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O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego

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Do embate entre a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, carecerá de força normativa aquela disposição que, embora conste no texto constitucional, não esteja arraigada na consciência coletiva. No caso, reconhece-se a prevalência da livre iniciativa, como corolário maior do capitalismo neoliberal.

“Daquilo que sabes conhecer e medir, é preciso que te despeças, pelo menos por um tempo. Somente depois de teres deixado a cidade verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.”

Friedrich Nietzsche

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade a realização de uma análise acerca das chamadas colisões principiológicas, em especial, sobre a possível ocorrência desse fenômeno entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego. Assim, partindo de um exame teórico relativo à natureza das normas estudadas, buscar-se-á delimitar seu grau de vinculação prático. Ou seja, perquirir acerca de sua efetividade fática, tendo por base não apenas sua estrutura formal dentro de nosso sistema constitucional, mas principalmente no que concerne ao seu teor axiológico, o qual poderá determinar um conflito principiológico imanente à nossa Lei Fundamental, impossibilitando sua plena efetivação.

Palavras-chave: Constituição. Efetividade. Conflito. Princípios.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA . 1.1 Livre Iniciativa. 1.2 Busca do Pleno Emprego. 1.3 Recepção em nosso Ordenamento Jurídico . 2 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ..2.1 Métodos de Interpretação Constitucional. 2.2 Princípios da Interpretação Constitucional. 2.3 O Metaprincípio da Hierarquização Axiológica. 3 DO CONFLITO NORMATIVO. 3.1 Fundamentos da Colisão Principiológica. 3.1 Do Conflito Hierárquico-Formal . 3.2 Do Conflito Axiológico-Material. 4 DA SUPERAÇÃO DA APORIA. 4.1 A Constituição Dirigente. 4.2 A Força Normativa da Constituição. CONCLUSÃO .


INTRODUÇÃO

O presente texto tem por escopo primordial analisar, de forma expositivo-argumentativa, o fenômeno jurídico do conflito normativo, em especial, o conflito entre princípios constitucionais. Destarte, investigaremos a ocorrência de conflito de ordem hierárquica e/ou axiológica (formal e/ou material) decorrente da assunção dos princípios da Livre Iniciativa e da busca pelo Pleno Emprego em nosso ordenamento jurídico, perquirindo acerca da real possibilidade de sua coexistência efetiva, haja vista sua aparente incongruência material.

Para a consecução de tal desiderato, utilizaremos predominantemente o pensamento de autores da lavra de Joaquim José Gomes Canotilho, Konrad Hesse, Eros Roberto Grau e José Afonso da Silva, entre outros. Assim, buscar-se-á desenvolver a temática proposta, sempre que possível, conciliando os entendimentos doutrinários e confluindo para uma conclusão pacificadora.

No primeiro capítulo, intitulado Análise Principiológica, ressaltaremos os aspectos intróitos ao iminente estudo da colisão principiológica aventada. De modo que, seus dois primeiros subtítulos – Livre Iniciativa e Busca do Pleno Emprego – terão o mister de fornecer os subsídios materiais preliminares acerca dos dois princípios em comento, mormente explicitando suas origens históricas, bem como sua carga conceitual, vale dizer, no campo valorativo.

Deveras, em um segundo momento desse primeiro capítulo, no desenvolvimento do terceiro subtítulo (Recepção em nosso Ordenamento Jurídico) tratar-se-á de fundamentar os moldes através dos quais foram estruturados ambos os princípios cotejados, explicitando suas funções eminentes dentro do esqueleto de nossa Constituição Federal, possibilitando posteriormente uma visão acerca da importância de um e outro princípio sob análise.

No segundo capítulo, denominado de Interpretação Constitucional, traremos à lume aquilo que entendemos como sendo a atividade hermenêutica par excellence. Ou seja, intentaremos distanciar-nos de conceitos anacrônicos de interpretação constitucional nos moldes pretéritos da vontade ou espírito da lei, acentuando nosso entendimento acerca da atualidade dessa nobre atividade. Tal mister será desenvolvido no escopo de contribuir em nosso discurso, mormente explicitando os fundamentos teórico-doutrinários utilizados em nossa discussão principiológica.

