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Causalidade e imputação objetiva.

Distinção entre categorias conceituais da dogmática penal e as suas respectivas teorias

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12/03/2011 às 09:06
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As modernas teorias da imputação objetiva são compreendidas como responsáveis pela criação das condições históricas objetivas que permitem trabalhar com a causalidade no direito penal de maneira naturalística.

RESUMO:

Este artigo intenta desmistificar a imputação objetiva e as teorias sobre a causalidade. A partir da demonstração da estruturação dogmática penal em sistemas organizados em função de concepções históricas, aponta o surgimento da imputação objetiva enquanto categoria conceitual que, ao lado de outra categoria conceitual, a causalidade, compõe a categoria básica tipicidade. As teorias sobre causalidade são apresentadas como teorias rudimentares da imputação objetiva e as modernas teorias da imputação objetiva, principalmente a de feição roxiniana, são compreendidas como responsáveis pela criação das condições históricas objetivas que permitem trabalhar com a causalidade no direito penal de maneira naturalística, sem adjetivações normativas, haja vista a sua natureza ontológica, do ser; não do dever ser.

Palavras-chaves

Causalidade. Imputação Objetiva. Categorias conceituais. Teorias.


INTRODUÇÃO

É comum a abordagem do tema no sentido de refutar o manuseio das modernas teorias da imputação objetiva no direito brasileiro. E isto às vezes ocorre em detrimento da compreensão de que a imputação objetiva é uma categoria conceitual da dogmática penal, e que a mesma surgiu com a concepção neokantiana e se encontra sistematizada desde o finalismo.

Assim, a refutação do manuseio de uma moderna teoria da imputação objetiva deve vir sempre acompanhada de argumentos que fundamente o uso de uma outra teoria que possa trabalhar esta componente normativa (dever ser) da tipicidade, ao lado de uma componente ontológica (ser), a causalidade, para além de uma terceira componente, a imputação subjetiva.

A colocação da questão neste patamar, possibilita visualizar a teoria das concausas como uma verdadeira teoria de imputação objetiva, porém, não suficientemente desenvolvida, ou sem capacidade de fornecer soluções justa ao nível do desenvolvimento do direito penal moderno.

Assim, abre-se caminho para se trabalhar com as modernas teorias da imputação objetiva, universo onde a teoria de vertente roxiniana se apresenta com aceitabilidade que possibilita maiores estudos e, por conseguinte, um maior desenvolvimento no sentido de melhores soluções para os problemas de tipicidade.

Por fim, surge a necessidade de uma teoria geral da causalidade no direito penal que resgate a sua forma naturalística, decorrente da sua natureza ontológica.


FUNDAMENTAÇÃO

A construção da dogmática penal, a sistematização sob diversas concepções dogmáticas e o surgimento das categorias conceituais.

A dogmática [01] jurídico-penal encontra-se estruturada em torno de categorias conceituais fundamentais – ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade – com o propósito de que se possa melhor estudar cientificamente o ilícito penal, pelo que seu núcleo fundamental é a denominada teoria do delito [02] ou teoria do fato punível [03], ao lado da teoria da pena que, neste contexto, aparece de forma secundária.

Esta estruturação é bem recente, em relação a longa história do direito penal, praticamente isto ocorreu na primeira metade do século XX. [04]

Então, formulados os conceitos elementares; estruturadas as categorias conceituais básicas da teoria do delito e firmados os princípios da sistematização do delito, pôde-se, então, estabelecer o primeiro modelo de sistema [05] dogmático. Modelo pelo qual a teoria do crime se estrutura em categorias fundamentais: conduta, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

Assim, no início do século passado partiu-se de um esquema simples para uma sistematização mais complexa que evoluiu durante todo o desenrolar daquele século XX, iniciando com a sistemática clássica e seguindo a neoclássica, a finalista, a neoclássica-finalista e finalizando com a sistemática funcionalista, cujas diferenças básicas são demonstradas por meio de esquema gráfico nos quadros que se seguem.

