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Concorrência sucessória entre cônjuge e companheira na união estável quando esta se dá concomitantemente com o casamento

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23/03/2009 às 00:00
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"O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela". Maria Berenice Dias

RESUMO

Este trabalho discute o direito a concorrência sucessória entre o cônjuge e a companheira na união estável quando esta se dá em concomitância com o casamento. Verifica-se com o advento da Constituição de 1988 uma evolução legislativa no conceito de família, pois em seu artigo 226, caput, dispõe que a família é a base da sociedade, tendo especial proteção do Estado. A Constituição, norteada pelos princípios da Dignidade da Pessoa Humana, Monogamia, Afetividade e da Pluralidade de Formas de Família, preconiza como valores para a constituição de uma entidade familiar o afeto, a solidariedade, a lealdade, o respeito e o amor. Assim, não pode o legislador excluir qualquer entidade que se constitua mediante estes requisitos. O ordenamento jurídico existente não aborda o tema que se refere à sucessão na situação de união dúplice e, tampouco analisa os efeitos patrimoniais dela decorrentes. Por sua vez, a jurisprudência não é pacífica quanto a discussão da sucessão entre a companheira com o cônjuge do de cujus, com decisões de que é possível uma pessoa manter duas famílias concomitantemente, e com as duas evidenciar "affectio maritalis". Indo além, a Constituição, no § 8º, do artigo 226, diz que o Estado tem o dever de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações, priorizando o melhor interesse da pessoa, com isto não podem ser protegidas entidades familiares e desprotegidas outras, pois esta exclusão atingiria diretamente as pessoas que integram esta relação que não se encontra amparada na lei, comprometendo assim a realização do macro princípio da dignidade da pessoa humana. Neste trabalho utilizou-se como método de pesquisa o método dialético e o método hipotético-dedutivo.

Palavras-chave: concorrência sucessória, cônjuge, companheira, concomitante.

ABSTRACT

This work discusses the right to successory concurrence between the spouse and the concubine in the stable union when there is an overlap with the marriage. It is possible to verify that with the advent of the Constitution of 1988 a legislative evolution in the concept of family because in its article 226, caput, shows that the family is the base of society, having special protection of the government. The Constitution, oriented by the principles of Dignity of the Human Person, Monogamy, Affectivity and the plurality of forms of family, preaches as values for the constitution of a family entity affection, solidarity, loyalty, respect and love. Thus, the legislator cannot exclude any entity which constitutes according to these prerequisites. The existent juridical ordering does not deal with the theme which refers to succession in the situation of double union and, does not analyze the patrimonial effects resulting from it. In its turn, the jurisprudence is not pacific in relation to the discussion of succession between the concubine and the spouse, with decisions that it is possible for a person to keep two families at the same time, and with both perceive "affectio maritalis". Going beyond, the Constitution, in the 8th paragraph of article 226, says that the State has the obligation of serving the family in the person of each one who integrates it, creating mechanisms to prevent violence in their relations, giving priority to the best interest of the person, with this, it is not correct to protect some family and not others, because this exclusion would reach directly people who integrate this relation that is not protected by law, compromising this way the accomplishment of the macro principle of dignity of the human person. It was utilized in this work as a research method the dialectic method and the hypothetical deductive method.

Key words: Successory concurrence, spouse, concubine, overlap.

Sumário :INTRODUÇÃO.1.CONCEITO DE FAMÍLIA.2.OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO DE FAMÍLIA.2.1.Princípio da Dignidade Humana.2.2.Princípio da Monogamia.2.3.Princípio da Afetividade.2.4.Princípio da pluralidade de formas de formas de família.3.UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO.4.DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL E NO CASAMENTO.5 CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DO COMPANHEIRO COM O CÔNJUGE SOBREVIVENTE. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

O Direito de família encontra-se em processo de reconstrução, amparado pelos ideais de despatrimonialização e repersonalização que orientam o novo modelo de Direito Civil. Isto vem sobrevindo desde o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe para seu bojo, na forma de dispositivo, o princípio da dignidade da pessoa humana, elevado como status de fundamento da República.

Em face dessa alteração, houve uma profunda mudança no estudo do Direito de Família, houve a descaracterização da excessiva preocupação pelas relações patrimoniais e passou a ser consagrada a dignidade da pessoa humana, onde a pessoa é supervalorizada.