Destarte, subdividir-se-á o segundo capítulo em três tópicos (Métodos de Interpretação Constitucional, Princípios da Interpretação Constitucional e O Metaprincípio da Hierarquização Axiológica). Desse modo, terá, esse capítulo, o condão de elucidar a metódica adotada para a investigação do fenômeno jurídico da colisão principiológica, vale dizer, adotando a classificação empreendida pelo mestre português José Joaquim Gomes Canotilho e, subsidiariamente, também o esforço de sistematização hermenêutica empreendido pelo jurista brasileiro Juarez Freitas.

O terceiro capítulo do presente texto, assentado já com as bases teóricas supracitadas - necessárias à sua ideal consecução - adentrará propriamente na celeuma jurídica que acreditamos legitimar esse trabalho. Assim, Do Conflito Normativo nos guiará desde a definição e exploração do conceito daquilo que venha a ser um conflito principiológico, até a análise própria à configuração do referido fenômeno jurídico entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Para tanto, partiremos em um primeiro momento – em Fundamentos da Colisão Principiológica – de diferenciar os conflitos principiológicos das antinomias normativas, distinguir, também, oposição de contradição normativa, bem como outras propriedades terminológicas que acreditamos serem de imprescindível intelecção para o correto entendimento da temática trabalhada. Nesse sentido, no segundo subtítulo desse capítulo – Do Conflito Hierárquico-Formal – examinaremos a ocorrência (ou não) de conflito de ordem hierárquica entre os princípios estudados. De igual sorte, analisaremos na terceira subdivisão desse capítulo (Do Conflito Axiológico-Material) o ponto nevrálgico desse discurso hermenêutico, ou seja, inferir acerca da configuração do conflito de ordem axiológica entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Derradeiramente, o quarto (e último) capítulo do presente texto – Da Superação da Aporia - trará considerações finais acerca das reais razões pelas quais cremos estar constituída a aporia jurídico-social exposta no capítulo anterior. Ademais, intentaremos apontar, na medida do possível, meios para a superação da referida contradição axiológica. Nesse escopo, e conclusivamente, desenvolveremos dois caminhos: A Constituição Dirigente e a A Força Normativa da Constituição, respectivamente, fazendo-nos valer dos ensinamentos colhidos nas obras de Canotilho e Konrad Hesse.

Desse modo, entendemos que, hodiernamente, com o exsurgimento de um direito de cunho eminentemente solidário, faz-se mister repensar certos dogmas e postulados que vêm norteando a sociedade desde, pelo menos, a eclosão da Revolução Industrial. Destarte, perquirir acerca da legitimidade dos corolários axiológicos aos quais está submetida nossa sociedade, discernindo quais deles prestam efetivamente ao desiderato do bem coletivo, manifesta-se como uma das funções precípuas do operário do direito contemporâneo.

Sendo assim, ainda que de forma propedêutica e, em absoluto, exaurindo o amplo espectro de discussões acerca do tema proposto, intentaremos, indiretamente, propor uma reflexão acerca do modelo estrutural principiológico contido em nossa Carta Magna, mormente nos casos em que sua leviana configuração acaba por deflagrar efeitos perniciosos no campo social. De sorte que, indagar sobre tais questões, indubitavelmente, configurar-se-á como empresa árdua, mas também, o sabemos, coerente com o múnus público intrínseco à pesquisa acadêmica.


1 ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA

 

 

1.1 Livre Iniciativa

Para que adentremos à iminente questão da problemática colisão principiológica ora em estudo, é mister que iniciemos a explanação conceituando o princípio da Livre Iniciativa, consagrado expressamente em nossa Carta Magna nos seguintes dispositivos:

Art.1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (…)

Art.170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,(...)