Sistema clássico [06]:

CONDUTA

TIPICIDADE

ANTIJURIDICIDADE

CULPABILIDADE

Vontade exteriorizada de maneira a pôr em marcha a causalidade.

Proibição de causação de um resultado.

Contradição entre a causação e a ordem jurídica.

Relação psicológica entre a conduta e o resultado em forma de dolo ou negligência.

Sistema neoclássico [07]:

CONDUTA

TIPICIDADE

ANTIJURIDICIDADE

CULPABILIDADE

Vontade exteriorizada de maneira a pôr em marcha a causalidade.

Proibição de causação de um resultado – eventualmente com elementos subjetivos.

Contrariedade entre o fato e a ordem jurídica. Exige-se uma ilicitude material

Reprovabilidade – dolo ou negligência. Concepção normativa da culpa.

Sistema finalista [08]:

CONDUTA

TIPICIDADE

ANTIJURIDICIDADE

CULPABILIDADE

Ação voluntária e final.

Proibição de conduta em forma dolosa ou negligente.

Contradição da conduta proibida com a ordem jurídica.

Reprovabilidade: imputabilidade, consciência de ilicitude e exigibilidade de comportamento diverso.

Sistema neoclássico-finalista:

CONDUTA

TIPICIDADE

ANTIJURIDICIDADE

CULPABILIDADE

Exige-se como função de classificação, definidora e delimitadora.

Proibição de conduta em forma dolosa ou culposa.

Contradição da conduta proibida com a ordem jurídica.

Reprovabilidade, como desvalor do ânimo.

Sistema funcionalista:

CONDUTA

TIPICIDADE

ANTIJURIDICIDADE

CULPABILIDADE

Criação de um risco juridicamente relevante.

Desaprovação de risco relevante.

O injusto revelado pela criação de um risco desaprovado.

Responsabilidade: culpa tradicional e necessidade de pena.

A sistemática funcionalista, pode se afirmar, encontra-se ainda em fase de construção, onde se pretende estruturar o direito penal a partir dos fins da pena e em função de finalidades político-criminais.

A sistemática eclética, a síntese neoclássica-finalista, talvez represente a transição entre a sistemática finalista e a sistemática funcionalista, haja vista que esta síntese possui como âncora a sistemática finalista, entretanto, rejeitando o conceito de ação finalística [09], bem como a teoria das estruturas lógico-reais. [10]

No desenvolvimento da sistemática finalista se ergueu a construção da teoria das normas, em que o tipo penal é norma de determinação e norma de valoração, assim, haveria incidência da norma penal em uma perspectiva ex ante, desvalorando a ação, ao lado de uma perspectiva ex post, desvalorando o resultado. [11] Antes desta construção, a sistemática finalista logrou modificar o esquema objetivo-subjetivo (tipicidade/culpabilidade) constante da sistemática clássica, conduzindo o dolo da categoria culpabilidade para a categoria tipo penal, portanto, a categoria conceitual tipo penal passou a ser complexa; assim, compreendida em uma parte objetiva e outra subjetiva. [12]

GRECO [13] apresenta uma evolução do tipo penal, em um esquema gráfico:

"Naturalismo: tipo = ação + nexo causal + resultado.

Finalismo: tipo = tipo objetivo + tipo subjetivo, onde tipo objetivo = ação + causalidade + resultado, e tipo subjetivo = dolo + elementos subjetivos especiais.

Doutrina moderna: tipo = tipo objetivo + tipo subjetivo onde, tipo objetivo = ação + causalidade + resultado + criação de um risco juridicamente desaprovado + realização do risco."

