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Doação com encargo e cumprimento do seu conteúdo a impossibilitar sua revogação

06/07/2014 às 12:22
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Voto proferido pelo Des. Leonel Costa, vencido pela maioria, em recurso de apelação promovido pelo advogado Pedro Conde x USP, relativo à doação à Faculdade de Direito da USP aceita irregularmente pelo seu Diretor João Grandino Rodas, Reitor da USP.

AÇÃO ORDINÁRIA    (São Paulo)

APELAÇÃO:   0011162-47.2011.8.26.0053

APELANTES/APELADOS:    PEDRO CONDE FILHO (autor)

           UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP (requerida)

Juiz 1ª Instância:    Kenichi Koyama

VOTO [14971]

AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO COM ENCARGO – Contrato de doação feita por pessoa física à Faculdade de Direito da USP, com encargo de atribuição de nome e placas em dependência.

Afastamento da preliminar de cerceamento de defesa - Produção de prova testemunhal desnecessária – Matéria de direito e a de fato provada documentalmente.

Sentença válida - decisão fundamentada e que atendeu a todos os requisitos legais.

Ausência de litisconsórcio necessário a justificar a citação da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito – Terceiro interveniente para receber em nome próprio outra doação e assumir encargo, em negócio distinto e autônomo, não alcançado pelos limites da lide proposta.

Indícios documentais de que a doação de valores destinados ao custeio da reforma e atualização de dependências da Faculdade teve início antes da celebração do instrumento particular. Doação que se afigurava sem encargo na sua concepção original.

Doação clausulada que, para o seu aperfeiçoamento lícito, exigia a prévia aprovação da Congregação a Faculdade e do seu Conselho Técnico-Administrativo, e, ainda, assim, somente para aceitação de doação clausulada e não com encargo, que exigia autorização legislativa. Inescusabilidade do desconhecimento da necessidade de aprovação por outros órgãos da Unidade da Universidade em face da condição subjetiva das partes e da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade.

Doação consistente em dar coisa certa financiada pelo doador que se convolou em patrimônio imobiliário da Faculdade de Direito e insuscetível de retorno ao status quo ante. Inexistência de doação de quantia certa a ensejar sua restituição pura e simples.

Caracterização da doação como clausulada e sem encargo. O “encargo”, assim nominado no contrato, constituía simples intenção de prestação de homenagem, não constituindo em condição resolutiva a justificar a revogação. A intenção de prestação de homenagem a ex-aluno e pai do doador, intitulada de “encargo” pelas partes, teve o seu conteúdo cumprido de forma alternativa, mas satisfativa, em consideração aos limites de atribuições legais e regimentais da Faculdade e de seu Diretor. Cumprimento da alma da homenagem a esvaziar a pretensão restituitória.

Inocorrência de dano moral. Sentença reformada para ser julgada a ação improcedente.

Recurso da ré parcialmente provido e negado provimento ao recurso do autor, com observação.

Vistos.

Trata-se de apelação em ação ordinária ajuizada por Pedro Conde Filho em face da Universidade de São Paulo, buscando a indenização por danos morais e o ressarcimento do valor despendido decorrente do descumprimento do contrato de doação com encargo firmado entre as partes.

A r. sentença de fls. 265/268 julgou a ação procedente em parte, para condenar a ré à restituição de R$ 1.073.012,70, corrigidos e com juros desde a citação, observada a Lei nº 9.494/97 e ao pagamento da importância de R$ 40.000,00, contratados como pró-labore ao procurador do autor, para a propositura da demanda, corrigido e com juros desde a citação, observada a Lei nº 9.494/97. Custas e despesas ex lege. Por força do princípio da causalidade, cada parte arcará com os honorários a que deram causa.

Apelam ambas as partes.