Nessa esteira, cumpre que analisemos em que termos e condições originou-se o referido princípio, já no distante século XVIII. Para tanto, buscamos auxílio na zelosa reconstituição histórica empreendida por Eros Roberto Grau (2003, p. 183):

O princípio da liberdade de iniciativa econômica – originalmente postulado no édito de Turgot, de 09 de fevereiro de 1776 – inscreve-se plenamente no decreto d’Allarde, de 2-17 de março de 1791, cujo art. 7° determinava que, a partir de 1° de abril daquele ano, seria livre a qualquer pessoa a realização de qualquer negócio ou exercício de qualquer profissão, arte ou ofício que lhe aprouvesse, sendo contudo ela obrigada a se munir preventivamente de uma ‘patente’ (imposto direto), a pagar as taxas exigíveis e a se sujeitar aos regulamentos de polícia aplicáveis. (...) Meses após, na chamada Lei Chapelier – decreto de 14-17 de junho de 1791 – que proíbe todas as espécies de corporações, o princípio é reiterado.

Portanto, fica claro que desde seu surgimento o princípio estudado já assumia característica semelhante à hodierna, qual seja, a de subsidiar a liberdade de iniciativa - mormente na seara econômica - aos cidadãos que pretendam desenvolver atividade empresarial ou comercial, com fito principal no auferimento de vantagem financeira. Ademais, nota-se também da análise do conceito primevo da liberdade de iniciativa, a recorrente preocupação estatal em regulamentar estas atividades ditas “livres”, recolhendo impostos e exercendo o poder de polícia.

Contemporaneamente, a Livre Iniciativa constitui pedra angular do modelo capitalista neoliberal, peculiar à maioria das democracias ocidentais. Estando presente – expressa ou tacitamente – em quase todas as constituições desses países, sintetiza a liberdade de mercado e subsidia a transnacionalização das economias estatais desencorajando a intervenção do Estado nas relações econômicas privadas, além de buscar, no plano teórico, a democratização da participação no meio econômico fomentando, também, o desenvolvimento social.

De outro lado, acentuando a impotência do Estado em regulamentar as relações econômicas privadas que se valem dos preceitos da livre iniciativa, adiantando preocupações posteriormente aludidas no presente trabalho, posiciona-se o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p.790):

Isto significa que a Administração Pública não tem título jurídico para aspirar a reter em suas mãos o poder de outorgar aos particulares o direito ao desempenho da atividade econômica tal ou qual; evidentemente, também lhe faleceria o poder de fixar o montante da produção ou comercialização que os empresários porventura intentem efetuar. De acordo com os termos constitucionais, a eleição da atividade que será empreendida assim como o quantum a ser produzido ou comercializado resultam de uma decisão livre dos agentes econômicos. O direito de fazê-lo lhes advém diretamente do Texto Constitucional e descende, mesmo, da própria acolhida do regime capitalista, para não se falar dos dispositivos constitucionais supramencionados.

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No escopo de darmos maior explicitação à carga conceitual do princípio da livre iniciativa expomos a concepção elucidativa de José Afonso da Silva (2006, p. 793):

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei. É certamente o princípio básico do liberalismo econômico. Surgiu como um aspecto da luta dos agentes econômicos para libertar-se dos vínculos que sobre eles recaiam por herança, seja do período feudal, seja dos princípios do mercantilismo. No início, e durante o século passado até a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a liberdade de iniciativa econômica significava garantia aos proprietários da possibilidade de usar e trocar seus bens; garantia, portanto, do caráter absoluto da propriedade; garantia de autonomia jurídica e, por isso, garantia aos sujeitos da possibilidade de regular suas relações do modo que tivessem por mais conveniente; garantia a cada um para desenvolver livremente a atividade escolhida. (...) a evolução das relações de produção e a necessidade de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, bem como o mau uso dessa liberdade e a falácia da ‘harmonia natural dos interesses’ do Estado liberal, fizeram surgir mecanismos de condicionamento da iniciativa privada, em busca da realização de justiça social, de sorte que o texto supratranscrito do art. 170, parágrafo único, sujeito aos ditames da lei, há de ser entendido no contexto de uma Constituição preocupada com a justiça social e com o bem-estar coletivo.

