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Direito pré-moderno:

um contributo histórico e uma crítica presente

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Resumo: A partir de um referencial histórico-crítico, Walter Benjamim, propõe-se uma abordagem inovadora sobre o Direito pré-moderno na Europa com o intuito de desvendar os enlaces jurídicos que o Direito no Brasil é herdeiro. Dentro dessa perspectiva atenta-se a idéia de autoridade, resquício teológico no Direito, e a concretização da idéia de dogma. Por fim, como forma de demonstrar que o conhecimento histórico auxilia a entender o presente, aborda-se o tema do dogmatismo que, apesar de sofrer inúmeras críticas durante as últimas décadas, continua como pilar de compreensão do Direito, e em especial do Direito Privado.

Palavras-Chave: História do Direito Privado – Pré-modernidade – Escola de Bolonha – Dogma – Dogmatismo – Crítica histórica.


Sumário: 1. O resgate das origens históricas e os ecos de Walter Benjamim; 2. Sociedade medieval e a pré-modernidade; 3. A construção jurídico-dogmática dos corpos na pré-modernidade; 4. A dogmática da Escola de Bolonha (Glosadores); 5. Embate ao Dogma, ao Dogmatismo e à Dogmática; 6. Notas; 7. Referências Bibliográficas.


1. O resgate das origens históricas e os ecos de Walter Benjamim

            A intenção de se fazer História, e no caso, História do Direito, não prescinde de um referencial que lhe proporcione um substrato teórico adequado. Walter Benjamin configura-se assim, pela inauguração de uma peculiar forma de temporalidade, como o referencial teórico ideal ao presente trabalho.

            Pertencente à primeira fase da Escola de Frankfurt [01], Walter Benjamin, "filósofo de origem judaica, de pensamento extremamente original, dedicou-se, sobretudo, a questões de linguagem e cultura, notabilizando-se seus estudos sobre o drama barroco alemão, sobre a teoria da tradução e a filosofia da História". [02] Além disso, sua obra figura-se excepcionalmente inovadora por seu particular modo de expressão, veiculado por meio de ensaios e aforismas.

            Crítico da modernidade – sobretudo no tocante à cultura – desenvolve um conceito de moderno que, segundo Anita Helena Schlesener [03], pode ser lido como se opondo à concepção weberiana. Se, para Weber, a modernidade é produto de processos de racionalização que têm raízes na reforma protestante e se estendem à vida social e cultural, nesta expressado pelo desencantamento do mundo, em que o avanço da dominação da natureza com a aplicação da ciência e da técnica provocam uma superação do mito; para Benjamin, a modernidade, enquanto organização estrutural da sociedade, possui determinadas características que demonstram que o que ocorreu não foi um desencantamento do mundo, mas a reinstauração do mito em novas formas. "O mito é recriado nas relações sociais modernas nas noções de progresso e cultura, sob as quais a modernidade esconde sua natureza de exploração, de fetiche e de repetição. A fé na razão, a confiança ilimitada na ciência, o poder descomunal do Estado, a moralidade secular, a História linear e homogênea são outras formas de expressão da força mítica". [04]

            Benjamin pretende, portanto, questionar a racionalidade moderna e redefini-la, de modo que a razão possa cumprir as promessas de emancipação que se frustraram no decorrer da História. A Filosofia da História sobre a qual Benjamin se debruçou reside, aliás, na crítica a História pré-determinada – a História que tem uma empatia com os vencedores/dominadores, como ele chama na Tese nº 7 "sobre o conceito de História" [05] -, que tenta obscurecer os fracassos e gera a passividade: "nessa perspectiva, não é o passado que está perdido, mas o futuro, porque nos recusamos a construí-lo". [06] Segundo SCHLESENER [07], a crítica ao progresso e à cultura como mecanismos de dominação permeiam o panorama da modernidade e se traduzem numa nova interpretação da História, fundada na estrutura da experiência e na tentativa de explicitar a nova sensibilidade moderna. Essa valorização da experiência é marcante em Benjamin que considera a pobreza da experiência como expressão da barbárie.