O autor alega que, em 7/4/2009, celebrou o instrumento particular de doação com encargo com a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; que se é inegável a honra obtida com a nomeação do auditório com o nome do seu pai, também se mostra inegável a desonra decorrente da retirada do nome dado a este auditório; que, conforme consta dos autos, a própria Congregação da Universidade de São Paulo aprovou a Portaria GDI 07/2010 que atribuiu o nome de “Pedro Conde” ao auditório doado; que, em razão disto, mandou confeccionar a placa e o retrato a óleo de seu pai, que iriam identificar o auditório e este, inclusive, foi inaugurado com a denominação de “Sala Pedro Conde”; que, para a inauguração do auditório, foram distribuídos convites às pessoas ligadas a sua família e a membros da Universidade, que houve realização de um Coquetel e a imprensa noticiou amplamente os fatos; que logo em seguida, porém, a Congregação da Universidade acolheu recurso de representantes discentes e invalidou a denominação do auditório, como se o nome de seu pai e de sua família não fossem dignos da homenagem e mais uma vez referido fato foi lançado na mídia; que os alunos da Faculdade de Direito da apelada chegaram ao cúmulo de arrancar a placa com o nome do seu pai do auditório doado; que é inegável o dano moral sofrido, diante da situação vexatória a que foi submetido, ou seja, o evidente constrangimento pessoal; que o dano moral foi reconhecido, inclusive pelo próprio Dr. reitor da Universidade de São Paulo, em entrevista concedida ao jornal “o Estado de São Paulo”; que a ofensa moral é palpável e extremamente evidente pela invalidação da portaria que atribuiu o nome de seu pai ao auditório doado à Universidade; que a Universidade deve ser condenada ao pagamento dos honorários advocatícios, em razão da sucumbência. Requer a reforma da sentença (fls. 273/288).

A ré, USP – Universidade de São Paulo, por sua vez, afirma que houve o julgamento antecipado da lide sem sequer haver manifestação sobre a pertinência ou não da produção de prova testemunhal requerida com o fim de esclarecer o efetivo alcance das cláusulas contratuais e a natureza das obrigações assumidas pelas partes; que a sentença é nula por ausência de fundamentação; que o artigo 130 do Código de Processo Civil foi violado; que é de rigor permitir a produção de prova testemunhal para provar que a cláusula 2.2 do instrumento contratual é obrigação de meio, consistente na necessária submissão à Congregação da Faculdade, da questão do nome da sala, fato plenamente conhecido das partes; que a Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito deve figurar no polo passivo da lide.

No mérito, assevera que havia absoluta ciência do doador acerca da necessidade de aprovação da Congregação da Faculdade quanto à assunção do encargo consubstanciado na nomeação da sala, tratando-se, portanto, de obrigação de meio e não de resultado (cláusula 2.2); que não assumiu o compromisso de atribuir o nome à sala, mas de, após a realização das obras, encaminhar a questão aos órgãos competentes; que o autor é antigo aluno da faculdade, pessoa culta, experiente empresário e administrador de grande fortuna familiar, sabedor, pela própria cláusula 2.2, da existência de órgão colegiado na Faculdade, a quem deveria ser submetida a matéria, e da cultura de atribuir nomes de docentes às salas, existindo apenas uma possibilidade de nomear o auditório com o nome de seu pai, não uma certeza ou dever; que, nos termos dos artigos 112 e 113 do Código Civil, trata-se de mera obrigação de meio por parte da donatária; que se houve reserva mental ou ignorância por parte do autor quanto a necessidade de aprovação pela Congregação, tal fato dependeria de prova por parte do autor; que houve cumprimento do encargo pela donatária; que não houve enriquecimento da Universidade sem a devida causa; que inexiste obrigação de resultado assumida pela donatária; que a escolha do doador, de primeiro executar a obra para, só depois, submeter a aprovação aos órgãos colegiados, demonstra claramente a intenção de praticar uma liberalidade; que o contrato objeto da presente ação é um misto entre prestação de serviço gratuita com atribuição de bens, o que caracteriza a realização, não onerosa, de uma benfeitoria, que se incorpora ao bem público; que a fixação da indenização deve ser proporcional ao descumprimento do contrato, ou seja, em caráter proporcional; que é indevida a condenação dos gastos anteriores ao contrato e ao ressarcimento dos honorários advocatícios contratuais; pleiteia a reforma da sentença (fls. 289/311).

