Artigo Destaque dos editores

Casamento e regime de bens

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

Sumário: 1. A família e o casamento, ontem e hoje: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos. 2. O casamento e o estatuto patrimonial de regência dos bens conjugais, escolhido pelos nubentes, antes da celebração ou selecionado pela lei, em caso de não opção. 2.1. O regime de bens de eleição, assim escolhido pelos nubentes por meio de pacto antenupcial. 2.2. Na ausência de pacto antenupcial, vigorará, entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. 3. Os diversos regimes de bens elencados pelo legislador contemporâneo (Código Civil de 2002) e a análise comparativa com o direito positivo que ainda vige (Código Civil de 1916). 3.1. As disposições de caráter geral e a principiologia de regência econômica das relações conjugais, na nova Lei Civil. 3.2. As modalidades de regime de bens do casamento adotadas pelo novo Código Civil: 3.2.1. Do regime de comunhão parcial. 3.2.2. Do regime de comunhão universal. 3.2.3. Do regime de separação de bens. 3.2.4. Do regime de participação final nos aqüestos.


1. A família e o casamento, ontem e hoje: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos. (1)

Não se inicia qualquer locução a respeito de família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade.

A respeito de qualquer sociedade que se mencione, arcaica ou recente, ocidental ou oriental, bem sucedida ou não, cuja trajetória tenha contribuído mais, ou menos, para a formação do arcabouço histórico de todo o ciclo que o ser humano desenha sobre a face da terra, enfim, a respeito de qualquer sociedade, dois pólos são sempre obrigatoriamente referidos, como essencialmente integrantes de sua conjuntura: o pólo econômico e o pólo familiar.

Alguma vez, a ênfase pendula para um dos pólos, em franco desprestígio do outro, e vice-versa. Alguma vez, o observador social refere melhor o aspecto econômico de uma sociedade – ou de parte temporal de sua construção – mas, em outra vez, referirá antes o paradigma da família, quando estiver intentando compreender e explicar as razões das mudanças comportamentais, ou de costumes, ou as sociais, ou as religiosas, ou quaisquer outras, enfim.

No que diz de perto à entidade familiar, acentuada é, sem dúvida, a sua influência nos desmoldes e reestruturações humanas de toda a sorte, especialmente quando se leva em conta a diversidade de sistemas que, ao longo da história da civilização, registraram e esculpiram os diferentes modelos de família.

Sempre importa, por isso, reconhecer o perfil evolutivo da família, ao longo da história, adequá-lo com o incidente social, econômico, artístico, religioso ou político de cada época, para o efeito final de se buscar extrair os porquês das transmudações, os acertos e os desacertos de cada percurso, a influência na consciência dos povos, sempre a partir do modus familiar e da relação efetivamente havida entre os seus membros, mormente entre o homem e a mulher.

Muitos – e muito diferentes – foram, portanto, os grupos familiares e os valores que os nortearam, sendo verdade que alguns destes valores talvez ainda se encontrem em voga nos dias atuais, quer pela sua normal eternização, quer por terem sido ressuscitados após lapsos temporais mais ou menos longos.

De resto importa constatar, desde logo, e ao que tudo indica, que há uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade, vale dizer, a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este locus que se renova sempre "como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social". (2)

Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal.

Parece não restar dúvida, afinal, em cultura como a nossa, de que o núcleo familiar que se descortina contemporaneamente, mostra-se "desintoxicado" do rigor – quase obrigatório – da legitimidade. O modelo que era oferecido pelo legislador do século passado já não se oferta mais como "único" ou "melhor", mesmo porque o descompasso gravado entre ele e a multiplicidade de modelos apresentados na "vida como ela é", de tão enorme, já não admite a sobrevivência de outra saída que não esta, adotada, enfim, pelo legislador contemporâneo, de constitucionalizar relevantes inovações, entre elas, e principalmente, a desmistificação de que a família só se constitui a partir do casamento civilmente celebrado; a elevação da união livre, dita estável pelo constituinte, à categoria de entidade familiar; a conseqüência lógica de que, por isso, a união estável passou a realizar, definitivamente, o papel de geratriz de relações familiares, ela também; a verificação de que efeitos distintos, além dos meramente patrimoniais, estão plasmados nestas outras – e constitucionalmente regulamentadas – formas de constituição da família, hoje. (3)

Constituído o núcleo familiar, enfim, de toda a sorte e qualquer que seja a sua base estrutural, o fato é que efeitos patrimoniais derivarão dessa união de pessoas à volta do ideal comum de se associarem, perpetrando a espécie e buscando a efetivação de seus valores, sonhos e verdades.

Interessa, hoje, neste conclave, e de modo mais específico, detalhar os efeitos patrimoniais que são os decorrentes do casamento como forma básica da formação de um núcleo familiar. Não se cuidará do regime de bens ocorrido na união estável ou em qualquer outra forma de fundação da família, mas se cuidará, afinal, apenas do regime patrimonial estabelecido entre cônjuges, isto é, entre aquelas pessoas que escolhem o casamento como forma de constituição de suas famílias.


2. O casamento e o estatuto patrimonial de regência dos bens conjugais, escolhido pelos nubentes, 
antes da celebração ou selecionado pela lei, em caso de não opção.

Celebrado o casamento civil, portanto, os bens pertencentes a cada um dos cônjuges e também aqueles por eles adquiridos na constância da vida matrimonial, se submeterão a um regime patrimonial que tenha sido escolhido por eles, antes das núpcias, ou, no silêncio quanto a esta assunção voluntária de um regime, àquele que a lei disser, ou, em alguns casos, impuser.

No passado, conforme a história legislativa de nosso país, o regime que o legislador decidiu oferecer aos que não produziam sua própria opção, foi o regime da comunhão universal de bens, pelo qual se comunicavam os bens de um e de outro dos cônjuges, quer os havidos antes do casamento, quer os adquiridos durante a sua constância, conformando, pois, um patrimônio único cuja alienação dependia também de uma comunhão de consentimentos.