            A modernidade supervaloriza o novo – moderno como sinônimo de novidade e progresso – conseqüentemente subestimando o passado. Marx e Engels observaram: "Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo que é sagrado é profanado". [08] É por isso que a História é trazida dessa forma linear, como se fosse uma ascendente, como se houvesse uma evolução de racionalidade, e a experiência e a tradição são excluídas. Porém, para Benjamin:

            Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele [o anjo da História] vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e dispersa a seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. [09]

            Portanto, o que a História linear entende como progresso, Benjamin entende como catástrofe, como barbárie. Esse se dedica, então, a tarefa de inaugurar uma nova forma de interpretação, corolária de uma nova forma de temporalidade [10], que é o que aqui se privilegiará, evitando o estudo linear da História que, "acaba impondo uma lógica ao passado que em verdade lhe é estranha, ao mesmo tempo em que lança sobre a época pretérita as questões, preocupações, valorações e ansiedades que pertencem ao presente". [11]

            Benjamin considera necessário buscar na História, no passado (e na experiência do passado), as forças para atuar no presente e no futuro. A forma de olhar para o passado é diversa, pois escapa a concepção linear de homogeneidade e coerência – passado e presente são rupturas. Esse é o teor da crítica (quase poética) que ele desfere ao historicismo: "O historiador consciente disso, renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito de presente como um ‘agora’ no qual se infiltraram estilhaços do messiânico". [12]

            Nessa nova noção de temporalidade inaugurada por Benjamin, o passado é interpelado, para ser imobilizado. "O passado, para Benjamin, só pode se mostrar ao presente num momento em que for visado por ele. Explicando melhor: só num determinado momento em que o presente vivenciar o que Benjamin denomina de ‘instante de perigo’, no momento em que houver uma exigência presente de rememoração, uma necessidade de redenção do passado, é que este passado pode se revelar". [13] É isso o que pretende dizer Benjamin quando coloca: "A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (...) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de perigo". [14]

            Assim, parafraseando Ricardo Marcelo FONSECA [15], na sua esclarecedora leitura de Benjamin, para este nada está perdido para a História. O passado não pode ser considerado de forma linear, porque ele "perpassa veloz", somente se apresentando ao presente quando por este visado, no momento em que o presente invoca sua redenção: no instante de perigo. Trata-se de encontrar a presença do passado no presente, sendo que a conexão entre eles não serve a recuperar o passado, mas a transformar o presente.

            Desta feita, no tocante à História do Direito, não se pretende fazer um resgate de formas jurídicas arcaicas – pois esta é a postura do historicismo jurídico, que impõe uma continuidade arbitrária/estranha (!) às instituições –, mas, nas palavras de Benjamin, "escovar a História a contrapelo" [16], interpelando o passado jurídico como ele se mostra ao presente no instante de perigo.

            Mas qual seria esse instante de perigo para o Direito? Seria a crise das instituições? Da família? Da propriedade? Seria a crise nos mecanismos de representação democráticos? Ou a crise da ordem legal vigente?

            A resposta, entretanto, não se encontra necessariamente na idéia de crise, afinal o modelo jurídico atual expressa (ainda que arbitrariamente) uma concretude social. Nesse sentido, o que se observa não é uma crise, mas um contra-senso entre a realidade e as conquistas civilizatórias. O anjo da História de Benjamim só enxerga pilhas e pilhas de entulhos, de morte, de barbárie. As teorias de Direito modernas, o positivismo e o jusnaturalismo, autorizam a proteção ao sistema posto – mais do que isso – elas legitimam a opressão. Legitimam através de verdades cristalizadas: dogmas.