Destarte, explicita-se o notável vulto que assume o princípio estudado em nosso ordenamento jurídico, coordenando e informando as bases de todo o sistema econômico estruturado em nossa Constituição federal.

Outrossim, considerando o entendimento daquilo em que propriamente consiste a liberdade de iniciativa, urge que se conceitue, ainda, a chamada Livre Concorrência, a qual, ainda que se situe como um desdobramento lógico da livre-iniciativa, com ela não se confunde. Ademais, tem sua previsão constitucional no inciso IV do retrocitado art. 170, que introduz a chamada Ordem Econômica em nosso ordenamento jurídico, sendo tratada, portanto, como princípio econômico.

Destarte, buscamos a origem desse instituto jurídico também no famigerado Decreto de Allarde, de 1791. Desse modo, para melhor compreendermos sua profundidade teórica, explicitamos aqui o entendimento do estudioso do direito econômico, Leonardo Vizeu Figueiredo (2006, p. 42) acerca da Livre-Concorrência:

É um dos alicerces da economia liberal, sendo corolário da livre-iniciativa, isto é, só existirá a livre-concorrência onde o Estado garante a livre-iniciativa. (...) Concorrência é a ação competitiva desenvolvida por agentes que atuam no mercado de forma livre e racional. Assim, deve o Estado intervir de forma a garantir que a competição entre os concorrentes de um mesmo mercado ocorra de forma justa e sem abusos (monopólio, oligopólio, truste, cartel, etc.), garantindo-se, assim, o equilíbrio entre a oferta e a procura. (...).

Sendo assim, a priori, determinamos a relevância do princípio em exame a partir da inferência de sua afinidade com o modelo capitalista neoliberal vigente em nosso país. De modo que, enquanto principal corolário de nosso sistema econômico, devemos investigar doravante até que ponto o seu desenvolvimento pleno é benéfico para a consecução dos fins notadamente sociais insculpidos solidamente em nossa Constituição.

1.2 Busca do Pleno Emprego

A assunção de um princípio de busca do pleno emprego em nossa constituição remonta ao ideário teórico de John Maynard Keynes, economista britânico que na primeira parte do século XX promoveu uma verdadeira revolução no pensamento econômico. Formulando teorias que explicitavam a necessidade de intervenção do Estado na economia, como principal meio de promover o efetivo desenvolvimento sócio-econômico, foi considerado o fundador da chamada concepção macroeconômica.

Destarte, Keynes, buscando aprimorar o sistema capitalista - que entendia ser o mais eficiente – cunhou teorias que elucidavam a impotência do mercado em se auto-regular, desenvolvendo princípios econômicos que reivindicavam a utilização plena de todos os fatores da produção, advindo daí, portanto, a conceituação da busca do pleno emprego.

No Brasil, o referido princípio entra em nosso sistema jurídico com a Constituição Federal de 1967, através da Emenda Constitucional 1/69, com a grafia diversa de expansão das oportunidades de emprego produtivo, no inciso VI, do art. 160. Hodiernamente, está consagrado em nossa Carta Política no inciso VII, do art. 170, enquanto princípio geral da atividade econômica, denotando a importância que assume em nosso sistema normativo.

Considerando-o enquanto princípio de natureza sócio-econômica, expomos o amplo conceito acerca do princípio da busca do pleno emprego elaborado por Leonardo Vizeu Figueiredo (2006, p.43):

Trata-se da expansão das oportunidades de emprego produtivo, conforme positivado na Carta Política de 1967, que tem por fim garantir que a população economicamente ativa esteja exercendo atividades geradoras de renda, tanto para si, quanto para o país. (...) Ressalte-se que, quanto maior o número de cidadãos economicamente ativos laborando de forma rentável, maior será a renda per capita do País, maior será o volume de arrecadação com tributos, diminuindo-se os gastos com despesas oriundas da seguridade social, notadamente previdência e assistência, que poderá focar seus esforços e recursos, tão-somente, no notadamente necessitado. (...) Observe-se que, para tanto, o Estado deve adotar políticas anti-inflacionárias, com o fito de preservar o real valor dos rendimentos dos trabalhadores, mantendo seu poder aquisitivo, atuando, ainda, no sentido de garantir condições dignas de trabalho.