No final do século XIX, à guisa de justificar a escolha do legislador pátrio pelo modo de plena comunicabilidade dos bens, como o regime legal de bens, no casamento, o famoso jurista Lafayette escreveu que em sua natureza e efeito a comunhão é por certo o regime que mais se coaduna com a índole da sociedade conjugal, e a comunhão de bens reproduz no mundo material a identificação da vida e destino dos cônjuges e contribui poderosamente para fortifica-la e consolida-la, confundindo na mais perfeita igualdade os interesses de um e de outro. (4)

Mas os tempos se alteraram, os cônjuges mudaram, a sociedade matrimonial se distanciou do modelo do outro século e, aos poucos, a universalidade de comunhão de bens cedeu o espaço exigido pela parcialidade de comunhão patrimonial, fato que se consubstanciou, enfim, pela Lei nº 6515/77, a lei do divórcio, que alterou o regime legal a ser adotado, se a hipótese fosse a de não outra escolha pelos nubentes, antes da celebração, por meio de pacto antenupcial.

Nos dias que correm, ao lado do velho e sempre novo amor à primeira vista – como tão romanticamente diz Euclides de Oliveira (5) – permanece a ordem mais terrena, digamos assim, segundo a qual quem casa quer casa! Ora, esse é o descortinamento do matrimônio pelos seus palcos menos espiritualizados e mais racionais, o que não deve ser referido mal, já que o homem e a mulher, como a grande maioria dos animais, tem a necessidade e o desejo de abrigar sua prole sob confortável e seguro teto, provavelmente o da primeira casa que serve de lar à família que então se forma.

Um homem, uma mulher, uma criança. Uma casa, um lar. Retrato da felicidade, quiçá.

Mas, em alguns casos – na verdade mais numerosos do que seria desejável que o fossem – pode acontecer de o lar, conformado estreitamente em apenas um bem material, transmudar-se no signo da discórdia e do rompimento do retrato feliz de uma família consolidada. Afinal, quem é que não ouviu já falar no antigo gracejo, comum de ser contado e recontado entre os advogados, que afirma que esses profissionais, após a celebração de certas núpcias, apenas espreitam e aguardam o momento em que o meu bem (tratamento romantizado entre os que se amam) se transforme em meu bem (o grito de posse, a respeito do patrimônio familiar, por ocasião do rompimento da sociedade conjugal)?

A partilha dos bens amealhados, no tempo em que meu bem significar apenas o reclamo possessório, costuma ser sempre muito disputada, bélica mesmo, e, por isso, dolorosa.

No mais dos casos, contudo, a divisão obedecerá as regras já traçadas para aquele dos regimes de bens que norteou a conjugalidade que agora se dissipa e rompe. Obedecerá às normas pré-ordenadas pelo estatuto patrimonial dos consortes.

Nem sempre será assim tão simples, no entanto.

Para se examinar, pois, o perfil dos diferentes regimes de bens, mormente à face da nova Lei Civil (6), será útil rever os principais aspectos de cada um deles, bem assim alinhavar as principais modificações consolidadas pelo legislador da lei nova, e, finalmente, assinalar alguns dos eventuais problemas que o jurista, o operador do Direito e o aplicador da lei poderão enfrentar por conta da entrada em vigor do nosso Código Civil.

2.1. O regime de bens de eleição, assim escolhido pelos nubentes por meio de pacto antenupcial.

Leve-se em conta, antes, que a nova Lei manteve aquela liberdade de os cônjuges expressarem a sua autonomia privada no que concerne ao regime de bens que desejam e escolhem – e que regerá seus interesses econômico-patrimoniais – sendo certo que o farão, então, exatamente como no direito positivo que ainda vige, por meio de pacto antenupcial (arts. 1639, 1640, § único e 1655, NCC). O pacto, caso elaborado pelos nubentes, deverá ser assentado, após o casamento, no Registro de Imóveis do domicílio conjugal, exatamente para que possa valer erga omnes, embora valha já, independentemente de registro, nas relações interpessoais dos cônjuges e entre eles e seus herdeiros.

Mesmo o Código anterior, portanto, já admitia, como se sabe, que os nubentes escolhessem o seu estatuto patrimonial de casamento, sempre que não desejassem adotar o regime preferido pelo legislador pátrio, e exceto naquela hipótese que impunha o regime obrigatório da separação de bens (§ único, incisos I, II, III e IV do art. 258 do CCV), hipótese esta bastante revisitada e modificada pela doutrina e pela jurisprudência, nestas duas últimas décadas, especialmente (7).

O pacto, para não padecer de nulidade, já se disse, deverá ser formalizado por meio de escritura pública, segundo a exigência do art. 1.653 do novo Código, que repete a regra do art. 256 do Código Beviláqua, que ainda vige. E mais: ele segue, como no Código Civil vigente, condicionado à realização do matrimônio. Ocorrendo a não realização das núpcias, o pacto se verá sem a sua respectiva eficácia jurídica, ainda que formalmente válido, tendo em vista não se tratar, na espécie, de negócio nulo.

O art. 1.655 do novo Código Civil reescreve, com o mesmo viés sujeito a críticas, a norma contida no art. 257 do Código Civil de 1916, declarando ser nula convenção ou cláusula firmada no pacto antenupcial, que contravenha disposição absoluta da lei. No meu sentir, não teria sido necessário que o legislador incluísse, nesse passo, regra que é de caráter absoluto e geral, uma vez que qualquer convenção, qualquer pacto – e não apenas o pacto antenupcial – que atentar contra norma de ordem pública será cravado pelo estigma da nulidade.

Contudo, se não houver qualquer convenção antenupcial estabelecida entre os nubentes, ou se, havendo, ela restar nula ou ineficaz, vigorará entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial (art. 1.640, NCC e art.258 do CC/1916).

2.2. Na ausência de pacto antenupcial, vigorará, entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial, posto ser o regime legal.

