Cabe ao Estado evitar a conduta que impõe à morte aquele cuja voz não se pode exprimir.
RESUMO: O presente artigo busca analisar os contornos jurídicos do debate gerado a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°. 54, recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal, avaliando-se que o caminho trilhado pelo judiciário no que tange à polêmica questão do aborto de fetos anencéfalos, não teve o esperado viéis conservador diante do ainda não amuderecido debate nos âmbitos jurídico e científico, tendo ocorrido a temerária relativização de sensíveis princípios constitucionais como a indisponibilidade do direito a vida e a separação dos poderes, atentando-se, ao final, para as consequências que poderão advir dessa decisão.
Palavras-chave: ADPF n°. 54; aborto; feto anencéfalo; interpretação conforme à Constituição.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Do Direito à Vida do Feto Anencéfalo – 2.1. Da Indisponibilidade do Direito à Vida – 2.2. Fetos Anencéfalos: Lixo Humano? – 2.3. Ponderação da Dignidade da Pessoa Humana – 2.4. Possível Fragilidade na Precisão do Diagnóstico Médico – 3. Da Impossibilidade de Atuação do STF como Legislador Positivo – 3.1. Do Crime de Aborto e Da Inaplicabilidade da Interpretação Conforme à Constituição – 3.2. Do princípio da Separação de Poderes e a Atuação Legislativa do STF – 3.3. Da Laicidade Estatal e sua relação com a Atividade Judicial – 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O Código Penal Brasileiro de 1940, recepcionado pela Constituição Federativa de 1988, foi elaborado com previsão de aplicação de penas para crimes de aborto, salvo os casos de estupro ou risco de vida para a gestante. Cosolidada tal sistemática e decorridos mais de 70 anos de sua aplicação, o Supremo Tribunal Federal, no dia 12 de abril de 2012, decidiu pela procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n°. 54), ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para permitir que gestantes de fetos anencéfalos tenham o direito de interromper a gravidez, dando interpretação conforme à Constituição Federal aos artigos 124, 126, e 128, incisos I e II, todos do Código Penal, para que, sem redução de texto, seja declarada a inconstitucionalidade de qualquer interpretação que obste a realização voluntária do aborto de feto anencefálico.
Do princípio da lesividade do direito penal decorre a necessidade de repressão à condutas exercidas em prejuizo de si ou de outrem, de forma a extrapolar o foro intimo do indivíduo, causando direta ou indiretamente dano social. Sendo o ato hábil a configurar tal prejuízo, deve intervir o Estado. Nesse sentido, diante da dificuldade de harmonizar tal premissa com a decisão do judicário para o caso sob análise, e ainda, considerando a relativização do princípio da indisponibilidade do direito à vida que dela foi gerada, entende-se, data venia, que uma reflexão aprofundada torna-se necessária.
O presente trabalho analisa a decisão da Suprema Corte de expurgar a tipicidade do aborto de fetos anencéfalos, bem como as possíveis consequências que dela advirão. Nesse sentido, na primeira parte, os aspectos materiais do tema serão abordados, sobretudo no que tange à ponderação entre a indisponibilidade do direito à vida do feto em contraponto a uma alegação de direito de aborto amparado na dignidade da pessoa humana. Na sequência, os aspectos formais da ADPF n°. 54 serão apresentados, mormente a aplicação da interpretação conforme à Constituição no controle de constitucionalidade, bem como a atividade de jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal.
2. DO DIREITO À VIDA DO FETO ANENCÉFALO
2.1. Da Indisponibilidade do Direito à Vida
É importante perceber, em primeiro plano, uma premissa que norteará todo o presente trabalho, qua seja: do ponto de vista jurídico, a vida do feto não é bem à disposição, nem mesmo da mãe. Em outros termos, o direito à vida é indisponível, por aplicação inarredável do art. 5°, caput, da Constituição Federal:
"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)". (grifo nosso)
O feto, portanto, não se insere somente no ambiente íntimo da gestante, mas se trata de outro ser independente, embora esteja dentro do ventre da mãe. É importante ter essa precisa noção porque tudo parte desse pressuposto quando se argumenta que cabe à mulher decidir, com sua própria consciência, sobre a interrupção da gravidez. Discordamos inicialmente da tese de que a chamada “antecipação terapêutica” do parto na anencefalia, vale dizer, prática do aborto, constitui exercício de direito fundamental da gestante, porquanto a esta não é cabível decidir de forma exclusiva sobre a vida do filho.