No que tange à conceituação propriamente dita, entendemos que deva haver uma interpretação restritiva no que concerne à significação do referido princípio em nosso ordenamento jurídico, mormente para os fins a que se destina esse trabalho. Ou seja, não entendemos haver, em nossa Constituição, um desenvolvimento tão amplo e pormenorizado, quanto se dá na seara econômica; tampouco são abrangidos em nosso campo normativo os reflexos das preocupações de cunho técnico que modernas teorias desenvolvem considerando a aplicação ampla do princípio da busca do pleno emprego em um dado país.

Destarte, para os fins a que nos propomos no presente trabalho, doravante compreenderemos sua carga normativa associada diretamente à criação de postos de trabalho bastantes para todo o contingente populacional apto a desenvolver atividade laboral, notadamente de forma remunerada.

Desse modo, contemplamos o princípio em estudo intimamente relacionado com o direito social ao trabalho (art. 6°, caput, CF), que cuida não apenas da democratização das oportunidades de trabalho mediante a efetivação do pleno emprego, mas também da melhoria de condições de saúde e segurança no trabalho.

Nessa toada, considerando a da busca do pleno emprego, principalmente enquanto um princípio garantidor de oportunidade de trabalho a toda população ativa, colacionamos reflexão deveras atual acerca do papel do princípio em comento, engendrada pelo professor José Eustáquio Diniz Alves (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística:

O conceito de 'pleno emprego', em economia, tem como base o estado de equilíbrio entre a oferta e a demanda dos fatores de produção em sua plena capacidade instalada. Em uma situação de pleno emprego não existe desperdício, em qualquer de suas formas, nem do capital e nem do trabalho. O pleno emprego significa a utilização da capacidade máxima de produção de uma sociedade e, evidentemente, deve ser utilizada para elevar a qualidade de vida da população, com respeito ao meio ambiente.

A população tem direito ao pleno emprego e cabe à sociedade estabelecer as leis e as normas que possibilitem a utilização integral da oferta de trabalho e cabe ao Estado implementar políticas micro e macroeconômicas direcionadas para a criação de oportunidades e para o aumento geral da produtividade dos fatores de produção. (...)

O pleno emprego é um pré-requisito para a dignidade dos trabalhadores e uma condição essencial para a estabilidade e o progresso da sociedade. Todo ser humano tem direito a um emprego e a um trabalho decente. O pleno emprego é a forma de se garantir este direito e uma forma de melhorar as condições econômicas do país, aproveitando o seu “capital humano”. Também poderá ser uma forma de ajudar a preservar o meio ambiente se houver investimento na ampliação na capacidade de geração de energias renováveis, no aumento da eficiência energética, no processo de reciclagem de materiais e na criação de empregos verdes.

Mediante a análise das reflexões empreendidas acima pelo Prof° José Eustáquio Diniz Alves auferimos a importância não apenas do oferecimento de postos de emprego bastantes a tantos quantos puderem participar da atividade laboral, mas também a preocupação de que tais empregos sejam decentes, ou seja, efetivamente coadunem-se com o corolário da dignidade da pessoa humana, promovendo o mister da cidadania.

Destarte, novamente reportando-nos ao trabalho do Prof° José Eustáquio Diniz Alves em “O Direito ao Pleno Emprego e ao Trabalho Decente” (2010), bem como ao esforço de conceituação identificado na resolução da OIT de 1999 que definiu o que seria trabalho decente - expondo algumas de suas principais características e efeitos - citaremos aqueles entendidos como os mais importantes a esse respeito presentes no artigo mencionado, oferecendo subsídios para a compreensão da possível amplitude e os reflexos da efetivação de um princípio constitucional como o da busca do pleno emprego.