Regime legal de bens é aquele ao qual o Código dá preferência, isto é, é aquele da escolha posterior à vontade dos nubentes, escolha esta, agora, do próprio legislador que, no silêncio das partes, decide ser este – e não outro – o melhor estatuto de regência das relações patrimoniais do casamento. O regime legal do Código Civil ainda em vigor é o da comunhão limitada de bens, conforme determinado pelo art. 258 do CC/1916, com a redação que lhe deu a Lei do Divórcio, a Lei 6515/77.

Antes do advento desta Lei, prevalecia, entre nós, o regime legal da comunhão universal de bens, estabelecendo a comunicação de todo o conjunto patrimonial dos cônjuges, quer fossem bens aprestos, vale dizer, os bens adquiridos antes da celebração das núpcias, quanto bens aqüestos, vale dizer, os bens adquiridos na constância do casamento, talvez porque, como se referem os doutrinadores históricos, foi sempre muito acentuada e forte a influência da Igreja nas relações matrimoniais, imaginando-as contraídas para se perpetuarem por toda a existência dos nubentes.

O Código Civil de Miguel Reale manteve a mesma regra no seu art 1.640, dispondo que na falta de convenção ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.

Sobre as razões, ou fundamento, desta seleção do legislador da Lei do Divórcio e mantida pelo novo Código Civil, fico com as apontadas por Arnaldo Rizzardo (8) que atribui ao caráter contratual do casamento, o fato de se ter eleito, como regime legal, este que encerra a preservação do patrimônio de cada cônjuge, já existente antes de casar, admitindo a comunicação apenas dos bens amealhados na vigência da relação conjugal como fruto do esforço comum do marido e da mulher. Parece mesmo ser, este regime, aquele que melhor respeita a idéia de que o casamento é uma estreita comunhão de vida e que, portanto, os cônjuges devem ter os mesmos direitos sobre os bens adquiridos, na constância do matrimônio, como resultado do trabalho e do esforço comum. Dividem os cônjuges o produto econômico de sua sociedade nupcial, sem misturar riquezas oriundas de suas famílias de origem e que não tiveram o menor concurso do consorte na construção dos aprestos (9).


3. Os diversos regimes de bens elencados pelo legislador contemporâneo (Código Civil de 2002) 
e a análise comparativa com o direito positivo que ainda vige (Código Civil de 1916).

O novo Código Civil descreve e regulamenta quatro regimes de bens do casamento, vale dizer: a comunhão parcial, a comunhão universal, a total separação de bens e o regime de participação final nos aqüestos (arts. 1.672 a 1.686, NCC), este como a grande novidade da nova Lei, e que substitui o espaço legislativo antes destinado ao regime dotal, regulado pelo Código Bevilaqua, mas que não teve, de modo algum, qualquer repercussão que houvesse sido significativa, verdadeira letra morta, efetivamente, a qual, já não sem tempo, é excluída da regulamentação pátria.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

3.1. As disposições de caráter geral e a principiologia de regência econômica das relações conjugais, na nova Lei Civil.

Guardando a mesma estrutura do Código de 1916, o Direito Patrimonial de Família do novo Código Civil – rubrica que não tem correspondência com o Código Bevilaqua – expõe preambularmente um corpo de normas que anuncia a principiologia deste conteúdo patrimonializado das relações conjugais, disciplinando a sua abrangência, a propriedade e a administração dos bens, bem como a fruição e a disposição deles, por parte do marido e/ou da mulher e, ainda, as obrigações que eles poderão eventualmente assumir (arts. 1639 a 1652, NCC).

Nota-se, gratamente, pelo exame prévio e comparativo dos dois diplomas legais, que anda melhor o legislador atual, pois a estrutura formal e a redação escolhida para regulamentar o assunto é condizente com a proposta axiológica da nova Carta Constitucional Brasileira, de igualdade entre marido e mulher, deixando, felizmente, de se referir à mulher casada, para referir-se a marido e mulher, bem como deixando de lado a antiga e inócua, hoje, referência à presunção de autorização do marido a favor da mulher (como faz o art. 247 do Código Civil de 1916, ainda em vigor, entre nós).

O art. 1.642 do novo Código, por sua vez, estabelece regras acerca da autonomia de administração (ainda que de certa forma limitada) dos cônjuges na manutenção e conservação do seu acervo comum, bem como estabelece o direito de demandar pela defesa e de reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis que, porventura, tenham sido doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino ou à concubina (10) , repetindo regra já anteriormente estampada no Código de 1916 (art. 248, IV e 1177) e dando por anulável a alienação assim produzida.

Neste acento ainda preambular do direito patrimonial no casamento, segundo a normativa do novel Código, talvez a mais sofrida discrepância ou involução esteja contida nesse mesmo art. 1642, em seu inciso V (parte final), que dispôs sobre o direito de cada um dos cônjuges de reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes,[se o casal estiver separado de fato há mais de 5 (cinco) anos.] (grifos e destaques meus). Diz-se involução pelo fato de já restar assentado entre nós, há bom tempo, em ambiência jurisprudencial, que a separação de fato prolongada traz, como conseqüência em prol da justiça e da moralidade, a incomunicabilidade dos bens havidos por qualquer dos separados, no curso desta separação, tendo em vista a ausência do ânimo socioafetivo, na feliz expressão de Rolf Madaleno (11).

Este jurista gaúcho diz, com propriedade (e tem toda a razão), que está pacificado pela jurisprudência brasileira que a separação fática acarreta inúmeros efeitos jurídicos, especialmente o da incomunicabilidade de bens entre cônjuges fatualmente separados [...] e que não existe nenhum sentido lógico em manter comunicáveis durante cinco longos anos, bens hauridos em plena e irreversível separação de fato dos cônjuges, facilitando o risco do enriquecimento ilícito, pois o consorte faticamente separado poderá ser destinatário de uma meação composta por bens que não ajudou a adquirir (12).

