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O processo do conhecimento humano e as correntes do pensamento jurídico

21/05/2005 às 00:00
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Visões filosóficas divergentes sobre o conhecimento: racionalismo valoriza a razão; empirismo defende a experiência como base da verdade.

Sumário: 1. Introdução. 2. O processo do conhecimento humano 3. As Correntes do Pensamento Jurídico. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.


1. Introdução

Ainda que de modo sucinto e incompleto, é nosso propósito traçar uma resenha sobre correntes filosóficas que tratam da compreensão do processo de formação do conhecimento humano, e, além disso, abordar as diferentes visões propostas pelos estudiosos do Direito acerca do objeto do seu estudo. Importa dizer que essas visões conceituais e explicativas integram algumas das chamadas correntes do pensamento jurídico, as quais apresentam múltiplas e variadas concepções sobre o Direito. E parte dessas concepções remete aos primórdios da civilização ocidental e, mesmo tendo suas origens em remota era, cortejam pensadores e pensamentos na atualidade, atravessando os céus dos nossos dias amparadas, claro, em nova roupagem teórica e argumentativa.


2. O processo do conhecimento humano

A história e evolução da raça humana estão, desde os primeiros tempos, ligadas ao ato de conhecer, a essa incessante busca de explicação para os fenômenos produzidos e existentes tanto na natureza quanto no mundo social e individual, e a finalidade do ato de conhecer outra não é senão desvendar os segredos e mostrar a realidade do objeto a ser conhecido, realidade essa que, por meio de reconstruções e modificações inevitáveis do pensar, está sujeita a rupturas e mudanças, de tal modo que o conhecimento sobre determinado objeto que parecia verdadeiro e aceitável num determinado espaço-tempo, noutro momento pode parecer falsa percepção.

E na tentativa de explicar como se processa o conhecimento humano, surgem diferentes pontos de vista para fundamentar a compreensão desse fenômeno que se opera na relação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. A questão tem sido alvo de discussão nos meios filosóficos pelas correntes assim denominadas: racionalismo, empirismo e dialética, sobre as quais teceremos algumasconsiderações:

2.1. Racionalismo

O Racionalismo origina-se a partir do inatismo de PLATÃO, filósofo grego (427 a.C. – 347 a.C.), para quem o homem, ser dotado de razão, não conhece a realidade, conhece tão somente a idéia do que seja real, de modo que a realidade só pode ser conhecida por meio das idéias de nossa razão. Enfim, o ato de conhecer resulta de uma operação racional, estando a realidade no universo das idéias, de modo que o conhecimento é criação do ser pensante e nele se esgota, e nada existe fora do pensamento, sendo o conhecimento regido por princípios universais, necessários e imutáveis, válidos para todos os homens em todo tempo e lugar.

Embora o racionalismo não ignore a existência do objeto real a ser conhecido, parte do princípio de que esse objeto resulta de uma operação elaborada no universo das idéias. O sujeito, portanto, surge como único elemento valorizado na relação concebida pelo processo do conhecimento, sendo de quase nenhuma relevância o objeto real a ser conhecido.

A visão platônica (racional, idealista) do direito e do mundo traduz-se em um panorama afastado do plano concreto, desvinculado das ocorrências que se manifestam na ambiência social, tablado que ostenta inúmeras contradições nas estruturas que o compõem e no qual o direito é feito e refeito constantemente.

2.2. Empirismo

"O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais, mas também algumas idéias verdadeiras, que, por isso, são idéias inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas idéias, é adquirida por nós através da experiência"

(MARILENA CHAUI, Convite à Filosofia, p. 69, Editora Ática).

O empirismo, portanto, adota posição radicalmente oposta ao racionalismo. Enquanto essa corrente valoriza o sujeito na formação do conhecimento humano, o empirismo sustenta que o conhecimento nasce do próprio objeto, o qual se apresenta no mundo como realmente é, cabendo ao sujeito somente exercer papel de mero espectador dessa realidade posta, e para conhecê-la basta o sujeito saber ver, sendo suficiente para atingir a verdade que se ache devidamente preparado para descrever o objeto tal como ele é, nada pondo, nada acrescentando a ele, atuando como observador neutro, objetivo e exato.

