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O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil

O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil

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INTRODUÇÃO

O Código Civil aprovado, Lei n º 10.406 de 10/01/02, confirmou o "sentido social" que presidiu a feitura do projeto. Optou-se por preservar, sempre que possível, as disposições do código atual, mas é inegável que o Código atual obedeceu ao espírito de sua época e as alterações se fizeram necessárias.

Em contraste com o sentido individualista que condicionava o Código Civil anterior, o "sentido social" é uma das características mais marcantes do Código Civil ora em vigor.

No item 26 do Parecer Final do Relator ao Projeto do Código Civil, o Senador Josaphat Marinho, ressaltou a necessidade de prudência no prosseguimento dos trabalhos legislativos, cabendo proceder-se "com espírito isento de dogmatismo, antes aberto a imprimir clareza, segurança e flexibilidade ao sistema em construção, e portanto adequado a recolher e regular mudanças e criações supervenientes" [1].

Há algum tempo, vem sendo sentido o crescente intervencionismo estatal na atividade privada, acarretando a mitigação do princípio da autonomia da vontade e por conseqüência enfraquecendo a idéia da obrigatoriedade das convenções, com a crescente admissão de revisão dos contratos.

Com o fim do individualismo do Século XIX, o paradigma do dirigismo contratual trouxe consigo alguns conceitos, como a ordem pública, a função social, o interesse público e a boa fé.

Ao fim da 2ª Guerra Mundial, e diante do amadurecimento do mundo, os conceitos amadurecem e passam a possuir contornos mais definidos, enquanto que a ordem pública perde seu caráter intervencionista e passa a preservar a dignidade humana.

Anteriormente o texto baseava-se na segurança da lei, na idéia de que a lei deveria ser universal geral, prever tudo (quanto o possível), onde o Juiz era uma figura automata, o famoso "boca da lei", la bouche de la loi, na linguagem de Montesquieu.

Já no início do Século XX esses conceitos foram alterados, substituídos por aquilo que hoje chama-se de "sistema aberto". Nesse, o ponto central deixou de ser o texto legal, passou a ser o juiz e deixamos de utilizar conceitos determinados para utilizarmos cláusulas gerais.

No direito pós-moderno o Código Civil deixou de ser o principal ordenamento jurídico para dar lugar à Constituição Federal e aos vários e importantes microssistemas (como por exemplo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, entre outros).

Os textos constitucionais passaram a definir princípios relacionados a temas antes exclusivamente do Código Civil. A função destes princípios é a de integrar e conformar a legislação ordinária à Lei Fundamental. A adoção destes conceitos jurídicos indeterminados, que trouxeram como vantagem a possibilidade de adaptação das normas às novas necessidades da coletividade, deixando de ser apenas mecanismos supletivos, para adquirirem a função de fonte de direito.

É dentro desse contexto que surge o princípio da boa-fé objetiva.


I – CLÁUSULAS GERAIS

Constituem janelas abertas para a mobilidade da vida, e revolucionam a tradicional teoria das fontes.

Como esclarece Judith Hofmeister Martins Costa, através do sintagma "cláusula geral". "costuma-se também designar tanto determinada técnica legislativa em si mesma não-homogênea, quanto certas normas jurídicas, devendo, nessa segunda acepção, ser entendidas pela expressão "cláusula geral" as normas que contêm uma cláusula geral.

É ainda possível aludir, mediante o mesmo sintagma, às normas produzidas por uma cláusula geral" [2]

Como é próprio do sistema de codificação, o Código Civil atual não abrangem materiais que envolvam questões que vão além dos lindes jurídicos, albergando somente as questões que se revistam de certa estabilidade, de certa perspectiva de duração, sendo incompatível com novidades ainda pendentes de maiores estudos.

O Código anterior possuía excessivo rigorismo formal, ou seja, quase sem referência à equidade, boa-fé, justa causa ou quaisquer critérios éticos. Já o novo Código Civil conferiu ao Juiz não só o poder de suprir lacunas, como também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos.

Os novos tipos de normas buscam formular hipóteses legais mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente vagos e abertos. As cláusulas gerais rejeitam a indicação de conceitos perfeitos e acabados pois buscam a vantagem da mobilidade, proporcionada pela intencional imprecisão, e por isso permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos resolvidos por via jurisprudencial e não legal.

As cláusulas gerais podem ser de três tipos, e em outro trabalho Judith Hofmeister Martins Costa [3] estruturam-na, a saber:

Multifacetárias e multifuncionais, as cláusulas gerais podem ser basicamente de três tipos, a saber: a) disposições de tipo restritivo, configurando cláusulas gerais que del 26 do Parecer Final do Relator ao Projeto do Código Civil, o Senador Josaphat Marinho, ressaltou a necessidade de prudência no prosseguimento dos trabalhos legislativos, cabendo proceder-se "com espírito isento de dogmatismo, antes aberto a imprimir claregais, que têm sua fonte no princípio da liberdade contratual; b) de tipo regulativo, configurando cláusulas que servem para regular, com base em um princípio, hipóteses de fato não casuisticamente previstas na lei, como ocorre com a regulação da responsabilidade civil por culpa; e, por fim, de tipo extensivo, caso em que servem para ampliar uma determinada regulação jurídica mediante a expressa possibilidade de serem introduzidos, na regulação em causa, princípios e regras próprios de outros textos normativos. É exemplo o artigo 7º do Código do Consumidor e o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal, que reenviam o aplicador da lei a outros conjuntos normativos, tais como acordos e tratados internacionais e diversa legislação ordinária [4]

Os elementos que preenchem seu significado não são necessariamente, elementos jurídicos, pois virão de conceitos sociais, econômicos ou moral. A principal função das cláusulas gerais, é a de permitir que no sistema jurídico de direito escrito, a criação da norma jurídica ficará ao alcance do juiz, atribuindo à sua voz a dicção legislativa, pela reiteração dos casos e pela reafirmação, no tempo, da ratio decidendi dos julgados e a exata dimensão da sua normatividade.

Nas primeiras linhas do Parecer de aprovação do Relator do Projeto do Código Civil no Senado Federal, Senador Josaphat Marinho, assim expressa: "(...) o Projeto de Código Civil em elaboração no ocaso de um para o nascer de outro século, deve traduzir-se em fórmulas genéricas e flexíveis em condições de resistir ao embate de novas idéias (...) [5].

Clóvis do Couto e Silva, integrante da mesma comissão, escreveu em trabalho acerca da proposta da nova lei civil:

"O pensamento que norteou a Comissão que elaborou o projeto do Código Civil brasileirofoi o de realizar um Código central, no sentido que lhe deu Arthur Steinwenter, sem a pretensão de nele incluir a totalidade das lei em vigor no País (...). O Código Civil, como Código Central, é mais amplo que os código civis tradicionais. É que a linguagem é outra, e nela se contém "clausulas gerais", um convite para uma atividade judicial mais criadora, destinada a complementar o corpus júris vigente com novos princípios e normas" [6].

As cláusulas gerais não estão dispersas no Código Civil. É nos livros concernentes ao Direito de Família e ao Direito das Obrigações que encontramos a maior parte das cláusulas.


II – CONCEITO

A boa-fé objetiva constitui um princípio geral, aplicável ao direito.

Segundo Ruy Rosado de Aguiar [7] podemos definir boa-fé como "um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avenca".

Como se vê, a boa-fé objetiva diz respeito à norma de conduta, que determina como as partes devem agir. Todos os códigos modernos trazem as diretrizes do seu conceito, e procuram dar ao Juiz diretivas para decidir.

Mesmo na ausência da regra legal ou previsão contratual específica, da boa-fé nascem os deveres, anexos, laterais ou instrumentais, dada a relação de confiança que o contrato fundamenta.

Não se orientam diretamente ao cumprimento da prestação, mas sim ao processamento da relação obrigacional, isto é, a satisfação dos interesses globais que se encontram envolvidos. Pretendem a realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes.

Na questão da boa-fé analisa-se as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico. Com isso, interpreta-se a vontade contratual.

Deve-se crer que, em princípio, nenhum contratante celebra contrato sem a necessária boa-fé. Mas, a má-fé inicial ou interlocutória de ser punida. E em cada caso o juiz deverá definir quando e onde foi o desvio dos participes do contrato, e levará em conta a hermenêutica e interpretação.

As cláusulas gerais inserida no Novo Código Civil, não nos dão perfeita idéia do conteúdo, pois tem tipificação aberta e com conteúdo dirigido aos Juizes. Mas, constituem-se em mecanismo técnico-jurídico para aferição da abusividade do negócio jurídico ou da interpretação da vontade.

O equilíbrio contratual pretendido não é apenas o econômico, pretende-se preservar a função econômica para a qual o contrato foi concebido, resguardando-se a parte que tiver seus interesses subjugados aos de outra.

O primeiro jurista a mencionar, no Brasil, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva foi Emilio Betti, em 1958 [8]. No entanto, o Código Comercial de 1850 previa a boa-fé objetiva como cláusula geral em seu artigo 131, I, como elemento de interpretação dos negócios jurídicos, como segue:

Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:

1. a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e a natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;...

Esse artigo não teve aplicação doutrinária ou jurisprudencial e somente agora a boa-fé recebeu tratamento legislativo próprio.

Segundo Renata Domingues Barbosa Balbino [9], entre a boa-fé objetiva e a subjetiva há um elemento comum – a confiança, mas somente na objetiva há um segundo elemento – o dever de conduta de outrem. Ensina ainda:

"a boa-fé objetiva possui dois sentidos diferentes: um sentido negativo e um positivo. O primeiro diz respeito à obrigação de lealdade, isto é, de impedir a ocorrência de comportamentos desleais: o segundo diz respeito à obrigação de cooperação entre os contratantes, para que seja cumprido o objeto do contrato de forma adequada, com todas as informações necessárias ao seu bom desempenho e conhecimento (como se exige, principalmente, nas relações de consumo). [10]


III – UMA ABORDAGEM SOBRE PACTA SUNT SERVANTA E REBUS SIC STANTIBUS

O presente estudo trata das causas e dos efeitos das relações jurídicas entre as pessoas. Analisa-se a abrangência da manifestação das vontades, que cria, muda ou encera direitos sem esbarrar no emaranhado de interesses.

Mas, torna-se imprescindível analisarmos estes temas correlatos, que, assim como a boa-fé objetiva, destinam-se à garantia de um fim juridicamente protegido ou, pelo menos, almejado.

Primeiramente, o contrato só passa a ser obrigado entre as partes quando atendidos todos os seus pressupostos de validade, os quais Maria Helena Diniz [11] chama "elementos essenciais". E, estando perfeito, um contrato existe para ser cumprido.

Uma vez firmado determina-se que os contratos devem ser cumpridos, sob pena de sancionar o inadimplente, já que faz lei entre as partes.

Com a pacta sunt servanda preserva-se a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e a segurança jurídica do nosso ordenamento jurídico. Esse principio da força obrigatória é uma regra, e uma vez manifestada a vontade, as partes ficam vinculadas e geram os direitos e obrigações, sujeitando-se a estes do mesmo modo que qualquer norma legal.

São requisitos subjetivos para a validade do negócio jurídico:

- a livre manifestação de vontades;

- a capacidade genérica e específica dos contraentes;

- o consentimento.

São requisitos objetivos para a validade do negócio jurídico:

- a licitude do objeto;

- a possibilidade física e jurídica;

- a economicidade;

- o objeto determinado ou determinável.

Além disso, no caso dos negócios jurídicos formais, exige-se a forma legal determinada, ou não vedada e a prova admissível [12].

Assim, atendidos estes pressupostos, o contrato obriga as partes de forma quase absoluta. Quase absoluta por que deverão ser respeitados outros princípios que coexistem. São eles:

- o da boa-fé;

- o da legalidade;

- o princípio do consensualismo;

- o princípio da comutatividade contratual;

- o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos;

- outros princípios gerais de direito que integram o nosso sistema.

Orlando Gomes [13] ensina que "se ocorrem motivos que justificam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para decretação da nulidade ou da resolução do contrato, nunca para modificação de seu conteúdo."

Mas, o Professor faleceu em 1998 e nas últimas décadas a tendência doutrinária e jurisprudencial vem se firmando no sentido de que é preciso intervir e corrigir as distorções e o desequilíbrio nos contratos.

Hoje é imperiosa a defesa da ordem pública e o equilíbrio jurídico, contra invocação do pretenso "direito adquirido" alegado pelo contratante, ora credor.

No campo do direito das obrigações estão inseridas cláusulas que pugnam pelo cumprimento integral do contrato, e outras que permitem a revisão do contrato, quando ocorreram fatos imprevistos ou imprevisíveis, posteriores a celebração do contrato.

Se permitirá a revisão de cláusulas contratuais sempre que houver desequilíbrio entre as prestações e a contraprestações, e uma conseqüente onerosidade excessiva suportada por uma parte em benefício do enriquecimento fácil da outra parte contratante.

Na revisão contratual não se pretende a declaração de nulidade do contrato, mas sim a garantia da execução eqüitativa do pacto. Como efeito da cláusula rebus sic stantibus.