GRECO atribui à concepção neokanteniana (sistemática neoclássica) a responsabilidade pelas condições [14] favoráveis ao surgimento da idéia de imputação [15], entretanto, somente com a sistemática finalista surgiu o conceito de imputação e com isto a categoria conceitual imputação objetiva, conforme nos relata o mesmo autor:

"A importância do pequeno escrito de LARENZ dificilmente pode ser sobrestimada. Ele teve, primeiramente, o mérito de redescobrir o conceito de imputação e apresentá-lo aos juristas que, sob a influência do naturalismo, dele tinha esquecido. E, justamente por formular, antes de mais nada, uma teoria da ação – como vimos, para LARENZ a imputação determina o que é obra, ação, de um sujeito – seu trabalho influenciou de modo decisivo o início do debate em torno do conceito de ação. É pouco sabido, mas nem por isso menos verdade, que a primeira formulação da teoria finalista da ação, de 1931, foi marcadamente influenciada pela teoria da imputação de LARENZ." [16]

Logo se vê que na vigência da concepção causal-naturalista (sistemática clássica) a responsabilidade jurídico-penal se fundamentava tão-somente no nexo de causalidade existente entre conduta e resultado, motivo pelo qual as teorias sobre causalidade se desenvolveram no sentido de impor limites à causalidade determinada puramente em elementos naturalísticos. As diversas teorias sobre causalidade buscavam sempre identificar e valorar um elemento presente na relação causal que pudesse imprimir uma relevância normativa para além da relação causal naturalística. Tarefa idêntica foi atribuída à imputação objetiva, conforme se demonstra com o relato de WESSELS:

"O reconhecimento de que a amplitude sem limites da teoria da condição necessita de uma correção limitadora de responsabilidade, pertence hoje à característica asseguradora da dogmática do Direito Penal. As opiniões só se separam ao determinarem o caminho que deve seguir a exigida limitação da responsabilidade (antes de tudo sistematicamente)." [17]

Diante destes dados podemos afirmar que a causalidade é uma categoria conceitual da dogmática penal. O mesmo se pode afirmar em relação à imputação objetiva. Ambas as categorias compõem a categoria tipo objetivo, esta, ao lado da categoria tipo subjetivo, compõe a categoria conceitual básica; a tipicidade.

Esta constatação se faz necessário no sentido de podermos distingui o objeto de sua teoria; a categoria conceitual e das teorias que descrevem a mesma. A causalidade, ou nexo causal, e a teoria geral da causalidade; A imputação objetiva e a teoria de imputação objetiva.


As teorias sobre a causalidade e a moderna teoria da imputação objetiva

A causalidade no direito penal sempre foi retratada pelas teorias: da condição, da causalidade adequada, da relevância jurídica, da causa mais eficaz, da causa mais próxima, causalidade funcional, causalidade humana, entre outras teorias menos lembradas.

Relata ROXIN que, em 1858, o processualista austríaco Julius Glaser formulou a "teoria da equivalência das condições", tendo sido depois introduzida na jurisprudência alemã por Maximilian von Buri (1860). [18] Aduzindo, ainda, que já naquela época se fazia uso freqüente da ideia da conditio sine qua non, porém, sem que se lançasse mão do artifício da "exclusão mental". Deveu-se ao jurista sueco Johan C. W. Thyrén a difusão da fórmula de eliminação hipotética ou exclusão mental, que já havia constado no bojo da teoria de Julius Glaser. [19]

Posteriormente, ENGISCH refutou a fórmula da condição sine qua non sob o argumento de que não retratava a verdadeira relação causal e a substituiu pela fórmula da condição ajustada às leis da natureza. [20]

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Aqui se revela um tensionamento entre concepções; uma buscava imprimir um caráter generalizador à teoria, outra buscava dar uma conotação individualizadora à teoria. Nesse caminho de construção de teorias individualizadoras rumou Johannes v. Kries formulando a teoria da causalidade adequada em 1886 [21] e Mezger formulando a teoria da relevância jurídica em 1949 [22], entre outros. [23]

Entretanto, o papel de uma teoria geral da causalidade se restringe a esclarecer os parâmetros de determinação de um nexo relacional entre a conduta e o resultado, de modo naturalístico, sem qualquer adjetivação de natureza normativa, haja vista a natureza ontológica da categoria conceitual causalidade. [24]

