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Alegações finais do Ministério Público em processo de contravenção do jogo do bicho

21/08/2005 às 00:00
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A peça afasta várias alegações da defesa, como erro de tipo ou de proibição, revogação da lei pelo desuso e estado de necessidade.

ALEGAÇÕES FINAIS

Processo XXXXXXX

MINISTÉRIO PÚBLICO

ACUSADA: E. P. R

            "A absolvição de um culpado

            é a condenação do Juiz"

            Cícero


MM DR. JUIZ,

            Cuidam os autos de denúncia oferecida contra a acusada supra nominada, dando-a como incursa nas penas do artigo 58, par.1o, alínea b, do Dec-lei 6259/44.

            Encerrada a instrução criminal, restaram provados os fatos articulados na denúncia. Senão, vejamos.

            A materialidade delitiva encontra-se consubstanciada no auto de apreensão e apresentação de fls. 04 e laudo de exame de material contravencional de fls.24.

            Quanto à autoria da infração, fez-se ela certa na pessoa da acusada, notadamente pelo relato, em Juízo, do policial Militar que participou da apreensão (fls.49), ocasião em que forneceu valorosos detalhes acerca da mecânica do fatos e da prisão efetivada, restando demonstrado, que naquele dia, a acusada realizava e tinha em seu poder material próprio para a contravenção do jogo do bicho.

            Não há nenhuma circunstância que exclua a ilicitude ou culpabilidade, valendo lembrar que a contravenção nunca foi uma novidade na vida da acusada, conforme se percebe de sua certidão cartorária.

            E nem se diga, como pode pretender a defesa, que diante dos costumes e da tolerância Estatal, deve a acusada ser absolvida.

            Até porque, o art. 58 do Decreto-Lei 6.259/44, dispõe:

            "Art. 58. Realizar o denominado "jogo do bicho", em que um dos participantes, considerado comprador ou ponto, entrega certa quantia com a indicação de algarismos ou nome de animais, a que correspondem números, ao outro participante, considerado o vendedor ou banqueiro, que se obriga mediante qualquer sorteio ao pagamento de prêmios em dinheiro. Penas de 6 meses a 1 ano de prisão simples e multa ao vendedor ou banqueiro, e de 40 a 30 dias de prisão celular ou multa ao comprador ou ponto.

            Parágrafo 1º - Incorrerão nas penas estabelecidas para vendedores ou banqueiros:

            a- os que servirem de intermediários na efetuação do jogo;

            b- os que transportarem, conduzirem, possuírem, tiverem sob sua guarda ou poder, fabricarem, derem cederem, trocarem guardarem em qualquer parte, listas com indicações do jogo ou material próprio para a contravenção, bem como de qualquer forma contribuírem para a sua confecção, utilização, curso ou emprego, seja qual for a sua espécie ou quantidade;

            c- os que procederem à apuração de listas ou à organização de mapas relativos ao movimento do jogo;

            Diante da clareza do texto, na hipótese dos autos, tendo-se demonstrada a materialidade da infração penal e induvidoso o comprometimento da ré a título de portadora de material destinado ao "jogo do bicho" e de dinheiro referente às apostas (art. 58, parágrafo 1º, b), impõe-se, sua condenação, já que a lei, como cediço, somente se revoga por outra lei.. Não se desconstitui pelo decurso do tempo ou pelo desuso, inadmitindo-se a força contra legem do costume.

            Mas se o seu texto pode e deve sofrer trabalho interpretativo, de molde a se afeiçoar às situações concretas, será de todo intolerável que o seu aplicador venha, a tal pretexto, negar a sua aplicação porque o entenda inadequado a determinada realidade social.

            Não há como cogitar de erro de tipo ou de proibição.

