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Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito

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Sentença reconheceu a ilegalidade do exercício do poder de polícia de fiscalização do trânsito por Guarda Municipal, anulando multas aplicadas e condenando o Município em danos materiais e morais.

Ação: anulatória de autos de infração de trânsito e reparatória civil

Incidente: impugnação de pedido de assistência judiciária

Autos nº: 033.07.024282-0

Autor: DEMIAN CAMPOS LEITE

Réu: MUNICÍPIO DE ITAJAÍ(SC)

Vistos etc.


I – RELATÓRIO

DEMIAN CAMPOS LEITE, já devidamente qualificado nos autos, por sua procuradora legalmente habilitada (art.36 do Código de Processo Civil – CPC) ajuizou ação anulatória de autos de infração de trânsito e reparatória civil por danos materiais e morais contra o MUNICÍPIO DE ITAJAÍ, pessoa jurídica de direito público interno, também já qualificada nos autos, buscando anulação dos autos de infração de trânsito nº 54525611B, 54525547B, 54525548B e 54525549B (fls.27-32), que teriam sido lavrados por agentes do Réu sem competência para tanto e com abuso de autoridade lhe ocasionando danos materiais e morais.

Entendeu que a guarda municipal não tem competência para fiscalizar o trânsito, mas somente proteger os bens e instalações do Município, muito menos reter CNH de condutores ou apreender seus veículos, de maneira a eivar de ilegalidade as autuações de trânsito lavradas. Lucubrou ainda sobre a inexistência de concurso público para a contratação dos agentes, que seria inconstitucional.

Contou que não agiu contrário a nenhuma norma de trânsito quando, no dia 03/04/2007, às 18h20min, transitava com seu veículos Ford Escort GLX, 1997, renavan 680720464, placas MAW9000, na Avenida Abrahão João Francisco, próximo ao Posto Universitário, para desviar de um outro veículo e por motivo de segurança, freou bruscamente antes de uma faixa de pedestre, e foi abordado pelos agentes da Guarda Municipal Gama e Edinei, que agiram com abuso de autoridade ao tomar conhecimento de sua profissão de Advogado (BO 00481-2007-04910 de fl.35). Destaca que os agentes lhe lavraram as quatro autuações, apreenderam seu veículo e retiveram sua CNH sumariamente, sem qualquer fundamento legal e sem a observância de procedimento administrativo para tanto (fl.36), além de que teriam provocado tumulto desnecessário na via com a abordagem e tentado retirar a chave do carro da ignição sem o seu consentimento, motivos pelos quais devem ser anulados os autos de infração.

Asseverou, ainda, que, quando da apreensão do seu veículo, foi obrigado a pagar o serviço de guincho e estacionamento no pátio do Réu. Ressaltou que o veículo foi levado em bom estado, mas, quando da sua retirada, apresentava avarias diversas, conforme fotos e orçamento anexos (fls.34 e 41-47), o que enseja indenização pelos danos materiais e morais ocasionados diante da responsabilidade objetiva do Réu.

A tutela foi antecipada pela decisão de fls.47-63 (art.273 do CPC).

O MUNICÍPIO DE ITAJAÍ, citado com as advertências do art.285, 2ª parte, do CPC, apresentou resposta na forma de contestação (art.300 do CPC), onde, meritalmente, disse que o Autor descreve os fatos de forma dissonante da realidade, pois transitava em velocidade excessiva e quase ocasionou o atropelamento do pedestre Maurício Heloy de Jesus, alterando-se em razão da abordagem dos agentes Ewerton Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade.

Afirmou que os autos de infração foram lavrados corretamente; e especificamente, sobre o recolhimento da CNH, que estava irregular com o plástico destacado do papel moeda, o que motivou a retenção do documento. Argumentou que a Guarda Municipal tem competência para fiscalizar o trânsito e que os danos materiais não foram comprovados, sendo que os morais se constituem em enriquecimento ilícito. Pugnou, finalmente, pela improcedência do pedido inicial com a condenação do Autor às penas da litigância de má-fé e aos ônus de sucumbência.