O empirismo traz como elemento decisivo em seu processo de compreensão do conhecimento a preocupação fundamental de que a verdade somente será alcançada por meio da experiência, de tal modo que é imprescindível ao ato de conhecer a demonstração experimental no mundo sensível de toda e qualquer proposição. A experiência pode ser traduzida como o contato que os sentidos daquele que observa travam com o objeto real.

O empirismo manifesta-se em sua forma mais radical no positivismo de AUGUSTE COMTE (1798 – 1857). O festejado positivista sustenta que a verdade só pode ser verificável empiricamente e por um método único e rígido.

Assim como o racionalismo, que na compreensão do conhecimento privilegia o sujeito, o empirismo também constitui obstáculo epistemológico à elaboração científica do direito, porque dá ênfase excessiva a um dos termos da relação cognitiva (no caso, o objeto), não considerando a lição dialética de que é no processo racional entre sujeito e objeto que o conhecimento se constrói. Assim, racionalismo e empirismo são correntes filosóficas que se caracterizam por fundamentos, postulados e atitudes metafísicas diante do processo cognitivo.

2.3. Dialética

A corrente dialética surgiu como tentativa de expurgar os exageros pregados pelo racionalismo e pelo empirismo, tendo como preocupação nuclear o diálogo das estruturas mentais e racionais, insurgindo-se contra o mito da objetividade e neutralidade da ciência.

Na Antigüidade, o fundador do pensamento dialético foi HERÁCLITO (540? – 480? ªc.), para quem "O sol é novo a cada dia; nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos". Enfim, tudo flui, tudo passa, tudo se move sem cessar, a vida e tudo o mais que existe transformam-se num fluxo permanente.

O pensamento dialético prega a necessidade da convivência dos contrários, estabelecendo que a maneira de conhecer a realidade resulta do atrito e do confronto das diferenças constatadas. Predomina a relação da razão com a consciência, de maneira conflituosa como processo de conhecimento humano; ao mesmo tempo, uma afirmação incorpora uma série de negações. O conhecimento da realidade é a superação das contradições.

O pensamento dialético é por definição mutável; a verdade é a do momento, sempre retificável, provisória, pois somente assim o pensamento humano mostra-se capaz de evoluir, partindo-se, portanto, da idéia de que a realidade é sempre contraditória.

Suas principais características são: 1) o conflito; 2) suposição da relação do sujeito: envolvimento, "contaminação" do sujeito pelo objeto e do objeto pelo sujeito; o sujeito que conhece o objeto transforma-o; 3) conhecimento provisório: traz a idéia de mudança e transformação, encarando o direito como fenômeno dinâmico, transformado pela realidade e transformador da própria realidade.


3. CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

3.1. Jusnaturalismo

A primeira corrente sobre a qual nos deteremos denomina-se Jusnaturalismo. Nas palavras de AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO

"O Jusnaturalismo é uma corrente de pensamento jurídico tão ampla, que podemos afirmar que, tomado em seu sentido lato, o termo engloba todo o idealismo jurídico, desde as primeiras manifestações de uma ordem normativa de origem divina, passando pelos filósofos gregos, pelos escolásticos e pelos racionalistas dos séculos XVII e XVIII, até chegar às modernas concepções de Direito Natural formuladas, entre outros, por STAMMELER (1856 – 1938) e DEL VECCHIO (1878 – 1970)."

(A ciência do direito: conceito, objeto, método, Renovar, 2ª edição).

Numa primeira tendência, o Jusnaturalismo abebera-se no idealismo, sua matriz filosófica, concebendo o Direito como se fosse um fenômeno de origem divina, regido por princípios preexistentes ao homem, dotado de imutabilidade absoluta, desvinculado do mundo real, produto, portanto, da força intangível e imaginadora de um ser supremo. Nesse sentido, o Direito é uma invenção de Deus, posta a serviço dos homens, e, bem por isso, mero apêndice da religião. Aliás, "Entre os gregos e romanos, como entre os hindus, a lei surgiu, a princípio, como uma parte da religião. Os antigos códigos das cidades eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas. As normas do direito de propriedade e do direito de sucessão achavam-se dispersas entre as regras relativas aos sacrifícios, à sepultura e ao culto aos mortos... Os antigos diziam que suas leis tinham vindo dos deuses" (FUSTEL DE COULANGES, A Cidade Antiga, Hemus, pp. 150-152).