            A propósito, evidencia-se de inteira atualidade notável lição do saudoso NELSON HUNGRIA:

            "O juiz pode e deve interpretar a lei ao influxo de supervenientes princípios científicos e práticos, de molde a adaptá-la aos novos aspectos da vida social, pois já não se procura a mens legis no pensamento do legislador, ao tempo mais ou menos remoto em que foi elaborada a lei, mas no espírito evoluído da sociedade e no sentido jurídico imanente, que se transforma com o avanço da civilização. Não quer isso, porém, dizer que possa fazer tabula rasa da lei, julgando, não pelo que esta ordena, mas pelo que, na sua opinião, devia ordenar. Pode o magistrado, segundo adverte ilustre constitucionalista pátrio, interpretar a norma legal com a preocupação de realizar o que os alemães chamam "o direito justo", mas tal objetivo deve ser alcançado com a lei e não contra a lei. Non sunt judicante dae leges, isto é, as leis não podem ser privadas de aplicação, sob o pretexto de serem inoportunas ou desacertadas. Não deve ser o juiz um aplicador automático do literalismo da lei, mas um revelador de todo o possível direito que nela se encerra, suprindo-lhe a inexplicitude decorrente da imperfeição da linguagem humana. É-lhe vedado, entretanto, negar a lei. Notadamente em matéria penal, não pode o juiz meter-se a filósofo reformista, a santo incipiente ou a sociólogo de gabinete, para pretender corrigir a lei segundo a sua cosmovisão, a sua mística ou seu teorismo. Tem de aplicar o direito positivo, o direito expresso ou latente nas leis, e não o direito idealmente concebido através de especulações metafísicas. Pode e deve humanizar a regra genérica da lei em face dos casos concretos de feição especial, ou procurar revelar o que a letra concisa da lei não pode ou não soube dizer claramente: mas isso da própria latitude do sentido ou escopo dos textos, e nunca ao arrepio deles, ou substituindo-os pelo que arbitrariamente entende que devia ter sido escrito, segundo a sua ideologia pessoal" (Comentários ao Código Penal", vol. I, tomo 1º, p. 80, Forense, 1958).

            O eminente Des. GERALDO AMARAL ARRUDA, em apreciado trabalho que examina o aspecto contravencional de certas espécies de jogos, enfrenta o problema com a habitual segurança:

            "Podem, pois, os jogos de azar não caracterizar a contravenção ou por não se apresentarem como jogos estabelecidos ou explorados em benefício particular ou de grupo parasitário, ou por se estabelecerem de conformidade com lei.

            Contudo, a licitude das mais variadas modalidades de jogos de azar ou apostas, inclusive a exploração de algumas delas pelo próprio Estado, não autoriza que se suponha superada a previsão legal referente à contravenção penal, mormente quanto àquelas que são exploradas por grupos organizados à margem da sociedade, por via de regra na clandestinidade, mas às vezes de forma ostensiva e afrontosa, sem que falte até mesmo a luta armada de conquista ou defesa de territórios. A discordância ou até mesmo a repulsa pessoal do juiz pode justificar-se diante da liberdade do legislador e da tolerância ou incapacidade (ou outra coisa) da parte dos agentes do Poder Executivo. Pode justificar-se tal atitude no plano pessoal, mas não pode o juiz, no exercício de sua função jurisdicional, tomar a liberdade do legislador ou a inação da Polícia como motivos suficientes para deixar de aplicar a lei. O juiz não pode escusar-se de ser um fiel aplicador da lei, ainda que não esteja vinculado à cega fidelidade à lei, pois lhe cabe interpretá-la e salvar o espírito do Direito por cima da letra da lei. E, nesse trabalho de interpretação da lei, os juristas e entre eles o juiz ajustam o Direito às necessidades do momento e o fazem crescer. Com FRANCESCO FERRARA, pode-se resumir que "o juiz pode aplicar princípios da lei a casos novos, dar a princípios da lei um sentido novo, desde que não vá de encontro a outras normas. Até aqui pode chegar a obra do intérprete. Mas desviar-se conscientemente da lei, querer reformá-la ou inová-la por pretendidas exigências de interesses, é atraiçoar a função do magistrado. O juiz deve ficar pago com sua nobre missão, e não ir mais longe, passando a usurpar os domínios do legislador. Os dois poderes estão divididos e assim devem estar" (Interpretação e Aplicação das Leis", Coimbra, 1963, p. 163).