Recursos tempestivos, preparado o recurso do autor e respondidos (fls. 315/322 e 323/341).

O recurso foi, inicialmente, distribuído ao Des. Xavier de Aquino (fl. 344) e, em razão de sua remoção para a 1ª Câmara de Direito Público, redistribuído a este relator que assumiu a sua cadeira (fl. 346).

É o relatório, voto

(1) Preliminarmente, entendo que não procede a preliminar de cerceamento de defesa aventada pela ré, Universidade de São Paulo-USP, porque a matéria da lide é exclusivamente de direito e a de fato comporta prova exclusivamente documental, estando o processo em condições de ter sido julgado por sentença no estado em que se encontrava, prescindindo-se de dilação de prova testemunhal.

Assim sendo, o julgamento antecipado da ação não trouxe qualquer prejuízo às partes, pois estava suficientemente instruída, pois estavam presentes nos autos, documentalmente, as provas necessárias e suficientes para a cognição e convencimento judiciais, com solução de mérito.

(2) A r. sentença do MM. Juízo atendeu a todos os requisitos legais, não incorrendo em qualquer vício que a contamine de nulidade. O ato decisório recorrido contém fundamentação de fato e de direito a logicamente estribar o convencimento judicial contestado agora pela via recursal.

Não existe indício de prejuízo a alguma das partes pela dispensa de produção de prova oral, considerando os contornos da demanda proposta e processada sob o influxo da garantia do devido processo legal.

(3) A ASSOCIAÇÃO DOS ANTIGOS ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO é parte ilegítima para figurar no polo passivo da presente ação.

A referida Associação não é titular de qualquer direito real ou pessoal, legal ou regulamentar, que a legitimasse no negócio jurídico de doação entre o doador, ora autor, e o donatário, a Universidade de São Paulo, sendo a Faculdade de Direito, por norma estatutária da USP, a administradora do imóvel, sendo aquela Associação, portanto, terceiro na relação jurídica que é objeto do processo.

Houve, sim, negócio jurídico independente, autônomo, paralelo àquele que é objeto do processo, de outra doação anual prevista pelo doador para a mencionada Associação dos Antigos Alunos da Faculdade, para que essa utilizasse os valores em benefício da manutenção de dependências determinadas da Faculdade. Tal negócio jurídico exigiria a utilização de via processual autônoma para eventual pedido do donatário, ora autor, de revogação de doação ou outro que fosse, considerando que a lide tem limites definidos no contrato de doação com encargo entre o autor e a Universidade de São Paulo.

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E o autor não formulou qualquer pedido de revogação de doação do valor anual que doaria àquela Associação nem fez qualquer prova documental de que o negócio paralelo tivesse algum início de execução.

Não era mesmo hipótese de litisconsórcio necessário da Associação dos Antigos Alunos a ensejar nulidade do processo ou da sentença.

Desta forma, ficam afastadas as questões preliminares suscitadas pela ré.

No mérito, cabe acolhimento parcial do recurso da ré, não sendo procedentes as razões do autor. A ação é improcedente, não sendo passível de acolhimento o pedido de restituição formulado pelo autor do valor de R$1.073.012,70, pelos fundamentos seguintes.

(4) O autor Pedro Conde Filho prometeu doar à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, por Instrumento Particular de Doação com Encargo (fls. 23/28), um auditório para 90 pessoas, com 153m2, com lousa eletrônica e outros equipamentos, e um conjunto de sanitários a ser construído no Prédio Historio da Donatária (cláusula 1ª), com o encargo desta (cláusula 3ª) de prestação de homenagem por meio de colocação de placa e atribuição da designação “Sala Pedro Conde”, com manutenção e exposição de um quadro a óleo retratando o Dr. Pedro Conde, pai do autor, com cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade (cláusula 5ª).

Assim, como argumentou esmeradamente a ré em sua resposta e recurso de apelação, não houve doação de dinheiro que enseje restituição.