Nesses casos, o que desponta com clareza, e com exatidão se descreve, é aquela situação que determinado segmento muito lúcido da doutrina nacional denomina de casamento meramente residual. Segismundo Gontijo, inspirado em Thereza Alvim, diz que se trata de uma circunstância conjugal de cuja existência restou mero assentamento no registro público, e não pode prevalecer sobre a realidade fática de ele ter deixado de existir até mesmo sensorialmente para cada um dos cônjuges, bem como para a comunidade circundante que até os supõe casados com os atuais companheiros (13).

É comumente repetido – e não é demais repeti-lo, também aqui, pois que preciso e precioso – o acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que teve como relator o Desembargador Silvério Ribeiro, e que assim descreve a situação que está em tela, agora: [...] não coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por apenas um dos cônjuges, sem a ajuda do consorte, em razão de separação de fato prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que de forma alguma não teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão de bens – prossegue o acórdão famoso – é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio comum. Portanto, sem a idéia de sociedade e sem a união de esforços do casal para a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da luta para a aquisição dos mesmos (14).

O sentimento do injusto presente na voz dos Tribunais, como acontece com o acórdão mencionado, espalha-se por tantas outras decisões (15) e fortalece a idéia evolutiva do pensamento doutrinário e jurisprudencial, entre nós, sobre o assunto, já bem antes do criticado inciso V (última parte) do art. 1642 do novo Código vir a lume, por aprovação e sanção presidencial, de sorte que não é sem razão que paira a sensação de retrocesso, para a comunidade jurídica, à face da conservação da arcaica regra.

Por isso, tal postura do legislador representa mesmo o engessamento das relações afetivas que se renovam, já que conviventes que não promoveram a sua precedente separação judicial e a correspondente partilha de seus bens conjugais, arriscam sofrer a invasão de seus bens, até cinco anos depois de iniciada a sua fática separação, se não ostentarem provas contundentes de que as suas atuais riquezas materiais decorreram do esforço comum do par convivente (16).

É certo que, mesmo sendo pessoalmente partidária desta corrente que entende se dar a incomunicabilidade dos bens havidos por um dos cônjuges, no curso de prolongada separação de fato, não posso deixar de mencionar os vieses da corrente contrária, mesmo porque os que a sustentam merecem toda a consideração do ambiente jurídico, pelo fato de serem consagrados juristas nacionais, de nome e renome inscritos nas páginas do direito brasileiro, os quais reúno, aqui, na pessoa do ilustre professor Eduardo Oliveira Leite que, ao responder uma consulta sobre o tema, em 1992, expandiu suas fundamentadas considerações em sentido contrário. A formalidade ali estampada prendeu-se, àquela época, ao princípio maior da imutabilidade do regime patrimonial de bens entre cônjuges, presente no Código de 1916, mas já ausente do Código Civil por entrar em vigor, em 2003. De toda a sorte, e em homenagem ao pensamento distinto, registro a informação e a fonte de consulta ao referido, e muito bem escrito, parecer (17).

Quanto à iniciativa judicial conferida a ambos os cônjuges de demandarem pelas ações previstas nas hipóteses de infração aos incisos III, IV e V deste art. 1.642, ainda em pauta de menção, o que se anota, gratamente, foi o cuidado do legislador da nova Lei Civil de atentar para a igualdade constitucional destes partícipes da ordem conjugal uma vez que, na regra anterior (que ainda vige, até 2003) tal iniciativa é conferida somente à mulher ou aos seus herdeiros (art. 249, CC/1916), exatamente porque a administração dos bens conjugais, até a promulgação da atual Constituição Federal, competia somente ao marido, participando a mulher como mera colaboradora do lar.

Ainda neste lapso de apreciação inicial das disposições do novo Código sobre o estatuto patrimonial de regência das relações econômicas entre os cônjuges, penso ser assunto da mais alta importância e indagação a substancial alteração realizada, acerca da passagem de imutabilidade para mutabilidade do regime de bens originalmente escolhido (18).

O art. 1639, em seu § 2º, dispôs ser admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

Sempre se ladearam, entre nós, mormente em sede jurisprudencial, as opiniões controvertidas acerca de ser, ou não, mais benéfica que prejudicial, a conversão da disposição legislativa de proibição da mudança do regime de bens, para um sistema de permissão, ainda que sob rígidas regras de apreciação judicial e resguardo dos direito de terceiros.

A mais antiga e acentuada posição acerca da possibilidade de reversão encontra-se, entre nós, na opinião de Orlando Gomes que, desde a década de 80 já colocava à exposição, as entranhas do assunto, perguntando quais as razões que teriam levado o legislador de 1916 a traçar a regra da imutabilidade do regime de bens, e, principalmente, se essas razões ainda sobreviviam, a justificar a mantença da regra (19). O jurista ilustre demonstrava a sua estranheza quanto ao assunto, especialmente quando trazia à luz o fato de poderem, os nubentes, livremente escolher o seu regime de bens, antes das núpcias, mas não poderem reenquadrá-lo, quando e se fosse conveniente ao casamento, respeitados, claro, os direitos de terceiros. Tanta liberdade numa fase, e uma proibição peremptória na fase imediatamente seguinte, em nome de quais princípios, de quais valores ou de qual segurança, nunca se saberá bem (20).

Sem dúvida, os partícipes desta corrente de possibilidade de alteração do regime de bens do casamento, na constância dele, recomendavam, como bem o fez o próprio Orlando Gomes, que todas as medidas de segurança e preservação de direitos de terceiros, principalmente, fossem adotadas. Como escreve Rolf Madaleno (21), o jurista baiano já aconselhava que a mudança do regime ficasse subordinada à autorização judicial, a requerimento judicial de ambos os cônjuges, que precisariam justificar a sua pretensão, verificando o juiz da plausibilidade do seu deferimento e preservando a segurança de terceiros, mormente credores, a fim de que não fossem prejudicados no exercício de seus direitos, ressalvando em qualquer caso essa hipótese, com ampla publicidade da sentença a ser transcrita no registro próprio.