•Oportunidades para encontrar um emprego que seja produtivo e proporcione um rendimento justo, que garanta aos trabalhadores e suas famílias poderem desfrutam de uma qualidade de vida decente;

•Liberdade para escolher o trabalho e a livre participação em atividades sindicais;

•Condições para que os trabalhadores possam ser tratados de forma justa, sem discriminação e sejam capazes de conciliar trabalho e responsabilidades familiares;

•Condições de segurança para proteger a saúde dos trabalhadores e proporcionar-lhes a proteção social adequada;

•Condições de dignidade humana para que todos os trabalhadores sejam tratadas com respeito e possam participar na tomada de decisão sobre suas condições de trabalho;

Ainda nesse sentido, mormente conciliando o teor econômico com o predominante cunho social do princípio estudado, salientamos a abalizada compreensão do constitucionalista José Afonso da Silva (2006, p. 797) acerca do princípio em comento:

Pleno emprego é expressão abrangente da utilização, ao máximo grau, de todos os recursos produtivos. Mas aparece, no art. 170, VIII, especialmente no sentido de propiciar trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade produtiva. Trata-se do pleno emprego da força de trabalho capaz. Ele se harmoniza, assim, com a regra de que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano. Isso impede que o princípio seja considerado apenas como mera busca quantitativa, em que a economia absorva a força do trabalho disponível, como o consumo absorve mercadorias. Quer-se que o trabalho seja a base do sistema econômico, receba o tratamento de principal fator de produção e participe do produto da riqueza e da renda em proporção de sua posição na ordem econômica.

De outro lado, também com grande valor elucidativo relativamente à conceituação do princípio da busca do pleno emprego, expomos o entendimento de Roseli Rego dos Santos (2010, p. 5254), plasmado em seu artigo “O Princípio da Busca do Pleno Emprego como Aplicação da Função Social da Empresa na Lei de Falências e Recuperação de Empresas”, o qual já denota uma outra faceta de atuação do princípio em comento:

Numa sociedade fundada em valores sociais, o direito ao trabalho remunerado e digno relaciona-se intrinsecamente com o direito à vida. Isso porque, para grande parte da população, da remuneração obtida pelo trabalho prestado é que se obtém os recursos suficientes para a aquisição dos bens indispensáveis à sobrevivência digna. Sendo assim, o direito ao trabalho é um direito de todos os cidadãos. O pleno emprego decorre de uma democratização das relações de trabalho e pode ser definido como uma condição do mercado onde todos os que são aptos a trabalhar, e estão dispostos a fazê-lo, encontram trabalho remunerado. (...)

A conformação do pleno emprego como um direito é uma expressão do Estado Social, que tem como pressuposto a intervenção estatal na ordem econômica que pode definir a função e até mesmo do conteúdo de determinados direitos. Sendo assim, a noção de direito ao trabalho remunerado ou o pleno emprego nasce a partir da conformação desses direitos sociais, como direitos fundamentais de segunda dimensão. Dessa feita, o poder público tem o compromisso de promover as condições para que a liberdade e a igualdade na obtenção de um trabalho digno e remunerado sejam real e efetivamente reconhecidas aos indivíduos, devendo para isso remover os obstáculos que impedirem ou dificultarem sua plenitude.

Tendo em vista a delimitação semântica do princípio da busca do pleno emprego acima engendrada acreditamos ter sido deslindado seu caráter sócio-econômico e, propedeuticamente, explicitados os efeitos benéficos passíveis de serem atingidos com a sua plena efetivação.

1.3 Recepção em nosso Ordenamento Jurídico

No intuito de determinar o grau de efetivação dos institutos jurídicos estudados, assim como as possíveis razões que a determinam, é imperativo que analisemos de que modo se dá a sua intronização em nosso sistema normativo; ou seja, perquirir de que maneira são recebidos e dispostos na estrutura organizacional de nossa constituição os conceitos examinados, como meio de inferir acerca de sua exigibilidade no plano fático.