A seguir, foi determinada a intimação do Autor para se manifestar sobre a contestação apresentada (art.326 e 327 do CPC) pelo que rebateu as alegações do Réu e repisou os termos da inicial.

Vieram os autos conclusos, pelo que se passa à decisão.


II – TUDO BEM VISTO E ANALISADO, DECIDO:

As condições da ação estão satisfeitas – possibilidade jurídica do pedido, interesse processual e legitimidade (art.267, IV, do CPC) – e concorrem os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo (art.267, VI, do CPC). Não houve reconhecimento de pedido, renúncia a direito nem tampouco prescrição ou decadência (art.269, II a V, do CPC). O órgão para julgamento é competente para tanto com sua investidura e imparcialidade necessárias (art.5º, LIII, da CF). As partes têm capacidade para litigar, estando preenchidos os requisitos da petição inicial (art.282 do CPC) e sendo válida a citação do Réu.

Não há necessidade de produção de outras provas versando a questão de mérito unicamente sobre direito e fatos já comprovados documentalmente, encontrando-se ordenado o processo, de maneira a comportar o julgamento antecipado, nos termos do art.330, I, do CPC, salientando que "o julgamento antecipado da lide, antes de ser uma faculdade do julgador, é um dever, quando presentes os elementos para tanto, tendo-se em vista os objetivos de celeridade, efetividade e economia processual" (TJSC, AC nº 1998.003753-0, Des.Rel.PEDRO MANOEL ABREU, Indaial/SC).

Não há prejudiciais nem preliminares a serem analisadas.

Ab initio, parece ser a presente ação complexa, tendo em vista a aparente necessidade de comprovação de muitos fatos e análise de constitucionalidade das leis aplicáveis e tudo mais.

Entretanto, de uma forma objetiva e com a clareza e concisão que devem ser buscadas para a entrega do provimento jurisdicional e produtos jurídicos em geral, verifica-se que toda a celeuma gira em torno da legalidade do procedimento dos agentes públicos Ewerson e Edney quando autuaram o Autor, seja por, como guardas municipais, não terem competência para fiscalizar o trânsito, seja por terem agido com abuso de autoridade.

Importante destacar que não há dúvida quanto ao vínculo empregatício dos agentes Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade. Ambos fazem parte da Guarda Municipal de Itajaí. Isso porque o Autor assim se referiu a eles na sua petição inicial (fl.05) e o Réu, ao impugnar as razões e contestar o pedido inicial, não negou tal vínculo, ou cargo, dos agentes autuadores. Ao contrário, defendeu suas condutas e cargos, afirmando:

"A atribuição da competência para fiscalizar o trânsito e aplicar multas não fere a Constituição ao contrário pretende efetivar o direito fundamental à vida (CF, art.5º, caput), atende ao princípio da eficiência imposta à Administração Pública (CF, art.37, caput) e está dentro dos limites materiais da competência constitucional da Guarda Municipal pois se trata de serviço essencial de Segurança Pública.

A guarda municipal pode investir-se da competência para fiscalizar o trânsito podendo legitimamente aplicar multas de modo a preservar a vida e incolumidade das pessoas (...)"

(ipsis literis fls.106 e 107 – peça contestatória do Município de Itajaí).

Portanto, embora não tenha vindo aos autos a efetiva comprovação de que tipo de vínculo, se estatutário ou celetista, nem o efetivo cargo dos agentes que lavraram as autuações de trânsito contra o Autor, ou a que órgão estão vinculados, constata-se ser fato incontroverso nesta demanda que ambos os Agentes mencionados pertencem à Guarda Municipal de Itajaí, eis que assim admitidos pelo Réu.