A sociedade contemporânea está em constante evolução, nem mesmo a legislação consegue acompanhá-la. Entretanto, as restrições efetivadas aos direitos e garantias fundamentais não devem ultrapassar o limite intangível imposto pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Neste contexto, verifica-se atualmente, uma crescente demanda, onde os casos de união estável concomitante com o casamento foram aparecendo nos tribunais com o propósito de achar a solução para a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum, porém o legislador não cuidou de dar tratamento jurídico a essas entidades. Não há consenso sobre essa matéria, ao contrário, a doutrina pouco aborda esse tipo de relação, analisando menos ainda os efeitos patrimoniais dela decorrentes e a jurisprudência tem-se manifestado a respeito num e outro sentido.

O presente trabalho tem por finalidade discutir esse assunto atual, polêmico, discrepante e acima de tudo uma realidade em nossa sociedade, sendo esses os principais motivos responsáveis pelo desafio de escolher e escrever sobre o tema: "Concorrência sucessória entre cônjuge e companheira na união estável quando esta se dá concomitante com o casamento".

Esse trabalho tem por característica ser apresentado em linguagem simples, de fácil compreensão, com o devido cuidado de envolver citações explicativas e comparativas, extraídas de obras renomadas e ainda apresentar jurisprudências que retratam o posicionamento da corte jurídica a respeito da matéria. Utiliza-se bibliografia com renomados doutrinadores, que escrevem de maneira clara e inteligente sobre o assunto em questão.

Sua divisão apresenta cinco capítulos, bem definidos, construídos de forma clara e concatenada das idéias, que servirá de auxílio no entendimento e compreensão do tema pelos leitores e estudantes, público alvo dessa monografia.

O primeiro capítulo trata do conceito atual de família, onde se analisou suas várias interpretações e a evolução que esse conceito sofreu com o advento da Constituição Federal de 1988 resultando em profundas modificações no paradigma de família.

O segundo capítulo aborda sobre a fundamental importância dos princípios para o direito de família e subdivide-se em quatro tópicos, onde estuda-se os princípios inerentes ao direito de família. Pode-se dizer que esse estudo é de suma importância para a compreensão do tema proposto, pois serve como "alicerce" para as nossas críticas, indagações e conclusões.

O terceiro capítulo estuda a união estável paralela ao casamento. Num primeiro momento analisa-se o reconhecimento da união estável, sendo essa elevada constitucionalmente ao patamar de entidade familiar merecedora de especial proteção do Estado. Após, de forma sucinta aborda-se o conceito e os pressupostos da união estável, analisando e criticando os diferentes tratamentos recebidos por esse instituto.

O quarto capítulo estuda o direito sucessório na união estável e no casamento. Primeiramente refere-se ao tratamento diferenciado recebido por esses institutos pelo legislador ordinário. Num segundo momento, faz-se um paralelo do tratamento sucessório disposto no Código Civil inerente ao casamento e à união estável.

O quinto, e último capítulo é onde se concentra o âmago da questão proposta no tema dessa monografia, apresenta-se um estudo e uma sinopse de entendimentos doutrinários e principalmente jurisprudenciais, ante a possibilidade da concorrência sucessória da companheira com o cônjuge sobrevivente, concedendo efeitos patrimoniais às relações dúplices reconhecidas judicialmente.

Em suma, não se tem por objetivo exaurir todas as discussões a respeito do tema, pois nem mesmo o Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003, conseguiu acompanhar e contemplar todas as indagações e inquietações do Direito de Família Contemporâneo, porém o intento é contribuir para a formação de um pensamento jurídico sistematizado e esclarecer as dúvidas que se somam.


1 CONCEITO DE FAMÍLIA.

Até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era excessivamente restrito, pois o Código Civil de 1916 conferira status familiae exclusivamente a um homem e uma mulher unidos pelo matrimônio e aos filhos advindos desta união, trazendo em sua versão original uma visão rigorosa e discriminatória da família.

O modelo único de família era caracterizado pela excessiva preocupação nas relações voltadas para si mesmo e nas relações patrimoniais, tanto que a felicidade dos seus integrantes, na maioria das vezes, era desprezada pela manutenção do vínculo familiar, impedindo sua dissolução e punindo severamente o cônjuge tido como culpado na separação judicial.