Para a consecução de tal desiderato, adotaremos como linha-mestra em nosso projeto a interpretação constitucional sistemática do mestre português J.J. Gomes Canotilho, que concebe o modelo constitucional de Portugal (que acreditamos guardar grande semelhança com o nosso) enquanto um sistema aberto de regras e princípios. Nesse sentido, ele sistematiza a referida estrutura constitucional (2008, p. 1159):

(...) o sistema jurídico do Estado de direito democrático português é um sistema normativo aberto de regras e princípios. Este ponto de partida carece de <descodificação>: (1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e <capacidade de aprendizagem> das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da <verdade> e da <justiça>; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas; (4) é um sistema de regras e princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a sua forma de regras.

Destarte, filiamo-nos ao entendimento de que nosso ordenamento jurídico constitui um verdadeiro sistema normativo aberto de regras e princípios, justamente pelo viés democrático que determina a natureza de nosso Estado de Direito. Ainda, temos que se tratam, a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, de princípios constitucionais, tendo em vista, também, o criterioso método interpretativo desenvolvido pelo constitucionalista lusitano, abaixo explicitado.

Nesse toada, temos que analisando o grau de abstração da norma (gênero) que, no caso, em ambos os institutos é relativamente elevado, infere-se que sejam princípios. Caso fossem regras, forçosamente teriam grau de abstração reduzida, mormente pela sua necessidade de determinação cogente.

Tendo por parâmetro o grau de determinabilidade no plano fático, novamente concluímos pela sua identidade com os princípios, haja vista a necessidade de chamadas mediações concretizadoras (seja por parte do legislador ou do juiz), enquanto as regras ordinariamente têm aplicação direta.

Considerando, ainda, o caráter de fundamentabilidade, assumimos que se coadunam ambos com o modelo principiológico, visto que coordenam e estruturam o sistema normativo no qual estão inseridos – no caso da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, têm o condão de informar e organizar principalmente a chamada ordem econômica.

Ainda, levando em consideração a proximidade da idéia de direito, identificamos em ambos um conteúdo predominantemente de natureza material, harmonizando-se com os ideários da justiça (Dworkin) e, mesmo, da idéia de direito (Larenz), diferentemente das regras que, habitualmente, são apenas formalmente vinculativas. (CANOTILHO, 2008, p.1159)

Por fim, temos ainda o critério que Canotilho chama de natureza normogenética dos princípios, que determina que estes fundamentam regras, constituindo sua base material; nos princípios estudados, como veremos no seguimento do trabalho, dá-se o mesmo, ainda que sem uma proporção razoável no que concerne à incidência de um e outro em nosso plano legislativo (CANOTILHO, 2008, p.1159).

Mais do que determinar a livre iniciativa e a busca do pleno emprego enquanto princípios constitucionais devemos, nesse momento, investigar sua natureza. Para tanto, perfilhando entendimentos doutrinários como sustentáculo teórico, buscaremos construir uma ideia sólida daquilo que corresponda à essência de ambos os princípios.

Ressaltamos aqui o entendimento de Paulo Bonavides, com o qual assentimos, de que a norma constitucional - genericamente considerada - é eminentemente uma norma política. Não obstante, na tarefa de compreender o motivo pelo qual alguns princípios insertos em nossa Carta Magna são aplicados – tanto na seara legislativa, como na jurisprudencial - em larga escala, enquanto outros são quase que totalmente olvidados no plano de efetividade, urge que analisemos com maior minúcia a questão própria da natureza dos dois princípios aqui examinados.

Desse modo, cumpre que examinemos separadamente, o modo como um e outro princípio estudado foi absorvido em nossa estrutura constitucional, no escopo de determinarmos as idiossincrasias que possam determinar a suposta tensão entre ambos.

José Afonso da Silva, examinando a obra de José Joaquim Gomes Canotilho, posicionou-se pela existência de duas principais classes de princípios constitucionais, os princípios político-constitucionais e os princípios jurídico-constitucionais.

Os primeiros dizem respeito aos princípios que expressam decisões políticas fundamentais que conformam e orientam todo o sistema constitucional positivado. Determinam o modo de organização do Estado, sendo também chamados de normas-princípio, ou seja, normas gerais das quais derivam hierarquicamente todas as outras normas em nossa Constituição dispostas.