Esta concepção Jusnaturalista de fundo teológico, reafirmada na doutrina estóica de Santo Tomás de Aquino, sofre abalo com o avanço da ciência, representado pela figura emblemática de GALILEU (1564 – 1642); além disso, é combatida pelo pensamento teórico político do século XVII, que surge para secularizar o Estado absolutista e sustentar que o Direito existe independentemente da Teologia, eliminando desse modo a religião da vida pública.

A esse respeito HANNAH ARENDT (1906 – 1975) assinala que "... os teóricos políticos do século XVII realizaram a secularização separando o pensamento político da Teologia e insistindo em que as regras do direito natural proporcionavam um fundamento para o organismo político mesmo que Deus não exista. Foi o mesmo pensamento que levou Grotius a dizer que ‘ nem mesmo Deus pode fazer com que duas vezes dois não sejam quatro’". (Entre o Passado e o Futuro, coleção debates, política, Ed. Perspectiva, p. 104).

A preocupação dos teóricos do século XVII não é questionar ou negar a existência de Deus, mas livrar o Estado dessa ingerência metafísica, eliminando a religião da vida pública, e não da vida dos homens. A propósito, homens como HOBBES (1588 – 1679) e DESCARTES (1596 – 1650) não estavam desatados das verdades dos ensinamentos religiosos tradicionais, tanto que o primeiro morreu apavorado com a fúria do "fogo do inferno" e o segundo orava à Virgem Maria.

No campo jurídico, GROTIUS (1583 - 1645) e PUFENDORF (1632- 1694) promovem a laicização do Direito, rompendo com o pensamento jusnaturalista escolástico; em decorrência dessa ruptura proporcionam o desenvolvimento da ciência jurídica, à medida que enxergam o Direito como fenômeno que se origina na razão humana, e não em forças de origem divina ou super-humana, trazendo, assim, o Direito para o mundo terreno, conferindo-lhe status de realidade criada pelo homem e para o homem.

Já o otimista LEIBINIZ (1646-1716), para quem "tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis", o Direito nasce da razão eterna, elemento que habita o mundo interno de todo ser humano e que serve de "instrumento adequado para deduzir os princípios do Direito Natural que devem reger a conduta humana"(MARQUES NETO, op. cit., p. 135).

O jusnaturalismo, mesmo depois de romper com a escolástica, funda-se no pressuposto de que o Direito origina-se em verdades eternas e imutáveis, produzidas pela razão humana, e para concebê-lo desconsidera a vivência social e histórica, ignorando a realidade concreta, prendendo-se a princípios universais, eternamente válidos, de tal modo que, "rompendo com a escolástica, o jusnaturalismo trocou uma metafísica por outra..."(MARQUES NETO, op., cit., pg. 136).

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"Durante o século XIX, século das filosofias naturalistas, do positivismo, do evolucionismo, do materialismo, houve um longo eclipse que ameaçou, mesmo com a definitiva expulsão do mapa das idéias jurídicas, a teoria do direito natural"

(A. L. MACHADO NETO, Teoria da Ciência Jurídica, p. 84, Ed. Saraiva).

Entretanto, a partir das doutrinas de KANT (1724-1804), o jusnaturalismo ressurge no século XX com novos fundamentos teóricos vazados nas obras de STAMLLER, RADBRUCH, RÉCASÉNS SICHES e GIORGIO DEL VECCHIO, rompendo com a velha concepção jusnaturalista da imutabilidade do Direito, construindo um direito natural formal, de conteúdo variável, isto é, modificável concretamente em face das mudanças históricas e sociais, cuja finalidade é a busca da justiça ideal e permanente, genuinamente idealista, pois.

3.2. A Escola da Exegese

Essa corrente do pensamento jurídico floresceu no início do século XIX, em torno do Código Napoleônico (1804), exercendo grande influência no mundo ocidental, influência ainda muito presente na mentalidade de juristas de formação tradicional que concebem o Direito como um sistema normativo, emanado exclusivamente do poder estatal, capaz de prever todas as possibilidades de relações e conflitos humanos, e, por isso, não concebe o Direito fora dos códigos, repositório de toda e qualquer explicação jurídica, até porque não há Direito fora do texto legal. E o Direito, dentro dessa concepção, traduz-se numa realidade imóvel, incapaz de sofrer modificações ou influências da dinâmica social na qual se acha inserido. O formalismo dogmático exacerbado dessa corrente jurídica reveste-se de nítidas razões políticas, e constitui "... a expressão jurídica da burguesia ascendente, recém-instalada no poder [que emerge como classe dominante no pós-absolutismo], que precisava, para manter-se, estabelecer a crença na validade formal da lei, assim como precisou, para tomar o poder, da crença em valores ideais e absolutos" (MARQUES NETO, op. cit., p. 153).

Em decorrência da interpretação absolutamente literal e conveniente ao modelo político estabelecido e fundado nos ideais da Revolução Francesa, o princípio da separação dos poderes é interpretado de modo que "O poder de julgar será apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares, graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações que poderiam deformar a vontade do legislador" (CHAÏM PERELMAN, Lógica Jurídica, p. 23, Martins Fontes).

A Escola da Exegese, também conhecida como Escola dos Glosadores e Escola Filológica, compreende o direito a partir de esquemas lógico-formais criados para interpretar a lei literalmente, nada acrescentando ou retirando da regra interpretada, buscando atingir o seu espírito, guiando-se o intérprete pelas verdades legais estabelecidas, segundo as quais não há Direito fora dos códigos; as soluções legalmente propostas são justas para todos os conflitos; e as palavras são tão claras que não comportam interpretação equívoca, porquanto a dicção da lei é absolutamente inequívoca, e, bem por isso, por ser clara, dispensa interpretação contrária a intenção do legislador, devendo ser somente aplicada. A interpretação do texto legal, sua exegese pura e simples, nisso fica reduzida a tarefa do cientista do direito. Com isso, a referida escola reduz o Direito ao formalismo extremo, na vã tentativa de imobilizá-lo, como se a realidade social, sempre dinâmica, pudesse permanecer engessada no tempo e no espaço, sem conexão com o mundo das normas, e nisso reside seu caráter peculiar, traduzido na expressão de NORBERTO BOBBIO como "...a admiração incondicional pela obra realizada pelo legislador através da codificação, uma confiança cega na suficiência das leis, a crença de que o código, uma vez promulgado, basta-se completamente a si próprio, isto é, não tem lacunas: numa palavra, o dogma da completude jurídica"(NORBERTO BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 121, Ed. UNB).

A Escola da Exegese põe a Lei acima de todas as vontades, idolatrando-a, e lhe confere o atributo de instrumento de controle do poder, de tal modo que deixa como herança o Princípio da Legalidade e o da Supremacia da Lei. Supera a metafísica racional dos jusnaturalistas, trocando-a, contudo, por uma metafísica de cunho exageradamente formalista, à medida que concebe o Direito como uma realidade posta, imune ao meio social, traduzida num positivismo avalorativo, estatal e legalista, equiparando o direito à lei. A escola exegética, importa dizer, tem, ainda nos dias atuais, uma legião de fiéis seguidores.

3.3. Historicismo jurídico

Essa corrente do pensamento jurídico surge nos primórdios do século XIX, na esteira previsível da reação política aos ideais burgueses e revolucionários do Iluminismo, e contrapõe-se tanto ao jusnaturalismo racionalista como ao empirismo exegético, concebendo o Direito como um corpo vivo, produto da realidade histórica e social, que se fundamenta na tradição e nos costumes de cada povo em determinado momento histórico, e porque se origina no "espírito do povo", está o Direito em mudança constante, daí porque SAVIGNY (1179-1861) rechaça os postulados da exegese,"... rejeitando a codificação como uma fossilização do direito que, em seu entender, tal como para seu mestre Hugo [ GUSTAVO HUGO (1764-1840)], emanava da livre consciência popular, sob a forma do costume. O direito, longe de ser uma arbitrária criação da vontade estatal era – para Savgny – produto do Volksgeist, do qual o costume é a manifestação mais autêntica, livre e direta"(A. L. MACHADO NETO, op.cit., p. 100).