A Carta Magna, ao preconizar o princípio da Dignidade Humana provoca uma profunda alteração no paradigma de família. A partir dele, os requisitos para a constituição de uma entidade familiar não são mais jurídicos e sim fáticos: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor.

Diante disso, pode-se observar que a entidade familiar excede os limites da previsão jurídica, que se restringe ao casamento, à união estável e à família monoparental, podendo compreender todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto (affectio familiae).

Nos dizeres de Giselda Hironaka, não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer ao seu âmago é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade. [01]

O conceito de família passa por constantes transformações e estas acabam se refletindo na lei, pois o art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988 dispõe que a família é a base da sociedade, tendo especial proteção do Estado.

Sílvio de Salvo Venosa contribui para este ensinamento, salientando que o organismo familiar passando por constantes mutações tornando-se evidente que o legislador deve se manter atento às necessidades de alterações legislativas, não podendo deixar de cumprir a sua importante e permanente função social de proteção à família. [02]

Em suma, pode-se dizer que o conceito de família é um agrupamento que se forma espontaneamente nos meios sociais, organizados por meio de regras culturalmente elaboradas que configuram modelos de comportamento, onde os que a compõem ocupam um lugar sem estarem necessariamente ligados biologicamente, sendo que esta estrutura familiar deve ser trazida para o direito. [03]


2 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO DE FAMÍLIA.

Não tem como se falar em família, sem fazer menção aos princípios que norteam tal instituição, pois necessariamente o Direito de Família deve ser analisado sob o prisma da Constituição Federal.

Maria Berenice Dias, citando Paulo Bonavides, assevera: "os princípios constitucionais foram convertidos em alicerce normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico do sistema constitucional". [04]

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No que tange ao Direito de Família deve-se acompanhar a realidade e a evolução social da família, com isto os princípios ganham fundamental importância sendo utilizados como linhas mestras do Direito Privado. [05]

Nem mesmo o Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003, conseguiu acompanhar e contemplar todas as indagações e inquietações do Direito de Família Contemporâneo. A vida, as relações sociais, os costumes, vão impulsionando os operadores do direito para uma constante reorganização do Direito de Família, obrigando-os a buscar nos princípios gerais o necessário para melhor viabilizar o que mais se aproxima do justo. [06]

Muitos destes princípios são cláusulas gerais, lacunas abertas deixadas pelo legislador para serem complementadas pelo aplicador do direito, exercendo assim função de otimização e sistematização do direito.

Aqui cabem as sábias palavras de Maria Helena Diniz, citadas por Rodrigo Pereira da Cunha em sua tese de doutorado:

Sem os princípios não há ordenamento jurídico sistematizável nem sucessível de valoração. A ordem jurídica reduzir-se-ia a um amontoado de centenas de normas positivas, desordenadas e axiologicamente indeterminadas, pois são os princípios gerais que, em regra, rompem a inamovibilidade do sistema, restaurando a dinamicidade que lhe é própria. [07]

Reconhecendo a importância dessa fonte do Direito, se faz necessário ilustrar alguns princípios que são de suma importância para o Direito de Família, sem os quais não é possível a aplicação de um direito que esteja próximo do ideal de justiça.

2.1 Princípio da Dignidade Humana.

A Constituição Federal vigente, logo em seu art. 1º [08] estabelece os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Consistem esses em pontos de partida para todas as outras normas constitucionais, e, por conseguinte devem influir no teor de todas as normas infraconstitucionais.

Dentre outros aspectos estabeleceu-se, no seu inciso III [09], a dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Brasileiro, e, por conseqüência, houve uma profunda mudança no estudo do direito de Família.

Sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição, é considerado o princípio máximo, ou macroprincípio, do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania e solidariedade, todos consagrados como princípios éticos. [10]

Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Flávio Tartuce menciona a conceituação que Ingo Wolfgang Sarlet dá ao princípio em questão:

O reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. [11]

Diante deste regramento, houve a descaracterização da excessiva preocupação pelas relações patrimoniais, ou seja, a despatrimonialização, e com isto passou a ser consagrada a dignidade da pessoa humana, onde a pessoa é supervalorizada.

É no Direito de Família que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem a maior ingerência ou atuação, o que significa, em primeira e última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares, sendo indigno dar tratamento diferenciado aos vários tipos de constituição de família. [12]

Portanto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana significa para o Direito de Família a consideração e o respeito à autonomia dos sujeitos e a sua liberdade, legitimando e incluindo na sociedade todas as formas de família, respeito a todos os vínculos afetivos e a todas as diferenças. [13]

No momento em que o Estado reconhece a dignidade da pessoa humana por preceito constitucional torna-o o mais importante valor reconhecido pela ordem jurídica brasileira, tendo-se presente o princípio da liberdade de a pessoa escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial, sendo defeso ao legislador definir a escolha mais adequada. [14]

Tal evolução valorativa obriga os civilistas modernos a adotar uma nova postura, desnudando-se de todos os preconceitos, tanto em relação à interpretação quanto à aplicação de normas e conceitos jurídicos, evitando assim tratar de forma indigna toda e qualquer pessoa humana, principalmente na seara do Direito de Família, que possui a intimidade, a afetividade e a felicidade como seus principais valores. [15]

2.2 Princípio da Monogamia.

Ao longo do processo evolutivo que a família sofreu, algumas características se tornaram arcaicas e, em razão disto, foram alteradas pela legislação, como ocorreu com a base patriarcal e o reconhecimento da família somente com o matrimônio. De outra forma, alguns elementos foram mantidos pelo legislador, como a monogamia.

Com efeito, entende-se por monogamia o sistema de constituição familiar pelo qual o homem tem uma só esposa ou companheira e a mulher um só esposo ou companheiro.

Entretanto, há divergências quanto ao entendimento de ser a monogamia um preceito constitucional ou uma regra atinente à moral.

Hodiernamente, tem-se defendido a adoção de um conceito extremamente amplo para o status familiae, identificando a sua presença em toda e qualquer relação em que esteja presente o elemento afetividade, buscando assim, evitar qualquer espécie de discriminação que possa ser utilizada como critério para o não reconhecimento desta relação.

Partindo desta premissa, alguns autores atribuem status de família aos envolvimentos existentes em paralelo ao casamento ou a união estável, causando afronta ao princípio da monogamia vigente, não o reconhecendo como um preceito constitucional do direito estatal de família, mas sim de uma regra restrita à proibição de simultaneidade de relações. [16]

A título de ilustração, cita-se a autora Maria Berenice Dias que perfilha desta percepção:

Pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar efeitos jurídicos a um ou, pior a ambos os relacionamentos, sob o fundamento de que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta ele com a totalidade do patrimônio e sem qualquer responsabilidade para com o outro. Essa solução que vem sendo adotada pela doutrina e aceita pela jurisprudência afasta-se do dogma maior de respeito à dignidade da pessoa humana, além de chegar a um resultado de absoluta afronta à ética. [17] [grifo da autora]

Por conseguinte, alguns autores acordam que a monogamia consiste em um dogma imposto pelo próprio ordenamento jurídico, sendo um sistema organizador das formas de constituição de famílias.

Colaciona-se Rodrigo da Cunha Pereira que comunga com este entendimento:

O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral teríamos que admitir a imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários Estados não adotam a monogamia. [18]

Do exposto, constata-se que não há uma compreensão uníssona quanto à monogamia, alguns autores defendem ser um preceito constitucional já outros entendem tratar-se de uma regra moral, destarte, cabe ao julgador recorrer a um valor maior, dentro do seu poder de discricionariedade, atingindo o bem maior que é a justiça.

2.3 Princípio da Afetividade.

Na era da despatrimonialização do Direito de Família, onde a Constituição Federal eleva como fundamento a dignidade da pessoa humana e atribui ao Estado à proteção especial da família, em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, o foco jurídico se tornou a pessoa humana, em detrimento do patrimônio.

Atualmente as relações são muito mais de igualdade e respeito mútuos, devendo as normas do direito positivo convergir para a realização do elemento finalístico da proteção estatal que é o pleno desenvolvimento e estruturação da personalidade da pessoa, não mais existindo razões para uma proteção supra-individual em favor de objetivos políticos, religiosos ou morais que era vislumbrada no passado. [19]

Diante do exposto, viu-se que a dignidade da pessoa humana passa a ser o foco da ordem jurídica, passando a se valorizar a família na pessoa de cada membro que a integra, e com esta valorização constante decorre o princípio da afetividade.

