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A possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos à luz da doutrina e da jurisprudência

A possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos à luz da doutrina e da jurisprudência

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O presente artigo científico tem como finalidade estudar os avanços doutrinários e jurisprudenciais acerca da entidade familiar, da adoção e da homossexualidade, chegando, por fim, à questão da adoção homoafetiva.

RESUMO: O tema tem como finalidade estudar os avanços doutrinários e jurisprudenciais acerca da entidade familiar, da adoção e da homossexualidade, chegando, por fim, à questão da adoção homoafetiva. Este estudo esclarece que, apesar do silêncio legal, existe a possibilidade jurídica de casais do mesmo sexo adotarem, desde que preencham os requisitos legais previstos no Código Civil/2002 e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Visa, igualmente, desmistificar teses preconceituosas que até recentemente impediam ou dificultavam a concessão da adoção de menores aos casais homossexuais, mas, sobretudo, analisa caso concreto e os fundamentos jurídicos, lançados pelo Promotor de Justiça e pela Defensora Pública que atuaram no processo judicial, que levaram à concessão da adoção de duas crianças a um casal homoafetivo nesta Comarca, decisão judicial de suma importância no Estado e no país, que gerou esperanças e incentivou casais homoafetivos que desejavam ter filhos e já haviam sido reconhecidos juridicamente como entidade familiar. Em razão da sua relevância jurídica, a ação transformou-se no pioneiro e mais importante precedente jurisprudencial sobre o assunto, motivando a escolha do tema deste trabalho científico, o qual foi elaborado com a metodologia qualitativa, sendo utilizada a técnica da entrevista semiestruturada, da pesquisa doutrinária e da análise jurisprudencial, que tornaram possível concluir que a adoção homoafetiva não só é possível diante do ordenamento jurídico, como se trata de assegurar aos homossexuais e à criança e ao adolescente o direito constitucional a uma família.

Palavras-Chave: Família - Adoção -  Homoafetividade.

RÉSUMÉ: Le thème vise à étudier l'évolution de la jurisprudence et de la doctrine à propos de l'entité familiale, l'adoption et l'homosexualité, pour éteindre, enfin, la questión de l’adoption par des couples homosexuels. Cette étude clarifie que malgré le silence légale, il y a la possibilité juridique de couples de même sexe adopter depuis qu'ils remplissent les conditions légales énoncées dans le Code Civil/2002 et dans le Statut des Enfants et des Adolescents. Cet  article especifique à le fin de démystifier des thèses préjudicent qui jusqu'à récemment, empêchaient ou entravaient l'octroi de l'adoption d'enfants pour les couples homosexuels, mais analyse, principalement, le cas et les fondements juridiques lancée par le promoteur de justice et de la adovcat de la défense qui a agi dans le procès, qui ont conduit à l'octroi de l'adoption de deux enfants par un couple homosexuel dans cette ville. Il s’agit d’un jugement très important dans l’État e dans le pays qui a suscité des espoirs et encouragé les couples homosexuels qui souhaitent avoir des enfants et a été légalement reconnue comme une unité familiale. En raison de sa signification juridique, l'action est devenu le pionnier et le plus important précédent sur la question, en motivant le choix du thème de ce travail scientifique, qui a été préparé avec la méthodologie qualitative, em utilisant la technique du entrevue semi-structurée, la recherche doctrinale et la analyse jurisprudentielle, ce qui a permis de conclure que l'adoption est non seulement possible devant la loi, comme il s’agit de garantir à l’enfant et à l’adolescent le droit constitutionnel à une famille.

Mots-clés: Famille – adotion - homosexualité


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo científico tem por escopo observar a evolução da família, o conceito de adoção e a sua previsão legal, os conceitos percebidos, no decorrer da história, referentes à homossexualidade e, principalmente, a possibilidade de uma criança ou adolescente ser inserido no seio de uma família homoafetiva. No primeiro item, analisou-se a entidade familiar, desde seu conceito primitivo, quando a família, além de patriarcal e hierarquizada, constituía-se mediante a união do homem e da mulher, que deviam celebrar o casamento, até à sua visão contemporânea, quando a sociedade passou a contar com famílias chamadas não convencionais, não formadas estritamente pelo parentesco consanguíneo. No segundo item, conceituou-se o instituto da adoção e verificaram-se os dispositivos legais pertinentes, bem como foi lançada a problemática da possibilidade da adoção homoafetiva. No item seguinte, analisou-se a evolução conceitual da homossexualidade e registraram-se as principais conquistas jurisprudenciais dos casais homoafetivos. Por fim, no quarto item, adentrou-se no tema núcleo do presente trabalho, a adoção homoafetiva de crianças e adolescentes, momento em que foram apresentadas não só inovações dentro do ordenamento jurídico que integraram casais homoafetivos nos requisitos autorizadores da adoção, como também restou demonstrado que o preconceito, que impedia ou dificultava a concessão da adoção aos casais do mesmo sexo, pode ser considerado mito. Além disso, abordou-se o primeiro precedente jurisprudencial no país a respeito da possibilidade da adoção homoafetiva conjunta.

A relevância jurídica do tema revela-se na inovação jurisprudencial, pois a ação processual pioneira, que ensejou na concessão da adoção de duas crianças a um casal homoafetivo, além de ter tramitado no Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Bagé, desafiou a legislação brasileira para dar prioridade ao princípio da dignidade humana e da proteção integral à criança e ao adolescente.

Todavia, apesar de ter sido consolidada jurisprudencialmente, tanto pelo Supremo Tribunal Federal, quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, a adoção homoafetiva, hodiernamente, sofre a carência de legislação pertinente no Brasil, problemática envolvida ao tema.

Em razão disso, o trabalho em tela objetiva levantar o questionamento acerca da possibilidade da adoção homoafetiva conjunta, o confronto entre a ausência de disposição legal e a pacificação jurisprudencial no tocante ao tema, somente possível diante do estudo específico da evolução do modelo familiar, da legislação pertinente à adoção e do conceito da homossexualidade.

A metodologia utilizada para realização deste artigo científico foi a qualitativa. A técnica da entrevista semiestruturada, a pesquisa bibliográfica e a análise jurisprudencial deram suporte ao desenvolvimento do conteúdo. Mas, sobretudo, as entrevistas realizadas com o Promotor de Justiça, a Defensora Pública e o casal homoafetivo que fizeram parte da consolidação do mais importante precedente jurisprudencial sobre o tema deste trabalho foram indispensáveis à sua conclusão.


2 Evolução Histórica e Atual Modelo de Família

Historicamente, a origem da palavra “família” emana do termo em latim “famulus”, que significa “escravo doméstico”. Isso porque, segundo Dias (2007, p. 28), a família primitiva dispunha de um perfil hierarquizado e patriarcal, que foi modificado após a revolução industrial, em decorrência da necessidade de aumentar a mão de obra em atividades terciárias, momento em que a mulher ingressou no mercado de trabalho e o homem deixou de ser o núcleo da família e a única fonte de sobrevivência familiar.

Nesse contexto, no que diz respeito à evolução histórica da família, e, conforme o entendimento de Dias (2007, p. 29), “o formato hierárquico da família cedeu lugar à sua democratização”.

Ainda, quanto à evolução legislativa da entidade familiar, Louzada (2011, p. 268) descreveu que, até o Código Civil de 1916, regulava-se o modelo familiar do início do século passado, que somente poderia ser formado a partir do matrimônio, apesar de a doutrina e a jurisprudência já admitirem o reconhecimento da união estável, enquanto a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a delinear a entidade família em seu contexto, determinando a indissolubilidade do matrimônio. Mais tarde, a Emenda Constitucional 9/1977 e, posteriormente, a promulgação da Lei Complementar 6.515/1977, instituíam o divórcio, revogando a indissolubilidade do matrimônio e extinguindo a sacralização da entidade familiar.

Todavia, Louzada (2011, p. 268) ressalvou que somente após a Constituição Federal de 1988 passou-se a admitir a formação de famílias distintas, no momento em que houve o reconhecimento da união estável e da família composta por qualquer dos pais e seus descendentes, ou seja, o matrimônio deixava de ser a forma originária de constituição da entidade familiar.

Por outro lado, destacou Louzada (2011, p. 269) que a união de pessoas do mesmo sexo só poderia ser regulada pelo direito obrigacional, uma vez que a união homoafetiva era concebida como uma sociedade de fato, tendo em vista que as pessoas que desta faziam parte eram consideradas sócias, e não companheiras, pois visavam ao lucro e não à comunhão de vida.

Outrossim, muito embora hodiernamente inexista vedação constitucional ou legislativa quanto ao reconhecimento da união homoafetiva, o silêncio legal não pode ser interpretado como ausência de direitos, porquanto atualmente o modelo familiar agregado pela doutrina e pela jurisprudência abrange ao seu conceito casais que, apesar de possuírem o mesmo sexo, são considerados uma entidade familiar, pois são unidos por um elo de afeto.

Como visto, o conceito da entidade familiar vem sendo modificado periodicamente diante da construção social e dos modelos atuais de comportamento. No entanto, vale descrever que, de acordo com Dias (2007, p. 28-29), a família constitui a base da sociedade e é o primeiro agente socializador do indivíduo. Reforçando esse conceito, Louzada (2011, p. 264) destacou que a família constitui um alicerce formado em razão da necessidade do ser humano de viver em comunidade e do seu instinto de perpetuação da espécie.

Assim, ante as frequentes modificações no tradicional modelo familiar, Rossato, Lépore e Cunha classificaram a família em:

a) natural: formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes;

b) extensa: formada também pelos parentes próximos com os quais a criança convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Poderá evoluir para a família substituta com algumas ressalvas;

c) substituta: formada em razão da guarda, da tutela e da adoção. Pode ser concebida à família extensa, com algumas ressalvas, bem como a terceiros não parentes (2009, p. 27).

Diante do exposto, importante ressaltar o entendimento de Dias (2006, p. 45) acerca do atual modelo de família, o eudemonista[1], segundo o qual os indivíduos são importantes em sua singularidade, possuindo o direito à felicidade, independentemente da sua orientação sexual.


3 Adoção de Crianças e Adolescentes

O instituto jurídico da adoção foi primeiramente regularizado no Brasil, no sistema legal clássico, a partir da promulgação do Código Civil de 1916, o qual regulava tanto a adoção de adultos quanto à de crianças e adolescentes e possuía, por escopo, conceder filhos àquelas pessoas que biologicamente não os poderiam ter, sendo que uma de suas principais características era a possibilidade de dissolução do vínculo adotivo pela simples conveniência das partes ou nos casos de deserdação. Entretanto, Girardi (2005, p. 117) ensina que a adoção somente poderia ser conferida aos que, além de serem impossibilitados de gerar filhos, contassem com idade superior a conseqüência anos, tendo em vista a garantia de que o adotante, após o ato jurídico, não geraria prole natural. O adotante também deveria ser dezoito anos mais velho que o adotado e este somente poderia ser adotado por duas pessoas que fossem unidas maritalmente.

Ademais, Dias (2007, p. 425) esclarece que o vínculo de parentesco regulado pela antiga lei civil não se estendia aos demais membros da família, limitava-se ao adotante e ao adotado, efetivando-se mediante escritura pública. Além disso, o filho adotivo não gozava dos mesmos direitos e qualificações conferidos aos filhos biológicos.

Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 inovou ao proibir quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º), da mesma forma que, com o advento do Novo Código Civil, o instituto da adoção sofreu alterações e, posteriormente, como afirma Dias (2007, p. 425), “buscando dar efetividade ao comando consagrador do princípio da proteção integral, o ECA deu prevalente atenção aos interesses de crianças e adolescentes”.

Isto é, surgiu a duplicidade normativa acerca da possibilidade da adoção, como elucidam Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 657), razão pela qual existiam duas espécies de adoção, a civil, para maiores de dezoito anos, e a estatutária, para crianças e adolescentes.

Entretanto, com a promulgação da Lei n.º 12.010/99, a adoção passou a ser regulada exclusivamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei n.º 8.069/90, que, inclusive, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 657), passou a ter aplicação subsidiária à adoção de maiores de dezoito anos de idade. Não obstante, Dias (2007, p. 428) acrescenta que são aplicados, supletivamente, os requisitos elencados no Código Civil, quando incompatíveis com a norma especial.

Deste modo, atualmente regida pelo ECA, a adoção de crianças e adolescentes no Brasil consiste em ato personalíssimo, excepcional, irrevogável, incaducável, pleno e constituído por sentença judicial, que somente será deferida quando presentes os requisitos subjetivos (idoneidade do adotante, motivos legítimos/desejo de filiação e reais vantagens para o adotante), e objetivos à adoção (requisitos de idade, consentimento dos pais e do adolescente ou destituição do poder familiar, precedência de estágio de convivência e prévio cadastramento), comentados pelos autores Rossato, Lépore e Cunha (2012, p. 212-213, 217 e 218).

A sentença judicial que decreta a adoção bilateral desliga completamente o adotado da sua família de origem, ou seja, ainda que os adotantes venham a falecer, o poder familiar dos pais naturais não é restabelecido, uma vez que a decisão judicial que confere a adoção é inscrita no registro civil e o vínculo de parentesco do adotado estende-se à família do adotante, pois, segundo Rossato, Lépore e Cunha (2012, p. 208-209) “os genitores não mais exercerão o poder familiar e, tampouco, ostentarão a qualidade de pais da criança ou adolescente adotado por outra família”. Os juristas descrevem (2012, p. 206), também, a adoção unilateral, “que pressupõe o rompimento do vínculo de filiação com apenas um dos pais biológicos, mantendo-se, por lógica, o vínculo com o outro pai biológico (pai ou mãe)”.

Insta salientar os critérios da idade e do estado civil do adotante, os quais constituem primordiais preceitos autorizadores da adoção numerados por Spengler (2011, p. 355), tendo em vista que, apesar de o adotante dever contar com, no mínimo, dezoito anos de idade (salvo se o adotado já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes), independentemente de seu estado civil, o artigo 42 do ECA prevê outros requisitos imprescindíveis à adoção, tais como a exigência de o adotante contar com, pelo menos, dezesseis anos a mais do que o adotando, e, em caso de adoção conjunta, os adotantes serem casados civilmente ou manterem união estável, comprovada a estabilidade da família.

Por outro lado, o artigo 45 do ECA refere-se ao consentimento dos pais ou do representante legal do adotante à adoção. No entanto, tais condições são dispensáveis, ao ver de Dias (2007, p. 431), no caso de os pais biológicos serem desconhecidos ou terem sido destituídos do poder familiar. A jurista também compreende ser desnecessária a prévia destituição do poder familiar quando a criança ou o adolescente estiverem em situação de risco ou forem abandonados. Todavia, em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, é imprescindível o seu consentimento. Além disso, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 666) advertem que, sendo possível, o juiz deverá ouvir o incapaz, ainda que sua manifestação não seja vinculativa do juízo decisório do julgador.

Afora isso, Rossato, Lépore e Cunha (2012, p. 219) destacam a precedência de estágio de convivência, requisito que possui a função de verificar a compatibilidade entre o adotado e o adotante, cujo acompanhamento é realizado mediante estudo psicossocial, que determinará a presença das condições subjetivas à adoção.

Pois bem, ao conceituar a adoção, Pereira (2000, p. 213) afirmou que se trata da forma de constituição familiar, onde o adotante, mediante ato jurídico, traz à sua família, na condição de filho, pessoa que lhe é estranha, independentemente de com ela possuir laço de afinidade ou de parentesco consanguíneo. Reforçando este conceito, Gagliona e Pamplona Filho (2011, p. 666) referem que o ato da adoção atribui ao adotado todos os efeitos de direito, pessoais, patrimoniais e sucessórios.

Contudo, ao que consta, a lei especial reguladora da adoção de crianças e adolescentes silencia acerca da possibilidade da adoção homoafetiva, fato gerador de polêmicas entre os operadores do Direito e aplicadores da lei. No que diz respeito a esta controvérsia, Spengler (2011, p. 353) questiona: “A orientação sexual dos adotantes realmente será fator de risco para o seu desenvolvimento?”.

Sendo assim, basta concluir que o Estatuto de Criança e do Adolescente prioriza a convivência familiar como o ambiente para o desenvolvimento adequado dos infantes, onde, na ponderação dos princípios de proteção integral da criança e do adolescente e da manutenção da convivência familiar, não haveria prevalência do primeiro em detrimento do segundo.


4 Evolução Histórica e Construções Jurisprudenciais acerca da homossexualidade

De acordo com as autoras Farias e Maia (2009, p. 43), a homossexualidade, até o ano de 1700, era compreendida como um pecado contra Deus e, a partir do século XVIII, “passou a ser considerada como um crime social, um pecado contra a natureza, que o Estado tinha de combater”.

Mais tarde, no ano de 1869, como consta na obra de Girardi (2005, p. 66-67), criava-se o termo “homossexualismo” após a primeira importante discussão acerca da homossexualidade, ocasião em que o médico húngaro Karoly Benkert manifestou-se em defesa dos homossexuais, entendendo tratar-se de desvio heterossexual merecedor de tratamento médico. Com esse novo conceito, evitavam-se atrocidades contra os homossexuais, que eram, até então, maltratados e condenados à morte, severamente punidos pela prática de crime social.