Além da previsão constitucional, no âmbito da legislação infraconstitucional, a proteção ao feto é consignada de modo ainda mais explícito, confirmando os direitos deste a partir da concepção. Nesse ponto, vale destacar, quanto aos direitos conferidos ao nascituro, o que revela do art. 2° do CC/2002, in verbis:
"Art. 2° A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". (grifo nosso)
O direito brasileiro adota a tese de que a vida, para fins legais, começa com o funcionamento do aparelho cárdio-respiratório. Isto é, se houver o nascimento e a consequente respiração, haverá vida, momento em que a pessoa adquire personalidade jurídica. Mesmo antes desse momento, já são garantidos direitos ao nascituro, desde a concepção. De fato, atualmente, há diversos direitos largamente extensíveis à vida ainda em formação intra-uterina. Podemos citar alguns principais, vigentes no ordenamento pátrio, respaldados também na atual doutrina e jurisprudência: (i) o nascituro é titular do direito à vida; (ii) o nascituro é titular do direito à assistência pré-natal; (iii) o nascituro possui direitos da personalidade, como a honra e a imagem, dentre outros direitos personalíssimos; (iv) o nascituro pode receber doação e ser beneficiado por herança; (v) o nascituro tem direito à realização do exame de DNA para efeito de aferição de paternidade; (vi) o nascituro tem direito de receber alimentos ainda em gestação; (vii) o nascituro tem direito a danos morais e indenização. Registre-se que se trata de rol meramente exemplificativo. Ora, se há direitos patrimoniais e extra-patrimoniais, como não ser garantido o direito primeiríssimo, que é o dom da vida? Desequilíbrio jurídico nesse pensar é notável.
A vida ainda em formação intra-uterina, portanto, já importa em gravíssimas repercussões jurídicas, com direitos resguardados desde a concepção, que não podem ser desprezados. A influência da teoria condicionalista, apesar do CC/2002 encampar a teoria natalista [1], tem ampliado o rol dos direitos do nascituro, no qual se inclui o feto anencéfalo. Não se trata de direito de viver para morrer, trata-se do direito de viver enquanto for possível e, como tal, gozar dos direitos de que faz jus.
Assim, eventual decisão tomada pela mãe não se insere, de forma exclusiva, no seu foro intimo, mas atinge a vida de outrem, qual seja, o seu filho e, ainda, de forma reflexa, a vida do pai, que igualmente é genitor. Aliás, quanto a esse ponto, o voto da Exma. Min. Cármem Lúcia nos autos da ADPF nº. 54, lembrou que “o pai também sofre barbaramente e precisa ser levado em consideração na sua dignidade, assim como toda a família". Por essa razão, a ministra salientou que "quando se fala em dignidade, todos estão envolvidos: a mãe, o pai e os irmãos mais velhos, os quais têm expectativas no nascimento do bebê".
Em questão de ordem levantada ainda em sede de liminar na ADPF n.º 54, o Exmo. Min. Eros Grau, então ministro do STF è época, invocando a doutrina de Pontes de Miranda, assim já ponderava: “O feto não é coisa. Pontes de Miranda disse, em breve anotação colhida agora, que: “No intervalo entre a concepção e o nascimento, os direitos que se constituíram têm sujeito, apenas não se sabe qual seja." (...) A liminar acaba afrontando a dignidade do ser que o feto é. Diria, até lembrando a afirmação do Professor Barroso, que o STF tem muito a dizer, sim, neste momento. E deve dizer, de modo muito vivo, que a manutenção da liminar não se justifica”.
No instante em que o feto passa a ser objeto do poder de disposição alheia, a sua vida passa a ser coisa (res), porque só coisa, no mundo jurídico, é objeto de disponibilidade jurídica das pessoas. Ao revés, o feto, embora ainda não possua personalidade jurídica, é sujeito de direito, desde a concepção. Não se trata de negar os direitos reprodutivos da mãe, mas tão somente de reconhecer que estes direitos encontram limite intransponível na vida do filho. Em outros termos, os direitos reprodutivos da mulher não são absolutos, como nenhum outro o é, ou seja, nele não se insere a possibilidade de dispor da vida do nascituro. Pensar o contrário seria o mesmo que "coisificar" o feto, isto é, torná-lo coisa, pertença, objeto de disposição da mãe, algo que se sabe ser impossível pelo próprio ordenamento pátrio, ante a ampliação dos direitos do nascituro desde o momento da concepção, o que acaba por abranger, inclusive, os fetos anencéfalos.
Um dos argumentos mais ressonantes na decisão da Corte Suprema nos autos da ADPF n°. 54, ponderava que "a gravidez se destina à vida, e não à morte", eis que "dar a luz é dar a vida", no dizer do Exmo. Min. Ayres Britto. Parece um tanto poética a construção, esquecendo-se que, em termos práticos, o feto ainda não morreu, logo, há vida, mesmo que não totalmente formada. A quem é dado decidir sobre a hora da morte do outro? O direito à vida seria manejável, objeto de disponibilidade? A mãe poderia fazê-lo em relação ao filho? Pensamos que não. A nenhum ser humano foi conferido o poder de determinar a morte de outrem, ainda que este esteja em ambiente intra-uterino. O direito à vida é indisponível, dom maior do ser humano.
Se o feto está condenado à morte, igualmente todos os somos. Quem não está fadado a morrer? O evento morte é certo, todos estamos menos ou mais próximos dela, mas isso não faz com que se torne disponível a vida daqueles cuja morte é mais iminente, sejam eles nascituros ou muito idosos, sob o argumento do curto tempo de vida que lhes restam. Todos nascemos para morrer, a duração da vida é que não pode estar sujeita ao poder de disposição das demais pessoas. Esta é a razão jurídica fundamental por que a Constituição tutela a vida, daí decorrendo a sua indisponibilidade, que não pode ser mitigada pela ascendência materna.
Além disso, pesquisas cientificas revelam que há fetos anencéfalos que sobrevivem meses, podendo chegar a anos em alguns casos. Os métodos científicos não podem garantir com absoluta precisão a inocorrência de evento incerto, até porque a Medicina não se insere na esfera das ciências exatas. Isso indica que, em relação à vida e suas intempéries, nem sempre se pode utilizar o raciocínio matemático preciso. Nesse ponto, cabe uma simples analogia para reflexão: o princípio da inocência pressupõe não condenar sem antes se haver afastado cabalmente a possibilidade de inocência do réu; de igual forma, o princípio do direito à vida pressupõe a permissão da existência do ser humano até que se demonstre irrefutavelmente que ele está morto.
Ora, se aquele que apressadamente condenou o réu, sem o esgotamento da defesa, pode vir a ser surpreendido com a posterior demonstração de inocência deste, assim também, nada impede que aqueles que decretaram a morte de uma criança mal-formada possam ser surpreendidos, pelo menos, com tempo de vida superior ao imaginado. Assim como a ciência do Direito está sujeita a erros, também a Medicina, como ciência não exata, pode incorrer em falhas, sobretudo diante da precária estrutura do sistema de saúde público brasileiro. Quando estamos diante de um bem supérfluo, podemos ser menos conservadores com juízos incertos, mas a tutela do bem da vida não admite tal inseguranca.
2.2. Fetos Anencéfalos: Lixo Humano?
Não se coaduna com a prudência razoável considerar o feto anencéfalo simplesmente como uma espécie de natimorto cerebral sem direito a ser amparado. O ordenamento pátrio não estabelece medida temporal para fins de disponibilidade da vida. O feto anencéfalo não está morto. Como afirmou o Exmo. Min. Cezar Peluso em seu voto na ADPF n°. 54: “o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”. O próprio nome "antecipação terapêutica" já indica que está sendo antecipada, de forma ilegítima, a morte do feto. Mas o direito do feto independe do tempo de vida já decorrido ou da expectativa de sobrevida que tenha. Não é estabelecida essa diferenciação temporal no ordenamento jurídico.
Assim, não poderá haver discriminação privilegiando os seres humanos perfeitamente formados, em detrimento dos que não puderam, infelizmente, gozar de tal atributo. O direito à vida, nesses casos, não é mais frágil. A vigorar entendimento contrário, invocando as palavras do Exmo. Min. Lewandownski utilizadas em seu voto na ADPF nº. 54: "retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”. Ou mais recentemente, de Hitler, que via nos arianos uma raça superior às demais no que tange ao direito de viver. Tal pensamento está em completo desacordo com a contemporânea proteção aos direitos humanos.
A história da criminalização do aborto mostra que essa tutela se fundamenta na necessidade de preservar a dignidade da vida intra-uterina, independentemente das eventuais deformidades que o feto possa apresentar. Aliás, as deformidades das vidas intra-uterinas não são novidades a configurar fenômeno absolutamente ignorado. Novidade, hoje, são os métodos científicos de seu diagnóstico. Mas a consciência jurídica jamais desconheceu a possibilidade de que de uma gravidez pudesse sempre resultar o nascimento viável. Se algo deve mudar não deve ser a retidão da consciência jurídica em favor da vida. Ao contrário, deve-se reconhecer nos avanços tecnólogicos e no conhecimento científico, da biotecnologia e da genética, a possibilidade de sempre mais prolongar a vida daqueles concebidos com limitações, desde que tais técnicas não venham a infringir o direito da vida de outros fetos ou seres humanos.
Ser frágil ou próximo à morte não significa ser desprezível. Não há que se cogitar de valoração discriminatória, sobretudo em se tratando do direito à vida. A discriminação de fetos anencéfalos conforme a sua viabilidade, a rigor, em nada difere de outras formas de discriminação social, tão combatidas pelo direito moderno, como o racismo, por exemplo. Todo e qualquer tipo de discriminação retrata a imposição da superioridade de muitos em detrimento de poucos. E nesse caso, pior, eis que a vontade do feto não pode ser ouvida.
Registre-se, nesse mesmo sentido, voto do Exmo. Min. Cezar Peluso na ADPF n°. 54, no qual afirma que "não se pode impor pena capital ao feto anencefálico, reduzindo à condição de lixo ou de alguma coisa imprestável, um incapaz de pressentir tal agressão e de esboçar defesa". Para o ministro, inclusive, a argumentação do aborto anencéfalo pode ser perigosamente empregada, com ligeiras adaptações, para a defesa de assassinato de bebês anencéfalos recém-nascidos, assim dispondo: “Em seu ânimo, a proposta seria idêntica: para resguardar alguns supostos direitos superiores da mãe – como saúde psíquica e liberdade pessoal – seria legítimo eliminar, à margem de qualquer previsão legal, a vida intra ou extrauterina do anencéfalo porque em um ou outro caso, muda só o momento de execução, não o ato de extermínio nem os pretextos para praticá-lo”.
Como veremos posteriormente, a anencefalia é uma patologia que erroneamente tem sido utilizada referindo-se à falta absoluta de cérebro, no entanto, o que acontece, a rigor, é o que podemos chamar de meroencefalia, isto é, desenvolvimento incompleto do cérebro, o que não pressupõe necessariamente a sua totalidade, admitindo inúmeros graus e um diagnótico de extrema complexidade.
Portanto, não cabe diferenciar e dar tratamento diverso. Fetos anencéfalos não são seres descartáveis, como uma espécie humana desprezível. Nesse sentido, há que se indagar: seriam os fetos anencéfalos, relambrando aqui o nome mais apropriado “meroencéfalo”, menos importantes que os animais, a quem não é deferido juridicamente o status de sujeito de direito? A Lei n°. 9605/98, que trata das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, traz capítulo próprio dispondo sobre os crimes contra a fauna, criminalizando eventual conduta que precipite à morte o animal e, até mesmo, a mera prática de abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilações, a qualquer espécie de animal, inclusive os domesticos, nos termos do art. 32 daquela Lei, para não citar tantos outros dispositivos que demandam a mesma proteção.
Parece haver desproporcionalidade, senão vejamos: para os animais, que não são sujeitos de direito, incapazes de tornarem-se pessoas, são protegido em face, até mesmo, de mera lesão ou ferimento, quanto mais na morte, criminalizando a conduta do agente infrator; para os fetos anencéfalos, ao revés, embora potencialmente pessoas, não importando se por tempo reduzido, não são garantidos os seus direitos, nem mesmo o maior e mais importante deles: o próprio direito à vida. Ao se admitir o aborto de anencéfalos, está-se reduzindo o ser fetal a nada, a mero “lixo” orgânico.
Há, pois, nítida desproporção, a causar perplexidade, sobretudo, quando se leva em conta a tendência de ampliação dos direitos do nascituro. Não se olvide, de resto, que existem vários diplomas infraconstitucionais em vigor que resguardam a vida intra-uterina, sobretudo o já mencionado art. 2° do Código Civil. Ou seja, mesmo com a liberação do aborto de fetos anencéfalos, ainda assim remanesceriam hígidos outros textos normativos que defendem os nascituros, nos quais se insere o feto anencéfalo.
2.3. Ponderação da Dignidade da Pessoa Humana
Como conciliar os fatos apresentados sobre os direitos à vida do feto anencéfalo com o princípio da dignidade da pessoa humana da mulher? Não se pode ignorar a existência de angústia interior de mulheres que passam por essa inesperada realidade de gestação. Mas a questão é: o sofrimento da mãe neste caso justifica a eliminação da vida do filho? Quer dizer, do ponto vista estritamente jurídico-constitucional, essa carga compreensível de sofrimento e dor, comporia razão convincente para autorizar a aniquilação do feto anencéfalo?
Pensamos que não, seja porque o feto é ser independente com direitos amparados desde a concepção, seja por estar a ele também afeto o principio máximo da indisponibilidade do direito à vida. Muito se defendeu nos autos da ADPF 54 que o princípio da dignididade da pessoa humana estaria hábil a amparar a dor e o sofrimento da mãe, de tal monta que seria permitido a esta a eliminação do seu filho anencéfalo. Ou seja, priorizou-se exclusivamente a gestante, preconizando-se que o princípio da dignidade da pessoa humana estaria resguardado na exata medida do bem-estar psíquico da mãe.
Equívocada é esta ponderação, pois ignora a integridade física e biológica da vida intra-uterina que, igualmente, é amparada pelo mesmo princípio da dignidade humana. Repita-se, não se pode olvidar do sofrimento por que passa a mãe, seja na área física ou psicológica. Contudo, a questão é: estaria esse sofrimento a merecer proteção maior que o direito à vida, mesmo de fetos mal-formados? Nesse ponto, vale ressaltar, pela clareza solar, trecho do voto do Exmo. Min. Cezar Peluso, que em questão de ordem da ADPF n. 54, ainda em sede de liminar, assim se manifestou:
“O sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana; é elemento inerente à vida humana. O remorso também é forma de sofrimento. E o que o sistema jurídico não tolera não é o sofrimento em si, porque seria despropósito que o sistema jurídico tivesse a absurda pretenção de erradicar da experiência humana as fontes de sofrimento. Nem quero discorrer sobre o aspecto moral e ético – não me interessa – de como o sofrimento pode, em certas circunstâncias, até engrandecer pessoas, pois isso não releva à discussão do caso. Só quero relembrar que o sistema jurídico repudia, em relação ao sofrimento, apenas os atos injustos que o causem. O sofrimento provindo da prática de um ato antijurídico, esse não pode ser admitido pela ordem normativa. Mas não é esse o caso de eventual sofrimento materno, ou pelo menos não o é de regra”.
Parte do sofrimento pode ser provocado pela inexperiência e despreparo psíquico da gestante para ser mãe ou, até mesmo, à própria ausência do amor materno recebido. Nesse caso, tal parcela de sofrimento estaria presente de qualquer forma, independente de o feto ser ou não anencéfalo. Quanto ao sofrimento causado pela anencefalia, é suficiente frisar que ele não seria terminado com o aborto, pois se deve, na verdade, à frustração e choque com a realidade inesperada. Afinal, toda mãe espera sempre por um filho saudável, de tal modo que o remorso consequente da prática abortiva também é sofrimento igualmente ponderável.
De fato, há de se ponderar o sofrimento de se levar adiante uma gestação que pode resultar em limitado período de vida do ser, em contraposição ao remorso da prática do aborto e suas consequências psicológicas que podem acompanhar a mãe. Para o verdadeiro e amdurecido amor de mãe, que antes se coloca como a mais forte força na defesa da vida do filho indefeso, tortura irreparável seria tirar-lhe a vida. Aliás, o Exmo. Min. Ayres Britto, em que pese ter proferido decisão a favor da interrupção da gravidez, admite no seu voto que a não interrupção da gravidez seria o ato a ser perquerido, ressaltando o valor do amor materno:
“Se (a mulher) não for pela interrupção da gravidez, (essa decisão) é ditada pelo mais forte e mais sábio dos amores: o amor materno (...). O amor materno é tão forte, tão sábio, tão incomparável em intensidade com qualquer outro amor, que é chamado por todos de instinto materno (...). Essa decisão da mulher é mais que inviolável, é sagrada”.
Nesse ponto, vale destacar que, quanto à prática de aborto por motivos de estupro, excludente lítica prevista, há de se reconher a profunda dor da mãe não da gravidez em si, mas do ato que a gerou. Aqui também é preciso reconhecer que a sequela da qual a mãe foi vítima, não pode ser reparada com um crime ainda maior. Antes o crime e sua consequente pena fossem devolvidos ao criminoso, e não a um inocente também vítima. Mas o Código Penal não prevê pena de morte ao estuprador que certamente é a fonte de maior revolta e indignação pela sociedade. Quanto ao filho, estaria se fazendo justiça ao fazê-lo pagar com a maior pena, a própria vida, por um crime que ele, não sendo culpado, foi na verdade também vítma? Nesse sentido, qualquer alteração legislativa, que seja antes para eliminar excludente atualmente lícita do que acrescentar novas.
De outro mote, fala-se que a própria gestante, sob o princípio da autonomia da vontade, deve ter a discricionariedade para decidir se quer ou não interromper a gravidez, ou seja, se a mãe quiser provocar o aborto poderia livremente assim optar, mas estaria sempre resguardado à mulher o direito de, mesmo sabendo ser portadora de um feto anencéfalo, assumir sua gravidez integralmente, constituindo-se em ato opcional. Tal entendimento também não há de prosperar. Não se trata de permitir à mulher não fazer o aborto se assim quiser, seria desarrazoado imaginar que a ordem jurídica poderia impedí-la. Mas, a rigor, trata-se do oposto, isto é, obstar a mãe que queira praticar o crime de tirar a vida do filho, eis que este direito não é disponível, não cabendo à mãe tal escolha arbitrária.
Não pode o Estado se furtar de intervir e, de forma cômoda, deixar a decisão unicamente para a mãe, ao arrepio das demais garantias constitucionais, pelo simples argumento de sofrimento que configure agressão à dignidade da pessoa humana. Maior agressão a esse princípio é atentar contra a própria vida, principalmente quando esta é ainda mais frágil e indefesa. Em outros termos, não pode o Estado se esquivar do seu mister e "lavar as mãos", entregando a tutela do bem da vida ao arbítrio da autonomia da vontade, sobretudo quando se sabe que o Brasil é desprovido de educação básica suficientemente formadora da consciência materna responsável, principalmente nas frações sociais mais humildes. Onde está o Estado como regulador social? Não pode o Poder Público repassar sua responsabilidade à livre escolha individual.
Ademais, não somente pelo princípio da isonomia, mas também pelo princípio da proteção à família, valores inegavelmente encampados na Constituição, cuja aplicação reveste-se de caráter obrigatório, é importante lembrar que o esquecido debate sobre direito do pai na questão do aborto do anencéfalo reforça a concepção de que há efetivo desequilíbrio jurídico. Pode-se indagar: e se o pai, contrariamente à mãe, quiser o filho mesmo com as suas limitações? E se o amor da mãe repudia o aborto mas o pai não aceita o feto? Vemos aí que a solução adotada pela Suprema Corte foi precipitada, ao não prever as possibilidades decorrentes da nova situação.
Mas a questão principal sempre é: ainda que pai e mãe queiram o aborto, onde está a voz do feto? Trata-se do poder do mais forte sobre o mais fraco e indefeso. Alias, é exatamente nessas situações em que o Estado é chamado a se posicionar evitando uma aberração causada pelo desequilíbrio de forças. O princípio da insonomia nada mais é do que o reequilíbrio da relação jurídica. Quem está representando a vontade do bebê, mesmo mal formado, é a própria mãe que quer abortar? Que contra-senso: o próprio criminoso é a exteriorização da voz da vítima.
Definitvamente, não está havendo tratamento jurídico equilibrado, flagrante hipótese de omissão estatal. Aqui poderia-se falar em omissão ativa, embora pareça paradoxal, porque nesse caso algo que era regulado pelo Estado deixou de sê-lo. A omissão, nessa espécie, é opcional e desejada ativamente. Diferente seria se nunca tivesse passado pelo crivo da tutela estatal, ou nunca o bem da vida tivesse sido protegido, o que não ocorre.
A autonomia da vontade da mulher, por isso, não é suficiente para decidir pela morte do indefeso. Daí porque não se pode admitir que o Estado fique em situação cômoda e furte-se de regular a boa ordem social. O direito penal é utilizado de forma fragmentária para reprimir condutas lesivas. A morte por opção alheia é ato reprovável a ser combatido pelo Estado, sobretudo quando há expressiva desproporcionalidade entre agente e vítima, como o são mãe e feto. Cabe ao Estado evitar a conduta que impõe à morte aquele cuja voz não se pode exprimir.
2.4. Possível Fragilidade na Precisão do Diagnóstico Médico
Além de discutível do ponto de vista ético e jurídico, assim também se insere o presente tema no âmbito científico, dada a abertura de precedente para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que eventualmente sofram de patologias que, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina. Vale ressaltar essa preocupação externada no próprio voto do Exmo. Min. Gilmar Mendes em sede de julgamento da ADPF n°. 54, que ressalvou ser "indispensável que as autoridades competentes regulamentem de forma adequada, com normas de organização e procedimento, o reconhecimento da anencefalia a fim de conferir segurança ao diagnóstico dessa espécie”. Enquanto pendente de regulamentação, diz o ministro, "a anencefalia deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos produzidos por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e suficientemente seguras”.
Técnicas suficientemente seguras, no âmbito da saúde pública brasileira, parece ser um tanto difícil de ser alcançada, sobretudo pela escassez de instrumentos modernos e profissionais de alta qualificação técnica nas mais longínquas redes de atendimento de saúde publica do país, tornando-se improvável diagnósticos precisamente corretos. Embora a decisão do Supremo tenha se limitado à possibilidade de aborto em virtude da deformação exclusiva de anencefalia, é possível que se acabe abrindo precedente à interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extra-uterina. É, portanto, extremamente preocupante a decisão tomada pela Suprema Corte. Nesse sentido, vale ressaltar trecho do voto do Exmo. Min. Ricardo Lewandowski proferido na ADPF n°. 54:
"A temática, com efeito, reveste-se de extrema complexidade, não só do ponto de vista jurídico, como também ético e até mesmo científico. É que, além de envolver o princípio fundamental da proteção à vida, consagrado em nossa Constituição (art. 5º, caput), e em diversos tratados internacionais subscritos pelo Brasil, a começar da Convenção Americana de Direitos Humanos (art.4,1), uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos teria, em tese, o condão de tornar lícita a interrupção da gestação de qualquer embrião que ostente pouca ou nenhuma expectativa de vida extra-uterina. Convém lembrar que a Organização Mundial de Saúde, na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, Décima Revisão (CID – 10), em especial em seu Capítulo XVII, intitulado Malformações Congênitas, Deformidades e Anomalias Cromossómicas, arrola dezenas de centenas de patologias fetais em que as chances de sobrevivência dos seres gestados após uma gravidez tempestiva ou temporã são nulas ou muito pequenas.
Nessa linha, o Doutor Rodolfo Acatuassú Nunes, Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, na Audiência Pública realizada no Supremo Tribunal Federal sobre o tema, assentou o seguinte: “A anencefalia é ainda, nos dias de hoje, uma doença congênita letal, mas certamente não é a única; existem outras: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holoprosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. São todas afecções congênitas letais, listadas como afecções que exigirão de seus pais bastante compreensão devido à inexorabilidade da morte. Por que foi escolhida a anencefalia para provocar-se a antecipação da morte, ainda no ventre materno, não se esperando o nascimento natural? Em primeiro lugar, a anencefalia é um termo que induz ao erro. Há uma grande desinformação, que faz prevalecer e difundir a ideia de que a anencefalia significa ausência do encéfalo. Na realidade, anencefalia corresponde à ausência de uma parte do encéfalo. O nome mais correto para anencefalia seria ‘meroencefalia’, já que ‘mero’ significa ‘parte’.”
Ademais, segundo o Comitê de Bioética do Governo Italiano, a anencefalia admite graus [2]:
“A dificuldade de classificação baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma má-formação do tipo tudo ou nada, ou seja, não está ausente ou presente, mas se trata de uma má-formação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível".
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), autora da ADPF n°. 54, usa como argumento a Lei n°. 9434/97 (Lei dos Transplantes) que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. A referida Lei estabelece no seu art. 3° que a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica.
O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução n.º 1.480, de 08/08/1997, estabeleceu critérios para a caracterização da morte encefálica. Em seu segundo "considerando", a resolução diz que "a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte". O último dos "considerando" – e isto é muito importante – afirma que "ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros". Ora, se tais critérios não são aplicáveis com segurança a crianças menores de 7 dias e prematuros, com maior razão, não podem ser aplicados ao feto. De fato, hoje em dia, são abundantes na literatura médica as críticas aos critérios adotados para a chamada morte encefálica. Segundo vários pesquisadores, tais critérios, nesse caso, seriam apenas um prognóstico (aquele que está prestes a morrer), mas não um diagnóstico (aquele que já morreu).
No entanto, ainda que consideremos válidos os critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, salta aos olhos que não se pode concluir tratar-se o anencéfalo de um ente humano "morto" simplesmente porque não emite ondas cerebrais. Se assim não fosse, chegaríamos à absurda conclusão de que um nascituro de menos de seis semanas está morto por não emitir ondas cerebrais [3]. Se ele não as emite, é pelo simples fato de seu cérebro ainda não ter sido formado. Não há como precisar e nem definir o exato tempo de vida da criança, que inclusive poderá vir a nascer e sobreviver por tempo desconhecido. A vida humana, porém, está presente desde a concepção, sendo a partir desse momento que a lei põe a salvo os direitos do nascituro, nos termos do art. 2º do Código Civil.
É indubitável, portanto, que a questão tem de ser tratada prudentemente, com cautela redobrada, diante dos dissensos existentes e da eventual imprecisão do diagnóstico. Para se ter uma idéia da gravidade que permeia a problemática, existe já o Projeto de Lei nº 50, de iniciativa do Senador Mozarildo Cavalcanti, tramitando em instância legislativa, tratando exatamente desse tema. Demonstração, como se verá adiante, de que o judiciário usurpou o poder legislativo, fazendo as vezes de legislador ordinário, ao absorver a hipótese. Naquele projeto de lei, inclui-se o inciso III ao art. 128 do Código Penal, abrindo-se possibilidade para o aborto de feto anencéfalo, nos seguintes termos: “Art. 128. (...) III – se o feto apresenta anencefalia e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
O projeto, posteriormente submetido à crítica de seus pares, foi objeto de reparos, dentre os quais destaca-se trecho do relatório do Senador Edison Lobão, que assim assentou: “(...) a referida propositura não detalha os requisitos de validade do diagnóstico e do consentimento da gestante. Entendemos, por força do mais elevado comando de segurança jurídica: a) que o diagnóstico deve ser subscrito por dois outros médicos (que não participem, portanto, do procedimento cirúrgico de interrupção da gravidez); b) que as técnicas de diagnóstico da anencefalia sejam reguladas pelo Conselho Federal de Medicina, de modo a uniformizar os procedimentos de investigação da referida anomalia; c) que a manifestação do consentimento da gestante ou de seu representante legal deve ser feita por escrito, para evitar, assim, qualquer tipo de dúvida ou questionamento”.
Daí se percebe que, a despeito do reconhecido valor do Supremo Tribunal Federal como guardião constitucional, é de se verificar que a Corte, dessa vez, incorreu em falta de zelo, seja pela imprecisão científica advinda da própria dificuldade de diagnóstico seguro, seja pela ausência de regulamentação apropriada a conferir confiabilidade no procedimento abortivo. A decisão proferida pela Corte Suprema não goza de segurança e confiabilidade, na medida em que não traz regulamentação para definir os contornos de todos esses pontos controvertidos, e nem poderia fazê-lo, porque ao judiciário não é conferida competência legislativa.
Admitir a exclusão do crime de aborto sem, no mínimo, as cautelas de uma regulamentação séria, chega a ser temerário, abrindo margem para ocorrências outras, bem mais indesejáveis, sem se poder descartar, ainda, a facilidade gerada, pela ausência de regulação específica, à ocorrência de práticas delituosas, aumentando as chances de clínicas de aborto criminosas se passarem por lícitas inserindo a atividade criminosa nas brechas oriundas da lacuna regulamentatória.