Para ilustrar exibem-se os ensinamentos de Tepedino: "merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes". [20]

Diante desta nova estrutura familiar, o afeto pode ser apontado como o principal fundamento das relações familiares, pois a família passou a se vincular e a se manter predominantemente por elos afetivos. [21]

Pereira perfilha deste entendimento, dizendo que a família é constituída por um núcleo afetivo, se justificando principalmente pela solidariedade mútua, citando Paulo Luiz Netto Lôbo, que assim se pronunciou:

A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política religiosa e procracional feneceram, desapareceram, ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua. [22]

Diante do demonstrado pode-se assentar que o afeto é tido como elemento constitutivo e essencial de todo e qualquer vínculo familiar, inobstante a palavra afeto não constar de forma explícita na Constituição Federal, é consagrado como direito fundamental, sendo merecedor de tutela jurídica.

2.4 Princípio da pluralidade de formas de família.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, estimulada pelas expressivas transformações do contexto político, econômico e social do país, a família foi tratada de uma forma mais pontual, provocando uma verdadeira revolução no Direito de Família, houve o rompimento com a premissa de que as uniões matrimonializadas eram o único instituto formador e legitimador da família brasileira. [23]

O princípio da pluralidade de formas de família foi reconhecido pelo Estado, ao dispor na Constituição Federal em seu art. 226 [24] sobre outras formas de família (união estável e a família monoparental), princípio este, agregado com o principio máximo que é o da dignidade da pessoa humana, é determinante para a compreensão e legitimação de todas as formas de família além das previstas constitucionalmente.

Segundo Pereira, embora não tenha nominado todas as entidades familiares existentes, a Constituição de 1988 chancelou-lhes proteção ao suprimir a locução "constituída pelo casamento", presente nas Constituições de 1967 e 1969 [25], mencionando a opinião de Paulo Luiz Netto Lôbo: "a exclusão não está na Constituição, mas na interpretação". [26]

Gustavo Tepedino, no mesmo sentido proclamando o princípio máximo da dignidade da pessoa humana:

À família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento desta mesma função. Por isso mesmo, o exame da disciplina jurídica das entidades familiares depende da concreta verificação do entendimento desse pressuposto finalístico: merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes. [27]

O mesmo autor continua destacando que nada impede o legislador usar de extensão interpretativa para disciplinar, paulatinamente, as demais entidades familiares, em decorrência da aplicação do princípio de pluralidade de formas da família:

Ao reverso, as normas que tem a sua ratio vinculada às relações familiares devem ser estendidas a toda e qualquer entidade familiar, nos termos constitucionais, independentemente da origem da família; tenha sido ela constituída por ato jurídico solene ou por relação de fato; seja ela composta por dois cônjuges ou apenas por um dos genitores, juntamente com os seus descendentes. Não há razão, por exemplo, para que um conflito relacionado a qualquer das modalidades constitucionais de entidade familiar seja submetido a uma Vara cível, quando na comarca haja Vara especializada em matéria de família. Tratar-se-ia de discriminação intolerável por parte da lei estadual de organização judiciária. [28]

Pode-se dizer que a relação das entidades familiares contidas no art. 226 é meramente exemplificativa e não numerus clusus, não excluindo as outras várias entidades familiares que existem além das ali previstas que merecem serem abrigadas sob o manto do Direito de família e, conseqüentemente, protegidas pelo Estado.

Ainda sobre a inclusão de outras várias entidades familiares ao amparo do art. 226, destaca Maria Berenice Dias:

Excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento injustificado, é ser conivente com a injustiça. [29]

É notória a existência de várias outras formas de entidades familiares do que as previstas constitucionalmente. Uma família contemporânea se estabelece a partir de uma relação de afeto, solidariedade, lealdade, confiança, amor e principalmente respeito às diferenças, é neste preâmbulo que se aplica o princípio da pluralidade de formas da família.

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Sobre a autora
Denise Kemmerich

Bacharel em Direito pela Ulbra, campus Cachoeira do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KEMMERICH, Denise. Concorrência sucessória entre cônjuge e companheira na união estável quando esta se dá concomitantemente com o casamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2091, 23 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12491. Acesso em: 24 abr. 2024.

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