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A fórmula "saisine" no Direito Sucessório

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04/12/2012 às 15:43
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A saisine é um instituto do Direito das Sucessões, estampado no artigo 1.784 do Código Civil, consistente em uma ficção jurídica que proporciona aos herdeiros a posse indireta do patrimônio deixado causa mortis pelo falecido.

“Não é aos padres nem aos filósofos que se deve perguntar para que serve a morte, mas sim, aos herdeiros” - Francesco Petrarca

Resumo: Este trabalho analisa o princípio da saisine do direito sucessório, regulado pelo Código Civil (artigo 1.784), à luz da doutrina e jurisprudência pátria. Buscou-se, inicialmente, perquirir a gênese do instituto, com vistas a realçar sua importância na contemporaneidade. Discutiu, ainda, o conceito e a natureza jurídica da saisine, analisando seus efeitos e a relativização de sua extensão e aplicabilidade. O tema em destaque desafia análise dogmática, de uma perspectiva crítica. O método dialético permitiu considerar as influências sobre a elaboração normativa, o sistema político e ideológico dominante na sociedade. Outrossim, empregou - se o método indutivo, eis que o tema recebe grande contribuição do labor dos tribunais, sendo imprescindível análise de julgados para perscrutar as tendências jurisprudenciais do universo investigado. Ainda, o uso do método histórico – comparativo proporcionou o resgate da gênese do instituto, conferindo maior compreensão do assunto tratado.

Palavras-chave: Saisine; Herança; Morte; Sucessão, Posse, Propriedade


INTRODUÇÃO

A fórmula saisine é de origem medieval (1.259), nascida do direito costumeiro parisiense. A finalidade precípua do instituto é a defesa do próprio direito de herança, da propriedade dos bens que a compõem, em favor dos herdeiros do de cujus.

Tanto é que a expressão saisine deriva do vocábulo latino sacire, que significa “apropriar – se”, “se imitir na posse”, “por para dentro”.

A pesquisa contou com apurado levantamento bibliográfico, nacional e estrangeiro, perscrutando as vertentes jurisprudenciais sobre a saisine. Mister se fez se socorrer no direito francês, com vistas a vasculhar a gênese do instituto, bem como as razões de seu nascimento. Tal tarefa incumbiu ao jurista francês Jacques Krynen, quem investigou a origem do instituto, decifrando sua importância medieval. No Brasil, a peculiar doutrina de Caio Mário da Silva Pereira trabalhou sua historicidade e desnudou sua atualidade.

No tocante às expressões estrangeiras típicas do assunto (v. g., Le serf mort saisit le vif, son hoir de plus proche, Der Tote erbt den Lebenden) interessante abordagem é realizada por Pablo Stolze, quem aduz inexistir qualquer sentido lógico ou semântico na tradução literal das mesmas, destacando a necessidade de combate ao excessivo estrangeirismo da linguagem jurídica.

Merece destaque os estudos da Profa. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, quem, à época da entrada em vigor do Código Civil de 2002, já se debruçava em idealizar o tema de uma perspectiva inovadora e moderna.

Ao final, competiu à jurisprudência (destacadamente a do Superior Tribunal de Justiça), por termo em controvérsias, tais quais, a relativização do princípio de saisine, quando cotejado com outros princípios de ordem pública ou de interesse coletivo.


I. BREVE NOTÍCIA HISTÓRICA DO INSTITUTO

O droit de saisine tem sua gênese no direito medieval, em idos do século XIII. Nesta época, o senhor feudal institui a praxe de se cobrar pagamento dos herdeiros de seu servo morto para que  fossem estes autorizados a se imitir na posse dos bens havidos pela sucessão.

Assentou – se, então, no direito costumeiro parisiense, a fórmula Le serf mort saisit le vif, son hoir de plus proche, com o escopo de defender o servo desta imposição senhoril. Em verdade, tal instituto, consagrado pela doutrina francesa, traduz o necessário imediatismo na transmissão dos bens do de cujus aos herdeiros. Tal transferência se concretiza com a morte do antigo titular dos bens (le mort saisit le vif, vale dizer, o morto é substituído pelo vivo). [1]

Informa Jacques Krinen que a expressão le mort saisit le vif apareceu a primeira vez em 1.259, em julgamento de imigrantes. Um ano depois, tal expressão foi ressentida nos tribunais franceses, tornando – se verdadeira regra geral no direito da França. Em 1.384, em notas de audiência do Parlamento, evidenciou – se a agregação do instituto referido no direito consuetudinário daquele país, expresso no princípio geral de que o herdeiro vivo substitui o de cujus [2]

Pondera Caio Mário da Silva Pereira que o droit de saisine não foi uma peculiaridade francesa, porquanto tal instituto já era proclamado no direito germânico, ou ao menos admitido, quando da adoção da fórmula: Der Tote erbt den Lebenden. [3]

A expressão saisine originou – se do latim sacire, significando apoderar - se (posse de bens). Destarte, expressa a transmissão, desde logo, dos bens do de cujus aos seus herdeiros.


II. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO DROIT DE SAISINE

Maria Helena Diniz, com grande propriedade, leciona ser a morte a pedra angular de todo o direito sucessório, vez que ela determina a abertura da sucessão. Não se compreende, neste quadrante, tal instituto sem o óbito do de cujus, dado que não há herança de pessoa viva.[4]

O princípio da saisine é de uma ficção jurídica, que autoriza uma apreensão possessória de bens do de cujus pelo herdeiro vocacionado, legítimo ou testamentário, ope legis. Este, independentemente de qualquer ato, ingressará na posse dos bens que constituem a herança do antecessor falecido, de forma imediata e direta, ainda que desconheça a morte do antigo titular.

É mister inferir que no momento da transmissão da posse e da propriedade, o herdeiro recebe o patrimônio tal como se encontrava com o de cujus. Logo, transmitem-se, também, além do ativo, todas as dívidas, ações e pretensões contra ele existentes. 

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka infere sobre o instituto investigado:

A sucessão considera-se aberta no instante mesmo ou no instante presumido da morte de alguém, fazendo nascer o direito hereditário e operando a substituição do falecido por seus sucessores a título universal nas relações jurídicas em que aquele figurava. Não se confundem, todavia. A morte é antecedente lógico, é pressuposto e causa. A transmissão é conseqüente, é efeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem em termos cronológicos, (1) presumindo a lei que o próprio de cujus investiu seus herdeiros (2) no domínio e na posse indireta (3) de seu patrimônio, porque este não pode restar acéfalo. Esta é a fórmula do que se convenciona denominar ‘droit de saisine’.[5]

De outra banda, Sílvio de Salvo Venosa define a saisine como: “o direito que têm os herdeiros de entrar na posse dos bens que constituem a herança”. [6]

Esclarece, ainda, que a saisine possibilita que todos os bens do falecido se transfiram, de imediato e com sua morte, aos seus herdeiros, legítimos ou testamentários (artigo 1.784, Código Civil).

Tal principiologia, em nosso ordenamento jurídico, mantém certa tradição secular, haja vista que já se encontrava inserida no Código Civil de 1.916 (Código Bevilácqua), revelando nítida influência do conhecido Código Napoleônico de 1.804, de índole liberal, regido pelo laissez faire laissez passet.[7]

De fato, Orlando Gomes menciona: “[...] o direito pátrio filiou-se à doutrina do saisine. Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.”[8]

A definição adotada pela jurisprudência pátria não destoa da definição legal ou doutrinária. Nesta ordem de raciocínio, o princípio de saisine, previsto no artigo 1.784 do Código Civil, é aplicável no instante da morte do de cujus, ato que abre a sucessão, transmitindo-se, sem solução de continuidade, a propriedade e a posse dos bens do falecido aos seus herdeiros sucessíveis, legítimos ou testamentários, que estejam vivos naquele momento, independente de qualquer ato.[9]

O Superior Tribunal de Justiça assim concebe o instituto:

o Princípio da Saisine, corolário da premissa de que  inexiste  direito  sem  o  respectivo  titular, a herança, compreendida como sendo o acervo de bens, obrigações e direitos, transmite - se, como  um  todo, imediata e indistintamente  aos herdeiros.  Ressalte-se, contudo, que os  herdeiros,  neste  primeiro momento,  imiscuir-se-ão  apenas  na  posse  indireta  dos  bens transmitidos. A posse  direta  ficará  a cargo de  quem detém  a posse de fato dos bens deixados pelo de cujus  ou  do  inventariante,  a  depender  da  existência  ou  não  de inventário aberto.[10]

Outra definição convergente, também de cunho jurisprudencial, emerge do Recurso Especial nº 537.363 - RS (2003/0051147-7),

DIREITO CIVIL. POSSE. MORTE DO AUTOR DA HERANÇA. SAISINE. AQUISIÇÃO EX LEGE. PROTEÇÃO POSSESSÓRIA INDEPENDENTE DO EXERCÍCIO FÁTICO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Modos de aquisição da posse. Forma ex lege: Morte do autor da herança. Não obstante a caracterização da posse como poder fático sobre a coisa, o ordenamento jurídico reconhece, também, a obtenção deste direito na forma do art. 1.572 do Código Civil de 1916, em virtude do princípio da saisine, que confere a transmissão da posse, ainda que indireta, aos herdeiros, independentemente de qualquer outra circunstância.