A doação foi de entrega de coisa certa, a saber, de um auditório e de um conjunto de sanitários, além de equipamentos, que passaram a incorporar o patrimônio imobiliário e imóvel da Faculdade de Direito.

Com efeito, os materiais pagos e que foram destinados ao auditório e conjunto de sanitários do prédio passaram a ser bens imóveis por destinação e incorporação, nos termos dos artigos 79 e 84 do Código Civil de 2002, sendo insuscetíveis de restituição, como expressamente pretendido na petição inicial da ação.

Não houve pedido alternativo de conversão da revogação da doação em perdas e danos.

(5) Houve manifesta irregularidade no negócio jurídico, feito pelo autor e a Faculdade de Direito, representada pelo seu Diretor, que agiu de forma contrária às normas estatutárias e regimentais da USP e da Faculdade, ultrapassando os limites de atribuições, conforme art. 22, II e 45 do Estatuto da USP e art. 6º, II do Regimento da Faculdade, abrindo oportunidade para eventual indagação sobre a ocorrência de improbidade administrativa e cabimento de ressarcimento ao erário público, em possíveis demandas da Lei 8.429/1992 e ação popular, em caso de prejuízo decorrente da procedência da ação.

Isso porque, a Universidade de São Paulo (USP), criada pelo Decreto 6283, de 25 de janeiro de 1934, é autarquia de regime especial, com autonomia didático-científica, administrativa, disciplinar e de gestão financeira e patrimonial, conforme Resolução 3461, de 7 de outubro de 1988, que aprovou o Estatuto da USP, consoante o disposto no art. 207 da Constituição da República. A mesma resolução prevê que as unidades tenham como órgão consultivo e deliberativo a Congregação (art. 45) e o Conselho Técnico-Administrativo (art. 47, ibidem).

E o Reitor da Universidade de São Paulo é o agente executivo e o seu representante legal (arts. 42, I, da referida Resolução), sendo competente para receber doações não clausuladas à USP (art. 13, IV do Regimento Interno da USP, Resolução 3745, de 19 de outubro de 1990).

Dentro da cadeia de autonomia da Universidade e na previsão dos regimentos internos das suas unidades, destaca-se aquele da Faculdade de Direito, a saber, a Resolução 5377, de 05 de dezembro de 2006.

A Faculdade de Direito de São Paulo foi criada pela Lei de 11 de agosto de 1827, transferida pelo Governo da União ao Estado de São Paulo, nos termos e condições do Decreto Federal nº 24.102, de 10 de abril de 1934, e incorporada à Universidade de São Paulo pelo Decreto nº 6.429, de 09 de maio de 1934, regendo pelo Regimento Interno e constituem seu patrimônio sob sua administração seus prédios, bibliotecas e donativos recebidos.

Constituem seus órgãos de administração a Congregação, o Conselho Técnico-Administrativo, Diretoria, etc. (art. 4º.), competindo à Congregação opinar sobre aceitação de doações clausuladas (art. 6º, II).

Assim, considerando que nem o Senhor Diretor ou o doador, advogados por profissão, desconheciam o fato de que qualquer doação clausulada ou com encargo exigia a necessária intervenção da Congregação da Faculdade e da manifestação do Conselho Técnico-Administrativo, eles - o doador o agente público - não poderiam esperar que o negócio jurídico, em que interveio como anuente a terceira pessoa – a Associação de Antigos Alunos (formados em Direito), cuja presença é justificada como forma de legitimação da pretendida homenagem representada pelo encargo -, fosse elevado às últimas consequências de dar efeito de obrigação de resultado ou de cláusula resolutiva ao cumprimento do encargo na exata forma ajustada.

(6) Era notório que a aceitação e cumprimento do encargo exigiam atividade de natureza complexa, decorrente da necessidade de convergência de uma pluralidade de decisões administrativas dos órgãos da Faculdade.