No dizer de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, "Se a afirmação de determinado fato não é contrastada por uma afirmação oposta, colidente com ela, não há controvérsia e em princípio o reconhecimento do fato não depende de prova alguma (art. 334, inc. II)", e enfatiza que "A controvérsia gera a questão, definida como dúvida sobre um ponto, ou como ponto controvertido. Se não há controvérsia, o ponto (fundamento da demanda ou da defesa) permanece sempre como ponto, sem se erigir em questão. E mero ponto, na técnica do processo civil, em princípio independe de prova" (in Instituições de Direito Processual Civil. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.59).

Dispõe o CPC: "Art. 334. Não dependem de prova os fatos: (...) II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - admitidos, no processo, como incontroversos; (...)".

NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY lecionam que "São incontrovertidos os fatos alegados pelo autor e não contestados pelo réu, que se presumem verdadeiros (art. 302, caput)" (in Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.535).

Então, ponto fulcral para solução da quaestio juris, fazendo parte, aliás, do MERITUM CAUSAE é a verificação (1)da legitimidade da Guarda Municipal para autuar e aplicar multas oriundas de infração de trânsito; (2)da responsabilidade civil do Município de Itajaí em relação aos danos materiais e morais ocasionados ao Autor.

1. COMPETÊNCIA DA GUARDA MUNICIPAL

Sem maiores delongas, de uma primeira leitura dos arts.24, VI e art.280, §4º, ambos do CTB (Código de Trânsito Brasileiro), poderia se entender pela possibilidade de autuação e aplicação de multas pelos integrantes da Guarda Municipal.

Tal ilação, todavia, viola o regramento constitucional, especificamente o art.144, §8º, da CF, eis que lá consta quais são as funções da Guarda Municipal, a saber: "Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei".

Vê-se que dentre as finalidades da Guarda Municipal não figura o policiamento de trânsito em geral nem a autuação de condutores e lançamento de multas. Tais atos consubstanciam-se em guarda e fiscalização de trânsito.

E a guarda e fiscalização de trânsito urbano compete à Polícia Militar, nos exatos termos do art.107, I, ´e´, da Constituição Estadual de Santa Catarina:

"Art. 107. À Polícia Militar, órgão permanente, força auxiliar, reserva do Exército, organizada com base na hierarquia e na disciplina, subordinada ao Governador do Estado, cabe, nos limites de sua competência, além de outras atribuições estabelecidas em Lei:

I – exercer a polícia ostensiva relacionada com: (...)

e) a guarda e a fiscalização do trânsito urbano".

Se de um lado o exercício de poder de polícia da Guarda Municipal é reconhecido e prestigiado nos moldes da norma constitucional, em contrapartida não se pode dizer que os componentes daquela estejam investidos em função pública, quanto à autuação e aplicação de penalidades a condutores de veículos.

Tal questão já foi bem equacionada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que reconhece repetidamente a invalidade de tais atos administrativos:

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"Guarda-Municipal. Representação por Inconstitucionalidade. Indelegabilidade das funções de segurança publica e controle de transito, atividades próprias do Poder Publico. As atividades próprias do Estado são indelegáveis pois só´ diretamente ele as pode exercer; dentre elas se inserem o exercício do poder de policia de segurança publica e o controle do transito de veículos, sendo este expressamente objeto de norma constitucional estadual que a atribui aos órgãos da administração direta que compõem o sistema de transito, dentre elas as Policias Rodoviárias (Federal e Estadual) e as Policias Militares Estaduais. Não tendo os Municípios Poder de Policia de Segurança Publica, as Guardas Municipais que criaram tem finalidade especifica - guardar os próprios dos Municípios (prédios de seu domínio, praças, etc) sendo inconstitucionais leis que lhes permitam exercer a atividade de segurança publica, mesmo sob a forma de Convênios. Pedido procedente"

(TJRJ, 2001.007.00070 - repres. por inconstitucionalidade, DES. GAMA MALCHER, j.05/08/2002 - ORGÃO ESPECIAL).