Como se vê, e uma vez mais, tinha razão o professor Orlando Gomes, tanto é que o legislador brasileiro adotou exatamente a sua opinião a respeito do assunto, bem como as cautelas que ele sugeriu (art. 1639, § 2º, NCC).

É bem provável que o legislador anterior, em 1899, tenha preferido a regra da imutabilidade porque temeu, àquela época, que o cônjuge mais frágil na relação conjugal – a mulher, a bem da verdade, e na maioria dos casos do passado – fosse enganado por razões muito distintas da verdadeira intenção do outro cônjuge, se houvesse ficado em aberto a possibilidade da alteração de regime. Ou mesmo que a alteração camuflasse apenas uma simulação ou uma fraude a credores, desativando o patrimônio responsável pelo cumprimento de obrigações por meio de um expediente doloso, como esse, em certos casos.

Parece bem ter razão Silvio de Salvo Venosa (22) quando, a respeito do que se cuida, menciona que a proteção do legislador de 1916 corria a favor da mulher casada do século XIX, já que era tida como dotada de menor experiência no trato das riquezas econômicas do casamento, quase sempre administradas pelo marido.

Compreensível, quiçá, e então, a cautela do legislador de antanho, mas completamente incompreensíveis suas razões nos dias atuais, quando a igualdade entre marido e mulher, na esfera do casamento, não é apenas uma figuração constitucional, mas, bem mais que isso, uma realidade da contemporaneidade.

O mesmo e festejado Rolf Madaleno escreve, e com toda a razão, que considerando a igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada pela Carta Política de 1988, soaria sobremaneira herege aduzir que em plena era de globalização, com absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, ainda pudesse um dos consortes apenas por seu gênero sexual, ser considerado mais frágil, mais ingênuo e com menor tirocínio mental do que o seu parceiro conjugal. Sob esse prisma, desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, pois homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem refletir acerca da mudança incidental do seu regime patrimonial de bens, sem que o legislador possa seguir presumindo que um deles possa abusar da fraqueza do outro (23).

Além disso, é interessante anotar a opinião de Débora Gozzo (24), segundo a qual a maioria dos nubentes se sente constrangida para discutir questões de cunho patrimonial antes do casamento, entendendo que essa natural inibição inicial poderia levar a escolhas erradas quanto ao regime, além de instalar um clima mais propício para os casamentos por interesse. Seria certo então deduzir que com o passar do tempo, quanto mais sedimentado o relacionamento conjugal, quanto maior a intimidade dos cônjuges quanto mais fortalecidos os seus vínculos familiares e as suas certezas afetivas, mais autorizada estaria a modificação de seu regime patrimonial no curso do casamento, facilitando a correção dos rumos escolhidos quando ainda eram pessoas jovens e inexperientes (25).

Mas, enfim, resta a pergunta que foi deixada inicialmente, no enfrentamento desse assunto: a alteração significativa trazida pelo novo Código Civil, admitindo a possibilidade de modificação do regime de bens do casamento, na sua constância, trará mais benefícios que prejuízos às relações familiares e às relações obrigacionais, no seio da sociedade brasileira, a partir de 2003? O fato de ter se rendido, a novel legislação, a essa tendência mundial à volta da mutabilidade do regime de bens do casamento, terá conseguido mesmo a proeza de ter extirpado os malefícios do passado, ter consolidado a situação jurídica da mulher no casamento, ter cercado o deferimento da alteração do regime com as necessárias e rígidas cautelas assecuratórias de direitos de terceiros, tanto quanto baste para ser boa a transformação perpetrada, ou, ao contrário, terá apenas admitido que o abuso tenda a aumentar, restando a cargo do judiciário mais essa tarefa de buscar adivinhar as verdadeiras intenções que podem se esconder nas dobras de um pedido bilateral, dos cônjuges, a respeito da modificação das regras de regência de seu estatuto patrimonial de casamento?

Sabe-se, pelo peso da verdade, que não será lei ou norma que, em qualquer circunstância, irá coibir as práticas ilícitas e as operações camufladas. Daí, a buscar com desmesurado cuidado uma resposta para tal indagação, me parece excesso de racionalidade. Os atos viciados, e por isso nulos ou anuláveis, estão pululando todo o tempo na realidade da vida negocial e na esfera econômica dos homens, quer a norma jurídica seja mais dura ou mais rígida, quer a opção legislativa tenda para um lado ou para outro, nas considerações mais polemizadas, como é o caso desse assunto da mutabilidade ou imutabilidade do regime matrimonial de bens.

Por isso, segundo a minha visão pessoal, só o tempo dirá, e por mera consideração estatística, sob a égide de qual das tendências legislativas (a de 1916, pela imutabilidade, ou a de 2002, pela mutabilidade) terá ocorrido o maior número de casos de alteração do estatuto patrimonial calcada em razões que não as verdadeiramente apontadas como justificadoras do pedido. Penso assim justamente por considerar que, mesmo antes da aprovação do novo Código, as regras mais fechadas da legislação Bevilaqua já se encontravam abrandadas, quer pela possibilidade de doações entre cônjuges, quer pela edição da Súmula 377, do STF, que transformou o regime legal ou obrigatório da separação de bens (§ único do art. 258, CC/1916) em regime de comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, quer pela promulgação da Lei do Divórcio e seu art. 45 que abrandou a regra dura do regime obrigatório (26), ou quer, finalmente, pela possibilidade de se realizar pacto antenupcial condicionado, o que admitiria a possibilidade de alteração incidental do regime adotado, pela superveniência de outro fato derivado do implemento da condição como, por exemplo, o nascimento de um filho.

Como diz Rolf Madaleno, as possibilidades todas de fraude, simulação, ou mau uso da regra mais branda estampada no Código Civil de Miguel Reale, só o tempo é que dirá, e só as ocorrências é que cuidarão de demonstrar se o legislador acertou ao revogar o princípio da imutabilidade do regime de bens, ou se seguirá prevalecendo o nítido sentimento de que às vésperas da ruptura não anunciada, mesmo nos dias de hoje, um cônjuge ainda consegue abusar da fraqueza do outro (27).

3.2. As modalidades de regime de bens do casamento adotadas pelo novo Código Civil. (28)

          3.2.1. Do regime de comunhão parcial.

Como já se disse, este é o regime oficial de bens, no casamento, selecionado, pois, pelo legislador pátrio, desde a promulgação da Lei do Divórcio, em 1977, pelo qual comunicar-se-ão apenas os bens adquiridos na constância do casamento, e revelando, por isso mesmo, um acervo de bens que pertencerão exclusivamente ao marido, ou exclusivamente à mulher, ou que pertencerão a ambos.

Com a dissolução da conjugalidade, restará comunicável, então – e por isso passível de partilha entre os cônjuges que se afastam – o acervo dos bens comuns, ficando excluídos, dessa partilha, os bens ressalvados pelos arts. 1659 e 1661 do novo Código Civil, dispositivos esses que repetem as mesmas exclusões já anteriormente previstas pelos arts. 269 e 272 do Código Civil de 1916. Excluídos estavam, e permanecem, então, os bens que cada cônjuge já possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do matrimônio por doação, sucessão ou sub-rogados em seu lugar (art.269, inciso I, CC/1916 e 1659, inciso I, CC/2003).

Relativamente aos bens sub-rogados, anote-se que caminhou bem o novel legislador, ao incluir disposição que os alcança, para deles estabelecer, também, a incomunicabilidade, já evidente por todas as letras, mas não expressamente prevista no Código anterior.

Nas relações de bens que se excluem e de bens que se comunicam, nesse regime, poucas foram as alterações, sendo que se deve apontar, mais nitidamente, para o fato de a nova Lei ter excluído da comunicabilidade os frutos civis do trabalho, ou indústria de cada cônjuge, que integravam o rol, na legislação de 1916 (art. 271, VI). Não foi a melhor solução esta, encontrada pelo legislador do novo Código, de retirar tais frutos do rol dos bens que se comunicam e encaixá-los, assim simplesmente, no rol dos que não se comunicam. Na realidade, melhor teria sido se o Código que entrará em vigor tivesse apenas declarado comunicáveis os frutos civis do trabalho ou indústria dos cônjuges, quer no regime da comunhão parcial, quer no regime da comunicação universal, por se tratar especialmente das economias de cada cônjuge, oriundas do seu próprio trabalho e resultantes, no mais das vezes, dos naturais sacrifícios que marido e mulher realizam, abdicando de viagens, supérfluos, reduzindo despesas, consumos e serviços, em intensa e esforçada economia doméstica para somar valores destinados ao futuro dos filhos ou à velhice dos consortes. (29)

Mas se esta dose de sacrifício não for de ambos, por acaso, e se apenas um deles reservar as suas economias havidas dos rendimentos de seu trabalho, em detrimento do outro que, em significativo número de vezes sequer atividade remunerada desempenha, além das tarefas do lar, propriamente ditas, então é possível que ocorra uma enorme injustiça, em conseqüência da opção realizada pelo legislador de incluir tais rendimentos entre os que não se comunicam com o outro cônjuge.

Por outra visão, poderá ocorrer, também, que o cônjuge que desempenha uma atividade profissional, melhor remunerada, esteja encarregado de arcar com um mais significativo número de encargos doméstico-financeiros, enquanto que o outro, até mesmo por ganhar menos, seja capaz de maiores peripécias econômicas, amealhando um acervo de bens resultantes desta economia e que não se comunicarão com o seu consorte, em caso de dissolução da sociedade matrimonial.

Mas, enfim, quer por qual lado se examine a questão, parece que sempre haverá uma conseqüência que pode ser desastrosa, derivada desta ingênua tentativa do legislador atual de melhorar discrepâncias, entre regimes, ocorridas no Código de 1916.

Os artigos derradeiros do capítulo do novo Código, acerca do regime da comunhão parcial – os arts. 1663 a 1666 – oferecem uma redação mais objetiva à administração conjugal do patrimônio comum, em redação contextualizada com a Lei nº 4.121 de 1962 (Estatuto da Mulher Casada) e com a igualdade constitucional dos cônjuges, como ao seu modo e com as suas limitações já regulavam os artigos 274 e 275 do Código de 1916, conforme bem analisa Rolf Madaleno.

          3.2.2. Do regime de comunhão universal.

Este regime foi aquele que, entre nós, e até o advento da Lei do Divórcio, posicionou-se como o regime legal, casando-se sob sua regulamentação a esmagadora maioria de brasileiros, até 1977.

Conforme suas regras, comunicam-se entre os cônjuges todos os seus bens presentes e futuros, além de suas dívidas passivas, ocorrendo um enorme amálgama entre os bens trazidos para o casamento pela mulher e pelo homem, bem como aqueles que serão adquiridos depois, formando um único e indivisível acervo comum, passando, cada um dos cônjuges, a ter o direito à metade ideal do patrimônio comum e das dívidas comuns. (30)

No novo Código Civil, o regime da comunhão universal de bens, o regime da unificação patrimonial mais completa, encontra-se disciplinado entre os arts. 1667 a 1671.

A redação mais enxuta do art. 1668 do novo Código, e seus cinco incisos, repetem – conforme comenta Rolf Madaleno – embora não na mesma ordem, os incisos I, II, III, VI, VII, VIII, IX (parcialmente), XI e XIII do art. 263 do Código Civil de 1916.

Restarão revogados no futuro – prossegue o referido autor – os incisos IV, V, IX (parcialmente), X e XII desse mesmo artigo 263 do Código que ainda vige. São disposições respeitantes ao regime dotal, revogado pela nova codificação, à fiança prestada pelo marido sem a outorga da mulher e a figura do bem reservado que já havia desaparecido do direito brasileiro com a igualdade constitucional dos cônjuges, deixando de admitir que pudesse seguir a mulher sendo privilegiada com a não comunicação dos bens que, uma vez comprados com os seus próprios recursos financeiros, restavam considerados como sendo bens de sua exclusiva propriedade. (31)

          3.2.3. Do regime de separação de bens. (32)

Relativamente a este regime de bens, isto é, o regime que visa promover a completa separação patrimonial do acervo de bens pertencente a cada um dos cônjuges, alinho-me, claramente, entre aqueles que anotam ter sido um retrocesso do legislador contemporâneo a inclusão das arcaicas regras contidas na legislação de 1916, estas em franca decadência, depois de fortemente modificadas pela Súmula 377 do STF.

O novo Código Civil, assim como o Código vigente, em apenas três artigos reescreve, ainda que com redação melhorada, o inteiro contexto proibitivo já anteriormente expressado pelos arts. 276 e 277 do Código Bevilaqua.

Assim, a nova legislação, no art. 1641 declara as circunstâncias que levarão à obrigatoriedade da separação total, reproduzindo, de certa forma, o que já era invocado, desde 1916, como a circunstância de alguém se casar com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, ou a circunstância de ter mais de 60 anos o nubente (33), ou, ainda, a circunstância de depender, a pessoa que quer se casar, de suprimento judicial.

A inserção deste dispositivo no novo Código trouxe a renovação de sua aplicação cogente, quiçá, mesmo em face da extensa e robusta jurisprudência de abrandamento, consolidada na Súmula 377 do STF (34), revelando-se como significativo e preocupante retrocesso.

Rolf Madaleno identifica os problemas que poderão surgir e adverte que a ausência de revogação expressa da Súmula 377 vai ocasionar enormes divergências, sem saber se ela será ou não aplicável, após a entrada em vigor do novo Código Civil. Expressa o autor sua opinião, à face da mantença de um tal dispositivo legal, da seguinte maneira: manter a punição da adoção obrigatória de um regime sem comunicação de bens, porque pessoas se casaram sem observar as causas suspensivas da celebração do casamento (art.1.641, inciso I, do NCC) ou porque contavam com mais sessenta anos de idade (art. 1.641, inciso II do NCC), ou ainda porque casaram olvidando-se do necessário suprimento judicial (art. 1.641, inciso III do NCC), é ignorar princípios elementares de Direito Constitucional, respeitantes à igualdade das pessoas, que não podem ser discriminadas em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil. Sobretudo – ele prossegue – porque atinge direito cravado na porta de entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana, cujos valores já vinham sendo preconizados pela Súmula 377 do STF, ao ordenar a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, como se estivesse tratando da comunhão parcial de bens. (35)

Alinho-me, portanto, a esse modo de pensar. Se as dúvidas terão, ou não, procedência, só o tempo dirá. A história jurídica matrimonial brasileira nos dirá, depois.

Antes de encerrar a análise deste regime de bens do casamento, o regime da separação total, não devo esquecer de mencionar que ele pode ser adotado, pelos nubentes, como fruto da eleição ou escolha, convencionando-lo por meio de pacto antenupcial. Se assim for, o regime em pauta vai se desvendar como um excelente regime patrimonial, no casamento, tendo em vista que ele representa exatamente o contrário disso, quer dizer, ele é a total ausência de regime patrimonial, mantendo bem separados e distintos os patrimônios do marido e da mulher.

Talvez mesmo tenham integral razão aqueles que prognosticam ser este regime, quando convencionado pelos nubentes, o que se revela como o regime das futuras uniões conjugais [...], na medida em que cada um dos cônjuges [...] irá concorrer com as suas economias pessoais para atender às cargas específicas da sociedade afetiva, mantendo intactos os seus bens ou as suas fortunas no caso de separação. Especialmente quando se habilitam para um recasamento, conclui Rolf Madaleno, ocorrendo nessas ocasiões, uma forte influência econômica pelo temor de poder arcar com novo prejuízo de uma separação que já lhes tomou anteriormente, significativa parcela dos bens materiais. (36)

          3.2.4. Do regime de participação final nos aqüestos.

Cria, o legislador civil nacional, outro regime de bens, que vem ocupar o lugar deixado pelo regime dotal, sem que, no entanto, guarde relativamente a este qualquer semelhança. Ocupa o lugar, não as características. Ao contrário, o regime da participação final nos aqüestos guarda semelhanças e adquire características próprias a dois outros regimes, na medida em que se regulamenta, em seu nascedouro e suas constância por regras semelhantes às desenhadas pelo legislador para o regime da separação de bens, em que cada cônjuge administra livremente os bens que tenha trazido para a sociedade conjugal, assim como aqueles que adquirir, por si e exclusivamente, durante o desenrolar do matrimônio. Por outro lado, assume de empréstimo regras muito parecidas àquelas dispensadas ao regime da comunhão parcial, quando da dissolução da sociedade conjugal por separação, divórcio ou morte de um dos cônjuges.

Nesse sentido, cada cônjuge possui patrimônio próprio, que administra e do qual pode dispor livremente, se de bens móveis se tratar, dependendo da outorga conjugal apenas para a alienação de eventuais bens imóveis (CC, arts. 1.672 e 1.673). Mas se diferencia do regime da separação de bens porquanto, no momento em que se dissolve a sociedade conjugal por rompimento dos laços entre vivos ou por morte de um dos membro do casal, o regime de bens como que se transmuda para adquirir características do regime da comunhão parcial, pelo que os bens adquiridos onerosamente e na constância do matrimônio serão tidos como bens comuns desde a sua aquisição, garantindo-se, assim, a meação ao cônjuge não-proprietário e não-administrador.