            Essas "verdades" cristalizadas que engessam o universo jurídico num campo de abstrações (metafísicas) e não o permitem dialogar com a realidade social, fazendo-o renunciar ao seu papel de transformação social. Segundo Lênio L. STRECK: "a dogmática jurídica coloca a disposição do operador um prêt-à-porter significativo contendo uma resposta pronta e rápida" [17], porém, acrescente-se tantas vezes inadequada, pois, prossegue, "os juristas só conseguem ‘pensar’ o problema a partir da ótica forjada no modo liberal-individualista-normativista de produção do Direito". [18]

            Aliás, o modo liberal-individualista-normativista é o modo de pensar da modernidade. É nesse instante de perigo, nesse "agora", em que o passado se apresenta num "relampejar fugaz", que se invoca o pré-moderno – a ruptura, a descontinuidade, a transição.

            Por isso, não se pretende resgatar o passado pré-moderno, o principal viés da análise recai, não na pré-modernidade em si, mas na noção de dogma que nela adquiriu autoridade, aprisionando até hoje o papel do Direito. O dogma – e a astúcia da razão dogmática [19]– desloca o Direito do mundo da vida para o mundo das instituições, das verdades desprovidas de conteúdo, das abstrações arbitrárias. É esse o "perigo" do qual o presente pretende se redimir – buscar o passado do dogma e proporcionar a sua transformação no presente. Se a modernidade, como Benjamin asseverava, cria mitos – o dogma, como mito, precisa ser desmitificado.


2. Sociedade medieval e a pré-modernidade

            Partindo do princípio, portanto, de que a História não é uma sucessão de continuidades, mas, pelo contrário, o lugar privilegiado das rupturas, para compreender a modernidade, da qual somos herdeiros (ou membros), mister que seja compreendido o período que a precedeu, a pré-modernidade. Trata-se de um período que, segundo Ricardo Marcelo Fonseca, marca "a passagem de uma sociedade holística para uma sociedade atomística ou, se se preferir, a passagem de uma sociedade de ordens para uma sociedade de indivíduos". [20]

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            Antonio Manuel Hespanha [21], constatando que, desde o séc. XVIII, o individualismo propusera uma imagem centrada no indivíduo, sendo que toda a teoria social baseara-se numa análise das características do ser humano individual, como toda política social se orientara para a satisfação dos interesses e dos fins dos indivíduos [22], observa que o coletivo não adquiria natureza diferente da soma das realidades individuais – e, por isso, não apresentava finalidades próprias. O fim da sociedade não era senão a soma dos fins dos seus membros e a utilidade geral não era senão a que resultava da soma das utilidades de cada indivíduo.

            O pensamento social medieval, ao contrário, era dominado pela idéia de "corpo", ou seja, de organização supra-individual, dotada de um fim próprio, e auto-organizada ou auto-regida em função desse fim; assim como o pensamento social da escolástica [23] medieval é dominado pela idéia da existência de uma ordem universal – cosmos –, abrangendo o homem e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objetivo último, que o pensamento cristão identificava com o próprio criador.

            No entanto, essa unidade dos objetivos da criação não exigia que as funções de cada uma das partes do todo na consecução desses objetivos fossem idênticas – cada parte cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico: "cada ‘ordem’ da criação – e, dentro de cada uma delas, cada espécie, e, dentro da espécie humana, cada grupo ou corpo social – teria, nesse destino, um objetivo próprio e irredutível a realizar". [24]A sociedade seria, assim, como que um organismo, cujo bem estar em geral depende do desempenho autônomo – mas harmônico ou coerente – das funções dos vários órgãos ou membros.

            Prossegue HESPANHA [25], asseverando que esta concepção "antropomórfica" tinha diversas conseqüências no plano da teoria acerca do ser da sociedade e da organização política ideal.

            A idéia de que a harmonia da sociedade não requer a igualdade dos seus membros ou a uniformidade das suas funções: tal como nos organismos vivos, o equilíbrio resulta, pelo contrário, da não intermutabilidade das partes e o respeito pelos seus função e estatuto específicos; a natureza – e também a natureza da sociedade – aparece, assim, como uma "ordem de coisas díspares".

            Indispensabilidade de todos os órgãos da sociedade e, logo, impossibilidade de uma administração absolutamente centralizada. A administração social deveria, portanto, ser mediata, deveria repousar na autonomia (iurisdictio) dos corpos sociais e respeitar a sua articulação natural – entre a cabeça e a mão, deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos, devem existir instâncias intermédias.

            Cada corpo social, como cada órgão corporal, tem a sua própria função, de modo que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que possa desempenhar essa função. A essa idéia de autonomia funcional dos corpos anda ligada a idéia de auto-regulamentação, que o pensamento jurídico medieval designou com a expressão iurisdictio [26]e na qual englobou o poder de fazer leis estatutos, de julgar os conflitos internos e de emitir comandos. Essa função social leva a que a caracterização social dos indivíduos (como pai, vizinho, clérigo) não seja um simples nome, mas uma qualidade pertencente à própria natureza individual. Com a conseqüência de que, então, os elementos em que a sociedade se analisa não são os indivíduos, mas os grupos de indivíduos portadores da mesma função e titulares de um mesmo estatuto. Estas funções são definidas pela tradição – isto leva a que o estatuto social decorra não tanto da situação atual das pessoas, mas, sobretudo, de uma "posse de estado", estabelecida pela tradição familiar [27].

            A função da cabeça não deve ser a de destruir a autonomia de cada corpo social inferior, mas a de manter a harmonia entre todos eles, atribuindo a cada um o lugar que lhe é próprio, garantindo a cada qual o seu "foro" ou "direito"; numa palavra, realizando a justiça; e assim é que a realização da justiça se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política [28].

            Se um dos traços da sociedade pré-moderna é essa irredutibilidade dos corpos acima caracterizada, o outro dos seus traços é o anti-individualismo. Não se deve partir da consideração do indivíduo isolado, mas antes dos grupos em que ele natural e inevitavelmente se integra. A teoria política e o Direito não reconheciam os indivíduos como fonte autônoma de direitos e obrigações, mas apenas como produtores dos direitos e deveres próprios do corpo ou corpos em que estão integrados, ao contrário do Direito moderno, que não concebe jamais um direito sem que este esteja vinculado a um sujeito individualmente considerado [29]. Para HESPANHA [30], de tudo isso resulta uma concepção social que:

            - valoriza os fenômenos grupais ou coletivos;

            - considera o poder como algo originariamente repartido por múltiplos corpos sociais, cada qual dotado de autonomia política e jurídica exigida pelo desempenho de sua função social;

            - reserva ao poder político global apenas a função de garantir essa autonomia e especificidade do estatuto social de cada corpo e assegurando, desta forma a paz;

            - vê o indivíduo como parte de grupos e os seus direitos e deveres com reflexos do estatuto ("foro") dos grupos em que se integra;

            - recusa a distinção, própria do pensamento moderno, entre sociedade civil e Estado. (A sociedade civil – estudada pela política – opunha-se à sociedade doméstica – estudada pela economia; é nesse sentido que muitos autores se recusam a falar de Estado para a organização política do antigo regime)


3. A construção jurídico-dogmática dos corpos na pré-modernidade

            Ainda amparando-se na obra de HESPANHA [31], constata-se que à erupção dos corpos no plano social, político e ideológico correspondeu também o seu reconhecimento pelo Direito – ou seja, a necessidade de um aparato dogmático para "legitimar" a sociedade descrita alhures. Como pondera o autor, embora a idéia de personalidade jurídica "coletiva", ao lado da personalidade jurídica "singular", só tenha sido completamente desenvolvida pela pandectística alemã do séc. XIX (Savigny), o reconhecimento pelo Direito, da existência de sujeitos jurídicos coletivos – capazes de direitos e obrigações – surge no Direito medieval. Com ela o Direito pode, pela primeira vez, lidar com as formas grupais de organização social, justificando sua autonomia política e a sua capacidade de auto-organização.

            Para a corrente dominante nessa época (Bártolo, Baldo), o direito de constituir associações decorria não apenas da lei positiva ou da autorização do soberano, mas mesmo do Direito natural, apenas com a restrição de que o fim visado pela associação fosse justo ou conforme o bem comum, estando proibidas, por exemplo, associações destinadas a criar ou manter monopólios.

            A organização interna e a representação externa dos corpos constituem também pontos relevantes da doutrina jurídica medieval. Baseados em textos do Corpus iuris, os juristas medievais defendem a opinião de que os corpos são incapazes de exercer por si os seus direitos, carecendo, portanto, de alguém que atue na defesa de seus interesses no plano externo. É esta a função do procurador a quem compete gerir, no plano externo, os interesses do corpo e confirmar as suas deliberações. Isto diminui substancialmente, se não o poder de auto-regulamentação dos corpos, pelo menos o controle da aplicação das decisões internas.

            No plano da organização interna, os corpos contavam, de um modo geral, com uma estrutura triádica de órgãos de governo: uma assembléia geral de seus membros, um conselho deliberativo restrito e um órgão (individual) executivo e de deliberação. Havia, assim, uma legitimação doutrinária que ocasionava algumas distorções ao princípio da horizontalidade na participação política. A participação dos membros do corpo no seu governo obedecia ao princípio de que o maior poder e responsabilidade na gestão corporativa deveriam caber àqueles que mais contribuíssem para o desempenho das funções do corpo.

            Assim, retomando a noção de que à erupção, no plano da teoria filosófico-social, destas concepções teve correspondências no mundo da dogmática, pode-se, com HESPANHA [32], descrever algumas delas: a construção dogmática da personalidade coletiva, como dito; o reconhecimento jurídico do direito de associação que permitiu dar livre curso às tendências para a constituição de novos agregados políticos; e o aberto reconhecimento, por parte do Direito, do caráter originário ou natural dos poderes políticos dos corpos; apuramento do conceito de iurisdictio, que leva à distinção de vários níveis de poder, permitindo conceptualizar o complexo de relações políticas de um sistema de poder essencialmente pluralista.

            A situação, no entanto, é completamente diversa da encontrada na modernidade, pois, quando os temas acerca da teoria dos corpos sociais aparecem na dogmática jurídica moderna, os pontos de vista dominantes não são os da teoria corporativa, mas os da teoria permissionista, para a qual o direito de associação sujeita-se à autorização real, a jurisdição é considerado um atributo real, pelo que toda a jurisdição exercida pelos corpos, pelos senhores ou pelos magistrados, representa uma mera delegação da jurisdição do soberano.

            Contudo, conforme alerta HESPANHA [33], se no plano da dogmática não havia grandes aberturas para o reconhecimento teórico de uma capacidade originária de auto-regulamentação dos corpos inferiores, o certo é que a predominância da teoria que concebia a jurisdição dos corpos inferiores como um poder apenas delegado não impediu, na prática, a dispersão do poder por uma constelação, órgãos e magistraturas dotados de poderes que o Direito acabava por reconhecer como inatacáveis pelo poder político central. Na verdade, a jurisprudência julgava freqüentemente como contratuais ou remuneratórias as doações régias de jurisdição, tornando-as, deste modo, inatacáveis; e assim se iam consolidando nas cidades, nas corporações, nos senhorios e nos oficiais, jurisdições que o soberano não pode violar sob pena de "desaforo" ou de "usurpação de jurisdição". A autonomia prática, portanto, radica não na força da teoria corporativa, mas na construção dogmática do privilégio e da doação régia e da sua revogabilidade. Nesse sentido, a contribuição da dogmática medieval foi de fundamental importância na construção da racionalidade jurídica de seu tempo, adaptada a essa realidade social.

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Sobre os autores
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Thais Sampaio da Silva

bacharel em Direito pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan ; SILVA, Thais Sampaio. Direito pré-moderno:: um contributo histórico e uma crítica presente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 939, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7902. Acesso em: 19 mar. 2024.

Mais informações

Trabalho realizado no Programa de Monitoria Didática da disciplina História do Direito da UFPR, sob a coordenação do professor Dr. Ricardo Marcelo Fonseca.

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