Posteriormente, a homossexualidade também foi vista na sociedade como uma anomalia hereditária, merecendo, igualmente, tratamento médico. Porém, conforme descrevem Farias e Maia (2009, p. 45), esse novo conceito recebeu diversas críticas, frente ao “fato de que os pais de homossexuais raramente são homo ou bissexuais”. Mesmo assim, homossexuais passaram a ser esterilizados para que não transmitissem seus genes aos descendentes.

Em seguida, Girardi (2005, p. 67) aponta novo conceito, percebido por Sigmund Freud no ano de 1935, segundo o qual a homossexualidade era compreendida como o estágio não evoluído da heterossexualidade e, por conseqüência, não se apresentava como uma patologia.

Devido aos diversos estudos realizados por historiadores acerca da origem da homossexualidade, esta foi eliminada, no ano de 1973, pela Associação Americana de Psiquiatria, da categoria dos distúrbios mentais. Todavia, como afirmam Farias e Maia (2009, p. 49), somente no ano de 1985, “o Brasil eliminou o item que descrevia a homossexualidade como doença psiquiátrica no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde”.

Nessa senda, insta salientar que a homoafetividade, de acordo com Dias,

[...] acompanha a história do homem, Não é crime nem pecado; não é uma doença nem um vício. [...] A origem não se conhece. Aliás, nem interessa, pois quando se buscam causas, parece que se está atrás de um remédio, de um tratamento para encontrar cura para algum mal. Mas tanto a orientação homossexual não é uma doença que, na Classificação Internacional de Doenças – CID, está inserida no capítulo Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais. O termo “homossexualismo” foi substituído por homossexualidade, pois o sufixo “ismo” significa doença, enquanto o sufixo “dade” quer dizer modo de ser (2007, p. 182).

Dessarte, procurando dar efetividade à busca de direitos e igualdade entre os heterossexuais e homossexuais, a partir do ano de 1999 passaram a surgir construções jurisprudenciais. Com propriedade, Dias (2007, p. 189) lembra que a primeira delas sobreveio na justiça gaúcha, definindo a competência das varas de família para apreciar as uniões homoafetivas (TJRS, 8.ª C. Cív., AI 599 075 496, rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.06.1999). Posteriormente, no ano de 2001, a justiça gaúcha outra vez inovava ao reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar (TJRS, 7.ª C. Cív., AC 70001388982, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 14.03.2001).

Ainda, recente jurisprudência do Estado admitiu a possibilidade jurídica da conversão de união estável homoafetiva em casamento (TJRS, 8.ª C. Cív., AC 70048452643, rel. Des. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 27.09.2012).

 Nesse sentir, e por fim, relevante destacar o pensamento de Dias acerca dos avanços jurisprudenciais no que tange aos direitos dos homoafetivos:

Merece ser louvada a coragem de ousar, quando se ultrapassam tabus que rondam o tema da sexualidade e rompe-se o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Ainda bem que está havendo verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura conservadora e firme oposição à jurisprudência ainda apegada a um conceito sacralizado de família. Essa nova orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não pode a justiça seguir dando respostas mortas a perguntas vivas, ignorando a realidade social subjacente, encastelando-se no conformismo, para deixar de dizer o direito (2007, p. 190).


5 Adoção de Crianças e Adolescentes Por Casais Homoafetivos

Primeiramente, importa atentar à inexistência de legislação no Brasil acerca da possibilidade da adoção homoafetiva. Vale observar que, de acordo com Spengler (2011, p. 354), a Holanda é o único país possuidor de legislação pertinente ao tema.

Porém, apesar do silêncio legal, o artigo 42, caput, do ECA, autoriza a adoção homoparental individual, isto é, que um homossexual, solteiro, adote uma criança ou adolescente, na medida em que prevê em seu bojo apenas o requisito da maioridade, ignorando o estado civil do adotante.

Não obstante, Spengler (2011, p. 358) adverte o receio dos casais homoafetivos no indeferimento da inscrição conjunta no cadastro de adotantes, razão pela qual a adoção individual apresenta-se, muitas vezes, como uma “solução”, mas na verdade gera riscos aos menores adotados, visto que não possuem direitos personalíssimos, tais como à sucessão ou à pensão previdenciária, advindos do companheiro que não adotou e que, igualmente, é considerado pai ou mãe.

O receio da adoção homoparental conjunta decorre do requisito presente no artigo 1622, caput¸ do Código Civil, revogado pela Lei n.º 12.010/09, o qual previa que “

Além da revogação do dispositivo legal supracitado, Rossato, Lépore e Cunha (2012, p. 211) entendem que, atualmente, existe a possibilidade da adoção por casais homoafetivos, diante do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no ano de 2011, desde que preenchidos os elementos necessários, com exceção ao da diversidade dos sexos, bem como ausentes os impedimentos previstos no artigo 1521 do Código Civil.

De tal modo, os autores concluem que:

[...] se o Estatuto autoriza a adoção conjunta por casais que vivam em união estável sem fazer qualquer menção quanto ao sexo dos conviventes, e tanto o STJ quanto o STF reconhecem a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, não há mais argumentos para – juridicamente – se dizer que a adoção por casais homoafetivos é ilegal. Portanto, hoje, no Brasil, é lícita a adoção por casais homoafetivos (2012, p. 212).

Apesar de ser lícita a adoção homoafetiva no Brasil, Spengler (2011, p. 359) ressalta que a omissão legal acerca da questão deriva da preocupação com o bem-estar da criança ou adolescente que, diversas vezes, embasa-se no preconceito. Para a autora, a discriminação, o abalo moral e psicológico e o desenvolvimento psicoemocional dos adotados por homossexuais são preocupações afastadas por estudos realizados com famílias ditas não convencionais.

Nesse sentido, Farias e Maia (2009, p. 69) acrescentam o entendimento de estudiosos de que “a orientação sexual da criança independe da orientação sexual dos pais, o importante para seu desenvolvimento global saudável são os valores que lhe são passados sobre ambos os sexos”, da mesma forma que “se a orientação sexual dos pais influenciasse diretamente a dos filhos, nenhum homossexual poderia ter sido concebido e educado dentro de um modelo heterossexual de família”.

Vale transcrever o julgamento do autor Marcos Rolim, há dez anos, acerca do preconceito que impede o deferimento da adoção homoafetiva:

Temos, no Brasil, cerca de 200 mil crianças institucionalizadas em abrigos e orfanatos. A esmagadora maioria delas permanecerá nesses espaços de mortificação e desamor até completarem 18 anos porque estão fora da faixa de adoção provável. Tudo o que essas crianças esperam e sonham é o direito de terem uma família no interior das quais sejam amadas e respeitadas. Graças ao preconceito e a tudo aquilo que ele oferece de violência e intolerância, entretanto, essas crianças não poderão, em regra, ser adotadas por casais homossexuais. Alguém poderia me dizer por quê? Será possível que a estupidez histórica construída escrupulosamente por séculos de moral lusitana seja forte o suficiente para dizer: “Sim, é preferível que essas crianças não tenham qualquer família a serem adotadas por casais homossexuais”? Ora, tenha santa paciência. O que todas as crianças precisam é cuidado, carinho e amor (2002).

Muito embora até os dias de hoje remanesçam preceitos preconceituosos no tocante à possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos, construções jurisprudenciais vêm concedendo a adoção de menores a casais do mesmo sexo, partindo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e da união das condições necessárias para atender aos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.

A exemplo disso, no ano de 2005, a Defensoria Pública do Estado da Comarca de Bagé foi procurada por um casal homoafetivo que desejava adotar duas crianças, as quais já permaneciam sob seus cuidados, a fim de regularizar a adoção conjunta para que os infantes pudessem ser incluídos na dependência previdenciária, no plano de saúde, dentre outros benefícios.

Após o ingresso da ação, o Ministério Público do Estado manifestou-se contrariamente ao pedido e, diante da sentença que o julgou procedente, interpôs recurso de apelação. Todavia, o Tribunal de Justiça do Estado manteve, por unanimidade, a sentença, razão pela qual o órgão ministerial novamente interpôs recursos, desta vez junto ao STJ e ao STF.

Em entrevista realizada no dia 08 de outubro de 2012 com o Promotor de Justiça André Barbosa de Borba, este declarou que, anteriormente, possuía o entendimento da impossibilidade da adoção homoafetiva, “tendo em vista o disposto no artigo 1622 do Código Civil, o qual vedava a adoção por duas pessoas que não fossem casadas ou não vivessem em união estável”, da mesma forma que ponderou o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, o qual prevê que a união estável configura-se entre homem e mulher.

Entretanto, atualmente, o Promotor de Justiça compreende que:

[...] em razão da revogação do artigo 1622 do Código Civil pela Lei nº 12.010/2009 e, principalmente, da decisão do STF reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, inexiste óbice jurídico ao deferimento da adoção em tais situações, cabendo apenas o exame do caso sob a ótica do melhor interesse da criança ou adolescente (verificação, no caso concreto, das condições dos pretendentes e dos benefícios ao infante). 

Por outro lado, em entrevista realizada no dia 10 de outubro de 2012, com a presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, Patrícia Kettermann, a qual ingressou com a ação de adoção homoafetiva, quando atuava como Defensora Pública na Comarca de Bagé, esta ressaltou que a concessão da adoção homoafetiva “trata-se de garantir dignidade e tratamento isonômico e não discriminatório”, da mesma forma que visa tanto à tutela das crianças e adolescentes envolvidos, quanto dos pais e mães.

A entrevistada igualmente abordou a possibilidade jurídica dos adotados terem registrados em suas certidões de nascimento o nome dos pais ou das mães. Ainda afirmou que, mais do que possível, é desejável, uma vez que se trata de juridicizar a situação fática.

Corroborando o pensamento da Defensora Pública, a Promotora de Justiça Luciana Cano Casarotto, atuante no Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Bagé, em entrevista realizada no dia 12 de novembro de 2012, declarou que “o norte que deve guiar o instituto da adoção, como referido no Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre deve ser seu melhor interesse, seu bem-estar”, bem como observou que, de fato, o importante não é a orientação sexual dos adotantes, mas as suas condições psicológicas e sociais. A Promotora de Justiça ainda lembrou que, apesar de não haver discussão a respeito da letra fria da lei prever que cada um possui uma mãe e um pai, seria injusto registrar na certidão de nascimento da criança ou adolescente somente o nome de um dos adotantes, em razão dos prejuízos decorrentes, por exemplo, na esfera sucessória.

Vale registrar a contribuição do casal homoafetivo, autor do processo cuja decisão proferida nesta Comarca foi pioneira no Estado e no país em conceder a adoção de crianças a um casal do mesmo sexo. Em entrevista realizada no dia 10 de novembro de 2012, Lídia e Luciana declararam não sofrerem preconceitos no tocante a sua orientação sexual, advertiram não terem sido influenciadas por algum familiar homossexual e entendem que a homoafetividade é inata, pois não existe a possibilidade de escolha, simplesmente se é. O casal informou que está junto há 15 anos e, em 08 de dezembro de 2012, completará um ano desde que a sua união estável converteu-se em casamento.

Em relação aos filhos adotivos, as entrevistadas responderam que estes entendem que formam uma família, chamando-as, inclusive, de “mamãe Lídia e mamãe Luciana”, e, igualmente, não são alvos de preconceito, mas, mais do que isso, a título de desmistificação dos preconceitos, revelaram que os filhos jamais precisaram realizar tratamentos psicológicos para compreender a formação de sua família.

Finalizando a entrevista, o casal desejou deixar como mensagem que a família independe de parentescos consanguíneos, e que um documento não é capaz de determinar o afeto entre pessoas. Luciana ainda enalteceu a atuação da Defensora Pública Patrícia Kettermann na ação de adoção que concedeu a ela e a Lídia a possibilidade de adotar.

Em suma, mister destacar a conclusão dos autores Gagliano e Pamplona Filho a respeito do julgamento do Recurso Especial interposto pelo Ministério Público Estadual, que teve como relator o Ministro Luis Felipe Salomão, sobre o caso concreto:

[...] a adoção é um ato sagrado de amor, não cabendo ao Judiciário, sob nenhum argumento, se verificada a garantia do bem-estar da criança ou do adolescente, impedir a sua concretização, pois, em assim agindo, desrespeitaria a maior das leis, segundo a qual devemos sempre amar o nosso semelhante como a nós mesmos (2011, p. 505) [grifo do autor].   


6 CONCLUSÃO

Trata-se o instituto da adoção de uma medida protetiva, pois insere a criança ou o adolescente em uma família substituta, na qual permanecerá vinculado através do parentesco civil com o adotante, que, para isso, deverá preencher requisitos subjetivos e objetivos à adoção, disciplinados, desde o advento da Lei n.º 12.010/2009, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Aparentemente um procedimento processual simples, a evolução do modelo familiar fez com que as famílias contemporâneas, chamadas não convencionais, desejassem adotar. Em busca de realizar o sonho da paternidade/maternidade, os casais homoafetivos passaram a reclamar o direito à descendência, bem como desejavam propiciar à criança e ao adolescente o direito à ascendência.

No entanto, o ordenamento jurídico positivo, apesar da evolução do conceito da homossexualidade para modo de ser e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, não contempla a possibilidade da adoção homoafetiva.

Em razão disso, construções jurisprudenciais foram firmadas a fim de suprir as lacunas legislativas, garantindo os direitos e a igualdade entre os heterossexuais e os homossexuais, os quais tiveram suas uniões reconhecidas como estáveis e, posteriormente, foram convertidas em casamento, por exemplo. Todavia, a decisão jurisprudencial pioneira acerca da possibilidade da adoção homoafetiva de crianças e adolescentes sobreveio somente no ano de 2005, na justiça gaúcha, sendo firmada, em seguida, junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça.

Por derradeiro, conclui-se que, apesar da ausência de previsão legal acerca da adoção homoafetiva e do preconceito referente à incapacidade de pessoas com orientação homossexual exercerem a paternidade/maternidade, prevalece, sobretudo, o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, cujo bem-estar deve ser resguardado pelo Estado, por meio da tutela jurisdicional e do direito à família, que, mais do que constitucional, busca reconhecer a existência de elos formados por raízes do coração.


REFERÊNCIAS

Conceito da Família Eudemonista. Disponível em: <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20081001121903207 > Acesso em: 16/09/2012 à 00h43min.

Conceito Histórico da Família. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Fam%C3%ADlia> Acesso em: 20/10/2012 às 16h03min.

Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Dias, Maria Berenice. Diversidade sexual e direito homoafetivo/coordenação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

Farias, Mariana de Oliveira; Maia, Ana Cláudia Bortolozzi. Adoção por homossexuais: a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica. Curitiba: Juruá, 2009.

Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. v. IV.

Girardi, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005.

Moscheta, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

ROLIM, Marcos. Casais homossexuais e adoção. Disponível em: <http://www.rolim.com.br/cronic162.htm> Acesso em: 26/10/2012 à 01h42min.

Rossato, Luciano Alves; Lépore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Lei 8.069: artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

Rossato, Luciano Alves; Lépore, Paulo Eduardo. Comentários à Lei Nacional da Adoção – Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009. São Paulo: Ed. RT, 2009.

Silva Júnior, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

UZIEL, Anna Paula. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.


APÊNDICES

APÊNDICE A – Entrevista com o Promotor de Justiça

APÊNDICE B – Entrevista com a Defensora Pública

APÊNDICE C – Entrevista com o Casal

APÊNDICE D – Entrevista com a Promotora de Justiça

APÊNDICE A – Entrevista com o Promotor de Justiça

Identificação:

- Nome: ANDRÉ BARBOSA DE BORBA

- Profissão/Cargo: PROMOTOR DE JUSTIÇA

- Órgão Público: MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL

- Outros dados que julgar importantes à pesquisa:

Pesquisa:

P - Qual o seu entendimento a respeito da possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos?

R - Anteriormente, eu tinha o entendimento no sentido da impossibilidade, tendo em vista o disposto no artigo 1622 do Código Civil, o qual vedava a adoção por duas pessoas que não fossem casadas ou não vivessem em união estável. Assim, como a Constituição Federal (art. 226, § 3º) prevê que a união estável configura-se entre homem e mulher, não seria viável a adoção por duas pessoas do mesmo sexo (assim me manifestei em processo no ano de 2005).

Entretanto, atualmente, em razão da revogação do art. 1622 do CC pela Lei nº 12010/2009 e, principalmente, da decisão do STF reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, entendo não haver mais óbice jurídico ao deferimento da adoção em tais situações, cabendo apenas o exame do caso sob a ótica do melhor interesse da criança ou adolescente (verificação, no caso concreto, das condições dos pretendentes e dos benefícios ao infante). 

P - Juridicamente, é possível que crianças e adolescentes possam ter duas mães ou dois pais registados na Certidão de Nascimento?

R - Sim.

P - Você já atuou em processo que tutelou a adoção homoafetiva?

R - Sim.    

P - Qual foi o seu posicionamento frente ao caso concreto?

R - Como acima informado (em 2005).     

P - A ação resultou procedente ou improcedente?

R - Procedente.      

P - Quais os fundamentos jurídicos empregados pelo Magistrado no momento de prolatar a decisão judicial?

R - Entendeu que não havia vedação legal ao pedido e que as boas condições reunidas pelas requerentes eram suficientes ao seu deferimento. 

P - Você concordou com a sentença proferida?

R - Não.  

P - Houve interposição de recurso?

R - Sim.

P - Qual foi o posicionamento do julgador “ad quem”?

R - Foi confirmada a sentença.

P - Sob quais fundamentos jurídicos embasou sua decisão judicial?

R - Reportou-se o Tribunal aos fundamentos da sentença.

P - Outros dados que julgar importantes à pesquisa:

APÊNDICE B – Entrevista com a Defensora Pública

Identificação:

- Nome: Patrícia Kettermann

- Profissão/Cargo: Defensora Pública

- Órgão Público: Defensoria Pública do Estado

- Outros dados que julgar importantes à pesquisa:

Pesquisa:

P - Qual o seu entendimento a respeito da possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos?

R - A adoção de crianças por casais formados por pessoas do mesmo sexo não só é possível como é tutelada pelo ordenamento jurídico nacional e internacional.

O direito à proteção jurídica à situação fática posta pode ser entendido tanto sob o ponto de vista da tutela das crianças ou adolescentes envolvidos, quanto dos pais ou mães.

Trata-se de garantir dignidade e tratamento isonômico e não discriminatório.

P - Juridicamente, é possível que crianças e adolescentes possam ter duas mães ou dois pais registados na Certidão de Nascimento?

R - Perfeitamente possível. Mais do que isto: desejável.

Se as crianças e /ou adolescente têm faticamente dois pais ou duas mães, juridicizar esta situação tem por objetivo proteger o melhor interesse deste público vulnerável.

Significa dizer que o Direito, em nome inclusive do Princípio da Proteção Integral, apenas vai reconhecer a situação fática posta (que não se alterará a partir ou por causa de eventual decisão de improcedência) possibilitando a incidência de efeitos jurídicos com vistas a garantir os direitos humanos dos envolvidos.

P - Você já atuou em processo que tutelou a adoção homoafetiva? Qual foi o seu posicionamento frente ao caso concreto? A ação resultou procedente ou improcedente? Quais os fundamentos jurídicos empregados pelo Magistrado no momento de prolatar a decisão judicial? Você concordou com a sentença proferida? Houve interposição de recurso? Qual foi o posicionamento do julgador “ad quem”? Sob quais fundamentos jurídicos embasou sua decisão judicial?

R - Atuei em processo que tramitou junto à Vara da Infância e Juventude da Comarca de Bagé no ano de 2003. O pedido resultou procedente e foi o primeiro precedente jurisprudencial do país neste sentido. O Magistrado, Dr. Marcos Danilo Edon Franco, corajoso pioneiro, utilizou argumentos de matriz constitucional e infraconstitucional, partindo da questão da dignidade da pessoa humana e da necessidade de garantir tratamento isonômico até o manejo de princípios norteadores do sistema de garantias infantojuvenis. A Defensoria Pública, que atuava em favor das mães e das crianças envolvidas evidentemente concordou com a sentença, contra a qual foi interposta apelação pelo Ministério Público. A apelação foi improvida com a manutenção integral da decisão de primeiro grau de jusrisdição, o que desafio o manejo dos Recursos Especial e Extraordinário pelo Ministério Público.

P - Outros dados que julgar importantes à pesquisa:

R - A ação mencionada foi o primeiro caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, transformando-se no pioneiro e mais importante precedente jurisprudencial sobre o assunto.

APÊNDICE C – Entrevista com o Casal

- Nome: Lídia Guterres e Luciana Maidana

- Idade: 47 anos e 38 anos

- Profissão: fisioterapeuta e psicóloga

- Estado Civil: casadas

- N.º de Filhos: 04

- Outros dados que julgarem importante à pesquisa:

  1. Família:

P - A família de vocês sempre soube da sua orientação sexual?

R - Lídia: Descobriram quando eu tinha entre 17 e 18 anos.

R - Luciana: Minha família descobriu quando fui morar com a Lídia.

P - A família de vocês rejeitou/rejeita a sua orientação sexual?

R - Não

P - Algum membro da família de vocês é homossexual?

R - Lídia: Sim.

R - Luciana: Não.

P - Esse membro da sua família influenciou na sua orientação sexual?

R - Não.

P - Outros dados que julgarem importante à pesquisa:

  1. Sexualidade e Família:

P - Vocês entendem que a homossexualidade é inata ou adquirida? Por quê?

R - Inata, você não escolhe, simplesmente é.

P - Há quanto tempo vocês estão juntas?

R - Há 15 anos.

P- Vocês desejam constituir o matrimônio ou já constituíram?

R - Nós vamos fazer 01 ano de casadas dia 08 de dezembro.

P - Como é formada a família de vocês hoje?

R - Somos nós duas e os 04 filhos.

P - Vocês sofrem preconceitos? Fale sobre eles.

R - Não sofremos preconceitos, mas se sofrêssemos não nos importaríamos.

P - Outros dados que julgarem importante à pesquisa:

  1. Adoção:

P - Como surgiu a ideia de adoção?

R - Lídia: Sempre quis ter filhos, mas não queria engravidar.

R - Luciana: Sempre quis constituir uma família e ter filhos.

P - Vocês desejaram adotar juntas?

R - Sim.

P - Como foi o processo de adoção?

R - Os primeiros dois filhos estavam no nome da Luciana, depois registramos no nome das duas. Na certidão de nascimento de nossos filhos está mãe Luciana e mãe Lídia, avós maternos e avós maternos.

P - Como aconteceu a escolha das crianças? Vocês tiveram preferências?

R - Não, nós queríamos ter um filho.

P - Como vocês acham que são vistos pela sociedade como casal e como família?

R - Todos nos enxergam como família, se alguém possui uma opinião diferente, nunca tivemos conhecimento.

P - Outros dados que julgarem importante à pesquisa:

  1. Filhos Adotivos:

P - Todos foram adotados simultaneamente?

R - Não, adotamos dois filhos e, posteriormente, adotamos mais dois.

P - Seus filhos sabem que são adotados?

R - Sim.

P - Qual a concepção de família que eles têm? Entendem que formam uma família?

R - Sim.

P - Como eles chamam vocês?

R - Mamãe Lídia e mamãe Luciana.

P - Seus filhos sofrem algum tipo de preconceito?

R - Luciana: Não.

P - Você sabe a orientação sexual de seus filhos?

R - É muito cedo para sabermos, a idade deles é 10, 08, 05 e 02 anos.

P - Algum dos seus filhos apresenta problema psicológico? Fizeram ou fazem algum tratamento psicológico para entender a formação de sua família?

R - Não.

R - Luciana: nós sempre conversamos com eles.

P - Seus filhos sentem a ausência da figura paterna?

R - Lídia: Estamos falando de crianças, acredito que quando tiverem mais idade terão maturidade para questionar.

P - Outros dados que julgarem importante à pesquisa:

  1. Mensagem final:

P - Qual mensagem você gostaria de deixar sobre a sua família?

R - Lídia: Família é família, independente de ser de sangue ou não, tem pessoas que não são de nossa família, mas que consideramos como filhos. Um papel, um documento, não é capaz de determinar o afeto, mas é necessário para, por exemplo, matricular a criança na escola... Mas no que diz respeito ao sentimento, não é necessário que a pessoa seja da sua família para que exista o afeto.

R - Luciana: É importante lembrar a atuação da nossa defensora, a Drª Patrícia Ketterman, que entrou com a ação de adoção no ano de 2005 e fez com que fosse possível chegarmos onde estamos agora.

APÊNDICE D – Entrevista com a Promotora de Justiça

  1. Identificação:

- Nome: Luciana Cano Casarotto

- Profissão/Cargo: Promotora de Justiça

- Órgão Público: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul

- Outros dados que julgar importantes à pesquisa: atua perante o Juizado da Infância e da Juventude de Bagé

  1. Pesquisa:

P - Qual o seu entendimento a respeito da possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos?

R - O norte que deve guiar o instituto da adoção, como referido no Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre deve ser seu melhor interesse, seu bem-estar. Por outro lado, pessoas com orientação sexual diversa da heterossexualidade são capazes, ou mais, ou menos, do que pessoas heterossexuais. Assim, o que importa, de fato, é se a pessoa, ou casal, que pretende a adoção possui aptidão psicológica e social para tanto, não sua orientação sexual.

P - Juridicamente, é possível que crianças e adolescentes possam ter duas mães ou dois pais registados na Certidão de Nascimento?

R - A letra fria da lei afirma que cada um tem um pai e uma mãe. Não há discussão sobre isso. Entretanto, a vida é, de longe, muito mais dinâmica do que o direito positivo. Pode-se, assim, interpretar que, se for para o bem-estar da criança, ela seja criada por dois homens, ou duas mulheres. Neste caso, seria injusto com a criança seu registro apenas em nome de um(a) dos adotantes, pois certamente isso acarretaria prejuízos nas mais diversas esferas (sucessórias, de nome, etc.), não sendo razoável que questões meramente formais possam sobrepor-se aos direitos do adotado (a).

P - Você já atuou em processo que tutelou a adoção homoafetiva? Qual foi o seu posicionamento frente ao caso concreto? A ação resultou procedente ou improcedente? Quais os fundamentos jurídicos empregados pelo Magistrado no momento de prolatar a decisão judicial? Você concordou com a sentença proferida? Houve interposição de recurso? Qual foi o posicionamento do julgador “ad quem”? Sob quais fundamentos jurídicos embasou sua decisão judicial?

R - Sim, ao que recordo por duas vezes. O posicionamento adotado já foi externado, qual seja, de que as aptidões psicológica e social sobrepõem-se à orientação sexual do(a) adotante. Sendo assim, em ambos os casos, os filhos já estavam há anos com suas famílias homossexuais, e a regularização da adoção pelas pessoas que os criaram somente lhes traria benefícios (como direito a plano de saúde, sucessão, o nome...). Ambas as ações foram procedentes, utilizando-se praticamente os mesmos argumentos (aptidão psicológica e social, além da regularização da questão fática) Não houve interposição de recursos.


Notas

[1]  Eudemonista é considerada a família decorrente da convivência entre pessoas por laços afetivos e solidariedade mútua [...] Para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo se deu a nomenclatura de família eudemonista, que busca a felicidade individual, vivendo um processo de emancipação de seus membros. [...] A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíprocas (DIAS, 2006, p. 45).


Autor

  • Fabiana Janke Batista

    Advogada. Pós-Graduada em Direito Contratual pelo Centro Universitário Uniamérica. Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões pla Faculdade Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP. Mediadora Privada de Conflitos Cíveis, Empresariais, Familiares e de Resolução de Disputas On-line. Presidente da Comissão de Direitos Sociais da OAB Subseção Bagé/RS. Membro da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Bagé/RS. Membro da Comissão Especial de Mediação e Práticas Colaborativas da OAB Subseção Bagé/RS.

    Textos publicados pela autora


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Fabiana Janke. A possibilidade da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos à luz da doutrina e da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4242, 11 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31358. Acesso em: 27 abr. 2024.