A expressão rebus sic stantibus (estando as coisas assim) é empregada para designar a teoria da imprevisão. A ocorrência de um fato imprevisível posterior à celebração do contrato, deverá permitir que esse se ajuste à nova realidade.

Quando da execução da obrigação contratual, se houveram mudanças não há como exigir-se seu cumprimento nas mesmas condições pactuadas. A execução continua exigível, mas será necessário um ajuste contratual, onde se adequem suas condições.

Arnaldo Medeiros da Fonseca aponta os principais requisitos necessários à aplicação da teoria da imprevisão:

- o diferimento ou a sucessividade na execução do contrato;

- alteração nas condições circunstanciais objetivas em relação ao momento da celebração do contrato;

- excessiva onerosidade para uma parte contratante e vantagem para a outra;

- imprevisibilidade daquela alteração circunstancial. [14]

Nelson Zunino Neto acrescenta à estes outros três pressupostos, como seguem:

- o nexo causal entre a onerosidade e vantagens excessivas e a alteração circunstancial objetiva;

- a inimputabilidade às partes pela mudança circunstancial;

- a imprevisão da alteração circunstancial [15].

Em seu trabalho o autor considera que se deve acrescentar o requisito do nexo da causalidade por que só desproporção demasiada entre o ônus e o bônus das partes, ainda que tenha revisão contratual se tal contraste não for decorrente da mudança [16].

Como a mudança circunstancial (seja externa, conjuntural, provocada pela própria natureza, pelas autoridades, ou ainda pelo comportamento macroeconômico) não poderá ser imputada a qualquer dos contratantes, também não conferirá direito ao recebimento de perdas e danos, mas, somente assim permitirá a revisão judicial.

Devemos lembrar que a imutabilidade é a regra geral, mas a adoção da teoria da imprevisibilidade é a exceção, sendo aceitável como limitadora da força obrigatória, que interfere no contrato para harmonizar o fim pretendido pelas partes a efetiva execução das obrigações. Não interfere na autonomia da vontade, por que não se muda a manifestação do objetivo pretendido, só o que não está adstrito à essa vontade, e era imprevisível.

Mas, falta conceituar imprevisibilidade.

Um acontecimento é imprevisto quando não há a possibilidade de conhecimento sobre a ocorrência de um acontecimento. É a possibilidade de conhecer o que pode vir a acontecer. Dos contratantes exige-se a previsibilidade, ou seja, conhecer o que pode acontecer, ao menos aquilo que for razoavelmente previsível.

Diante disso, infere-se que, o liberalismo econômico necessita que se reprima a desigualdade entre as partes, o proveito injustificado, a onerosidade excessiva, criando mecanismos que permitem uma relatividade dogmática ao princípio da obrigatoriedade dos contratos.

O Novo Código Civil, em seu texto legal, reconhece o valor social do contrato, como meio de protecionismo social ao economicamente mais fraco nas relações contratuais, introduzindo institutos como o do estado de perigo (artigo 156), da lesão (artigo 157) e da cláusula rebus sic stantibus (artigo 478 – 480).

Com isso o Direito Civil Brasileiro pretende alcançar, da melhor maneira possível, harmonia entre os interesses coletivos, permitindo a revisão contratual mediante fundadas alterações eqüitativas. E, pela compreensão do caso concreto, conservar a eficácia do contrato e reequilibrar o negócio jurídico e sua utilidade.


IV – A FUNÇÃO SOCIAL E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS CONTRATOS

O artigo 421 do novo Código Civil determina que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato", enquanto que o artigo 422 dispõe que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé".

Verifica-se ter havido uma mudança na mens legem na concepção da finalidade da relação jurídica contratual, em relação ao Código Civil anterior. O modelo liberal, que tinha na vontade das partes a fonte criadora de direito e obrigações (desde que livremente formalizados e em observância à ordem pública), teve como resposta uma regra de conduta fundada na certeza de que todas as pessoas da sociedade serão protegidas pela lei, antes mesmo de contratarem.

Este modelo liberal trazia uma concepção clássica do contrato, onde as cláusulas eram estipuladas pelos contratantes, utilizando-se da livre manifestação da vontade como sustentáculo. A vontade expressa no contrato faria lei entre as partes. E nem mesmo o Juiz (no julgamento da causa) poderia violar a manifestação de vontade firmada.

A teoria conhecida como pacta sunt servanda encontrou ressalvas a esse absolutismo quando do surgimento da teoria da imprevisão. Mas, mesmo com fundamento nesta teoria, a sentença jamais modificaria a vontade das partes, a não ser que o pedido decorresse de situações imprevisíveis ou de onerosidade excessiva, devidamente comprovada.

Após a vontade emitida e assinada em contrato, ao direito caberia impor às partes a responsabilidade pelo cumprimento do compromisso, ou estaria em risco toda a segurança conferida ao negócio jurídico.

Mas, o contrato deveria estar sempre embasado na autonomia de vontade das partes, e o tempo demonstrou que, na realidade, não há liberdade para contratar quando este ato é realizado em momento de necessidade e pressão. Quando a realização do ato garante ao contratante a subsistência no meio social, e este não consegue exprimir a sua real vontade.

O artigo 422 enaltece os deveres éticos, exigidos nas relações jurídicas, quais sejam: a veracidade, integridade, honradez e lealdade. São regras de condutas exigíveis inseridas no reconhecimento da cláusula gerais de boa-fé objetiva. Mas, mesmo que o contrato venha a ser celebrado sob a tutela da boa-fé objetiva, deve-se ter garantido o integro equilíbrio entre os interesses privados e coletivos, sempre acentuando as diretrizes da sociabilidade do direito.

O "sentido social" é uma das características mais marcantes do novo Código Civil, ficando em claro contraste com o sentido individualista do dispositivo anterior. E em todo o Direito Privado percebe-se a intenção de compatibilizar o principio da liberdade com o da igualdade. E, em especial, no direito das obrigações, o legislador diminuiu a liberdade individual em busca do desenvolvimento de toda a coletividade, preocupado com a realidade social dos envolvidos na relação contratual.

Então, quando o texto legal dispõe sobre a função social do contrato, deve-se lembrar que "função social" é um conceito que inspira todo o nosso ordenamento jurídico, na tentativa de fundar as bases de uma justiça de natureza mais distributiva, promovendo a inclusão social dos excluídos.

Com conceito indefinido, mas de claro alcance, pretende-se que a função social apregoada no artigo 421 signifique a prevalência do interesse público sobre o privado. É preciso que cada negócio jurídico alcance os fins pactuados, impedindo-se que o contrato seja meio de destruição do bem comum, ao invés de construção deste bem pretendido.