A Escola Histórica volta-se, portanto, para a compreensão do fenômeno jurídico no ambiente social em que ele é produzido, o que não deixa de ser um avanço, e abala definitivamente o "sono dogmático" do pensamento jurídico então vigente.

3.4. Escola do Direito Livre e livre investigação científica

"Este pequeno avanço do historicismo jurídico é radicalizado no sociologismo jurídico que considera os fatos sociais na formulação das decisões judiciais e foge da aplicação mecânica da vontade do legislador. É um grande passo para o início da Escola do Direito livre que nasce na Alemanha com Euggen Ehrlic, em 1.903. Herman Kantorwicz, em 1.906 apresenta o manifesto por um Movimento do Direito Livre defendendo a idéia de que o Direito, que denomina de natural, nascido espontaneamente dos grupos e movimentos sociais, sobrepõe-se ao direito estatal em uma atividade criadora do Direito. Em 1.885, Oscar Bülow já difundia a idéia de que a lei não cria o Direito, somente realiza uma ordem jurídica produzida pelos membros da sociedade, podendo estar desatualizada por não acompanhar as transformações sociais e ainda possuir lacunas por serem ora incompletas, ora inadequadas e, em determinados casos, contraditórias quando confrontadas com a grande variedade de fatos sociais que surgem"

(LAÍS VIEIRA CARDOSO, "Por uma visão crítica do Direito", artigo publicado no Jus Navigandi, https://jus.com.br/artigos/16/por-uma-visao-critica-do-direito).

O sociologismo jurídico de AUGUSTO COMTE encara o fato social tal qual os fenômenos que se comportam na natureza, obedecendo às leis de causa e efeito, de sorte que os fenômenos físicos, químicos, biológicos e sociais submetem-se à idêntica análise científica e comportam-se no mundo assim como os fenômenos naturais, e porque as leis do mundo jurídico pertencem ao mundo dos fatos, ficam igualmente sujeitas à rigorosa investigação científica. PONTES DE MIRANDA "... não vê diferença substancial entre as ciências naturais e as ciências sociais, porque todos os fenômenos sociais são também naturais, permitindo, por conseguinte, uma abordagem científica a partir de princípios comuns" (MARQUES NETO, op. cit., p. 159).

3.5. Realismo jurídico

A escola realista encerra "... um novo tipo de historicismo, porém mais desvinculado da Escola da Exegese e radicalizado na nova retórica ou nas teorias da argumentação que visavam a ‘ expressão mais real do realismo’. No realismo jurídico o Direito é aquilo que os tribunais decidem, o produto dos tribunais, fundado nos precedentes jurisprudenciais e ainda nos usos e costumes. Só existe o Direito subjetivo se assim disserem os tribunais e as relações que não estiverem sujeitas ao seu controle são excluídas do mundo jurídico, teoria que se aproxima do neopositivismo de Niklas Luhmann, que estuda a ciência de como os tribunais devem fazer para decidir. Este jurista apega-se ao procedimento da mesma forma com que Kelsen se apegava à norma" (LAÍS VIEIRA CARDOSO, art. cit.).

3.6. Culturalismo jurídico

Para Carlos Cossio, o fundamento do Direito está na conduta normatizada, e não nos elementos fato, norma, valor. A conduta humana (o eu social) é objeto cultural, "... e, nessa condição, comporta sempre um valor (ordem, segurança, justiça, paz etc.), cujas relações com a conduta concreta são estabelecidas através da norma. E é assim que ele se distingue de outros objetos culturais que, comportando igualmente uma conduta e um valor, não tem contudo na norma a indispensável ligação entre esses dois elementos. A norma, para o egologismo [ o nome da doutrina de Cossio], é antes condição que essência do Direito. Ela deve ser estudada tanto em sua estrutura formal, através da lógica jurídica, que visa a concordância do pensamento jurídico consigo mesmo – neste ponto COSSIO acata as linhas gerais da doutrina Kelseniana -, quanto em relação ao seu objeto, como um conceito referido à conduta para poder compreender essa conduta" (MARQUES NETO, ob.cit., p. 170).

Cossio imprime ao Direito uma visão existencialista e seu pensamento, muito embora seja essencialmente normativista, afasta-se do formalismo kelseniano, à medida que concebe o direito enquanto manifestação da conduta humana, valorada e regida pela norma.

O culturalismo jurídico é nicho que também comporta o tridimensionalismo do célebre e eterno MIGUEL REALE, para quem o Direito se situa no mundo da cultura e é concebido como fato, valor e norma, de tal modo que seu estudo exige que se leve em conta seus aspectos histórico-social, axiológico e normativo, os quais se acham integrados por uma dialética da implicação e da polaridade, o que significa dizer que " A norma exerce, no tridimensionalismo jurídico, o papel dinâmico de integrar o elemento fático ao elemento axiológico, sendo, por conseguinte, parte essencial da realidade jurídica. Por isso, ela é variável em função dos outros elementos da relação tridimensional: o fato e o valor" (MARQUES NETO, op. cit., p. 176).

Muito embora o tridimensionalismo de MIGUEL REALE admita que o direito se compõe de três elementos, fato, valor e norma, somente reconhece a norma como objeto da ciência jurídica, conferindo-lhe, portanto, essência normativa, sendo a norma o objeto de sua preocupação e estudo, ficando os elementos histórico-social (fato) e axiológico (valor) destinados a disciplinas específicas, que não à ciência do direito.

3.7. Normativismo

"HANS KELSEN (1881-1973) é o maior vulto do normativismo dogmático contemporâneo. A influência de seu pensamento se faz sentir em todo mundo ocidental, onde, de um modo geral, predomina em relação a outras correntes de explicação jurídica. A síntese das idéias de Kelsen reside na identificação absoluta que ele estabelece entre o Direito e a lei."

(MARQUES NETO, op. cit., p. 163).

E para chegar nessa identificação entre Direito e lei, Kelsen propõe o estudo do direito livre de toda e qualquer influência ideológica, política, econômica, ética, religiosa, insurgindo-se contra as concepções jusnaturalistas, do historicismo e do sociologismo jurídico, e na busca da depuração da ciência jurídica, elabora a Teoria pura do Direito, afastando do estudo do direito questões e problemas de ordem ética, sociológica e cultural, elementos que hão de ser objeto de outros ramos do conhecimento humano, não do estudo do direito, cujo objeto único reside no papel exclusivo de estudo da norma, entidade criada pelo Estado.

"A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo... Como teoria, quer única e exclusivamente o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Dreito"

(HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 2, ed. Martins Fontes).

Kelsen é, indiscutivelmente, inovador; ele separa com sua teoria o material jurídico do não-jurídico. Todavia, a exemplo do que acontece com a escola exegética, o pensamento kelseniano reveste-se de cunho nitidamente formalista e idealista, porquanto considera a norma posta como um fenômeno ideal, imune aos contrastes inegavelmente verificáveis no mundo social; além disso, ao conceber o Direito como fenômeno normativo, livre de qualquer ingerência valorativa, absolutamente neutro, serve para justificar e reconhecer como válido todo e qualquer tipo de ordenamento jurídico vigente. A propósito, "Fruto da época da chamada racionalização do poder, a teoria pura é o produto de um democratismo formal e vazio de conteúdo, como somente poderia ser um dogma democrático aceito sem maior emoção como a forma mais conveniente e mais racional de convivência entre ideologias democráticas e antidemocráticas" (A.L. MACHADO NETO, op. cit., p. 135). Vale dizer, o Direito como concebido por Kelsen convalida e afaga toda e qualquer forma de Estado, por mais tenebrosa e fria que seja. O certo é que o Estado, esteja ele acobertado por qualquer roupagem legal, sempre encontrará fundamento válido no Direito enquanto sistema normativo, criação, aliás, do próprio Estado, essa figura que Nietsche denominou de "o mais frio de todos os monstros frios".

Do ponto de vista de Kelsen, "... para quem o positivismo jurídico é alheio aos juízos de valor, pois a técnica jurídica só é capaz de determinar a legalidade de uma norma, ou seja, sua validade no interior de uma ordem jurídica elaborada a partir da norma fundamental, mas jamais sua justiça, tarefa que se arriscaria a criar uma confusão entre o direito positivo e o direito natural" (CHAÏM PERELMAN, Ética e Direito, p. 461, Martins Fontes).

Não é à-toa que o pensamento de Kelsen reina praticamente absoluto em nossos dias. Afinal, a norma é criatura do Estado, nas mais variadas formas de poder vigente, e é seu papel último servir e legitimar a existência do próprio criador, de modo que, como diz RORBERTO LYRA FILHO, "O positivismo [...] é uma redução do Direito à ordem estabelecida." (O que é Direito, p. 29, Brasiliense).

3.8. Tópica e retórica jurídica

Essa corrente do pensamento jurídico, embasada na teoria aristotélica de que a retórica "é a arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão disponíveis", parte do princípio de que o conhecimento do direito resulta da ação comunicativa, levando em conta o estudo dos problemas existentes no mundo real, dando relevância, portanto, ao fato concreto, e não à norma, de modo que o Direito é resultado de um procedimento no qual se verifica o embate das idéias, cujo resultado objetiva alcançar fins aceitáveis e satisfatórios, e para alcançar tais fins os seguidores dessa teoria repudiam a lógica meramente formal, incorporando elementos valorativos na concepção do Direito, cuja finalidade é atingir uma solução razoável e justa, lembrando que o justo é a síntese que resulta dessa controvérsia.

"Concebendo o direito, nem como a expressão da justiça e da razão, nem como a expressão da vontade do legislador, e sim como a expressão de um consenso político e social sobre uma solução razoável numa sociedade em rápida evolução, afirmamos que essa solução resulta, o mais das vezes, de um compromisso difícil entre valores incompatíveis e cuja coexistência importa organizar. O direito, assim concebido, só ganha forma através dos conflitos e das controvérsias em todos os níveis, e já não pode fornecer a imagem tranqüilizadora de uma ordem estável, garantida por um poder imparcial"

(CHAÏM PERELMAN, Ética e Direito, p. 463).

Para essa corrente, o direito se caracteriza como fenômeno argumentativo, cuja prática deve observar um procedimento legítimo, centrado não apenas na aplicação do texto legal - o que resultaria numa exegese pura e simples -, mas também nos princípios anteriores (devido processo legal, isonomia) e posteriores (princípio da publicidade) à lei, além dos costumes, da moral e do senso comum, de tal modo que o direito é fenômeno que resulta da conjugação e aplicação dos elementos antes mencionados. E para a solução justa, aceitável e sensata do conflito concreto, os "tópico jurídicos" são levados em consideração. "Os tópicos jurídicos referem-se aos lugares específicos de Aristóteles, os que dizem respeito a matérias particulares, opostos aos lugares-comuns, que utilizamos no discurso persuasivo em geral, tratados por Aristóteles nos Tópicos... A importância dos lugares específicos do direito, isto é, dos tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permitem afastar soluções não eqüitativas ou desarrazoadas, na medida em que estas negligenciam as considerações que os lugares permitem sintetizar e integrar em uma visão global do direito como ars aequi boni...Alguns [ os lugares específicos] afirmam princípios gerais do direito, outros constituem máximas ou adágios, formulados em latim, outros, por fim, indicam valores fundamentais que o direito protege e põe em prática." (CHAÏM PERELMAN, Lógica Jurídica, pp. 120-121, Martins Fontes).

3.9. Corrente crítico-dialética do direito

A corrente crítico-dialética concebe o direito como realidade que se renova e se reconstrói permanentemente, tendo por objeto um fenômeno complexo traduzido em fatores sociais, culturais, normativos, ideológicos, econômicos, éticos e políticos, de tal modo que não utiliza para o estudo do direito um método único, mesmo porque não privilegia objetos considerados isoladamente para a concepção do direito, como, por exemplo, encontramos na escola do pensamento normativista, que equipara o direito à norma, livre de qualquer influência externa.

O pensamento crítico-dialético é antidogmático, já que não concebe o direito como realidade que se origina ora em verdades absolutas e imutáveis; ora numa verdade puramente normativa; ora como reflexo dos fatos sociais captados tais como são no mundo real.

"A metafísica de todos esses posicionamentos consiste precisamente no fato de eles isolarem os termos da relação cognitiva, dando prioridade seja ao sujeito, seja ao objeto, e conseqüentemente desvirtuando a compreensão do processo de elaboração do conhecimento, a qual só pode ser eficaz se localizada dentro da relação que se opera entre esses termos"

(MARQUES NETO, p. 179, ob. cit.).

Para o pensamento crítico-dialético "Ciência é discurso, teoria, que se constrói em função de um objeto de conhecimento e de um método, por sua vez também construídos. E a função precípua de toda teoria científica é a de explicar, e não ditar normas e, muito menos, dogmatizar. Masessa teoria visa a uma aplicação. E a forma específica de aplicar as teorias da ciência do Direito é precisamente a norma, que constitui a parte técnica, prática, aplicada da ciência do Direito, e não o seu conteúdo, pois o conteúdo de toda ciência é a teoria. O direito é, portanto, uma ciência social como qualquer outra, com a singularidade de aplicar-se normativamente, mas não de já conter normas em suas formulações teóricas. A dialética vê na ciência do Direito, não uma simples cópia de qualquer realidade, mas um sistema construído de proposições teóricas, que, voltado para o real, o faz seu, assimilando-o, e transformando-o, e, por isso mesmo, construindo-o e retificando-o." (MARQUES NETO, p. 185, ob. cit.).

A corrente crítico-dialética inspira-se na Escola de Frankfurt, movimento integrado por filósofos, sociólogos e intelectuais de concepção em sua maioria marxista, surgido na Alemanha na década de vinte. Críticos ferozes da alienação da sociedade industrial contemporânea, dominada pela tecnologia e pelo consumo desenfreado, os pensadores da Escola de Frankfurt não concebem o Direito como instrumento de dominação, como queria Marx, mas como instrumento hábil que, numa prática consciente, engajada, criativa e transformadora, tem compromisso com a realização da justiça e da inclusão social, e, bem assim, o papel preponderante de contribuir para o surgimento de uma nova sociedade iluminada, livre da "eclipse da razão".


4. Conclusão

As diversas concepções filosóficas sobre a compreensão do conhecimento humano e as correntes do pensamento jurídico daí emergentes, cada uma a seu modo, impregnadas de influências e contingências específicas, trazem para o plano do conhecimento a visão do que é o Direito, e todas elas deram - e dão - contribuições inequívocas para a evolução do estudo e da percepção dos fenômenos jurídicos.


5. Bibliografia

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Editora Perspectiva.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 121. 10ª edição, Ed. UNB).

CARDOSO, Laís Vieira. Por uma visão crítica do Direito, artigo publicado no Jus Navigandi, <https://jus.com.br/artigos/16/por-uma-visao-critica-do-direito>.

CHALITA, Gabriel. Vivendo a Filosofia. Atual Editora

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática

FUSTEL DE COULANGE. A cidade antiga. Editora Hemus.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Editora Martins Fontes

LYRA FILHO, ROBERTO. O que é Direito. Editora Brasiliense.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito, Conceito, Objeto, Método, 2ª edição, Renovar.

MACHADO NETO, Antônio Luís. Teoria da Ciência Jurídica. Editora Saraiva, 1975.

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Editora Martins Fontes.

________________ Ética e Direito. Editora Martins Fontes.

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Sobre o autor
José Ademir Campos Borges

promotor de Justiça em Barretos (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, José Ademir Campos. O processo do conhecimento humano e as correntes do pensamento jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 689, 21 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6751. Acesso em: 25 nov. 2024.

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