Desta feita e porque afastado um dos cônjuges da administração dos bens adquiridos, traça o Código Civil uma série de disposições que, pormenorizadamente, visam disciplinar a apuração dos bens partíveis em meação, pelo valor e no montante verificados na data em que cessou a convivência dos cônjuges (art. 1.683), tudo para evitar se consubstancie qualquer espécie de lesão ao direito do cônjuge que até então figurava como não-proprietário e não-administrador.

Assim é que o art. 1.674 determina quais os bens que se qualificam como bens aqüestos, excluindo dessa classe aqueles bens que cada um dos cônjuges possui já antes de convolar as justas núpcias, bem como aqueles bens que, no lugar daqueles primeiros se sub-rogaram (inciso I); exclui ainda os bens que sobrevieram ao cônjuge, na constância do casamento, mas em decorrência de liberalidade só a ele dirigida (posto que se instituída em favor de ambos, esse bem seria bem em co-propriedade dos mesmos) ou em decorrência de sucessão (inciso II); e exclui, por fim, as dívidas que sobre esses bens exclusivos pesem, uma vez que, não aproveitando esses bens ao outro cônjuge, a ele não podem também prejudicar (inciso III).

O art. 1679 institui quotas iguais em créditos estabelecidos em decorrência do trabalho conjunto dos cônjuges, bem como determina o condomínio em mesmas condições na hipótese dos bens terem sido adquiridos na constância do casamento e com a comunhão de esforços laborais, pelo que, como co-proprietários desses bens, aos cônjuges será lícita a administração conjunta dos mesmos e, em caso de dissolução do matrimônio, ser-lhes-á lícito demandar a dissolução do condomínio, se possível e pelos modos legais. Caso contrário, podem optar pela venda do bem e a divisão do valor auferido.

Em seguida o Código traça regras para que terceiros tenham ciência da real titularidade dos bens pertencentes aos membros do casal que se uniu em matrimônio e que escolheu esse novel regime para lhes reger as relações patrimoniais. Assim é que pelo art. 1.680, presume-se que as coisas móveis, perante os credores de um dos membros do casal, ao devedor pertencem, salvo se o cônjuge não devedor conseguir provar que o bem sob litígio é bem de seu uso pessoal, como uma linha telefônica utilizada exclusivamente pelo não-devedor, uma linha de telefonia móvel nessas mesmas condições, um veículo automotor utilizado da mesma forma.

No que aos bens imóveis respeita, o Código repete o velho princípio de que titular do domínio é aquele que constar do registro, mas excepciona no parágrafo único do art. 1.681, dispondo que uma vez impugnada a titularidade do bem (por um credor do cônjuge não-proprietário, por exemplo), caberá ao proprietário provar a aquisição regular do bem ou dos bens.

O Código desenha, ainda, as regras aplicáveis ao caso de o cônjuge proprietário e administrador ter obrado em detrimento da meação futura, quer por ter alienado bens sem a necessária outorga do seu comparsa, ainda que gratuitamente, quer por ter contraído dívidas que em nada aproveitaram à sociedade conjugal.

Assim, quando da verificação do montante dos bens aqüestos os valores dos bens que tenham sido doados por um dos cônjuges em detrimento da meação do outro, porquanto pendente da necessária autorização conjugal, serão apurados pelo valor que possuiriam no momento mesmo da dissolução, devendo ser computados no monte como forma de se repor a parte lesada, isso se o cônjuge prejudicado ou seus herdeiros não optarem por reivindicar o bem doado, direito que se lhes assiste (art. 1.675). Para Rolf Madaleno, possível é, ainda, a compensação do bem doado por outro de mesmo valor, se com isso concordar o prejudicado (37). O mesmo se dá com os bens alienados em detrimento da meação (art. 1.676).

Relativamente às dívidas contraídas por apenas um dos cônjuges e posteriormente ao casamento (porquanto as anteriores só ao devedor digam respeito), por elas responderá o cônjuge que a contraiu, salvo se provar que, de alguma forma, total ou parcialmente, reverteu o crédito tomado em favor do outro, quando, então, este último também responderá (art. 1.677).

Na hipótese de um cônjuge solver dívida contraída pelo outro e em seu benefício exclusivo, poderá o que pagou com seus bens exclusivos imputar tal dívida paga à meação do devedor beneficiado (art. 1.678).

Em qualquer hipótese, as dívidas exclusivas de um dos cônjuges que sejam superiores à sua meação não podem obrigar nem ao outro cônjuge, nem aos herdeiros do devedor, caso se trate de dissolução da sociedade conjugal por morte, conforme dispõe o art. 1.686.

Verificado o montante e descontadas as dívidas imputáveis em comum ou a cada qual do s cônjuges pelas regras assinaladas, há de se proceder à partição do patrimônio. Mas pode ser que a divisão de todos os bens em natureza não seja aconselhável, pelo que é possível que se proceda ao cálculo do valor de alguns bens para que o cônjuge não-proprietário receba sua parte em dinheiro. Se não for possível o pagamento em espécie pelo cônjuge proprietário, é permitida, mediante apreciação judicial, a avaliação e venda de tantos bens quantos bastarem para ultimar a partilha (art. 1684).

Para o caso de dissolução da sociedade por morte de um dos cônjuges, verificar-se-á o monte sucessível após a separação dos bens conforme as regras traçadas acima, entrando então os herdeiros (descendentes, ascendentes ou mesmo o cônjuge supérstite, em sendo esse o caso) nos bens que constituam a meação do cônjuge morto e em seus bens exclusivos, tudo de acordo com a disposição do art. 1.685.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

procuradora federal em São Paulo (SP), doutora em Direito pela USP, professora doutora de Direito Civil da USP, diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Casamento e regime de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4095. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Texto baseado em palestra proferida em 21 de março de 2001, na ESA/OAB/SP, como parte integrante do curso de Direito de Família sob a coordenação dos Professores Dr. Antonio Carlos Malheiros, Dr. Marcial Barreto Casabona e Dr. Silvânio Covas.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos