1. Introdução
A propriedade é hoje protegida e garantida constitucionalmente em nosso ordenamento jurídico, sendo alçada ao status de direito fundamental nos termos do art. 5º da Carta Magna. O caput do mencionado artigo dispõe ser inviolável, dentre outros direitos [01], o direito de propriedade; também o inciso XXII do mesmo dispositivo garante a todos o direito de propriedade, desde que compatibilizado com sua função social, como determina o inciso XXIII.
Sendo o direito de propriedade garantido e protegido pela lei maior e, também, por legislação esparsa, o legislador pátrio criou meios para sua efetivação. A ação de usucapião é um desses meios colocados à disposição do possuidor para que ele alcance a tão sonhada propriedade de um determinado bem, sendo considerada como um modo originário de aquisição da propriedade. Dentre as várias espécies de usucapião disciplinadas no direito brasileiro, interessa no presente estudo a chamada "usucapião ordinária", disposta no art. 1.242 do Código Civil de 2002.
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por 10 (dez) anos.
Dos requisitos elencados no art. 1.242, analisaremos especificamente o denominado "justo título". Veremos sua definição, bem como sua aplicação prática nos tribunais, e se seu conceito pode ser aplicado aos negócios jurídicos denominados "promessa ou compromisso de compra e venda", largamente utilizado em nosso território.
2. Conceito de Justo Título
Toda conceituação em direito é delicada e, por vezes incompleta, isso faz com que divergências sejam comuns, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. A tarefa de conceituar é árdua e, muita vez, está atrelada a conceitos extrajurídicos e, até mesmo, a situações históricas, econômicas ou sociais. Na opinião do mestre Orlando Gomes a expressão justo título é condenada, por ensejar confusão. [02]
Diante dessa pequena, mas já desanimadora afirmação, começamos a tentar conceituar o que vem a ser justo título para o direito das coisas. [03]
Para uma parte da doutrina, justo título seria o instrumento hábil a transferir o domínio, em tese, a alguém. Nesse sentido é o que lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
Justo título é o instrumento que conduz um possuidor a iludir-se, por acreditar que lhe outorga a condição de proprietário. Trata-se de um título que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idôneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impeça a sua aquisição. Em outras palavras, é o ato translativo inapto a transferir a propriedade. [04]
Percebe-se que os referidos autores utilizam duas vezes a expressão instrumento, em sua definição, e concluem que o justo título é um ato.
Já o mestre Baiano diferencia os termos "instrumento" e "ato", explicando que a não discriminação de um e outro pode dar ensejo à confusão. Assim dispõe:
[05]O vocábulo título pode dar a impressão de que se trata de instrumento, isto é, de escrito. Mas não tem esse sentido. Título se emprega, no caso, como sinônimo de ato jurídico. Ainda assim, teria compreensão muito ampla, porque nem todo ato jurídico serve de causa à posse. O título, a que se referem os Códigos, corresponde aos atos jurídicos cuja função econômica consiste em justificar a transferência do domínio. Numa palavra os atos translativos.
Para o mencionado autor, a expressão "justo título" designa qualquer ato jurídico cujo fim é habilitar alguém a adquirir a propriedade de uma coisa, ou seja, é todo ato translativo apto a transferir o domínio a alguém. [06]
Esse também é o entendimento esposado por Lenine Nequete que, em sua clássica obra, conceitua o justo título da seguinte forma:
Justo título (justa causa possessionis) é todo ato formalmente adequado a transferir o domínio ou direito real de que trata, mas que deixa de produzir tal efeito (e aqui a enumeração é meramente exemplificativa) em virtude de não ser o transmitente senhor da coisa ou do direito, ou de faltar-lhe o poder de alienar. [07]
Percebemos que o mencionado autor usa o termo "ato", assim como Orlando Gomes, mas também não menciona ou diferencia ato e instrumento na conceituação de título.
Todavia, na opinião de Carlos Roberto Gonçalvez o termo título é tomado em sentido lato, isto é, é o elemento representativo da causa ou fundamento jurídico de um direito. [08] Assim também entende Tito Fulgêncio, ao preceituar que título serve para designar: a) a causa eficiente, o princípio gerador do direito; b) o instrumento do contrato ou do ato jurídico, o ato exterior probatório; c) qualidade, e assim se diz - a título de herdeiro, ou qualidade de herdeiro. [09]
Já nos dizeres de Maria Helena Diniz, para que haja justo título, a lei exige que o possuidor seja portador de documento capaz de transferir-lhe o domínio. [10] A referida autora também não faz qualquer distinção entre instrumento e ato.
Noutro norte, Silvio Venosa aceita como justo título, escrituras não registráveis por óbices de fato, formais de partilha, compromissos de compra e venda, cessão de direitos hereditários por instrumento particular, recibo de venda, procuração em causa própria e até mesmo uma simples autorização verbal para assumir a titularidade da coisa. [11]
Em sentido contrário, leciona o seguinte Luciano de Camargo Penteado, de quem tive a honra de assistir às aulas de pós-graduação Lato sensu na Fundação Getúlio Vargas, o seguinte:
O justo título, por sua vez, consiste no documento apto a, em tese, produzir o efeito translativo do domínio. Trata-se da necessidade de negócio jurídico instrumento, isto é, de título com a formalidade mínima da redação escrita, não bastando mero acordo verbal. [12]
Percebe-se que o tema é por demais controverso, e não pretendemos acabar com anos e anos de debates entre os maiores juristas pátrios, todavia, entendemos que o conceito de justo título deve ser entendido mesmo como um ato translativo, que em tese teria a capacidade de transmitir a propriedade.
Parece-nos que deve ser feita uma interpretação ampliativa acerca do conceito de justo título e o vocábulo não deve restringir-se a um documento; não era esse o intento do legislador, nem seria coerente com uma interpretação sistemática do instituto. Melhor seria aceitarmos o justo título como um fundamento, a causa eficiente, ou seja, a faculdade abstrata de transferir a propriedade seja através de um documento, fato jurídico ou um ato jurídico. [13]
Nesse sentido é a opinião de Benedito Silvério Ribeiro, que aduz:
Em suma, o título tanto pode ser um instrumento formal como a causa, isto é, o ato ou fato de onde se extrai o direito. O instrumento é o papel em que se encontra registrado o ato jurídico, e o título é o direito, daí por que não se exige justo instrumento.
Titulus, ou justa causa, é a razão pela qual alguém recebeu a coisa do precedente possuidor. [14]
Para que cheguemos ao verdadeiro conceito da expressão "justo título" devemos entender primeiramente o significado da expressão "justo" que, não menos do que a expressão "título", causa bastante polêmica. [15]
2.1 Acepções do termo "justo"
Árdua é a tarefa de determinar o significado de "justo" no conceito de justo título, mas por uma questão de lógica preferimos determinar primeiro o sentido do termo "título", para se chegar a conceito de justo que está diretamente a ele vinculado.
Concordamos com aqueles que defendem que o título não se restringe somente a um documento, mas sim a qualquer causa eficiente que, abstratamente, possa transferir o domínio a alguém.
Na opinião de Orlando Gomes, o título deve ser justo no sentido de idoneidade para transferir. Segundo o supracitado autor, mais correto seria a denominação de título hábil, para significar o negócio jurídico que habilita qualquer pessoa a tornar-se proprietária. [16]
Entende Luciano de Camargo Penteado que falhas intrínsecas do título implicam nulidade, o que afasta seu qualificativo de justo. Ainda em sua opinião, "o título é justo quando válido, isto é, quando conforme com as regras de validade do negócio jurídico em geral." [17]
Maria Helena Diniz entende que o termo justo designa o registro do título, "deve ser esse título ou ato translativo justo, isto é, formalizado, devidamente registrado, hábil ou idôneo à aquisição da propriedade." [18]
Perceberemos mais adiante que a conceituação do termo "justo" levou a doutrina e a jurisprudência a cometerem equívocos que vêm sendo superados nas ultimas decisões dos tribunais brasileiros.
Dessa forma, salvo melhor juízo, entendemos que o termo "justo" poderia ser entendido como justificável que, em tese, seria hábil a produzir todos os efeitos daquele negócio jurídico, mas, por circunstâncias alheias às partes, não pode produzir os efeitos almejados. Cabe salientar que justo título provoca no seu possuidor uma crença de que aquele ato translativo será suficiente para transmitir o domínio, gerando uma falsa impressão.
Segundo a doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, no sistema brasileiro, para que ocorra a transferência da propriedade, é necessário satisfazer os três planos do negócio jurídico, ou seja, existência, validade e eficácia. [19]. Desse modo, comungamos da idéia de que basta a inexistência de um deles para que possamos falar em justo título hábil a transferir a propriedade. E, dessa forma, é plenamente possível a utilização de compromisso de compra e venda, não registrado, como justo título, tema que abordaremos no tópico seguinte.
3. A evolução da doutrina e jurisprudência sobre o justo título não registrado
Diante da grande controvérsia conceitual acerca do justo título na doutrina, os tribunais refletiram a confusão em seus julgados, o que levou a interpretações, a nosso ver, equivocadas do que possa ser considerado justo título para fins de usucapião ordinária. [20]
No magistério de Maria Helena Diniz, o justo título deve ser formalizado, devidamente registrado, hábil ou idôneo à aquisição da propriedade.
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalvez explica em sua obra que o entendimento dos tribunais sempre foi o de que, para ser considerado justo título, deve-se revestir de formalidades externas e estar registrado no cartório de registro de imóveis.
É sabido que o Código Civil, em seu artigo 108, determina para os negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, no valor acima de trinta salários mínimos, que eles devem ser feitos mediante escritura pública.
Todavia, parte da doutrina já pregava a desnecessidade do registro do compromisso de compra e venda para caracterização desse instrumento como justo título. Esse sempre foi o entendimento de Caio Mário da Silva Pereira, que pregava não levar ao extremo a exigência de registro [21]. Assim também leciona Orlando Gomes, ao entender que, embora quem adquira por instrumento particular bem cuja transmissão requer escritura pública, mesmo que o ato seja nulo por defeito de forma, existe a possibilidade de sanar o defeito através da usucapião ordinária. [22]
Arnaldo Rizzardo sustenta que qualquer documento que retrate uma transação efetiva e completa é considerado justo. Mesmo o compromisso de compra e venda sem registro, e até aquele assinado a rogo. " [23]
Acompanhando o mesmo entendimento, Benedito Silvério Ribeiro afirma que, se para entender o título como justo, ele deva ainda ser válido, certo, real e registrado, chegaríamos à conclusão de que o domínio já estaria adquirido, afastada a possibilidade de promover a usucapião ordinária. [24]
Ademais interessante é salientar que o referido art. 1.242, em seu parágrafo único, já possui uma hipótese de título registrado. Ao interpretarmos a exigência de registro no caput, estaríamos esvaziando o sentido do artigo.
José Carlos de Moraes Salles também se posiciona da mesma forma, alegando que, se houvesse a necessidade do registro, tal requisito acarretaria quase que uma impossibilidade de utilização prática da usucapião ordinária. Ainda na opinião do referido autor, o espírito da norma em comento é exatamente o de converter uma situação de direito em uma situação de fato, no tocante à posse de longa data, já constituída. [25]
Em acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Desembargador Duarte de Paula teve oportunidade de enfrentar o tema:
Ora, a toda evidencia que o conceito de justotítulo evoluiu, quer doutrinária quer jurisprudencialmente, inclusive no que pertine ao colendo Superior Tribunal de Justiça, constitucionalmente encarregado de oferecer interpretação ao direito infraconstitucional" (f. 90). Com efeito, o colendo Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento que protege a posse advinda de compromisso de compra e venda, ainda que desprovido de registro, prestigiando a boa-fé dos negócios informais realizados, especialmente nas camadas mais pobres da população, interpretação evolutiva que se encontra em ressonância na realidade jurídica jurídico-social do nosso país (súmula 84). Embora desprovidos das formalidades essenciais para transferir o domínio de imóvel, os documentos apresentados, salvo prova em contrário no curso regular do processo, revelam a vontade das partes de produzir tal efeito, o que somente não pode ser alcançado pela via extrajudicial face ao desconhecimento do paradeiro dos primitivos proprietários do imóvel, que iniciaram a cadeia de transferências através do documento particular de f. 24, justificando, pois, o chamamento para figurarem no pólo passivo da relação processual, pedido expressamente formulado na peça vestibular do processo (f.4). Conforme destacado no erudito voto proferido pelo eminente Ministro ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, no julgamento do REsp. 188-0/PR, instaurando a divergência com a antiga orientação consolidada na Súmula nº 621 do STF, o julgador não deve aplicar as normas jurídicas dentro de um tecnicismo exagerado, ficando alheio à realidade social que enfrentam, principalmente, as camadas mais pobres do sofrido povo brasileiro, acrescentando que: "Sabemos que no nosso país, principalmente nas camadas pobres da população, um grande número de negócios, e até direi, a maior parte dos negócios é efetuada de maneira menos formal, e até absolutamente informal. Compram-se e vendem-se pequenos terrenos e casas apenas mediante a emissão de recibos, sinais de arras e mesmo de promessa de compra e venda ou de 'transferências de posse' redigidas de forma a mais singela. É muitíssimo comum que esses documentos não venham a ser registrados no Registro de imóveis, inclusive porque os termos em que estão vazados não permitiriam o registro" (RSTJ 49/313). No julgamento do REsp. nº 32.972-SP, vencido o Relator MINISTRO CLÁUDIO SANTOS, prevaleceu o conceito contemporâneo do justotítulo adotado no erudito voto proferido pelo MINISTRO NILSON NAVES, reconhecendo o valor que o colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA confere aos negócios informais realizados de boa fé (RSTJ vol. 88, p. 101/105) [26] (Ap. Cív. 2.0000.00.324.674-8/000(1), Revisor e relator Des. Duarte de Paula, DJMG, 21.11.2001.)
Esse também é o entendimento de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que assim se posicionam:
Presentemente, já se tem aceitado a promessa de compra e venda como justo título, quando o promissário comprador tiver quitado todas as prestações do negócio jurídico, sendo insuficiente o mero pagamento do sinal ou de algumas parcelas.
Dessa forma, o entendimento mais moderno [27] procura atenuar a exigência do registro até mesmo porque a lei nada diz acerca desse requisito. Confirmando tal entendimento, é o que está disposto no enunciado n. 86 da I Jornada de Direito Civil – "a expressão justo título, contida nos arts. 1242 e 1260 do CC, abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independente de registro." [28]
4. Conclusão
Por tudo quanto foi exposto, podemos concluir que o justo título é requisito indispensável para obtenção da usucapião na sua forma ordinária. Vimos também que a conceituação de justo título é controversa: parte da doutrina restringe o conceito de justo título ao instrumento escrito, documento capaz de transmitir em tese o domínio; já de outro lado, a doutrina entende que o conceito deve abranger todo ato translativo, seja ele disposto em documento ou não. Vimos que a tendência atual dos tribunais é a de ampliar o que pode ser considerado justo título. Podemos concluir também que o conceito de justo está intimamente ligado à possibilidade de o título produzir seus efeitos, ainda que em tese.
Diante dessa divergência doutrinária, demonstramos que tal fato teve repercussão fática, uma vez que os tribunais começaram a exigir o registro do título para que ele fosse considerado como justo título.
Mas, por tudo quanto apresentamos, parece-nos ser um posicionamento equivocado, uma vez que título não se restringe a documento, e justo em momento algum quer dizer título registrado.
Importante salientar o princípio da função social dos contratos (art. 421) como argumento para justificar a inclusão do compromisso de compra e venda como justo título, mesmo que não registrado. Assim também ocorre com os artigos 112 e 113, bem como aqueles referentes à boa-fé (art. 422, 427), todos do Código Civil.
Ademais, a lei em momento algum elenca como requisito do justo título a obrigatoriedade do registro. Já vimos que a interpretação equivocada dos termos levou a esta confusão que deve ser superada pela doutrina e jurisprudência.
E, por fim, esse entendimento vem perdendo força nas decisões mais recentes dos tribunais, pois tem sido considerado como justo título o simples compromisso de compra e venda, ainda que não registrado. Assim como disposto no voto anteriormente comentado, grande parte dos negócios em nosso país, principalmente por uma questão econômica, estão à margem do registro, por completo desconhecimento e condições financeiras para tanto. Desse modo, a ampliação do conceito de justo visa a atender a essa grande parcela da população que se via desamparada pela hipótese da usucapião ordinária, quando exigido o registro. A função social da propriedade deve ser regra de interpretação de qualquer instituto relacionado à propriedade e a exigência do registro, sem qualquer texto de lei ou interpretação que a sustente, contraria de forma evidente o disposto no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal.