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Ação rescisória:

principais aspectos e questões controvertidas

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26/07/2006 às 00:00
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Pela ação rescisória, pede-se a desconstituição de sentença que preenche os requisitos de existência do ato jurídico processual, mas não é válida nos termos do art. 485 do CPC.

Sumário:I. Introdução – II. Conceito – III. Pressupostos – IV. Cabimento – V. Características e Requisitos – VI. Conclusão – VII. Bibliografia


I.INTRODUÇÃO

            O interesse pelo desenvolvimento do presente tema decorre da ampla reflexão e do extenso debate, em sede de Doutrina e Jurisprudência, em torno dos mais diversos aspectos que tocam à ação rescisória. Nesta oportunidade faremos breve análise sobre esses principais aspectos pertinentes à rescisória, análise essa fiel ao texto legal e à interpretação dominante que lhe é dada por Doutrina e Jurisprudência.

            Em especial no que tange às hipóteses de cabimento previstas no art. 485 do Código de Processo Civil, adotamos o entendimento da estrita legalidade. Ressalte-se que não se desconhece e se respeita todo o esforço doutrinário no sentido da "relativização da coisa julgada". Contudo, pelo rigor da Lei, entendemos que não se pode deixar de destacar que os fundamentos de rescindibilidade previstos no art. 485 do CPC são taxativos, sendo ilegal e imprudente cogitar-se da analogia para se criar novas hipóteses de ataque à coisa julgada.

            Pede-se venia para se fazer breve observação, para que não se perca o foco deste breve estudo, no sentido de que entendemos que a análise da rescindibilidade da sentença sob a ótica da estrutura do raciocínio jurídico de PONTES DE MIRANDA [01] (planos da existência, validade e eficácia) permite que se consiga atingir os resultados pretendidos com a "relativização da coisa julgada" sem que, entretanto, seja necessário interpretar analogicamente o art. 485 do CPC, o que é perigoso, tendo em vista a segurança jurídica que se busca obter com o instituto da coisa julgada, e contra legem, pois o Ordenamento não permite interpretação analógica quando existe expressa previsão legal, como é cediço.

            Por outras palavras, entendemos que os casos em que se realiza interpretação analógica do art. 485 do CPC poderiam ser vistos, sob a ótica pontiana, como casos de inexistência da sentença, e, portanto, casos em que se poderia fazer uso da querela nullitatis, ao invés da ação rescisória (bastaria alegar a inexistência da decisão judicial por simples petição ou por ação, pelo procedimento ordinário).

            Veja-se, por exemplo, os tão alardeados casos em que se pretende obter novo julgado por conta da superveniência da invenção do exame de DNA. Entendemos, nesses casos, que falta ao julgado que reconhece a paternidade de quem, sem sombras de dúvidas, não é pai, elemento nuclear de formação da decisão judicial, que é a possibilidade material de verificação de seu conteúdo dispositivo, sendo o ato processual, destarte, inexistente. A esse respeito, preleciona ROQUE KOMATSU [02] que "o ato é inexistente quando lhe falta aquele mínimo de elementos constitutivos, sem o quê o ato não configura a sua identidade ou a sua fisionomia particular". Conforme ensina o Prof. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO [03]:

            "a existência de um ato jurídico depende invariavelmente da presença de seus elementos essenciais (os essentiala negotii, do direito privado), sem os quais ele não é o que talvez aparente ser. Como todo ato jurídico, o processual só existirá juridicamente quando espelhar em concreto a situação típica resultante da aplicação das normas relativas a ele".

            Falta, portanto, requisito de existência do julgado, pois declara como existente algo que sabidamente é inexistente - é julgado que não pode ser considerado dentro do mundo jurídico, por prever resultado materialmente impossível, tal como uma sentença que, v.g., eventualmente, determinasse a entrega de um bem por alguém que não está na sua posse, ou, cumprisse obrigação personalíssima que não tem condições físicas ou intelectuais para cumprir, ou, ainda, que realizasse obra inacessível, segundo o estado da ciência e da técnica [04].

            Esse tipo de situação quer nos parecer que dispensa o ajuizamento de ação rescisória e todo o esforço interpretativo que se faz no sentido da "relativização da coisa julgada" e da interpretação analógica do art. 485 do CPC.

            Como já se disse, bastaria a querela nullitatis para se declarar a inexistência do decisum – a argüição e reconhecimento da inexistência do julgado não dependem de procedimento especial para tal fim e podem sê-lo incidentalmente, de ofício e em qualquer grau de jurisdição; conforme classicamente se dizia, basta a imploratio officii iudicis.

            Nesse sentido, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR destaca paradigmáticos julgados do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os quais, a respeito da sentença inexistente, asseveram que "há imprescritibilidade da ação de declaração de nulidade absoluta e, a fortiori, da existência de atos jurídicos" e que "a sentença inexistente, por lhe faltar o pressuposto essencial, como o dispositivo, independe de ação rescisória para ser anulada (Apel. 12.033, ac. De 24.06.80, rel. Des. Olavo Tostes Filho, in RT, 550/186)" [05].

            Apresentados e justificados brevemente o interesse e a forma de desenvolvimento do tema, bem como o entendimento pela estrita legalidade quanto às hipóteses de cabimento, passaremos a tratar dos principais aspectos pertinentes à ação rescisória.


II.CONCEITO

            Inicialmente, observe-se que a sentença maculada por vícios pertinentes ao âmbito da validade pode ser atacada por dois remédios processuais distintos: recursos e ação rescisória. Quando a "sentença é nula, por uma das razões qualificadas em Lei, concede-se ao interessado ação para pleitear a declaração de nulidade" [06]. Trata-se da ação rescisória, que não se confunde com o recurso justamente por atacar uma decisão já sob o efeito da coisa julgada. Instaura-se, pela ação rescisória, outra relação jurídica processual [07].

            Vale conferir a definição de BARBOSA MOREIRA: "chama-se rescisória à ação por meio da qual se pede a desconstituição de sentença trânsita em julgado, com eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada" [08].

            Não obstante, salvo o caso de sentença inexistente, a sentença rescindível, mesmo nula, produz os efeitos da coisa julgada e apresenta-se exeqüível enquanto não revogada pelo remédio próprio da ação rescisória. Enquanto não rescindido, o julgado prevalece [09]. Por esse motivo, entende BARBOSA MOREIRA que a sentença rescindível não é nula, mas sim anulável, eis que "uma invalidade que só opera depois de judicialmente decretada classificar-se-á, com melhor técnica, como ‘anulabilidade. Rescindir, como anular, é desconstituir" [10].


III.PRESSUPOSTOS

            Além dos pressupostos comuns a qualquer ação, a admissibilidade da rescisória pressupõe (i) uma sentença de mérito e (ii) um dos motivos previstos taxativamente no Código de Processo Civil (art. 485 do CPC). A ação rescisória só é viável nos casos de sentença de mérito (art. 269 do CPC), entendendo-se essa como qualquer ato com conteúdo decisório de mérito, ainda que sob a forma de decisão interlocutória [11].

            Exige-se, ainda, o requisito do trânsito em julgado da decisão, mas não o esgotamento prévio de todos os recursos interponíveis, conforme entendimento consolidado na Súmula 514 do E. Supremo Tribunal Federal: "admite-se ação rescisória contra sentença transitada em julgado, ainda que contra ela não se tenham esgotados todos os recursos". Por outro lado, pode acontecer a necessidade de se recorrer à ação rescisória, quando a decisão, embora não sendo de mérito, importou tornar preclusa a questão de mérito decidida no julgamento precedente [12].

            Destaca BARBOSA MOREIRA [13]que não importa a forma, mas a essência da decisão. Se o conteúdo decisório é de mérito, a decisão desafia a rescisória, mesmo que formalmente tenha ocorrido erro de qualificação da decisão:

            "Para a aferição da rescindibilidade é irrelevante o eventual erro de qualificação cometido pelo órgão que decidiu. O que se tem de levar em conta é a verdadeira natureza da decisão. Assim, v.g., nada importa que o juiz haja dito julgar o autor ‘carecedor de ação’, quando na realidade estava a declarar improcedente o pedido. Corretamente interpretada a sentença, evidencia-se o cabimento da ação rescisória".

            Frise-se, outrossim, diante da relevância da questão, que, como ensina ANTONIO CARLOS MARCATO [14], "o rol do art. 485 é taxativo. Não comporta interpretação ampliativa ou analógica. Esse entendimento, tranqüilo em doutrina e jurisprudência, afina-se à proteção constitucional da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI)". Além disso:

            "O art. 485 do CPC cuida das hipóteses de cabimento da ação rescisória. São os pressupostos específicos do cabimento desta ação que podem, consoante a circunstância, ser cumulados numa mesma ação (CPC, art. 292), isto é: nada impede que seja ajuizada uma ação rescisória pretendendo rescindir decisão transitada em julgado porque proferida por juiz absolutamente incompetente (CPC, art. 485, II) e porque violou expresso dispositivo de lei (CPC, art. 485, V). Não aceito um dos fundamentos do ajuizamento da ação rescisória passa-se à análise do outro e assim sucessivamente. Também não existe qualquer óbice na propositura sucessiva de ações rescisórias. Basta que causa de pedir diversa fundamente a nova ação e que o prazo decadencial de dois anos do art. 495 do CPC seja observado."

            Ajuizada com fulcro em tais hipóteses taxativas, a rescisória será julgada em três etapas: primeiro, examina-se a admissibilidade da ação (questão preliminar); depois, aprecia-se o mérito da causa, rescindindo ou não a sentença impugnada (judicium rescindens); e, finalmente, realiza-se novo julgamento da matéria que fôra objeto da sentença rescindida (judicium rescisorium). Eventualmente, conforme será melhor esclarecido adiante, não se passará ao juízo rescisório, bastando que se faça o juízo rescindente.


IV.CABIMENTO

            IV.AArt. 485, I, CPC

            A sentença será rescindível quando prolatada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz (art. 485, inc. I, CPC). Conforme bem pondera BARBOSA MOREIRA [15], "parece-nos que a interpretação do inciso ora comentado deve ater-se aos conceitos penalísticos de prevaricação, concussão e corrupção (passiva)".

            Destarte, prevaricação consiste em "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" (art. 319 do Código Penal). Concussão vem a ser a exigência, "para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela", de vantagem indevida (art. 316 do Código Penal). Corrupção (passiva) é definida como "solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem" (art. 317 do Código Penal).

            Para que a rescisória seja favoravelmente acolhida não é necessário que o juiz tenha sido previamente condenado no juízo criminal. Permite-se que a prova do vício seja feita no curso da própria rescisória [16]. Se procedente a rescisória nesses casos, o Tribunal deverá anular todo o processo a partir da instrução [17].

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            IV.BArt. 485, II, CPC

            É cabível a rescisória nos casos de impedimento ou incompetência absoluta por juiz (art. 485, inc. II, do CPC).

            O impedimento proíbe o juiz de atuar no processo e invalida os seus atos, ainda que não haja oposição ou recusa da parte, na medida em que a imparcialidade do juiz é condição essencial para o exercício da jurisdição.

            A suspeição, por seu turno, obsta à atuação do juiz apenas quando alegada pelos interessados ou acusada pelo julgador ex officio [18]. Só o impedimento, e não a suspeição, torna rescindível a sentença. Se a alegação é de impedimento de membro do Tribunal, que antes julgou a causa originária e agora julga a rescisória, a procedência do pedido permite que se prossiga no novo julgamento, fazendo-se juízo rescisório, desde que o órgão seja competente e seus integrantes não sejam eles próprios impedidos.

            Por outro lado, se a alegação é de impedimento do julgador de órgão singular, a procedência do pedido importará em cassação da decisão e remessa ao substituto legal. De se ressaltar, contudo, que o Tribunal poderá partir para o juízo rescisório e proferir novo julgamento, desde que não haja impedimento e a causa esteja madura para julgamento, conforme preleciona FLÁVIO LUIZ YARSHELL [19]:

            "sendo o tribunal (que julga a ação rescisória) competente para o novo julgamento, não havendo, obviamente, causas de impedimento ou suspeição dentre seus julgadores, sendo a matéria controvertida exclusivamente de direito e havendo elementos suficientes para tanto, poder-se-ia supor que o tribunal prosseguisse no julgamento, considerando a ratio do art. 515, §3º, do CPC".

            Em matéria de rescisão, somente a sentença proferida por juiz absolutamente incompetente é que dá lugar à ação do art. 485 do CPC [20]. Contudo, interessante a ressalva de ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS [21] no sentido de que, se em razão da suspeição se caracterizar a prevaricação, então, poderá haver fundamento para a rescisória, com base no inciso I do art. 485 do CPC.

            A sentença proferida por juiz absolutamente incompetente, vale frisar, é eivada de vício pertinente ao âmbito da validade do ato; trata-se, portanto, de causa de invalidade do ato e que impõe o ajuizamento da ação rescisória. Não se trata, assim, de discussão quanto à inexistência do ato, o que quer dizer que comporta convalidação no caso da não propositura da rescisória no prazo legal, conclusão essa que se ampara na letra do art. 485 do CPC. Ao julgar a rescisória e reconhecer a incompetência do magistrado, deve-se remeter os autos ao juiz competente, invalidando-se apenas os atos decisórios.

            IV.CArt. 485, III, CPC

            A violação do dever de lealdade e boa-fé, por dolo da parte vencedora, também enseja o ajuizamento de rescisória (art. 485, inc. III, do CPC).

            Para êxito da rescisória, deve-se demonstrar o nexo de causalidade entre o dolo e o resultado da sentença. Não se deve ver dolo na simples omissão de prova vantajosa à parte contrária, nem tampouco no silêncio sobre circunstância que favoreça ao adversário. Para verificação da situação legal, o vencedor deverá ter adotado procedimento concreto para intencionalmente obstar a produção de prova útil ao vencido [22]. Reconhecida essa circunstância, partilhamos do entendimento de que o julgamento da rescisória se esgotaria no juízo rescindente, não cabendo ao Tribunal proferir novo julgamento – no mais das vezes, quer nos parecer que o curso do processo deverá ser retomado perante o juízo de origem para que se realize a fase instrutória, antes viciada [23].

            Cabe a ação rescisória, ainda, em casos de colusão para fraudar a lei (art. 485, inc. III, do CPC). Com efeito, cabe ao juiz impedir que as partes utilizem o processo para, maliciosamente, obterem resultado contrário à ordem jurídica. Nem sempre, porém, o juiz tem meios para impedir que os fraudadores atinjam o fim pretendido. Os prejudicados, após o trânsito em julgado, poderão rescindi-la de acordo com o art. 485, inc. III, do CPC. A colusão pode resultar da conjugação da conduta ativa e da omissão de uma das partes, como em casos de revelia ou não oposição de embargos do devedor. O reconhecimento da colusão não nos parece que deva levar a um julgamento pelo Tribunal, na medida em que é justamente isso que se pretendeu evitar com o ajuizamento de rescisória – que julgamento algum fosse proferido em processo manejado ilicitamente.

            IV.DArt. 485, IV, CPC

            A ofensa à coisa julgada também enseja a rescisória (art. 485, inc. IV, do CPC), eis que, após o trânsito em julgado, cria-se impossibilidade de se voltar a decidir a questão que foi objeto da sentença. Qualquer nova decisão, entre as mesmas partes, violará a intangibilidade da coisa julgada, sendo que a sentença, assim obtida, ainda que confirme a anterior, será rescindível, dado o impedimento em que se achava o juiz de proferir nova decisão.

            Ensina BARBOSA MOREIRA [24] a esse respeito que "haverá ofensa à coisa julgada quer na hipótese de o novo pronunciamento ser conforme ao primeiro, quer na de ser desconforme: o vínculo não significa que o juiz esteja obrigado a rejulgar a matéria em igual sentido, mas sim que ele está impedido de rejulgá-la". Havendo conflito entre duas coisas julgadas, prevalecerá a que se formou por último, enquanto não se der sua rescisão para restabelecer a primeira [25]. O acolhimento do pedido não deve, por imperativo lógico, ensejar a prolação de novo julgado, sob pena desse último também violar a coisa julgada, uma vez que se pretendeu pela rescisória justamente retirar do mundo jurídico um julgado para fazer prevalecer outro que já existe.

            IV.EArt. 485, V, CPC

            Sentença proferida contra literal disposição de Lei desafia ação rescisória (art. 485, inc. V, do CPC). Sentença proferida nessas condições, conforme preleciona AMARAL SANTOS, "não é aquela que apenas ofende letra escrita de um diploma legal, é aquela que ofende flagrantemente a lei, tanto quando a decisão é repulsiva à Lei (error in judicando), como quando proferida com absoluto menosprezo ao modo e forma estabelecidos em Lei para a sua prolação (error in procedendo)" [26]. Não se cogita de justiça ou injustiça da interpretação da Lei, conforme assentado na Súmula n.º 343 do Supremo Tribunal Federal: "não cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais".

            Ensina FLÁVIO LUIZ YARSHELL que "o que a lei exige para a desconsideração é que a decisão seja de mérito, e não que o dispositivo legal violado seja de direito material. Fundamentos de ordem processual também justificam a propositura de ação rescisória, desde que, pela cognição empreendida, a decisão seja apta a projetar efeitos para fora do processo, isto é, para o plano substancial" [27].

            No que diz respeito ao error in procedendo, o vício alegado pode residir na própria sentença ou ser anterior a ela, tendo ocorrido no curso do processo. Entendemos que, nesse último caso, o vício deve ser consubstanciado em nulidade absoluta ou nulidade sanável, desde que essa última tenha sido argüida tempestivamente, tenham sido exauridos os recursos cabíveis e tenha sido prolatada sentença de mérito. Quanto ao error in iudicando, deve-se entender "que a lei, nessa hipótese, exige que tenham sido frontal e diretamente violados o sentido e o propósito da norma" [28]. Isso porque, ainda que a ação rescisória seja medida excepcional, não se pode exigir que a violação seja pelo sentido literal do texto do dispositivo, sob pena de empobrecimento do instituto ora analisado.

            Merece menção a Jurisprudência anotada por THEOTÔNIO NEGRÃO, que atenua o rigor da súmula 343 do STF e entende que não se aplica (i) em matéria constitucional; (ii) se a controvérsia se instaurou posteriormente ao acórdão rescindendo; (iii) se a interpretação era controvertida ao tempo da prolação da decisão rescindenda, mas depois tornou-se pacífica; (iv) se a divergência é restrita a um único tribunal ou caracterizada exclusivamente pelo acórdão rescindendo; (v) se se tratar de litígios que envolvem interesses individuais de pessoas componentes de vários estamentos sociais [29].

            IV.FArt. 485, VI, CPC

            A sentença é rescindível "sempre que, baseada em prova falsa, admitiu a existência de fato, sem o qual outra seria necessariamente a sua conclusão" (art. 485, inc. VI, do CPC) [30]. A doutrina é firme no sentido de que não há necessidade de a prova falsa ser o principal fundamento da sentença; contudo, a prova falsa deve ser indispensável para suportar a conclusão do julgamento, sendo incabível a rescisória se houver outros elementos bastantes. É de clareza meridiana a lição de BARBOSA MOREIRA [31]:

            "Contenta-se o dispositivo ora analisado com o fato de a sentença fundar-se na prova falsa. O que importa é averiguar se a conclusão a que chegou o órgão judicial, ao sentenciar, se sustentaria ou não sem a base que lhe ministrara a prova falsa. A sentença não será rescindível se havia outro fundamento bastante para a conclusão".

            Pode a rescisão ser parcial, quando a falsidade da prova atingir o fundamento apenas da decisão de um dos pedidos [32]. A falsidade pode ser material ou ideológica – quanto a isso, a Lei não faz distinção ou ressalvas. Não se exige, também, a prévia argüição de falsidade – ou o prequestionamento – no processo em que foi prolatada a sentença rescindenda. A falsidade pode ser apurada em processo criminal ou no próprio processo da ação rescisória.

            É tranqüila a Doutrina no sentido de que, reconhecida a falsidade no processo criminal, não poderá essa ser rediscutida no âmbito civil. Diverge-se, contudo, quanto ao reconhecimento no âmbito civil, por outro meio que não a ação rescisória. Partilhamos do entendimento de que não haverá vinculação da rescisória quanto ao que foi decidido a respeito da falsidade em outro processo no âmbito civil. A prova da falsidade deverá ser feita na rescisória e a sentença civil já existente constituirá importante elemento de convicção ao magistrado, que, entretanto, a ela não deverá estar vinculado [33]. Procedente a rescisória e cassado o julgamento de mérito, é possível que o juízo rescindente leve automaticamente ao novo julgamento (juízo rescisório), ou, ainda, é possível que se revele necessária a anulação do processo originário, com a reabertura da instrução do feito e da produção de provas.

            IV.GArt. 485, VII, CPC

            A obtenção de documento novo permite o ajuizamento da rescisória (art. 485, inc. VII, do CPC). Para admitir-se a rescisória é necessário que o documento já existisse ao tempo em que se proferiu a sentença. Não pode ser documento criado após a sentença, sendo que tal documento terá de ser de relevante significação diante da sentença. Nessa ordem de idéias, preleciona BARBOSA MOREIRA [34]:

            "Por ‘documento novo’ não se deve entender aqui o constituído posteriormente. O adjetivo ‘novo’ expressa o fato de só agora ser ele utilizado, não a ocasião em que veio a formar-se. Ao contrário: em princípio, para admitir-se a rescisória, é preciso que o documento já existisse ao tempo do processo em que se proferiu a sentença. Documento ‘cuja existência’ a parte ignorava é, obviamente, documento que existia; documento de que ela ‘não pôde fazer uso’ é, também, documento que, noutras circunstâncias, poderia ter sido utilizado, e portanto existia".

            Em outras palavras, a existência do documento, por si só, deve ser causa suficiente para assegurar ao autor da rescisória um pronunciamento diverso daquele contido na sentença impugnada. Ressalte-se que é apenas o documento que autoriza a rescisória nesta hipótese legal e não qualquer outro meio de prova. Relembra FLÁVIO LUIZ YARSHELL a lição clássica de CARNELUTTI no sentido de que documento "é uma coisa que tem em si a virtude de fazer conhecer, por seu conteúdo representativo" [35]. Frise-se, ainda, que apenas a prova, o documento, é que deve ser novo, não os fatos probandos. Não se pode, a pretexto de um documento novo, inovar a causa de pedir na qual se baseou a sentença [36]. A produção do documento novo deve ser suficiente para mostrar que, diante do quadro probatório já formado no processo originário, o êxito seria do autor da rescisória. Em outras palavras, a suficiência do documento novo deve ser aferida a partir das provas já constantes dos autos originários.

            Entendemos que a procedência da rescisória com fundamento no documento novo permite que se passe do juízo rescindente ao juízo rescisório, com a valoração da eficácia do documento novo e de eventuais outros elementos que lhe tivessem sido contrapostos, proferindo-se novo julgamento.

            IV.GArt. 485, VIII, CPC

            Cabe rescisória, ainda, quando houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação em que se baseou a sentença (art. 485, inc. VIII, do CPC). Nessas hipóteses, é indispensável que a sentença tenha tido como base o ato viciado, não bastando que esse seja suscetível de invalidação. O ato viciado deve ter sido determinante para o julgamento de mérito. Larga discussão existe quanto à inteligência do dispositivo legal, que mereceu interpretação de ordem sistemática e histórica por BARBOSA MOREIRA, bem sintetizada por FLÁVIO LUIZ YARSHELL, o qual entende, à guisa de conclusão, "que é rescindível o julgamento do mérito quando houver fundamento para invalidar (i) o reconhecimento da procedência do pedido, (ii) a renúncia ao direito (material) em que se funda a demanda e (iii) a transação (respectivamente, art. 269, V, II e III, do CPC)" [37].

            Destaque-se que, quanto à confissão, há que se entender que a Lei abrange a hipótese de reconhecimento da procedência do pedido. Imperiosa se revela, nesse caso, a demonstração de que a sentença teve o reconhecimento da procedência do pedido por fundamento – único fundamento, nos termos da Lei, ou fundamento determinante – e que tal reconhecimento emana de erro, dolo ou coação (art. 485, inc. VIII, cc. art. 352 do CPC), apesar de que se admite que todo e qualquer outro fundamento para invalidação deve ser apto a levar à rescisão do julgado, o que se aplica também aos casos de transação e renúncia.

            Quanto à desistência, observe-se que se trata de causa de extinção do processo sem julgamento do mérito. Destarte, como a rescisória só é admissível contra sentenças de mérito, a desistência mencionada no art. 485, inc. VIII, do CPC só pode ser entendida com o sentido de renúncia ao direito em que se funda a ação, ou seja, de renúncia ao direito material. A desconstituição da sentença nos casos de renúncia e de transação impõe a retomada do processo a partir do momento em que reconhecida a invalidade, não se passando a um novo julgamento. Já no caso de se invalidar a confissão, entendemos ser possível que o juízo rescindente leve a um novo julgamento, sobretudo se a confissão for fundamento exclusivo da convicção do magistrado. Destaque-se, entrementes, que quer parecer mais adequada, prima facie, a anulação do processo originário e a reabertura da instrução.

            IV.HArt. 485, IX, CPC

            Finalmente, é cabível a rescisória no caso de erro de fato cometido pelo julgador (art. 485, inc. IX, do CPC), previsão essa que deve ser interpretada restritivamente sob pena de se desnaturar o instituto da coisa julgada, tendo sempre em vista que a rescisória não é meio processual de análise da justiça de decisões judiciais. Nesse sentido:

            "A rescisória não se presta a apreciar a boa ou má interpretação dos fatos, ao reexame da prova produzida ou a sua complementação. Em outras palavras, a má apreciação da prova ou a injustiça da sentença não autorizam a ação rescisória". [38]

            Só haverá erro autorizativo da rescisória quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido. Conforme Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, "sem a demonstração, mesmo em tese, desse pressuposto para a rescisória, não há de se dar curso a tal ação, por ausência de pressuposto fundamental: possibilidade jurídica" [39].

            É preciso o ensinamento de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR no sentido de que "são requisitos para que o erro de fato enseje ação rescisória: (i) o erro deve ter sido a causa da conclusão da sentença, (ii) o erro há de ser apurável mediante simples exame das peças do processo (...), e (iii) não pode ter havido controvérsia, nem pronunciamento judicial no processo anterior sobre o fato" [40].

            A respeito dos requisitos preleciona BARBOSA MOREIRA que não se admite, "de modo algum, na rescisória, a produção de quaisquer provas tendentes a demonstrar que não existia o fato admitido pelo juiz ou que ocorrera o fato por ele considerado inexistente" [41]. Conclui, ainda, esse mesmo jurista, que "o pensamento da lei é o de que só se justifica a abertura de via para rescisão quando seja razoável presumir que, se houvesse atentado na prova, o juiz não teria julgado no sentido em que julgou. Não, porém, quando haja ele julgado em tal ou qual sentido, por ter apreciado mal a prova em que atentou" [42].

            Importa fazer menção ao fato de que a Jurisprudência vem admitindo que o erro de fato que configure erro de atividade (error in procedendo) possa vir a justificar a anulação do processo e sua retomada a partir do momento da invalidade, e não só o erro de fato que configure erro de juízo (error in iudicando). Recente julgado do Superior Tribunal de Justiça admitiu ser cabível a rescisória para desconstituir julgado que não apreciou o mérito da demanda, pois declarou intempestivo recurso de agravo de instrumento [43].

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Sobre o autor
Mario Luiz Elia Junior

advogado em São Paulo (SP), especialista em Direito de Empresa pela USP, especializando em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ELIA JUNIOR, Mario Luiz. Ação rescisória:: principais aspectos e questões controvertidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1120, 26 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8645. Acesso em: 29 mar. 2024.

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