E mais recentemente:

"Administrativo. Constitucional. Vistoria e licenciamento de veículo. Existência de multas anteriores, inclusive pela Guarda Municipal. Pretensão de realização do ato sem pagamento daquelas e cancelamento das emitidas pela Municipalidade. Pagamento das multas no curso do feito. Extinção sem resolução do mérito quanto ao pedido de realização de vistoria e obtenção de licenciamento anual independentemente do pagamento daquelas e improcedência do pedido de anulação dos autos de infração aplicados pela Guarda Municipal reputando válidas as autuações. Apelação. Atuação dos agentes municipais, em controle de trânsito reconhecido como violando o estatuto constitucional. Prevalência do art. 144, § 8º da carta política sobre a lei no. 9.503/97. Matéria decidida pelo Colendo Órgão Especial na representação por inconstitucionalidade no. 2001.007.00070. Lei municipal 1.887/92 que autorizou a criação da Guarda Municipal que deve se adequar ao comando constitucional. Precedentes deste Tribunal de Justiça. Inviabilidade de exercício de poder de polícia de trânsito por empregados públicos não regularmente investidos de função pública.Provimento do apelo, reconhecimento de nulidade das infrações de lavra da Guarda Municipal e seus reflexos e modificação das verbas de sucumbência"

(TJRJ, 2007.001.24015 - apelação cível, JDS. DES. PEDRO FREIRE RAGUENET - Julgamento: 31/07/2007).

"APELAÇÃO. AÇÃO VISANDO A ANULAÇÃO DE AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO, IMPUTANDO AO AUTOR TRANSPOSIÇÃO DE BLOQUEIO VIÁRIO SEM AUTORIZAÇÃO. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO AFASTADA PELA PROVA DOCUMENTAL PRODUZIDA. CONDUTOR DO VEÍCULO QUE É POLICIAL MILITAR E NO DIA E HORA DA SUPOSTA INFRAÇÃO, ENCONTRAVA-SE PRESTANDO SERVIÇO NO VIGÉSIMO TERCEIRO BATALHÃO, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. ADEMAIS, A GUARDA MUNICIPAL NÃO PODE SER INVESTIDA DE PODER DE POLÍCIA DE TRÂNSITO, SENDO NULAS DE PLENO DIREITO AS MULTAS POR ELA APLICADA. PRECEDENTES DESTA EGRÉGIA CORTE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE SE REFORMA PARA ANULAR O AUTO DE INFRAÇÃO, BEM COMO DETERMINAR O CANCELAMENTO DA PONTUAÇÃO NEGATIVA IMPOSTA. RECURSO PROVIDO" (TJRJ, 2006.001.50281 - apelação cível, DES. LUIS FELIPE SALOMAO - Julgamento: 24/04/2007).

"Duplo Grau de Jurisdição - Multa - Infração à Lei do Trânsito - Correta a sentença que dá pela nulidade de multa de trânsito, porque aplicada por pessoa que não ostenta as qualidades funcionais necessárias à legalidade do ato. Apenas os Guardas Municipais, regularmente nomeados, estão titulados à fiscalização do cumprimento das regras do Cód. de Trânsito Brasileiro. Empregado celetista ao qual não se pode atribuir esta competência. Decisão confirmada" (TJRJ, 2006.009.02103 - duplo grau obrigatório, DES. JAIR PONTES DE ALMEIDA - Julgamento: 12/04/2007).

Para corroborar o entendimento acima exposto, embora evidentemente não vinculante, importante trazer à luz os pareceres nº 1206 e 1409/06 da Consultoria Jurídica do MINISTÉRIO DAS CIDADES, acerca da atuação das guardas municipais como agentes de trânsito, que foi levado ao conhecimento dos dirigentes dos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Estados e Municípios, por meio do Ofício-Circular nº 002/2007/CGIJF/DENATRAN, no mês de janeiro deste ano de 2007.

