidadã "A" a autorização de residência. Essa análise de constitucionalidade se dará em relação ao art. 18º da CRP, concretizando, verificamos se tal preceito está ou não de acordo com a proteção dos Direitos, Liberdades e Garantias ou se estamos diante de uma norma restritiva.

Auxiliados pelos requisitos do art. 18º/2/3 da CRP, temos que o requisito da obrigatoriedade de caráter geral e abstrato encontra-se preenchido pois que a norma refere-se a cidadãos nacionais de Estado Terceiro, não restringe a sua aplicação a cidadãos de país X ou Y em específico logo, aplica-se a um número indeterminado e indeterminável de pessoas. Não é uma lei retroativa pois foi aprovada e promulgada em 22 e 26 de Julho de 2006 respectivamente, porém só sendo aplicada aos casos ocorridos a partir de 9 de Agosto de 2006. Estando assim completo os requisitos formais do art. 18º da CRP. Quanto aos requisitos substanciais desta norma temos que para se restringir um Direito Fundamental deve-se ter uma autorização constitucional expressa para a restrição do Direito, Liberdade e Garantia, sendo que essa restrição vise proteger outro(s) Direitos Fundamentais, desde que respeite o Princípio da Proporcionalidade e o conteúdo do Direito Fundamental seja respeitado.

Quanto à reserva de lei, é imperativo a competência da Assembleia da República Portugesa ou do Governo autorizado em relação a qualquer modificação ou restrição ao diploma, visto ser essa uma transposição da Diretiva n.º 2004/38/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, sendo esta tarefa da Assembléia.

Logo, tanto o art. 15º quanto todo o diploma encontra-se em conformidade com o art.18º da CRP pois não restringe os Direitos Fundamentais dos cidadãos, antes visam salvaguardar a ordem pública e a justiça limitados pela proporcionalidade como destaca o art. 25º da mesma, sendo estes a fundamentação da não concessão da autorização de residência em território português.

Mas esta verificação de conformidade do art. 15º da Lei 37/2006 com o art. 18º da CRP não implica que o Acórdão e sua respectiva decisão não se encontrem enfermados, pois a grande questão e a que viola o Direito, Liberdade e Garantia em causa, o Princípio da Reserva da Intimidade da Vida Privada e Familiar, está no comportamento do órgão responsável pela recepção dos pedidos de autorização de residência, o SEF. E é sobre a forma de atuação do SEF, em conjugação com o entendimento do que seja a Reserva da Vida Privada que abordaremos no próximo item, dando assim conclusão ao presente artigo.


5.CONCLUSÃO

Após verificarmos que o diploma nº 37/2006 encontra-se de acordo com os requisitos do art. 18º da CRP, não sendo este limite ao exercício dos Direitos, Liberdades e Garantias, estando assim em conformidade com o Princípio da Reserva da Intimidade, é necessário verificarmos quais os fatos que colocam em causa a proteção de tal Princípio.

Por comunhão de vida entendemos ser no art. 1672º CC os deveres conjugais (respeito, fidelidade, coabitação e assistência), sendo estes efeitos pessoais do casamento, logo relativos à vida íntima e privada (Teoria das Três Esferas).

O Prof. Canotilho (1993), em sua Constituição anotada declara em relação ao art. 26º que o direito à reserva da intimidade analisa-se em dois direitos menores:

a) O direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar;

b) O direito a que ninguém divulgue informações que tenha sobre a vida privada familiar de outrem.

E conclui dizendo que "(…) não é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva da intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade". Porém muitas vezes essa esfera privada e íntima "cedem em conflito com o interesse ou bem público" [28].

De acordo com a interpretação descrita acima do art. 80º/2 do CC que concretiza o art. 26º da CRP temos:

a)Condição da Pessoa ou Elemento Subjetivo: tanto a cidadã "A" quanto o cidadão "B" são sujeitos comuns, não possuindo profissões que revelem uma necessidade de restrição ao direito à intimidade conforme como conclui o Acórdão de 30 de Abril de 2009 do Tribunal Central Administrativo Sul, pois é irrelevante que "A" exerça o "amor" remunerado, sendo a tal profissão impetrado a colisão entre direito de informação e direito a intimidade. Logo "A" e "B" têm uma proteção total a sua intimidade.

b)Natureza do Caso ou Elemento Objetivo: as situações concretas são pertinentes à vida a dois, pois que o fato de estar ou não em casa (prova de coabitação) releva apenas ao casal no sentido de comprovação de separação de fato ou considerar o marido como familiar ou não depende da concepção íntima de família, pois se "A" entender por família apenas os parentes, estaremos diante da noção do art. 1578º do CC em que parentes são as pessoas unidas em consequência de descendência ou de ambas procederem de progenitor comum, sendo as sobrinhas parentes em 3º grau da linha colateral.

Sendo assim, verificamos que estamos diante de matérias atinentes à vida privada, sendo indubitável o questionamento se seria ou não lícito, mesmo em nome da ordem e segurança pública uma intromissão dos órgãos públicos?

Sabemos que cabe ao SEF controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e a atividade de estrangeiros em território nacional [29]. Que o art. 15º da Lei nº 37/2006 nos diz que é ao SEF que deve ser feito o pedido de autorização de residência, contudo, para conceder a autorização de residência pede apenas documento comprovativo da relação familiar (certidão do registro de casamento) e prova que se encontra a cargo do cidadão europeu. Logo, estamos diante de uma comprovação formal do casamento.

Não sendo detectado nem nestes diplomas em questão e nem em nenhum outro com força infra ou supra constitucional e nem na própria CRP qualquer norma que legitime a invasão de propriedade ou mesmo o deslocamento a propriedades privadas para questionar ou verificar qualquer fato atinente à vida privada dos cidadãos, nacionais ou estrangeiros. Verificando-se assim uma omissão legal que não regulamenta nem positivamente (é permitido aos órgãos públicos fazer…) e nem negativamente (não é permitido aos órgãos públicos…), ficando estes apenas a mercê do Código de Procedimento Administrativo que diz em seu art. 56º de forma genérica, que os órgãos podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução. Pois bem, tal norma deve estar pautada pela proporcionalidade e em respeito à esfera íntima tutelada pela reserva da privacidade. Não sendo lícito em nossa opinião o transplantar a reserva da intimidade mesmo em nome da ordem pública (sendo consciente de que tal opinião suporta pensamentos contrários).

Porém em relação ao caso concreto abordado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17 de Dezembro de 2009, consideramos que a averiguação de tais fatos por parte do SEF são verdadeiras violações ao direito à reserva da intimidade e da vida privada (art. 26º da CRP e 80º do CC), pois compreende tais matérias uma "zona de exclusão, dentro de um perímetro de reserva e discrição que nem os poderes públicos nem os particulares podem vulnerar" [30] como acolhe Canotilho (2003). Sendo imperativo e urgente a criação legislativa de parâmetros e limites específicos à atuação dos órgãos públicos quanto a este tema.


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Notas:

  1. CABRAL. Rita Amaral. O Direito à intimidade da vida privada. Breve reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil. Tipografia Guerra Viseu. Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa: Lisboa. 1988. p. 15
  2. Ibid. p. 15.
  3. Ibid. p. 16.
  4. Ibid. p.16.
  5. Ibid. p. 17.
  6. Ibid. p. 17.
  7. Ibid. p. 22.
  8. GOMES. Manuel Januário. O problema da salvaguarda da privacidade antes e depois do computador. Separata do Boletim do Ministério da Justiça, nº 319. Lisboa. 1982. p. 14.
  9. Sobre esse estudo ver CABRAL. op cit. pp. 20 – 21.
  10. Quadro traçado por CABRAL. op cit. p. 21.
  11. CANOTILHO. J.J. Gomes e MACHADO. Jónatas E. M. "Reality Shows" e Liberdade de Programação. Coimbra: Coimbra Editora. 2003. pp. 55 – 56.
  12. Ibid. p. 57.
  13. Tal análise se faz com base nos estudos desenvolvidos por Rita Cabral em obra já citada.
  14. CANOTILHO. (2003) op cit. p. 53.
  15. CABRAL (1988). op cit. p. 30.
  16. Ibid. p. 30.
  17. Ibid. p. 30
  18. Os Direitos, Liberdades e Garantias ou DLG´s, estão abrangidos pelo Princípio da Aplicabilidade Direta, ou seja, são diretamente invocáveis, não precisando de concretização do legislador conforme ocorre com os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ou DESC. O art. 18º/2/3 da CRP possui requisitos que são:
  19. a)reserva de lei (no qual para se alterar ou restringir Direitos Fundamentais é preciso de autorização legislativa);

    b)obrigatoriedade de caráter geral e abstrato (deve ser dirigida a um número indeterminado e indeterminável de pessoas);

    c)proibição de lei retroativa.

  20. CABRAL (1988). op. cit. p. 33.
  21. O Consentimento é o ato que restringe e limita a Reserva da Vida Privada, passando a ser considerado da esfera pública tudo que o titular de tal direito der o consentimento ou seja, autorização para tal divulgação. Sobre o consentimento ver art. 81º do CC que trata a matéria de limitação voluntária dos direitos de personalidade e publicação do juiz do TC Prof. Paulo Mota Pinto "A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada".
  22. A diferença entre autorização de residência e visto de residência dá-se pela distinção entre entrada e permanência em território português. O visto de residência dá ao seu titular a possibilidade de entrar em território nacional para efetuar o pedido de autorização de residência. Já a autorização de residência é a possibilidade de se fixar, permanecer temporária ou permanentemente em território português sendo emitido ao cidadão estrangeiro um título de residência.
  23. Art. 186º da Lei nº 23/2007: Casamento de conveniência
  24. 1—Quem contrair casamento com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto ou uma autorização de residência ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos. (grifo nosso)

    2—Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos actos previstos no número anterior é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

    3—A tentativa é punível.

  25. Regula o exercício do direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União Européia e dos membros das suas famílias em território nacional. O art. 15º em especial trata dos requisitos para atribuição do cartão de residência de familiar do cidadão da UE nacional de Estado terceiro. É nesse artigo que nos é informado que é da competência dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) receber os pedidos de cartão de residência, possuindo também o art. 15º um rol de documentos a serem apresentados junto com o pedido dentro os quais documento comprovativo da relação familiar com o cidadão da União (certidão do registro de casamento) e documento que se encontra a cargo do cidadão da União (cf. art. 15º/4/2´e 4´).
  26. Trata sobre o pedido de concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada, sendo a decisão do pedido tomada após realização de entrevista pessoal ao requerente levando em conta "motivos de força maior" e "razões pessoais ou profissionais atendíveis".
  27. Prevê o Princípio do Inquisitório por parte dos órgãos administrativos, estes podem proceder às diligências que considerar necessárias para a instrução
  28. O art. 31º desta Lei refere-se ao abuso de direito e diz que é recusado e retirado o direito de residência nos casos de fraude ou de casamento de conveniência
  29. Regula o regime jurídico da entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros de território nacional, sendo no art. 186º/1 definido como casamento por conveniência aquele contraído com o único objetivo de obter um visto ou autorização de residência ou defraudar a legislação em matéria de nacionalidade. Pena prisão prevista de 1 a 4 anos.
  30. CANOTILHO. J. J. Gomes. e MOREIRA. Vital. Constituição da República Portuguesa – Anotada. 3ª Ed. Revisão. Coimbra: Coimbra Editora. 1993. Pág. 181.
  31. Art. 1º/1 do DL 252/2000, de 16 de Outubro, que aprova a estrutura, organiza e define as atribuições do SEF. E ver Decreto Regulamentar nº 4/95, de 31 de Janeiro no qual compete ao SEF a recolha e tratamento de dados pessoais tais como nome, nacionalidade, local de nascimento, estado civil, sexo entre outros.
  32. CANOTILHO (2003) op. cit. p. 52

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COELHO, Larissa A.. Investigação de "casamentos brancos" e a reserva da intimidade da vida privada. Uma análise do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de dezembro de 2009. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3012, 30 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20110. Acesso em: 3 maio 2024.