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Parecer pela inconstitucionalidade da prisão especial ao portador de diploma de curso superior

01/10/2000 às 00:00
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Parecer da lavra do professor Nelson Paes Leme, repudiando a concessão de prisão em cela especial para portador de diploma de curso superior. Esta tese foi aprovada pelo Plenário do Instituto dos Advogados do Brasil.

PARECER DO RELATOR DA INDICAÇÃO Nº316/99 SOBRE O PROJETO DE LEI DE Nº 44, DE 1999, DE AUTORIA DO EXMO. SR. DEPUTADO VALDEMAR COSTA NETO QUE "EXCLUI A CATEGORIA DOS JUÍZES DE PAZ DOS BENEFÍCIOS DA PRISÃO ESPECIAL"

É inconstitucional o Art. 295 do decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941 e, por consequência o parágrafo 2º do Art. 112 da Lei Complementar nº 35 de 14 de março de 1979, não podendo ser recepcionados pela Constituição de 05 de outubro de 1988, por atentarem frontalmente contra o princípio pétreo da isonomia contido no Art. 5º da Lei Maior. A lei complementar reguladora deve abranger todas as categorias profissionais para se submeter ao ditame constitucional.

Trata a presente Indicação de matéria controversa e delicada posto que o instituto da "prisão especial" já se encontra, na prática calcificado entre nós, embora não encontre respaldo, em nenhum momento, no texto constitucional. Ao contrário, o princípio constitucional que a ele vigorosamente se contrapõe, é pilar da cidadania, cláusula pétrea e matéria de natureza supra-constitucional, intangível em seu "grau máximo". (Temer, Michel - "Elementos de Direito Constitucional" - 12ª edição, pág. 145).

Embora tangenciando o tema principal que é o da prevalência do princípio constitucional da igualdade contra qualquer forma de privilégio, como base de um ordenamento jurídico verdadeiramente justo, o autor do Projeto de Lei Complementar em observação merece encômios de vez que em sua "Justificativa" aponta para o caráter "odioso" da legislação infra-constitucional discriminatória. Aponta também para o fato de que, em seu estudo, não encontra parâmetro para o instituto da "prisão especial" em nenhum outro país civilizado do Planeta, destacando ser tal instituto "uma das faces mais perniciosas da impunidade".

Com efeito, basta-nos a leitura diária dos jornais, ou a audiência do noticiário do rádio ou da televisão para a constatação da existência dessa casta de criminosos, verdadeiros vaíseas da marginalidade que, pelo fato de portarem um diploma de curso superior, arvoram-se em direitos prisionais que não são dados ao comum dos cidadãos, amontoados estes em fétidos e superlotados cubículos dos sistema penitenciário ou mesmo das delegacias de polícia. É, portanto, repugnante aos olhos e ouvidos do povo, já tão distante das condições de vida das elites em nosso país, conviver com mais essa discriminação: a da "prisão especial". Mal sabem, na maior parte das vezes, os que estão dentro e fora das prisões do Brasil, vivendo em condições subumanas, que a Lei Magna de seu país lhes garante a igualdade, como fundamento da ordem jurídica. E mais, que esta é vilipendiada pela existência de excrescências jurídicas como tal instituto. Diz o Deputado Valdemar Costa Neto, autor do Projeto de Lei, em seu libelo contundente: "Afinal, por que empenhar recursos públicos na modernização e humanização dos presídios, esses depósitos asquerosos de miseráveis, se nem remotamente um integrante da classe privilegiada vai neles passar um dia sequer?"

É a propósito dessa conceituação constitucional do princípio da igualdade que assim se manifesta Pinto Ferreira em seu "Princípios do Direito Constitucional Moderno", pág. 486 (Saraiva 1962):

"O princípio da igualdade diante da lei encontrou a mais plena concretização positiva nos textos constitucionais modernos, sendo considerado por LASKI, nas suas Reflections on the Revolution of our Time, como a idéia básica da democracia. Poder-se-ia, porém, acompanhando as indicações feitas por CRANE BRINTON, mergulhar na história da filosofia grega, para dela extrair a crisálida do conceito de igualdade, reformulada pelos contemporâneos.

Não há negar, HERÓDOTO é enfático entre o governo irresponsável dos poderes e a isonomia grega, ou igualdade diante da lei. A isotimia, igual respeito por todos, e a isegoria, ou igual liberdade de manifestação da palavra e consequentemente da ação política, junto com a idéia da "igualdade de oportunidade", eram princípios correntios no liberalismo avançado de PÉRICLES, sem levar em conta ainda as especulações de EURÍPEDES e PLATÃO em defesas da tese. Mesmo na filosofia política na idade romana, o nihil est enin unum uni tam simile, tam par, quam omnes inter nosmet ipsos sumus de CÍCERO, é uma manifestação objetiva do conceito racionalista de igualdade.

A moderna legislação constitucional dos países civilizados incorporou o princípio da igualdade em seus textos positivos, numa garantia decisiva à personalidade humana, a que não refugiu o direito público nacional. Daí o preceito básico do Art. 141 (par.1º) da Constituição federal do Brasil de 1946 (então vigente), assim estatuindo: "Todos são iguais perante a lei."

De lá para cá, o princípio foi mantido no texto constitucional de 1967, em seu Art.153 em seu parágrafo 1º que dispunha:

"A Constituição assegura aos brasileiros e aos residentes estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

par. 1º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça".

Finalmente, a Constituição de 1988 consagra o princípio da igualdade em seu Art.5º:

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes:................................."

E em sua alínea XXXII assegura:

"proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos",

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sendo a única ressalva feita quanto às condições prisionais, referentes às presidiárias nutrizes, em sua alínea L:

"às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;"

Portanto não há que falar em "prisões especiais" no texto infra-constitucional subalterno dentro da hierarquia das normas, se a própria Lei Magna aborda claramente a exceção na alínea L e proíbe a distinção entre o trabalho intelectual (de que se valem, para usufruir da "prisão especial" os portadores de diploma universitário), e os trabalhos manual e técnico em sua alínea XXXII.

Mas, ainda sobre o princípio da igualdade, prossegue o professor Pinto Ferreira, já a fls.487 do mesmo trabalho:

"Na sociedade contemporânea, o princípio foi assimilado pela quase totalidade das Constituições, como se vê sumariamente de uma análise de vôo de pássaro sobre o problema. Seguindo ponto por ponto esta trajetória, prescreve a 14ª emenda da Constituição federal americana de 1787 a norma fundamental da "equal protection of the laws", como uma limitação ao poder estatal emanada do próprio poder constituinte. Por sua vez, a Constituição alemã de Weimar de 1919 determina, em seu Art. 109 que "todos os alemães são iguais diante da lei" (Alle Deutschen sind vor dem Gesetze gleich). Ainda de uma maneira mais radical, a Constituição soviética de 1936, em seu Art. 123, singra (singrava antes da dissolução da URSS) a esteira do socialismo científico ao declarar: A igualdade de direito dos cidadãos da URSS, sem distinção de nacionalidade e de raça, em todos os campos da vida econômica, cultural, social e política, é uma lei imutável. As novas Constituições socialistas da Europa e da Ásia, enveredam pela mesma trilha, como é o caso da Constituição esquerdista da França, promulgada em 1946, proclamando em seu preâmbulo que a França forma com os povos de além-mar uma união, fundada sobre a igualdade dos direitos e deveres, sem distinção de raça ou religião, ou ainda o Art. 14 da Constituição japonesa de 1946: Todo o povo é igual diante da lei e não haverá discriminação em matéria de raça, religião, sexo, estatuto social ou de família."

Já Manoel Gonçalves Ferreira Filho, na 4ª edição de seus "Comentários à Constituição Brasileira" (Saraiva, 1983) ensina, na página 587, quanto ao tema, o seguinte:

"O princípio de isonomia que a Constituição faz o primeiro desdobramento nos direitos fundamentais é de alta significação política, particularmente numa democracia. Os gregos, aliás, consideravam a igualdade perante a lei um dos elementos essenciais e caracterizadores do governo democrático. Por outro lado, a reivindicação de igualdade foi, no século XVIII europeu, uma das forças que mais influíram na revolução política e social que iria coroá-lo. As monarquias tradicionais, com efeito, eram socialmente baseadas numa divisão de classes juridicamente definida, da qual resultava a desigualdade de direitos e obrigações. Tal desigualdade era, na França pré-revolucionária, mal suportada especialmente pela burguesia que não mais aceitava os privilégios da nobreza e do clero, segundo nitidamente revelam os cahiers de doléances preparados para os Estados Gerais de 1789. Ao lado da liberté e precedendo a fraternité, colocou a Revolução a égalité.

Finalmente, para que não reste sombra de dúvida sobre a tese aqui desenvolvida, basta-nos observar o que pensava o grande Pontes de Miranda sobre a questão da isonomia nas profissões e seus aspectos constitucionais comparados. Em seus comentários à Constituição de 1967 (2ª edição da Editora Revista dos Tribunais, 1974, página 626), relatando a confecção da Constituição de 1934, chega a dizer que era supérflua a descrição de igualdade.

É que no texto original do Projeto, a redação era a seguinte:

"...Não haverá privilégios nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas" -

"Censuramo-lo, em parte," - diz o mestre - e foi retirado o acréscimo... O conceito de igualdade é a priori, preexiste como dado lógico à feitura das Constituições. A lei não o pode alterar, nem refazer: o parágrafo 1º do art. 153 (da Constituição de 1967, então vigente) constitui direito fundamental absoluto."

É inacreditável que, no limiar do Terceiro Milênio, o Brasil que se diz o país do futuro, padeça ainda de males como esse corporativismo entranhado em suas elites que luta pela manutenção de privilégios semelhantes aos que caíram há mais de dois séculos com a Bastilha. É sem dúvida alguma fator de opróbrio e vergonha nacional a manutenção da "prisão especial", não apenas para juizes de paz, mas para quem quer que seja. Que se reformule a legislação penal com a urgência que se faz indispensável. Que se lute por um sistema carcerário que não atente contra a dignidade humana, a fim de que o delito seja punido visando a reintegração social do prisioneiro. Jamais estabelecendo castas ao arrepio dos ditames constitucionais consoantes com os princípios jurídicos mais elementares.


CONCLUSÕES:

1. O instituto da "prisão especial" é inconstitucional, para todas as profissões por ele abrigadas e não apenas para os juizes de paz.

2. O projeto de lei, objeto da presente indicação, tal como está redigido é parcial, devendo abranger todas as categorias profissionais para se adaptar ao texto constitucional.

É o parecer, SMJ.

Rio de Janeiro, em 03 de janeiro de 2000

Nelson Paes Leme

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Sobre o autor
Nelson Paes Leme

advogado no Rio de Janeiro (RJ), pesquisador em Direito Político na UFRJ e no Institut du Fédéralisme da Universidade de Fribourg (Suíça), membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEME, Nelson Paes. Parecer pela inconstitucionalidade da prisão especial ao portador de diploma de curso superior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16284. Acesso em: 18 abr. 2024.

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