A Consultoria referida conclui que falece à Guarda Municipal competência para atuar na fiscalização de trânsito, incluindo o procedimento relativo à aplicabilidade de multas, como, também, não detém legitimidade para firmar convênio com os órgãos de trânsito para tal fim. Transcreve-se o parecer nº 1409/06 na íntegra para melhor entendimento:

"PARECER CONJUR/MCIDADES Nº 1409/2006

GUARDA MUNICIPAL – COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL: As guardas municipais são desprovidas de competência para atuar no campo da segurança publica, não podendo, pois, ser investidas de atribuições de natureza policial e de fiscalização do trânsito. Sua atuação se restringe à proteção dos bens, serviço e instalações do entre municipal (inteligência do art. 144, §8º, da CF/88). (Processo nº 80001.004367/2006-25)

Trata-se de exame de legalidade da atuação da guarda municipal, referente a consulta formulada pela associação das guardas municipais do estado de São Paulo. A indagação circula em torno da competência da guarda municipal na função de agente de trânsito. Os autos foram instruídos com vasta documentação referente a tema. A informação nº 020/2006/CGIJF/DENATRAN (cópia as fls. 112/115) noticia que a matéria já tramita há algum tempo perante o DENATRAN, obtendo pareceres que divergentes entra si. Pelo capacho de fl.120, a coordenação geral de instrumental jurídico e de fiscalização determinou o apensamento dos presentes autos aos autos dos processos nº 80001.015031/2006-98; 80001.011467/2005-27; 80001.014211/2006-52, dando-se o respectivo desapensamento nos termos do DESPACHO CONJUR/MCIDADES nº2663/2006 (fls.153/154). É o relatório.

Consoante já anotado no relatório supra, cuida-se de exame de competência das guardas municipais, aí se incluindo a legitimidade para afirmar convênio com órgãos de trânsito para fins de fiscalização. Observamos, inicialmente, que o sistema de repartição de competência adotado pelo nosso ordenamento jurídico segue o critério da predominância do interesse. Assim, as matérias pertinentes ao interesse nacional serão atribuídas ao órgão central, ficando reservadas aos estados membros e aos municípios as matérias relativas aos interesses regionais e locais, respectivamente. As competências, a teor do próprio texto constitucional, são ditas legislativa e administrativa. A legislativa se expressa no poder de a entidade estabelecer normas gerais, enquanto a administrativa, ou material, cuida dos atos concretos do ente estatal, da atividade administrativa propriamente. Fincadas essas balizas preliminares, cabe atentar para o que estabelece a constituição federal na repartição da competência dos entes federativos no tocante a segurança pública, tema no qual esta inserida a matéria ora em estudo, dispondo no seu art.144, caput, e §8º: ´Art.144. A segurança pública, dever do estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem publica e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Policia Ferroviária Federal e Policias civis Policias militares e corpos de Bombeiros militares (...) §8º - Os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas a proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Os dispositivos acima estabelecem competência administrativa, ou seja. Poder para o exercício de certas atividades típicas do poder publico. E como se vê, independentemente de se tratar de interesse local, regional ou nacional, o constituinte nominou expressamente aqueles entes a quem atribuiu as funções de segurança públicas não constando entre eles o ente municipal, cabendo acrescentar que o critério do interesse local, inserto no art.30, inciso I, da CF, refere-se a competência legislativa do município. A inserção do município no contexto da segurança pública foi por restrita. Com efeito, atribuiu-lhe o constituinte, no parágrafo 8º, do art. 144, o poder de constituir guardas municipais, mas cuidou em fechar o parêntese, estabelecendo que as atribuições destas, no campo material, ficariam limitadas a proteção dos bens, serviços e instalações da municipalidade, na forma da lei. O texto constitucional remeteu a matéria ao legislador ordinário, daria vida plena ao comando da norma. Mas a lei disporia apenas sobre os modos de execução e demais fatores relacionados as nuances administrativas, nunca ampliando o campo de atuação, para acrescentar competência que o constituinte não estabeleceu, como, por exemplo, inserido o município, por intermédio da sua guarda municipal, no contexto da segurança publica. É claro que poderiam, a União, os Estados e os Municípios cuidar da segurança pública, conciliando as suas atribuições de acordo com o interesse verificado. Tal sistemática, alias, é noticiada no direito comparado, consistindo em prática recorrente em diversos países. Isto, por certo, nesses tempos de exacerbada violência urbana, receberia aplausos da sociedade brasileira. Poderíamos muito bem ter uma polícia federal, estadual e municipal. Entretanto, definitivamente, esta não foi a vontade do constituinte. A inclusão da municipalidade no sistema nacional de trânsito, por intermédio dos seus órgãos e entidades executivas de trânsito, nos termos dos arts. 5º e 7º, da Lei nº 9.503/1997 (Código Brasileiro de Trânsito), apenas autoriza o município a atuar na condição de coadjuvante junto aos verdadeiros detentores da competência no cenário da segurança publica, nas atividades relacionadas ao trânsito. Não investiu o ente municipal de competência para atuar na segurança pública, com poderes para os servidores de policia ostensiva, de preservação da ordem pública, polícia judiciária e aplicação de sanções, porquanto tal competência haveria que ter sido atribuída pela própria Constituição Federal, e isto efetivamente não se deu. Aliás, neste sentido vêm se posicionando diversos órgãos do nosso poder judiciário, a exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo teor de decisão ora transcrevemos: "As guardas municipais só podem existir se destinadas a proteção dos bens, serviços e instalações de municípios. Não lhes cabem, portanto, os serviços de policia ostensiva, de preservação da ordem pública, de policia judiciária e de apuração das infrações penais, essa competências foram essencialmente atribuídas a policia militar e a policia civil" (TJPS – Acr 288.556-3- Indaiatuba -7ªC. Crim – Rel. Dês. Celso Limongi – J. 22.02.2000 – JURIS SINTASE, verbete 13044322). Por último, se não compete à guarda municipal atuar na fiscalização de trânsito, incluindo o procedimento relativo a atuação de condutores, pelos mesmos fundamentos também não detém legitimidade para firmar convênio com os órgãos de trânsito para tal fim. Ante o exposto, manifesta-se esta consultoria jurídica, sob a baliza do disposto no conteúdo do art.l 144 da Constituição Federal, no sentido de que falece a guarda municipal competência para atuar na fiscalização de trânsito, incluindo o procedimento relativo a aplicabilidade de multas, também não detendo legitimidade para firmar convenio com os órgãos de trânsito objetivando tal fim. À consideração superior, com sugestão de restituição ao DENATRAN.