            Outra não é a lição de Larenz ("Métodologia da Ciência do Direito", ed. GULBEKIAN, §. 271 e 272), para quem o juiz, de modo semelhante ao legislador é descobrir e ao mesmo tempo conformador do Direito, que ele traz sempre para a realidade num processo de partir da lei e, caso necessário, também para além da lei, embora a lei seja, sempre o ponto de partida das ponderações do juiz, ela, na verdade só determina raras vezes a sua decisão. O juiz acrescenta, além da determinação última, o afinamento dos elementos da previsão em vista do caso concreto ou preenche cuidadosamente uma lacuna da lei. E, por esse meio, a norma é que de nova liberdade da sua abstração inevitável e irrenunciável e possibilita-se, enfim, a sua função de regular relações concretas da vida"(ob. Cit., p. 272).

            O Juiz deve julgar não só segundo a lei, mas também com justiça. E para julgar também com justiça, pode libertar-se das estreitezas da Dogmática e avançar na interpretação construtiva da lei, visando à sua integração e ajustamento à consciência jurídica. Mas tal atividade não pode, evidentemente, ser arbitrária, nem chegar ao abuso da interpretação contra legem. O art. 386 do CPP não prevê a possibilidade de o juiz proferir sentença absolutória com desprezo frontal à previsão legal em vigor. É prevista a absolvição do acusado quando provocada a inexistência do fato ou quando não houver prova do fato; quando não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal ou existir circunstância que exclua o delito ou isente o réu de pena; ou quando não constituir o fato infração penal. Não ocorre a hipótese da absolvição contra a previsão legal, ainda que o pretexto do seu desuso. Desde que formalmente configurada a existência da infração penal, o juiz somente pode afastar a condenação a partir de circunstâncias que aflorem no exame do fato concreto e que autorizem a exclusão do caráter delituoso da ação. E, no caso especial das contravenções penais, abre-se ao juiz a possibilidade de deixar de aplicar a pena pelo reconhecimento da ignorância ou errada compreensão da lei. O juiz há de contentar-se com a faixa de discricionariedade que a lei lhe confere, sem arrogar-se o arbítrio de decidir contra lei. Como ressalta MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE em seu Ensaio sobre a interpretação das Leis (Coimbra, 1963, p. 88), o juiz funciona "como verdadeiro conditur juris, colaborando com a lei, posto que num plano subordinado a ela, para complemento do sistema jurídico". Indo além e colocando-se contra a lei, não faria obra de construção do Direito, mas trabalho de demolição" (GERALDO AMARAL ARRUDA, "O jogo e a Lei", Revista dos Tribunais, vol. 606, §. 284/285).

            A propósito, em vigoroso aresto, o eminente Des. NOGUEIRA CAMARGO, que então integrava a C. Primeira Câmara do E. TJSP, após referir-se a decisões de outras Câmaras no tema, de cunho, indesejavelmente liberal, analisou, com percuciência e indiscutível oportunidade, a tormentosa questão:

            "Observa-se, portanto, que não mais se discute nesses v. acórdãos se a contravenção do "jogo do bicho" ocorreu ou não. Discute-se a conveniência ou não da aplicação do supra citado Decreto-Lei, por questão de política criminal. Em que pesem essas respeitáveis posições, cumpre lembrar que não pode o Julgador, a pretexto de observar as modificações do ambiente histórico-cultural, deixar de aplicar o texto de Decreto-Lei em pleno vigor, a pretexto de que se tornou ele demode, como se a moda tivesse poderes revocatórios. Esta E. Primeira Câmara do Tribunal de Alçada Criminal, sistematicamente, vem condenando a prática da contravenção penal.

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            Em v. acórdão assim se manifestou o eminente Juiz REYNALDO AYROSA: "Inquestionáveis a existência material do fato legalmente previsto como contravenção penal e a autoria inquinada ao acusado, a ação penal havia de ser, como foi, julgada procedente.

            Se a lei existe, ao Juiz cabe cumprí-la, sendo absolutamente inaceitável o seu descumprimento a poder de epidérmicas divagações morais ou sócio-políticas de duvidosa validade.

            Justamente porque existem loterias autorizadas deve-se cuidar, como quer o nosso ordenamento jurídico, de erradicação daquelas não autorizadas, que se desenvolvem contra e a margem da lei, em terreno fértil para ilicitude de toda a ordem e sem qualquer sentido ou utilidade social ou pública. Apenas a exploração dos incautos, pela ilusão do jogo, em favor de alguns, porque preferem mais ociosidade a viver de trabalho honesto e lícito. Por isso e porque de maneira alguma se pode aceitar que tivesse o apelante alternativa outra para a sua subsistência se não entregar-se à propagação e a exploração do "Jogo do bicho", tem-se como acertada

            A conclusão da oportuna e bem lançada sentença condenatória.

            Ninguém contesta, repita-se, a nocividade do jogo. Igualmente, ninguém contesta que o "jogo do bicho", encontra adeptos em grande quantidade, em todas as classes sociais e em todos os recantos do País. Se não continuar enérgica em lei penal, irá se alastrar, enredando em suas teias grande parte da população já explorada e empobrecida. Se existe alguma incoerência está em deixar de se cumprir a lei que o reprime a pretexto de que outras modalidades de jogo erradamente não são reprimidas ou até são patrocinadas e estimuladas pela União.

            A matéria, por sua relevância moral, merece demorado exame. Condene-se o jogo clandestino e o jogo oficializado. Ninguém nega a loto ou a loteca que tira com uma das mãos o que dá com a outra. Cumpram aos mais esclarecidos, pelos meios de que dispõem, o dever de informar, de pressionar, de denunciar publicamente essa anomalia. O bom sal salga, evitando a deterioração. O bom fermento faz levedar toda massa.

            Não é admissível, no entanto, que o Juiz Criminal adote comportamento complacente, ao arrepio da lei, beneficiando cambistas e banqueiros com a sua inércia.

            Quando não existia loto nem loteria esportiva, outro pretexto comumente era levantado para não se fazer cumprir a lei. Dizia-se: quase sempre, apenas o inábil intermediário, um pobre coitado geralmente doente, velho ou inválido, cheio de filhos ou desempregado, é apanhado, enquanto os banqueiros continuam impunes.

            É óbvio que isto deveria ocorrer com freqüência porque os banqueiros contratam preferentemente essas pessoas e não aparecem diretamente na operação, protegendo-se com o pacto do silêncio. Além disso, como é sabido, dispõem os banqueiros do "jogo do bicho" de grande poder corruptor, por auferirem grandes lucros com prática dessa modalidade de contravenção. Habilmente distribuem benesses para angariar simpatias populares. Mantém advogados, corrompem policiais, apóiam políticos, contribuem para órgãos de divulgação para defendê-los com o triste argumento de que o "jogo do bicho" é um mal necessário pois cria novos empregos, como se pudesse considerar emprego a situação do bicheiro, sem remuneração certa, sem direitos trabalhistas ou previdenciários, sem ao menos respeitabilidade do homem que exerce uma atividade socialmente útil, não marginal.

            Enquanto isso, atuam notadamente entre pessoas mais pobres e naturalmente, menos esclarecidas, com o agravante de que, ao jogarem no bicho elas perdem o que de necessário deveriam levar para suas casas. Através dessa atividade ilegal, diferentemente do comum dos mortais, conseguem deixar de pagar impostos, notadamente o Imposto de Renda.

            Os intermediários são as raízes que alimentam os banqueiros assim como os ladrões são as raízes que nutrem os grandes receptadores. Não se pode atingir uns sem, atingir os outros. Só os atingidos se evitará que façam milhões de vítimas, muitas delas doentes, velhos cheios de filhos e desempregados.

            De nada valerá o esforço de honrados policiais que, cumprindo os seus deveres, conseguiram desvendar contraventores do "jogo do bicho", se o MP e a Magistratura forem flácidos e injustificadamente descrentes a respeito da conveniência de lhes aplicar a devida sanção penal prevista em Decreto –Lei em pleno vigor.

            O descumprimento da lei abala as estruturas das instituições democráticas, incompossíveis com o arbítrio.

            Diga-se, a bem da verdade, que as autoridades policiais deste Estado, diferentemente do que ocorre em algumas Unidades da Federação, cônscias da relevância de suas funções no combate à contravenção, há dezenas de anos empenham-se diurnamente, procurando reprimi-la, atingindo, às vezes, o cerne, o reduto, que abriga o banqueiro. Esse esforço pertinaz não tem sido inútil porque, assim agindo, dificultam a ação dos contraventores e evitam que o mal cresça e se torne epidêmico.

            O Judiciário, tradicionalmente, tem feito também a sua parte. Basta consultar-se os repertórios de jurisprudência, notadamente os mais antigos.

            Não é verdade a afirmação de que este E. Tribunal de Alçada Criminal, em sua maior parte, é complacente com a contravenção. Pelo contrário, no contexto das suas decisões, raros são os julgados que acompanham a mesma orientação que a mencionada pela Defesa.

            O que ocorre com freqüência são absolvições por insuficiência de prova, fato perfeitamente justificável dadas as dificuldades normais de se provar a contento a prática da contravenção"( Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo", 83/452-454).

            Em recentíssimo julgado, o C. Superior Tribunal de Justiça, assim decidiu em relação ao tema discutido:

            "PENAL. CONTRAVENÇÃO DO JOGO DO BICHO.

            Acórdão absolutório fundado na perda da eficácia da norma contravencional ("a conduta embora punível deixa de sê-lo socialmente"). Decisão que nega vigência ao art. 58, parágrafo 1º, "b", do Decreto-Lei 6.259/44.

            Reconhece-se, em doutrina, que o costume, sempre que beneficie o cidadão, é fonte do Direito Penal. Não obstante, para nascimento do direito consuetudinário são exigíveis certos requisitos essenciais (reconhecimento geral e vontade geral de que a norma costumeira atue como direito vigente), não identificáveis com a mera tolerância ou omissão de algumas autoridades.

            A circunstância de o próprio Estado explorar jogos de azar não altera esse entendimento porque, no caso de exame, o que se pune é uma certa modalidade de jogo: a clandestina, proibida e não fiscalizada.

            Conhecimento do recurso especial do Ministério Público e seu provimento para restabelecer-se a sentença condenatória de primeiro grau, decretando-se, porém, a extinção da punibilidade pela prescrição" (Resp 2.202-SP, rel. Min. ASSIS TOLEDO, DJU de 2. 4. 90).

            Em seu voto, o eminente relator acrescenta:

            "Nessa linha de pensamento não parece que a tolerância ou a omissão de algumas autoridades seja suficiente para transformar em direito consuetudinário a prática contravencional do "jogo do bicho", tanto mais que, freqüentemente, se reaviva a noção de ilicitude dessa prática com batidas policiais, amplamente divulgadas, e prisões recentes de importantes "bicheiros", figuras proeminentes do carnaval carioca".

            Em situação semelhante, a Suprema Corte, atendendo recurso do Ministério Público, já havia decidido de maneira idêntica, dando provimento ao inconformismo para restabelecer a condenação de Primeira Instância, embora julgando prescrita a pretensão punitiva (RE 114.598-6-SP, rel. Min. CARLOS MADEIRA, DJU de 16.09.88, p. 23.317).

            Ainda no sentido do presente recurso, são os vv. arestos do E. Tribunal de Justiça do Paraná (RT 607/338), do E. Tribunal de Alçada do Paraná (RT 439/463), do E. Tribunal de Alçada de Minas Gerais (RT 600/399 e 594/397) e do E. Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro (Ap. 10.743, DJRJ de 19.05.82, p. 67).

            No primeiro desses julgados, a C. Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deixou decidido que:

            "Evidenciadas a posse e a guarda do material contravencional, é de se confirmar a condenação dos réus pela prática do "jogo do bicho" (RT 607/338).

            O E. Tribunal de Alçada de Minas Gerais, igualmente assim se manifestou:

            "CONTRAVENÇÃO PENAL". "JOGO DO BICHO". PRINCÍPIO DA EQUIDADE. PODER DE POLÍCIA. OMISSÃO. EFICÁCIA DA LEI. Encontrando-se provadas nos autos a materialidade e a autoria da contravenção do "jogo do bicho", a demonstrar a infringência pelos réus de um dispositivo legal ainda não revogado, é defeso ao juiz absolver, com base no princípio da equidade, quando o magistrado não encontra, no ordenamento jurídico, norma expressa de Direito Positivo disciplinado a matéria sob julgamento. A falência do poder de polícia no que concerne à repressão ao "jogo do bicho", revelando-se as autoridades omissas, tolerantes e até coniventes com a prática dessa contravenção e a impunidade de autores, não autoriza o juiz a também omitir no cumprimento de seu dever específico, deixando de aplicar a lei ao caso concreto" (RT 549/397).

            Patenteia-se nítido o paralelismo entre a situação dos autos e as enfocadas pelos vv. arestos trazidos a confronto. Em todas as hipóteses, cuida-se de ações penais em que os acusados viram-se envolvidos na prática do "jogo do bicho", E FORAM AO FINAL CONDENADOS.

            Desnecessário enfatizar a importância do problema concernente à repressão do "jogo do bicho". Basta ver que a Assembléia Nacional Constituinte rejeitou em 1º turno de votação a descaracterização do "jogo do bicho" como contravenção, a demonstrar que essa não é a vontade do legislador atual, consciente dos males que esse jogo acarreta, principalmente agora que a imprensa noticia o envolvimento do COMÉRCIO DE DROGAS com a contravenção.

            Se tão famigerado hábito não for enfrentado com firmeza, e se banqueiros e cambistas não encontrarem decidida contenção por parte de nossos juízes e Tribunais, irá disseminar-se cada vez mais, contestando os contraventores a autoridade da lei e maltratando o prestígio da Justiça.

            Como foi oportunamente enfatizado pela C. Décima Segunda Câmara Do TJSP:

            "O denominado "jogo do bicho", só por si, não seria maior mal que outros tipos de loterias e jogos bancados pelo Estado. Notórias, porém, as seqüelas anti-sociais que em seus bastidores proliferam: corrupção, disputas entre quadrilhas, subornos e até mortes. O Judiciário, também responsável pela manutenção do equilíbrio e da normalidade social, não pode cerrar os olhos à vista de chagas que tais".

("Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo", 84/227).

            Verifica-se, assim, tratar-se de contravenção punível a prática do "jogo do bicho", norma incriminadora ainda em plena vigência, não revogada pelo desuso, como, de resto, os ensinamentos contidos nos VV. arestos trazidos à colação, oriundo do C. Superior Tribunal de Justiça, da Suprema Corte e de outros respeitáveis Tribunais pátrios.

            Pari passu, deve-se igualmente rechaçar a cansativa alegação defensiva, no sentido de estar o fato acobertado pela descriminante do Estado de Necessidade, diante de suposta crise de desemprego no país.

            Nada mais equivocado.

            Até porque, ninguém desconhece o fato de que a infração penal se caracteriza, sob o aspecto analítico, pelos requisitos do fato típico e da antijuridicidade, apresentando-se a culpabilidade como pressuposto da pena.

            Fato típico é o que se amolda à norma penal incriminadora. Aquele que mantém sob sua guarda material próprio do jogo do bicho, pratica a contravenção de que nos fala o art.58, par.1, alínea "b", do Dec-lei 6259/44. Nessa hipótese, o fato apresenta correspondência exata com a noticiada norma penal proibitiva, recebendo, por isso, a denominação "fato típico". Não é suficiente, porém, para a existência de crime, que o comportamento seja típico. É preciso que seja ilícito para que sobre ele incida a reprovação do ordenamento jurídico. Em face disso, surge o crime como fato típico e antijurídico.

            Numa apreciação preliminar, pode-se dizer que a antijuridicidade é a contrariedade entre o fato típico e o Direito. Empregamos um critério negativo de conceituação da antijuridicidade: o fato típico é também antijurídico, salvo se concorre causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art. 23 do Código Penal (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito). Diante de um evento atentatório a um bem jurídico, diz-se que há um "fato típico". Surge a antijuridicidade se não agiu acobertado por excludente da ilicitude (ex.: legítima defesa). Assim, antijurídico é todo fato descrito em lei penal incriminadora e não protegido por causa de justificação. O sistema negativo conceitua a antijuridicidade como ausência de causas de ilicitude, o que vale dizer que não diz o que é antijurídico, mas sim o que é jurídico.

            Vencida essa etapa, deve-se registrar que o Código Penal considera em estado de necessidade, uma das causas de exclusão da ilicitude, quem pratica fato típico para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, "nem podia de outro modo evitar...", bem jurídico seu ou de terceiro (art. 24). Significa que o agente não tem outro meio de evitar a lesão ao interesse jurídico próprio ou alheio que não o de praticar o fato necessitado, ofendendo outro bem. Ocorre nas hipóteses em que é inviável a abstenção de realização do comportamento lesivo em face da inevitabilidade do perigo de dano por outra forma ("beco com uma única saída possível"). Colhem-se na doutrina diversos exemplos dessa justificante, tais como um dano em propriedade alheia para extinguir incêndio; subtração de alimentos para evitar a morte por inanição; subtração de água para evitar a morte por sede; aborto para salvar a vida da gestante; morte de náufrago para apanhar a única tábua de salvação; subtração de veículo para transportar doente em perigo de vida; violação de domicílio para acudir vítima de crime; lançamento de mercadorias de aeronave em perigo; desvio de canal para impedir inundação; omissão de socorro médico para acudir outro paciente etc.

            Nesses casos, exposto o bem a perigo de dano real, grave e atual, se o conflito de interesses pode ser resolvido de outra maneira (conduta diversa), como pedido de socorro a terceira pessoa, lesão menor, fuga (commodus discessus) ou mesmo abstenção da conduta, o fato não fica justificado. É preciso que o único meio que se apresenta ao sujeito para impedir a lesão do bem jurídico seja o cometimento do fato lesivo. Não é um conceito rígido, mas relativo, aquilatado pelas circunstâncias do caso concreto em que se vê envolvido o agente. Se o perigo pode ser afastado por uma conduta menos ofensiva ou comportamento diferente, a realização do comportamento mais lesivo não configura a excludente da ilicitude, subsistindo crime. A jurisprudência tem se manifestado diversas vezes nesse sentido: Revista dos Tribunais, 518:377, 535:304 e 559:358; Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 35:334, 39:41 e 65:384.

            Assim, só é possível o estado de necessidade para salvaguardar interesse próprio ou alheio, "cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se" (art. 24, in fine). Significa que o bem jurídico se encontra na iminência de ser lesado ou destruído (morte ou dano físico ou fisiológico por fome, sede, frio etc.; dano a patrimônio etc.). É o requisito da proporcionalidade entre a gravidade do perigo de lesão que ameaça o bem jurídico e a intensidade da ofensa causada pelo fato necessitado.

            O fato necessário, como diz MUÑOZ CONDE, não pode ser utilizado como panacéia de todos os conflitos de interesses. Assim, prossegue, "o desempregado não pode assaltar um supermercado" (Derecho Penal, Parte General, Valencia, Tirant Lo Blanch Libros, 1996, p. 343). Não basta, pois, que haja uma necessidade de alimentos, medicamentos, terras para plantar, empregos etc. Urge que a conduta, em face da iminência de lesão ou destruição de um bem (vida, p. ex.), seja necessária (inexigibilidade de comportamento diverso) e realizada em situação grave e atual (Revista de Jurisprudência e Doutrina do TACrimSP, 24:162), exigindo-se prova cabal e não mera alegação (Julgados do TACrimSP, 49:211 e 53:153).

            Desta forma, não aproveita ao apontador do jogo do bicho a simples alegação de desemprego (Revista dos Tribunais, 721:450), uma vez que "necessidade" não se confunde com "precisão" (Revista de Jurisprudência e Doutrina do TACrimSP, 22:211).

            Sobre o tema, precisa é a lição de Damásio Evangelista de Jesus, que ensina:

            " Se o sujeito mora num deserto, onde não há condições de plantar alimentos, não pode, alegando estado de necessidade, transformar-se em assaltante de caravanas."

            Pensar diferente, e absolver o apontador do jogo do bicho, sob esse fundamento, seria o mesmo que legitimar os quase 12 milhões de brasileiros, atualmente desempregados, a se entregarem ao mundo da contravenção, com o que chegaríamos ao final dos tempos.

            Nesse sentido, posicionam-se nossos Tribunais:

            "Dificuldades financeiras, desemprego, situação de penúria e doença, não caracterizam o estado de necessidade. Para que a excludente seja acolhida, mister se torna que o agente não tenha outro meio a seu alcance, senão lesando interesse de outrem" (TJSP –Rel. Gonçalves Nogueira – TJT 153/330)

            TJRJ: " Excludente do estado de necessidade que deve ser provada por quem alega (...)

            A excludente de antijuridicidade deve ficar provada sem qualquer dúvida (...)."

            APELAÇÃO CRIMINAL 1226/98 – Reg. em 10/09/98

            PETRÓPOLIS – OITAVA CÂMARA CRIMINAL – Unânime

            DES. JOÃO A. DA SILVA – Julg: 06/08/98.

            Assim sendo, a condenação da ré é medida inafastável, valendo lembrar que sua pena privativa de liberdade deve ser fixada bem acima do mínimo legal, não só pelo teor de fls.30/38 e 32/33, revelando uma vida inteira voltada ao ilícito, como também por sua personalidade distorcida e conduta reprovável, revelada em parte por sua absoluta indiferença para com a Justiça, eis que revel (fls.45).

            Face ao exposto, requer o Ministério Público a CONDENAÇÃO da acusada, nas penas dos art. artigo 58, par.1o, alínea b, do Dec-lei 6259/44, por ser medida de Justiça.

            P. deferimento.

            Saquarema, 28 de maio de 2003.

            ALEXANDRE COUTO JOPPERT

            Promotor de Justiça

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Alexandre Couto Joppert

Promotor de Justiça titular do Tribunal do Júri da Comarca de Niterói (RJ). Professor universitário de Direito Penal. Ex-integrante da comissão da Confederação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) instituída para acompanhar as reformas do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei Antitóxicos. Palestrante. Autor da obra "Fundamentos do Direito Penal".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JOPPERT, Alexandre Couto. Alegações finais do Ministério Público em processo de contravenção do jogo do bicho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 779, 21 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16633. Acesso em: 19 abr. 2024.

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