2. A proteção possessória não reclama qualificação especial para o seu exercício, uma vez que a posse civil - decorrente da sucessão -, tem as mesma garantias que a posse oriunda do art. 485 do Código Civil de 1916, pois, embora, desprovida de elementos marcantes do conceito tradicional, é tida como posse, e a sua proteção é, indubitavelmente, reclamada.

3. A transmissão da posse ao herdeiro se dá ex lege. O exercício fático da posse não é requisito essencial, para que este tenha direito à proteção possessória contra eventuais atos de turbação ou esbulho, tendo em vista que a transmissão da posse (seja ela direta ou indireta) dos bens da herança se dá ope legis, independentemente da prática de qualquer outro ato.

4. Recurso especial a que se dá provimento. [11]

Ainda, enunciando a aplicabilidade do princípio em comento, transcreva – se ementa de decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis:

INVENTÁRIO. ABERTURA DA SUCESSÃO. TRANSMISSÃO. CAPACIDADE SUCESSÕRIA. PRINCÍPIO DA ‘SAISINE’.

1. Ocorrendo a morte de uma pessoa que deixa bens, deve ser observado o processo de inventário para se efetivar a entrega do patrimônio aos herdeiros.

2. O patrimônio se transmite instantaneamente aos herdeiros e sucessores com a morte da pessoa, por decorrência do princípio da ‘saisine’ Inteligência do art. 1.572 do CCB/1916 (e art. 1.784 do CCB/2002).

3. O encerramento ou não do processo de inventário nada tem a ver com a transmissão do patrimônio em razão da morte de alguém e não interfere na ordem de vocação hereditária.

4. Se o cônjuge supérstite era o único herdeiro da esposa, o patrimônio desta transmitiu-se para ele no momento da morte dela, e, com a morte deste devem ser chamados a sucedê-lo os seus herdeiros. Recurso desprovido. [12]

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Impende – se ponderar que por dicção do inciso II, do artigo 80, do diploma civil vigente, a natureza jurídica dos direitos hereditários (campo onde se situa a saisine), por ficção legal, é de coisa imóvel, ainda que os bens havidos em herança sejam todos móveis ou Direitos Pessoais.

Nesta esteira de raciocínio, para a cessão da herança, faz - se obrigatória a sua formalização por meio de escritura pública, sendo o instrumento particular mero gerador de direito obrigacional entre cedente e cessionário, tornando-se inválido se tendente a ceder definitivamente os direitos hereditários. Além disso, se faz necessária à outorga uxória do cônjuge na escritura pública, caso seja ele casado em qualquer dos regimes que não o de separação absoluta de bens (artigo 1.647 CC). Ausente a outorga conjugal, nos casos em que for necessária, a cessão é anulável, facultando ao cônjuge prejudicado pleitear judicialmente a sua parte no quinhão. [13]


III.DOS EFEITOS DA SAISINE

O conceito da saisine, alhures sinalizado, gera alguns efeitos singularmente sintetizados pela doutrina de Caio Mário da Silva Pereira[14], a saber:

1- abre-se a herança com a morte do sujeito, e no mesmo instante os herdeiros a adquirem. Verifica-se, portanto, imediata mutação subjetiva;

2- não é o fato de estar próximo que atribui ao herdeiro a posse e propriedade dos bens, mas sim a sucessão - a posse e a propriedade advêm do fato do óbito;

3- o herdeiro passa a ter legitimidade ad causam (envolvendo a faculdade de proteger a herança contra a investida de terceiros);

4- com o falecimento do herdeiro após a abertura da sucessão, transmite-se a posse e propriedade da herança aos seus sucessores, mesmo sem manifesta aceitação;

5- mesmo que os bens não estejam individualizados e discriminados, constitui a herança em si mesma um valor patrimonial, e, como tal, pode ser transmitida inter vivos.