A partir da Portaria GR n° 2.985/96, a Universidade de São Paulo (USP) instituiu a Comissão de Gestão da Qualidade e Produtividade, que editou o Manual de Administração Patrimonial, em conformidade à legislação regente.

O referido Manual de Administração Patrimonial da Universidade de São Paulo define a doação como “’a entrega gratuita de direito de propriedade, constituindo-se em liberalidade do doador” e a distingue da doação clausulada, sendo esta “a entrega gratuita de direito de propriedade, constituindo-se em liberalidade do doador, cuja utilização e/ou destinação encontra-se estabelecida no respectivo termo de doação.”

Assim, a doação desenhada pelo doador e o agente público, na qualidade de Diretor da Unidade Universitária – Faculdade de Direito da USP, é aquela clausulada em face da destinação especificada (auditório e sanitários) e, ainda, “com encargo” (atribuição de nome e colocação de placa e quadro).

(7) Aparentemente, o negócio jurídico de doação clausulada e “com encargo” foi celebrado em 07.04.2009, como se infere da datação no documento (fls. 23/28).

Aparentemente, primeiro, porque o Senhor Diretor somente baixou sua Portaria (GDI 07/2010, 22.01.2010, fls. 29/30) nos estertores do seu mandato para, em seguida, assumir o cargo de Reitor da USP, cargo que exerce desde o ajuizamento da ação e ao tempo do recurso de apelação, representando a Universidade de São Paulo ora ré.

Em segundo, vários documentos juntados aos autos referem-se a recibos relativos à doação de valores pagos pelo autor/doador a terceiros (empreiteiros e arquitetura) anteriores ao negócio jurídico (07.04.2009), a saber, demonstrativo de fls. 43; recibos e demonstrativo de fls. 44/49, que remontam ao ano de 2008.

Sugere a leitura dos fatos e documentos que a doação era mesmo de arcar com despesas destinadas à reforma e atualização de dependências do prédio histórico da Faculdade de Direito e que em algum momento posterior, foi feito o instrumento particular do negócio jurídico para a estipulação do “encargo” de prestação de honraria.

Assim, tenho a certeza de que o “contrato” foi instrumentalizado em data posterior aos custos arcados pelo autor da demanda, de forma graciosa, e que, ao final do mandato do Senhor Diretor, com o beneplácito da Associação (cuja intervenção não temo condão de conferir licitude àquilo em desconformidade com a normatividade regente), para compelir a Faculdade a se vergar ao cumprimento do encargo na forma idealizada ao arrepio dos Órgãos Colegiados que deveriam ter sido consultados legal e necessariamente.

Sob outro aspecto, o encargo não obrigaria à Universidade de São Paulo nem à Faculdade de Direito, para efeito de justificar o pedido de revogação, considerando que as partes, doador advogado e a Faculdade de Direito da USP, pelo seu Diretor, tinham inescusável conhecimento da falta de observância do direito ou da legalidade na celebração do contrato de doação clausulado e com encargo, não podendo, portanto, o autor exigir a revogação pelo não cumprimento do encargo na forma exata que ele almejava.

(8) A honraria desejada e prevista no instrumento particular não pode constituir o encargo na doação, na acepção da lei civil, a permitir a revogação e comprometer a Administração Pública, que se sujeita às regras severas de licitação e outras de legalidade, moralidade, etc. (art. 37 da Constituição da República) de controle do dinheiro público e sua oneração, e que exigiria prévia autorização legislativa estadual. 

O entendimento de que a revogação seria possível pelo não cumprimento do encargo contratual, situaria flagrantemente o agente público como incurso na Lei da Improbidade Administrativa. Decerto, então, as partes nominaram de “encargo” apenas a manifestação de intenção do doador de exemplificar uma solicitação, se possível fosse, de prestação de uma homenagem ao seu pai.

Não de outra sorte, houve bastante arrojo administrativo em se firmar o instrumento de doação, enquanto que era indubitável o conhecimento de que a aceitação de doação clausulada exigia a necessária intervenção prévia dos Órgãos Colegiados da Faculdade de Direito, em especial, da Congregação e da Comissão Técnico-Administrativa (CTA) (art. 6º, II, do Regimento Interno da Faculdade de Direito, Resolução 5.377/2006, DOE 08.12.2006).

Segundo a normatividade universitária específica, o próprio Reitor da USP tem atribuição prevista de somente poder aceitar doação não clausulada e somente após o parecer favorável da CTA da USP (arts. 13, IV e 41, VI do Regimento Geral da USP, Resolução 3.745/1990, DOE 23.10.1990).

(9) A razoabilidade autoriza a interpretação judicial ponderada de que o conteúdo do “encargo” era de homenagem ao pai do autor por meio de exposição do seu nome nas dependências da Faculdade, de cumprimento condicional, implícito no instrumento, se aprovada fosse regularmente pelos demais órgãos da Faculdade.

E esse conteúdo foi realizado e o “encargo” pode ser considerado como cumprido, porque a Faculdade de fato atribuiu ao auditório o nome indicado pelo doador inicialmente, mas como houve lícita revisão do ato pela Egrégia Congregação da Faculdade, que, dentro de suas atribuições estatutárias e regimentais, decidiu por prestar justa homenagem ao Bacharel Pedro Conde de forma alternativa, apondo placa de agradecimento à generosa e importante doação para a reforma daquela dependência do prédio da Augusta Faculdade Histórica (fls. 230).

Nessa linha, entende-se que se atingiu a alma ou o objetivo do “encargo”, que estava sob condição implícita, materializando-se o conteúdo a que o “encargo” visava, ainda que não exatamente da forma idealizada pelo autor, que sabe do valor honorífico e grandiloquente de ter o nome paterno eternamente jungido às Arcadas do Largo de São Francisco por mérito, e não por escambo.

Ensina Clóvis Bevilaqua que, (in Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Comentado, 3ª. tiragem, edição histórica, Editora Rio, 1979) mesmo na doação com encargo, merece prevalecer o ânimo liberal a garantir que a gratificação espontânea produza efeitos definitivos.

A razoabilidade na interpretação contratual afasta a possibilidade do desfazimento da doação, para que não seja ela mais prejudicial ao donatário que a sua inexistência. E a preservação da liberalidade feita assegura a benção e o valor moral da homenagem alternativa prestada pela tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

Essa compreensão elevada teve a renomada sociedade de advocacia Pinheiro Neto Advogados (fls. 210/211), que também usou de liberalidade para com a Augusta Faculdade.

(10) Ainda que se entendesse de forma diferente, não se verifica a ocorrência de danos morais ao autor. Não se entrevê qualquer afetação de natureza moral indenizável decorrente do desfecho contratual não ter sido aquele idealizado pelo autor, tendo a Egrégia Congregação da Faculdade exercido sua atribuição estatutária e regimental regularmente, não existindo qualquer grão ou letra em desabono ou em desprestígio do autor.

A pretendida revogação da doação, se efetivada, autoriza, sem dúvida, a legítima reversão de qualquer homenagem feita ao pai do autor pela Faculdade por conta do referido negócio jurídico, operando-se resultado oposto ao inicialmente buscado.

Isso posto, meu voto é para dar provimento parcial ao recurso da ré, Universidade de São Paulo – USP, julgando a ação improcedente, e negar provimento ao recurso do autor.

Inverto a sucumbência, condenando ao autor vencido no pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios no mínimo legal, de 10% sobre o valor atribuído à causa.

Observo que cópia dos autos devem ser remetidos ao Ministério Público de São Paulo para exercício do controle de legalidade da probidade administrativa e do patrimônio público.

Leonel Costa

Desembargador Relator

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Leonel Costa

Desembargador do TJSP de carreira, ingresso em 1987. Foi Promotor de Justiça do MPSP de carreira e professor universitário de Direito. Graduado pela USP em 1985. LLMM em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Leonel. Doação com encargo e cumprimento do seu conteúdo a impossibilitar sua revogação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4022, 6 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/28634. Acesso em: 25 abr. 2024.

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