CLEMILTON DA SILVA BARROS

Advogado da União.

De acordo. Restituam-se os autos, como proposto, ao Departamento Nacional de Trânsito.

Ministério das Cidades, em 30 de novembro de 2006.

ANA LUISA FIGUEIREDO DE CARVALHO

Consultora jurídica".

O parecer acima foi retirado de Ata Sessão Ordinária n.º 009/2007 do CETRAN de Santa Catarina (Conselho Estadual de Trânsito), datada de 27/02/2007, corroborando o fato de que existem recentes orientações internas no âmbito dos órgãos responsáveis pelo trânsito no sentido de rechaçar as autuações e multas aplicadas pelas guardas municipais.

Conforme acima já destacado, evidentemente que tal parecer não vincula o Juízo, mas serve para reforçar o entendimento aqui adotado da incompetência dos agentes do Réu Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade, que, como Guardas Municipais, autuaram o Autor por suposta infração de trânsito.

Enfim, considero inválidas as autuações nº 54525611B, 54525547B, 54525548B e 54525549B, lavradas pelos agentes Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade, bem como as respectivas penalidades impostas, visto que, como integrantes da guarda municipal, não detêm competência para guardar e fiscalizar o trânsito, conforme art.144, §8º, da CF.

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Sobre o autor
Rodolfo Cezar Ribeiro da Silva

Juiz de Direito em Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodolfo Cezar Ribeiro. Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1560, 9 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16806. Acesso em: 18 abr. 2024.

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