De acordo com o próprio Canotilho (2008, p. 1166), que os denomina princípios politicamente conformadores, são eles:

[…] os princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição. Expressando as concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembléia constituinte, os princípios político-constitucionais são o cerne político de uma constituição política, não admirando que: (1) sejam reconhecidos como limites do poder de revisão; (2) se revelem os princípios mais directamente visados no caso de alteração profunda do regime político. Nesta sede situar-se-ão os princípios definidores da forma de Estado: princípios da organização econômico-social, como, por ex:, o princípio da subordinação do poder econômico ao poder político democrático, o princípio da coexistência dos diversos sectores da propriedade – público, privado e cooperativo; os princípios definidores da estrutura do Estado (unitário, com descentralização local ou com autonomia local e regional), os princípios estruturantes do regime político (princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio republicano, princípio republicano, princípio pluralista) e os princípios caracterizadores da forma de governo e da organização e da organização política em geral como o princípio da separação e interdependência de poderes e os princípios eleitorais.

Perante tal definição teórica, não nos escusamos de inferir estar aí circunscrita a dimensão própria que fundamenta a livre iniciativa que, disposta inicialmente no primeiro artigo de nosso texto constitucional informa o teor geral de nosso modelo econômico, conformando todos os demais dispositivos da Carta Magna a esta realidade consolidada. Assim procedendo, filiamo-nos ao douto entendimento de juristas brasileiros como Eros Roberto Grau e José Afonso da Silva que acentuam o caráter preeminente da livre iniciativa em nosso ordenamento jurídico.

De outro lado, os princípios jurídico-constitucionais são positivados observando as disposições materiais daqueles ditos conformadores, constituindo, assim, um desdobramento lógico e consentâneo com as preocupações lá manifestadas pelo legislador constituinte. Aqui também, cabe a menção á nomenclatura utilizada por Canotilho, bem como seu entendimento abalizado acerca dessa natureza de princípios. Assevera o jurista português que (2008, p. 1167):

Nos princípios constitucionais impositivos subsumem-se todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas. São, portanto, princípios dinâmicos, prospectivamente orientados. Estes princípios designam-se, muitas vezes, por <preceitos definidores dos fins do Estado>, princípios directivos fundamentais, ou <normas programáticas, definidoras de fins ou tarefas. Como exemplo de princípios constitucionais impositivos podem apontar-se o princípio da independência nacional e o princípio da correcção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento (arts. 9.°/d e 81.°/b). Traçam, sobretudo para o legislador, linhas rectrizes da sua actividade política e legislativa.

Nesse sentido, nos é possível identificar a natureza do princípio da busca do pleno emprego enquanto uma norma (gênero) de caráter impositivo, mais propriamente determinando uma conduta imperativa aos legisladores e governantes. Nessa toada é que José Afonso da Silva considera a busca do pleno emprego também como um princípio diretivo, contrapondo-se material e formalmente, por exemplo, a medidas políticas de caráter recessivo.

Por derradeiro, inferimos – lastreados também na compreensão de Canotilho - que o princípio da busca do pleno emprego determina uma tarefa ou um fim a ser concretizado mediante, principalmente, a aplicação zelosa das disposições constitucionais, o que também acreditamos acontecer na determinação da redução das desigualdades regionais e sociais e, mesmo, na exaltação da livre-concorrência, objetivos estes também insculpidos no art. 170 de nosso Texto Fundamental.

Destarte, doravante investigaremos a problemática genuína que legitima o presente texto, qual seja, delimitar em que termos ocorre o enfrentamento dos dois princípios sob exame, investigando acerca da possibilidade efetiva de sua coexistência harmônica dentro de nosso ordenamento jurídico ou de seu inconciliável antagonismo de ordem axiológica.

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Sobre o autor
William Daniel Silveira Pfarrius

Graduado em Direito pela FURG (Universidade Federal do Rio Grande) em 2010. Servidor Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PFARRIUS, William Daniel Silveira. O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3422, 13 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23000. Acesso em: 23 abr. 2024.

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