Por exemplo, quando um homem mediano encontra-se economicamente debilitado e contrata com uma parte economicamente auto-suficiente e bem provida de informações, há probabilidades de submissão de vontade, já que a parte "frágil" jamais contestaria as condições pactuadas, diante de sua necessidade imediata de atingir o seu fim.

A instituição da função social dos contratos pretende o controle e proteção deste equilíbrio quando, objetivamente, age levando em conta as circunstancias alheias que incidam negativamente sobre o pacto. Como ensina Claudia Lima Marques:

" À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.

Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da autonomia da vontade permanecerão, mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor. É uma nova concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social. Haverá um intervencionismo cada vez maior no Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social." [17]

A liberdade de contratar, fundada na autonomia de vontade, deixou de existir diante do ideal consumerista a que fomos educados, que nos obriga a assumirmos compromissos como meio de busca de vida melhor e sucesso social. E, em resposta às modificações pelas quais a sociedade passou no curso da história, o legislador pátrio exige o respeito à função social e ao principio da boa-fé objetiva. Mas, o que muda na prática? Como serão sentidos os efeitos destes na relação jurídica praticada?

Bem, na sociedade capitalista o contrato passou a ser uma forma de batalha, onde os competidores deverão agir com boa-fé objetiva, tendo sempre em foco os ideais do Estado Social. Não serão aceitos, nesta arena, os competidores que busquem uma postura desleal ou aproveitadora. A disputa deverá evoluir de forma uniforme entre as partes, impondo aos contratantes deveres anexos as disposições contratuais.

Esse dispositivo altera também a função real dos Magistrados, que agora serão convocados quando um dos contratantes julgar-se lesado ou inferiorizado na relação obrigacional. E na analise do caso lidará com conceitos abstratos como retidão de caráter, honradez e probidade, obrigações que todos deverão arcar no trato de seus negócios.

Ao Juiz caberá delinear o "mínimo ético", e participará da construção da nova concepção de direito contratual. Por ser um sistema aberto estes conceitos poderão evoluir e modificar-se com o tempo, e de acordo com os casos concretos.

Quando da vigência da legislação anterior, o Magistrado deveria analisar o contrato levando em conta o disposto textualmente. Só caberia interpretação das clausulas obscuras, levando-se em conta a boa-fé. Com o novo dispositivo legal, a boa-fé deixou de ser forma interpretativa e foi alçada a forma de comportamento das partes. O julgador poderá corrigir a postura de qualquer dos contratantes, sempre que observar desvio de conduta ou de finalidade. Sua visão deverá esta além da letra do negócio jurídico, e alcançar as atitudes dos contratantes.


V – BOA-FÉ SUBJETIVA E BOA-FÉ OBJETIVA

Como já mencionado anteriormente, na legislação civil anterior os contratos com cláusulas obscuras eram analisados sob o prisma da boa-fé subjetiva. Já o Novo Código Civil trata a boa-fé em sua acepção objetiva.

Boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva possuem conceitos e aplicações diferentes, e neste capítulo trataremos destas conceituações e de suas aplicações.

A boa-fé objetiva teve seu conceito advindo do Código Civil Alemão, que em seu parágrafo 242 já determinava um modelo de conduta. Cada pessoa deve agir como homem reto: com honestidade, lealdade e probidade. Leva-se em conta os fatores concretos do caso, não sendo preponderante a intenção das partes, a consciência individual da lesão ao direito alheio ou da regra jurídica. O importante é o padrão objetivo de conduta.

A boa-fé subjetiva, por outro lado, denota estado de consciência, a intenção do sujeito da relação jurídica, seu estado psicológico ou intima convicção. Para sua aplicação analisa-se a existência de uma situação regular ou errônea aparência, ignorância escusável ou convencimento do próprio direito.

Antes do Código Alemão, o Código Civil Napoleônico e o Código Civil Italiano também faziam referencia à boa-fé objetiva. Mas, somente após a Segunda Guerra Mundial a jurisprudência alemã construiu a teoria da boa-fé objetiva, que veio a ser guinada à condição de princípio geral.

O parágrafo 242 do Código Civil Alemão, o mais célebre exemplo de clausula geral, é assim redigido:

"# 242 : O devedor deve (está adstrito a) cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do trafego jurídico".

No primeiro projeto do Código Civil alemão as disposições do atual parágrafo 242, bem como as do parágrafo 157, incluíam-se no texto do parágrafo 359, que era assim redigido:

"através dele (o parágrafo 359) não são apenas dados certos pontos de referencia para a averiguação das vinculações que nascem de contratos concretos; exprime-se antes, sobretudo, o princípio prático e importante de que o trafego negocial hoje é dominado pela consideração da boa-fé e, de que, quando esteja em causa a determinação do conteúdo de um contrato ou das vinculações dele resultantes para as partes, deve tornar-se essa consideração, em primeira linha, como fio condutor". (18)

O Código Civil Holandês também trata da cláusula geral da boa-fé, em seu artigo 248 do Livro das Obrigações, que prevê:

"... que as partes devem respeitar não só aquilo que convencionaram como também tudo que resulta da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade."

No texto legal, os autores holandeses não utilizaram a palavra "boa-fé", evitando confusões com a chamada "boa-fé subjetiva".

Como já foi dito, a boa-fé subjetiva tem o sentido de conhecimento ou de desconhecimento de uma situação. E a cláusula geral acima tratada, que é um princípio objetivo, no sentido de comportamento.

Assim, a boa-fé objetiva constitui um preceito de conduta a ser observado nas relações obrigacionais e portanto, ajusta-se à idéia de que o contrato é uma forma pela qual as partes buscam a consecução de fins previamente estabelecidos.

Ensina Orlando Gomes, que: "nos contratos, há sempre interesses opostos das partes contratantes, mas sua harmonização constitui o objetivo mesmo da relação jurídica contratual. Assim, há uma imposição ética que domina a matéria contratual, vedando o emprego da astúcia e da deslealdade e impondo a observância da boa-fé e lealdade, tanto na manifestação da vontade (criação do negócio jurídico) como, principalmente, na interpretação e execução do contrato". [19]


VI – O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CÓDIGO CIVIL

O Código Civil anterior não possuía tratamento legislativo próprio. Mas, o Código Comercial de 1850 já previa a boa-fé objetiva em seu artigo 131, 1, como elemento para interpretação dos negócios jurídicos, como segue:

Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:

1.a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;... (grifo nosso)

Apesar de literalmente tratado, o princípio transformou-se em letra morta, por falta de

Aplicação doutrinaria ou jurisprudencial.

O Código Civil de 1916 não previa o princípio da boa-fé objetiva como regra geral, mas previa-o com aplicação específica nos contratos de seguro, em seu artigo 1.443:

Art. 1.443. O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.

E foi tratada para aplicação na forma de boa-fé subjetiva (analisando-se o estado de consciência, com o conhecimento ou desconhecimento de uma situação) em inúmeros artigos, como seguem:

Artigo 221. Embora anulável, ou mesmo nulo se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis até ao dia da sentença anulatória.

Artigo 490. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa, ou do direito possuído.

Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

Artigo 551. Adquire também o domínio do imóvel aquele que, por dez anos entre presentes, ou quinze entre ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé.

Artigo 968. Se, aquele, que indevidamente recebeu um imóvel, o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pelo preço recebido; mas, se obrou de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos. (grifos nossos)

Posteriormente, o Código de Defesa do Consumidor previu a boa-fé objetiva, como forma de harmonizar os interesses das relações de consumo, em seus artigos 4º, III e 51, IV, respectivamente:

Artigo 4o. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

.... . . . .

III. harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;....

Artigo 1. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

......

IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade....

Mesmo antes do CDC já haviam jurisprudências dos Tribunais, que já adotavam a boa-fé nas relações contratuais.

Como importante princípio geral de direito, deve ser aplicado pela jurisprudência como intermediário entre a lei e o caso concreto.

Desde a elaboração do Novo Código Civil os doutrinadores propunham a adoção deste princípio, que é essencial no Direito das Obrigações, e com isso suprir-se as lacunas existentes.

Para frisar a importância da inserção deste princípio geral ao nosso ordenamento jurídico, devemos lembrar que este vem sendo aplicado a todo direito civil obrigacional.

O Código Civil Germânico (BGB, de 1896) deu início à concepção objetiva da boa-fé (conforme exposto no capítulo VI do presente trabalho) em seu parágrafo 242, apresenta uma cláusula geral capaz de dar flexibilidade ao sistema fechado.

Em 1996 o Código Civil Português também incluiu o princípio no direito obrigacional em vários artigos, mas em especial no artigo 762, 2ª alínea, que dispõe:

"No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé".

O Código Civil Italiano trata a boa-fé como cláusula geral, como se vê:

Artigo 1.374. Execução de boa-fé – o contrato deve ser executado segundo a boa-fé.

O Direito Civil Americano tem legislação própria que trata de toda a matéria comercial e de parte do direito contratual. Nesse Código Comercial Uniforme (UCC) há um artigo qe trata da boa-fé:

"Cada contrato ou obrigação no quadro da presente lei impõe uma obrigação de boa-fé no adimplemento ou execução do contrato".

Como mencionado anteriormente, o Código Civil anterior fazia menção expressa à boa-fé objetiva, apenas em seu artigo 1.443, e com fins específicos.

Clóvis Beviláqua, ao comentar este artigo, admitiu a prevalência do princípio da boa-fé objetiva no Direito Civil Brasileiro:

"Diz-se que o seguro é um contrato de boa-fé. Aliás todos os contratos devem ser de boa-fé".

Mas, mesmo com tantas referencias, todos os artigos tratam de um estado psíquico de conhecimento do potencial lesivo dos atos jurídicos, e não se confundem com o conceito objetivo.

Já no Novo Código Civil consagrou a positivação da boa-fé nos seguintes artigos:

Artigo 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de celebração.

Neste artigo a boa-fé objetiva tem sua função interpretativa disciplinada. Lembrando que o contrato não produz somente os deveres convencionados, há deveres não expressos que obrigam as partes. Há os deveres anexos ou secundários que decorrem implicitamente dele.

Artigo 164. Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família.

Entende-se por negócio ordinário aqueles que o devedor insolvente realiza para prover a subsistência própria e da família, ou para manutenção de seu estabelecimento comercial, e sem que com isso acarrete fraude a credores.

Este artigo estatui uma presunção de boa-fé e eficácia, mas esta presunção não é absoluta e admite prova em contrário (presunção iuris tantum).

Artigo 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substancia e na forma.

No Código Civil de 1916 a simulação era causa de anulação do negócio jurídico. Mas, o Código atual, seguindo o modelo alemão (BGB, § 117), comina nulidade para o negócio simulado. Desnecessária a prova de dano efetivo a alguém, a mentira contida, por si só, é suficiente para invalida-lo.

O Código inovou deslocando a simulação para negócio nulo, e alterando seu conceito. Na legislação anterior era necessário a aprova da "intenção de prejudicar terceiros, ou de violar disposição de lei" [20]. Agora, o novo Código considera-o nulo simplesmente por que a declaração não corresponde à vontade real dos sujeitos do negócio.

Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Traz a função de controle dos limites do exercício de um direito. No conceito sustentado por este artigo, o ato ilícito é todo fato jurídico, na categoria dos fatos humanos que, sendo aptos a produzirem efeitos jurídicos, se tornam atos jurídicos. Sempre que forem fatos humanos voluntários.

Artigo 309. O pagamento feito ao credor de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor.

Credor putativo – pessoa que passa aos olhos de todos como sendo credor e na verdade não é.

O Direito utiliza-se dos princípios da confiança e boa-fé para assegurar a complexa estrutura dos vínculos comerciais. Nesse contexto verifica-se a importância da aparência de representação para a concretização dos negócios jurídicos. Sem a boa-fé e a preponderância da aparência à realidade, estes pilares tornam-se vulneráveis.

Assim, se exteriorizada uma situação de direito capaz de enganar, e presentes os requisitos objetivos e subjetivos, aplica-se a aparência de representação como forma de defesa do devedor, gerando a responsabilidade patrimonial do suposto representado.

Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

O artigo recepcionou o princípio da boa-fé objetiva nas fases de conclusão e execução do contrato. Não abrangeu sua aplicação na fase das tratativas negociais. Há quem entenda que a teoria da boa-fé objetiva deveria estabelecer regras de interpretação induvidosas, mas acabou por positiva-la como cláusula geral.

Artigo 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.

O texto inserido no Código Civil anterior é bastante parecido. Em ambos trata a boa-fé em sua forma objetiva, mas restringe a sua aplicação ao contrato de seguro.

José Augusto Delgado, ao tratar da boa-fé como princípio influente em várias relações jurídicas, menciona que "são dois, entre outros, os essenciais princípios que o segurado e o segurador estão obrigados a cumprir na conclusão e na execução do contrato, o da boa-fé e o da veracidade". [21]

Artigo 686. A revogação do mandato, notificada somente ao mandatário, não se pode opor a terceiros que, ignorando-a, de boa-fé com ele trataram, mas ficam salvas ao constituinte as ações que no caso lhe possam caber contra o procurador.

Artigo 689. São válidos, a respeito dos contratantes de boa-fé, os atos com estes ajustados em nome do mandante pelo mandatário, enquanto este ignorar a morte daquele ou a extinção do mandato, por qualquer outra forma.

A regra geral é a revogabilidade do mandato, sempre que assim entender o mandante, podendo também haver renuncia por parte do mandante antes de expirado o prazo de vigência deste.

O mandante que decide revogar deve notificar o mandatário (judicial ou extrajudicialmente) e notificar também eventuais terceiros junto aos quais o mandatário venha exercendo seus poderes. O mandante arcará com a responsabilidade pela falta de publicidade da decisão de renuncia ou de revogação.

Artigo 814. As dívidas de jogo ou de apostas não obrigam ao pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

§ 1º. Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação, ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta a terceiro de boa-fé.

Protege-se exclusivamente o terceiro de boa-fé que venha a se tornar credor dessa dívida.

Artigo 878. Aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas ‘a coisa dada em pagamento indevido, aplica-se o disposto neste Código sobre o possuidor de boa-fé ou de má-fé, conforme o caso.

Artigo 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.

A posse de boa-fé vem estabelecida no artigo 1.201, e sua caracterização decorre da plena convicção de que o possuidor ignore o vício impeditivo da aquisição do bem.

A intenção do legislador é desestimular o comportamento daquele que age conscientemente de forma ilícita e impedir o enriquecimento ilícito.

Artigo 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção da boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

Artigo 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.

Aquele que adquire a posse, tirando-a de forma violenta de quem a possuía, não gera direitos em nosso ordenamento jurídico. Igualmente, quem exerce atos obscuros não adquire posse justa. De igual forma, quem aparenta ser possuidor, mas exerce a posse de forma precária. Estes não adquirem direito algum.

Para ser considerado possuidor de boa-fé é indispensável que esteja na condição de proprietário, ou seja possuidor legítimo; e que seu título não revele o contrário. Se embora conhecendo o vício, este toma posse da coisa, age de má-fé.

O possuidor titulado tem para si a presunção de boa-fé, presunção iuris tantum.

Artigo 1.214. O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos.

Parágrafo único. Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser restituído, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio; devem ser também restituídos os frutos colhidos com antecipação.

Artigo 1.217. O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa.

Artigo 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levanta-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

O texto legal é claro, a posse presume-se de boa-fé, até que se prove em contrário.

Os frutos naturais percebidos no decurso da posse de boa-fé pertencem ao possuidor. Após a cessação da posse de boa-fé o possuidor passa a ter a obrigação de restituir ao titular a totalidade dos frutos percebidos.

A boa-fé do possuidor cessa com a sua citação para a ação.

Artigo 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título de boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Artigo 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.

A usucapião (o vocábulo agora é utilizado no feminino) é modo originário de aquisição da propriedade. Para sua efetivação é necessário que o possuidor venha a juízo e requeira a declaração, por sentença, da situação hábil a usucapir. A sentença só declara uma situação já existente.

Os principais requisitos do instituto são: a posse e o tempo. Mesmo assim, a doutrina não é uniforme, trazendo inúmeros adeptos para a teoria subjetiva e para a teoria objetiva do conceito.

Os subjetivistas defendem que ocorre uma presunção de renuncia ao direito pelo antigo dono. Se durante um certo lapso de tempo o proprietário se desinteressa pela coisa é por que a abandonou. Já os objetivistas baseiam-se na noção de utilidade social. A coisa deve atender à sua função econômico-social, e atender ao interesse da coletividade e o possuidor pode usucapir quando utiliza a coisa segundo sua destinação sócio-economica que lhe negou o titular e desta forma atende aos interesses sociais.

A posse é transmitida aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres. Assim, se a posse era de boa-fé continua boa e válida. Mas, se era de má-fé o vício inibe o usucapião. A morte do possuidor não convalida o vício.

Artigo 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização.

A aquisição da propriedade se faz com a ocorrência dos seguintes requisitos:

- que se tenha edificado ou plantado em território alheio;

- aquele que assim procedeu deverá ter agido de boa-fé;

- o valor da plantação ou construção deve exceder consideravelmente o valor do terreno;

- tenha sido fixada judicialmente a indenização.

Se aquele que edifica, semeia ou planta em território alheio age de má-fé, o dono do terreno poderá pedir a devolução da coisa no estado primitivo, às custas do que agiu de má-fé.

Artigo 1.258. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente.

Parágrafo único. Pagando em décuplo as perdas e danos previstos neste artigo, o construtor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu, se em proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem grave prejuízo para a construção.

Artigo 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro.

Se comparado com o artigo 547 do Código Civil de 1.916, a disposição atual traz uma solução mais justa, apesar de serem discutíveis os percentuais fixados.

A boa-fé do construtor é presumida e caso provada a má-fé a solução encontra-se no parágrafo único, pois a lei não beneficiaria quem age com torpeza.

Artigo 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.

Artigo 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.

Tal como a usucapião de coisa imóvel, a usucapião de coisa móvel fixa os seguintes requisitos:

- posse com animo de dono;

- posse contínua sem contestação;

- lapso temporal;

- o justo título e a boa-fé para o caso da usucapião ordinária.

Aqui se torna pertinente toda a discussão doutrinária apresentada na usucapião de coisa imóvel.

Artigo 1.268. Feita por quem não é proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer outra pessoa, o alienante se afigurar como dono.

§ 1º. Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição.

Tradição por quem não é dono. A regra determina que fica frustrada a aquisição do domínio, por que ninguém pode alienar senão aquilo que lhe pertence. Excetua-se o adquirente de boa-fé, quando as circunstancias dos fatos faziam-no entender que o alienante seria o dono.

Neste caso, em favor do adquirente de boa-fé, opera-se a tradição desde o momento em que o ato foi praticado.

Artigo 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.

§ 1º. Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos serão aproveitados.

Casamento putativo – Considera-se de boa-fé o cônjuge que tiver contraído o casamento na ignorância desculpável do vício causador da nulidade ou anulabilidade. Mas, o conhecimento da boa-fé é exclusivamente de competência dos Tribunais. Apesar do rompimento do vínculo sobrevirão os efeitos ao cônjuge de boa-fé até a data da sentença anulatória (efeitos ex nunc).

A boa-fé dos cônjuges presume-se, cabendo a prova da má-fé a quem alega.

Como se vê, a boa-fé subjetiva, que traz em sua aplicação a preocupação em analisar-se se o sujeito possuía ou não o conhecimento do caráter ilícito de seu ato, é encontrado em dispositivos legais que tratam de temas como usucapião, aquisição de frutos e família.

Já a boa-fé objetiva, que diz respeito a normas de conduta, fixando como o sujeito deve agir, é aplicado em temas ligados à direito das obrigações.

Alguns doutrinadores consideram que a teoria da boa-fé objetiva deveria ser positivada de forma menos fluida, fixando precisamente os casos de sua incidência e estabelecendo regras de conduta com exata interpretação. Opinião que não compartilhamos.

Como já exposto, a legislação consumerista foi pilar para o conceito do princípio da boa-fé objetiva e hoje beneficia-se do sistema aberto, que permite o exame do caso concreto para a consecução do fim econômico.

Segundo Silvio de Salvo Venosa, "há três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (artigo 113); função de controle dos limites do exercício de um direito (artigo 187); e função de integração do negócio jurídico (artigo 421)." [22] Então, nossa legislação pátria cuidou para que as várias espécies de relações jurídicas mantivessem a boa-fé expressamente exigidas, impondo segurança nos negócios entre as pessoas.


VII – AS FASES DO CONTRATO E A BOA-FÉ OBJETIVA

Junqueira de Azevedo ensina que "o pensamento, infelizmente, ainda muito difundido, de que somente a vontade das partes conduz o processo contratual, deve serão definitivamente afastado. É preciso que, na fase pré-contratual, os candidatos a contratantes ajam, nas negociações preliminares e na declaração da oferta, com lealdade recíproca, dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas ao fracasso, impedindo a revelação de dados obtidos em confiança, não realizando rupturas e inesperadas das conversações, etc. Aos vários deveres dessa fase, seguem-se deveres acessórios à obrigação principal na fase contratual – quando a boa-fé serve para interpretar, completar ou corrigir o texto contratual – e, até mesmo, na fase pós-contratual, a boa-fé serve para interpretar, completar ou corrigir o texto contratual – e, até mesmo, na fase pós contratual, a boa-fé também cria deveres, os posteriores ao término do contrato – são os deveres post pactum finitum, como o do advogado de guardar os documentos do cliente, o do fornecedor de manter a oferta das peças de reposição, o do patrão de dar informações corretas sobre o ex-empregado idôneo, etc." [23]

Conforme determina o artigo 422 o princípio da boa-fé objetiva é exigida da conclusão do contrato até sua execução. Mas, o contrato é um instrumento que tem começo, meio e fim. E, em todas as etapas deve ficar evidenciado o ânimo do agente, sendo devido aos participantes o padrão de conduta médio, legitimamente esperável em circunstâncias similares.

No contrato temos fases contratuais – fase pré-contratual, a contratual propriamente dita e a pós-contratual. Passaremos a analisar a possível aplicação da boa-fé nestas fases individualmente:

- Fase pré-contratual: onde temos as negociações preliminares, as tratativas. Antes mesmo de estar formado o vínculo obrigacional, já se impõe dever aos proponentes, que deverão pautar sua conduta de forma a respeitar os interesses da outra parte.

Já nessa fase deve ser considerado que as partes realizam despesas, tomam providencias, mantêm a aparência de sua aceitação (ou não) e criam justa expectativa de que o contrato será concluído.

Apesar de não haver contrato, na fase pré-contratual já se possui elementos que vinculam as pessoas interessadas, deveres que as partes precisam ter em relação à outra, como o dever de prestar informações, esclarecimentos quanto às particularidades do negócio e instruções sobre como atingir o resultado prático desejado.

Quando iniciadas as tratativas e advindo a ruptura, esta poderá acarretar responsabilização civil pré-contratual.

Segundo Orlando Gomes "se um dos interessados, por sua atitude, cria para o outro a expectativa de contratar, obrigando-o, inclusive, a fazer despesas, sem qualquer motivo, põe termo às negociações, o outro terá o direito de ser ressarcido dos danos que sofreu." [24]

Diversos autores cuidaram do tema, e a jurisprudência já pacificou o tema, sendo o mais famoso o "caso dos tomates" [25], cujos fatos são os seguintes:

__pequenos agricultores plantavam tomates com sementes fornecidas pela Companhia Industrial de Conservas Alimentícias (CICA), que acabou por criar expectativas aos possíveis contratantes, mas acabou por recusar a compra da safra dos tomates. Na safra 1987/1988 a CICA deixou de adquirir a produção, provocando prejuízos baseados na confiança despertada antes do contrato. Os agricultores perderam a produção por não terem a quem vender o produto.

O Relator do caso foi o atual Ministro do STJ, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que proferiu o seguinte voto:

" Tanto basta para demonstrar que a ré, após incentivar os produtores a plantar safra de tomate – instando-os a realizar despesas e envidar esforços para plantio, ao mesmo tempo em que perdiam a oportunidade de fazer o cultivo de outro produto – simplesmente desistiu da industrialização do tomate, atendendo aos seus exclusivos interesses, no que agiu dentro do seu poder decisório. Deve no entanto indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo. (...)

Confiaram eles lealmente na palavra dada, na repetição do que acontecera em anos anteriores... "

Assim, o Tribunal do Rio Grande do Sul reconheceu que a CICA pecou contra a boa-fé quando recusou-se a comprar a safra de tomates, apesar de criada toda a expectativa aos agricultores, e ocasionando-lhes prejuízos. A sentença incute responsabilidade à parte, baseada na confiança despertada antes de celebrado o contrato, na fase pré-contratual.

Durante a execução da prestação o contratante deverá garantir o pleno atendimento, na fase pós-contratual, atuando de acordo com a confiança incutida na outra parte.

A responsabilidade pós-contratual

- Fase de Execução :


VIII – CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

Foi intenção do legislador conferir ao texto legal a vantagem da mobilidade própria das cláusulas gerais, especialmente ao tratar do princípio da boa-fé objetiva.

Seu alcance é amplo e escapa do imobilismo por não lhe ter sido aplicado o princípio da tipicidade. A técnica legislativa escolhida provoca um efeito imediato no momento da aplicação/interpretação do texto legislativo.

As cláusulas gerais não pretendem dar, previamente, respostas. Estas serão paulatinamente construídas pela jurisprudência. E justamente por esta razão a boa-fé objetiva deve ser cautelosamente aplicada.

Não se deve permitir que o problema se limite à apreciação do caso, especialmente quando a matéria for obrigacional, sempre como se o contratante mais fraco merecesse amparo legal.

Apesar de resguardarmos os direitos dos hipossuficientes, a lei não estabeleceu privilégios absolutos a quem quer que seja.

O legislador pretendeu o equilíbrio contratual e a garantia da ordem econômica, não se prestando exclusivamente à defesa do contratante teoricamente mais fraco. Nesse sentido, Heloisa Carpieira Vieira de Mello [26] ensina que: " a escolha deve ser feita de modo a assegurar a prevalência do interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social."

O Código de Defesa do Consumidor já previa o problema que se causaria sobrecarregando-se a parte mais forte na relação obrigacional e em seu texto expressa a necessidade de harmonização dos interesses dos participantes na relação de consumo.

O Novo Código Civil transfere para os julgadores a obrigação de equacionar a harmonização desses interesses.

As críticas mais severas sobre o tema tratam do artigo 422. O legislador não levou em conta os vários textos legais encontrados em Códigos Civis recentemente editados pelo mundo.

No artigo 422 adotou-se o princípio da boa-fé objetiva apenas "na conclusão do contrato como em sua execução", deixando de fazer referência à fase pré e pós-contratual.

Perdeu-se a oportunidade de ditar regras de conduta aos contratantes, que resolveriam os problemas e assegurariam o equilíbrio dos deslocamentos patrimoniais.

Desta forma, se fará necessário que a jurisprudência consolide a efetiva dimensão de seus contornos, e até que isso se faça, o artigo 422 nasce insuficiente.

Resta ainda, incluir-se o período que vai do pré-contrato ao pós contrato, de vez que o contrato é negócio jurídico que tem começo, meio e fim, e para sua consecução faz-se necessária a aplicação do princípio da boa-fé objetiva em todas as suas fases, sob pena de viciar as demais.


CONCLUSÃO

Mesmo com os problemas apontados em função da insuficiência legislativa, deve-se reconhecer o avanço e a importância da inclusão do princípio da boa-fé objetiva no Direito Brasileiro.

O Direito Civil vêm perdendo a estrutura abstrata e generalizante para substitui-las por disciplinas legislativas cada vez mais concretas. Em especial na nova teoria geral dos contratos, onde as regras são suficientes para transpor o modelo clássico contratual, individualista e patrimonializante, para um modelo de produção coletiva dos interesses contratados, humanizando o direito contratual como fonte primária de interesse social.

Apesar dessa publicização do direito privado vir sendo sentido há algum tempo, como decorrência do crescente intervencionismo estatal na atividade priva, não se pode afirmar que este é um caminho sem volta.

O texto do artigo 422 do novo Código Civil recepcionou o princípio da boa-fé objetiva na forma de cláusula geral, mas a doutrina e a jurisprudência nacional sempre foram bem mais abrangentes e vinham aplicando-o desde as tratativas pré-negociais até as relações post pactum finitum.

Apesar destas decisões não serem fundamentadas em texto legal, nossos tribunais já vinham penalizando o contratante que age fora da conduta exigível e com isso ampliou as fronteiras, hoje estreitadas pelo dispositivo aprovado.

A interpretação literal do artigo 422, por ser mais restritivo quanto às fases contratuais, se chocará com a sólida construção doutrinária e jurisprudencial já existente, e com isso violará o espírito da norma. A sua interpretação deverá levar em conta que, o negócio jurídico celebrado é único, apesar de possuir fases para sua concretização.

Mesmo diante da necessidade de tempo para dimensionarmos seus contornos, diante do caráter dinâmico da relação obrigacional, a cláusula geral da boa-fé objetiva só poderia prosperar em um sistema aberto.

Como cláusula geral, que se constitui de normas (parcialmente) em branco, que serão completadas através de referencias de padrões de conduta, ou por valores juridicamente aceitos, terá seus elementos jurídicos extraídos diretamente da esfera social, econômica ou moral e corresponderá à verdade de seu tempo.

Assim, apesar das limitações do texto legal, o novo Código Civil permite que, com relação ao princípio da boa-fé objetiva, os operadores do direito atendam à exigência impostergável de que o contrato se ajuste aos valores de uma sociedade mais harmônica e justa. E, pela compreensão do caso concreto, permita-se a permanente atualização de suas diretrizes, sem que seja necessária a alteração do texto legal.


Notas

1 In: Internet, http://www.senado.gov.br/.

2 Tese de Doutorado, Sistema e cláusula geral, USP, 1996.

3 Costa, Judith Hofmeister Martins. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. 2003.Disponível em: www.jus.com.br/artigos/513 acesso em 27/03/03.

4 A tipologia é aludida por Menezes Cordeiro, in "Da boa-fé no Direito Civil", Ed. Almendina, Coimbra, 1989, Tomo II, p. 1184.

5 Parecer final ao Projeto do Código Civil, in: internet <http://www.senado.gov.br/.

6 O Direito Civil Brasileiro em Perspectiva Histórica e Visão de Futuro, in Revista Ajuris nº 40, Porto Alegre,

1987, p. 128. O texto reproduzido está às páginas 148 e 149.

7 Cláusulas abusivas no Código do Consumidor, in Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul)

8 Conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, in Princípio da Boa-fé no Direito Brasileiro e Português, p. 43.

9 In O princípio da boa-fé objetiva no novo código civil. Revista do Advogado, São Paulo, v.68, p.111-119, dez.2002.

10 Ibid, p.114.

11 DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos; Saraiva, São Paulo, 1993, vol. 1, p. 11.

12 Essa classificação foi extraída da obra de Maria Helena Diniz, que por sua vez baseia-se em vários outros autores (op.cit. p. 11-41)

13 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1998, p.36.

14 Caso fortuito e teoria da imprevisão, apud Orlando Gomes, Contratos, 18ª ed, Forense, Rio de Janeiro, 1998, p.41.

15 ZUNINO NETO, Nelson.

16 idem

17 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor; 2ª ed, RT, São Paulo, 1995, p.93.

18 COSTA, Judith Hofmeister Martins, op.cit..

19 Contratos, 18ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998, p.42.

20 artigo 104 do Código Civil de 1.916.

21 Comentários ao Novo Código Civil,, volume XI, tomo 1: das várias espécies de contratos, do seguro/ José Augusto Delgado – Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 194.

22 A Boa-fé Contratual no Novo Código Civil. Disponível em : <http://www.societario.com.br/demarest/svboafe.html. Acesso em: 22/09/03.

23 Responsabililidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor : estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1995, v. 90, p. 125.

24 Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 131.

25 Durante esta pesquisa encontramos o mesmo caso narrado nos trabalhos de Renata Domingues Barbosa Balbino (op.cit.) e Antonio Junqueira de Azevedo (op.cit.)

26 A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual, in Problemas de Direito Civil-Constitucional, sob coordenação de Gustavo Tepedino, São Paulo-Rio de Janeiro, Renova, Objetiva, 2001, p. 318.


Autor

  • lucinete cardoso de melo

    Mestre em Direito, Professora Universitária, com vasta experiência profissional. Atuando e pesquisando questões societárias, englobando fusões, aquisições, privaty equity, governança corporativa e pública, Elaboração e negociações de contratos, e demais documentos e atos societários, acordos de investimentos e assessoria ao longo do processo de integração de empresas.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, lucinete cardoso de. O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 523, 12 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6027. Acesso em: 23 abr. 2024.