As relevâncias, conotações e adjetivações de cunho normativo ofertadas ao nexo causal são fórmulas da imputação objetiva, por ser exatamente esta a função da categoria conceitual imputação objetiva, a qual possui natureza eminentemente normativa. Pelo que as diversas teorias sobre causalidade que buscam âncora em uma relevância normativa, são consideradas verdadeiras teorias da imputação objetiva. [25]

A moderna teoria da imputação objetiva de vertente roxiniana encontra-se fixada no princípio do risco [26], e consiste em dois componentes reitores, a criação do risco juridicamente proibido (desvalor da ação) e a realização deste risco no resultado (desvalor do resultado); o primeiro é pressuposto do segundo e cada componente se subdivide em tópicos de concretização do princípio em análise de casos.

GRECO, em sua abordagem ao tema, dentro de cada componente, trata os institutos sob o aspecto positivo (fundamentação de existência) e sob o aspecto negativo (fundamentação de exclusão). Assim, primeiro fundamenta a criação de um risco, caracterizando sua existência no princípio da prognose póstuma objetiva (teoria da causalidade adequada) e a sua não-ocorrência na diminuição do risco e na irrelevância jurídica dos riscos. Em seguida, fundamenta a desaprovação jurídica do risco criado, caracterizando a sua existência sob a constatação de normas de segurança, violação ao princípio da confiança e comportamento contrário ao standard geral dos homens prudentes, ao passo que a sua não-constatação o faz sob a presença do risco permitido, contribuição a uma autocolocação em perigo, contribuições socialmente neutras e cumplicidade. Fundamenta a necessidade da realização do risco na necessária proteção dos bens jurídicos e na prevenção geral negativa. A existência é detectada, em um primeiro critério, sob o aspecto da constatação de nexo do fim de proteção da norma e a sua inexistência sob o aspecto da lesão ou curso causal sem qualquer relação com o risco juridicamente desaprovado, dos danos tardios, dos danos resultantes de choque, das ações perigosas de salvamento; já sob um segundo critério, a existência é detectada sob o aspecto da constatação de nexo de aumento de risco (casos de comportamento alternativo conforme ao direito). [27]


As teorias sobre a causalidade como teorias da imputação objetiva e a teoria das concausas

Como antes já se falou, sempre que teoria da causalidade for abordada no sentido de imprimir uma relevância normativa a um qualquer aspecto dessa teoria, ocorre um deslocamento do âmbito da categoria conceitual de causalidade para o âmbito da categoria de imputação objetiva, pelo que sob este aspecto as teorias da causalidade penal podem ser consideradas verdadeiras teorias da imputação objetiva. Uma teoria geral da categoria causalidade há que ser entendida sob o aspecto naturalístico, isto porque o seu objeto, a relação causal, possui natureza ontológica, antagônica à natureza normativa da categoria imputação objetiva. As categorias são complementares, mas possuem naturezas antagônicas.

A doutrina pátria [28] entende que o caput [29] do artigo 13 do Código Penal Brasileiro adotou a teoria da condição (teoria das condições equivalentes), enquanto o parágrafo primeiro [30] retrata a teoria das concausas, pela qual se procura imprimir relevância normativa à causalidade para fins do juízo de imputação objetiva a partir do critério temporal (anterior, concomitante e superveniente) e de condicionalidade relacional (dependente, independente de forma relativa e de forma absoluta). É correto entender que o caput do referido artigo impôs uma exigência de que o nexo causal seja uma condição necessária, mas não suficiente para a imputação objetiva, ofertando o parágrafo primeiro para a realização desta tarefa no trabalho de se proceder a adequação típica penal.

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Sobre o autor
Marcondes Pereira de Oliveira

Promotor de Justiça do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcondes Pereira. Causalidade e imputação objetiva.: Distinção entre categorias conceituais da dogmática penal e as suas respectivas teorias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2810, 12 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18678. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho vencedor do concurso de artigos do III Congresso Piauiense de Ciências Criminais, categoria Profissional, realizado em novembro de 2010.

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