O primeiro efeito apontado deflui da própria fórmula da saisine, vale mencionar, a morte gera, de pronto, a transferência da herança aos herdeiros do falecido. Tal sucessão se traduz em mera mutação subjetiva; logo, os bens se transferem da forma como se encontravam com o de cujus, fato assim noticiado por Maria Helena Diniz[15]: “Quer isso dizer que, se uma posse começou violenta, clandestina e precária, presumisse ficar com os mesmos vícios, que irão acompanhá-la nas mãos dos sucessores adquirentes. Do mesmo modo, se adquiriu de boa fé ou de má fé, entende-se que ela permanecerá assim mesmo, conservando essa qualificação”.

Outro importante efeito sentido com a adoção do instituto está na legitimidade ad causam conferida aos herdeiros na defesa dos bens havidos com a morte do antigo titular.  Destarte, com a saisine, os herdeiros gozam de legitimidade processual “para intentar ou prosseguir ações contra quem quer que traga moléstia a posse, ou pretendam impedir que os herdeiros nela se invistam. A partir da abertura da sucessão surge para os herdeiros direitos processuais, inclusive de integrarem, o pólo passivo das ações intentadas contra o de cujus, numa rara autorização judicial de mudança de pólo passivo”. [16]

Em sentido convergente a doutrina, o Tribunal de Justiça do Paraná reconheceu ter os herdeiros do falecido legitimacio ad causam para intentar ação de cobrança de expurgos inflacionários de caderneta de poupança havida em herança, independentemente da existência de inventário.

Assim:

AÇÃO DE COBRANÇA. POUPANÇA. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. FALECIMENTO DOS CORRENTISTAS/POUPADORES. LEGITIMIDADE DOS HERDEIROS PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO, INDEPENDENTEMENTE DA ABERTURA DE INVENTÁRIO. PRINCÍPIO DA SAISINE, INSCULPIDO NO ARTIGO 1.784 DO CÓDIGO CIVIL. PRETENSÃO AFASTADA EM RELAÇÃO AOS RECORRENTES QUE NÃO DEMONSTRAM ESSA QUALIDADE. Desde que demonstrada essa condição, detêm os herdeiros dos titulares de contas de poupança legitimidade ativa para ajuizar ação que visa a cobrança dos expurgos inflacionários de caderneta de poupança, independentemente da abertura de inventário. PROVIMENTO IMEDIATO E NEGATIVA DE SEGUIMENTO AO RECURSO. [17]

A função da saisine como regra geral do direito hereditário, neste contexto, repousa na defesa e na proteção do patrimônio nas mãos dos herdeiros do de cujus, até a efetiva materialização por intermédio do procedimento de inventário.

Ainda, quanto aos efeitos desta regra sucessória, vale destacar que a lei civil só legitima a suceder os que eram nascidos ou concebidos na época da abertura da sucessão. Disso decorre que o herdeiro deve estar vivo (ainda que em vida intra - uterina) quando o autor da herança falecer, porque não se reconhece direito sucessório aos herdeiros pré - mortos do de cujus.

Interessante situação se coloca quando do reconhecimento à sucessão de herdeiro ainda não nascido, mas já concebido, quando da abertura da sucessão. O direito romano, neste caso, reconhecia o direto à sucessão testamentária a pessoa ainda não nascida, porém concebida, quando da abertura da sucessão. [18]

Juliana Simão da Silva e Fernando Silveira De Melo Plentz Miranda, em interessante análise acerca de direitos reconhecidos ao nascituro, defendem:

Ao nascituro também lhe é assegurado o direito de adquirir bens por meio de testamento. Patente se mostra no artigo 1.798 do Código Civil que, podem adquirir por meio de testamento as pessoas já concebidas no tempo da morte do testador. O nascituro já é um ser concebido, portanto entende o direito que já existe, não se sabe se esta vida que está sendo gerada, irá se perfazer. O nascituro tem capacidade sucessória, pois já é ele uma vida em desenvolvimento, o seu nascimento é requisito para a aquisição de todos os outros direitos pertinentes aos já nascidos. Porém este direito de sucessão é resguardado ao nascituro. [19]

Desta perspectiva, há que se reconhecer a saisine a pessoa ainda não nascida, mas já concebida à época da abertura da sucessão. É claro que esta sucessão se opera de modo condicional, por intermédio de disposição testamentária. Vale dizer: o direito sucessório do nascituro só lhe é deferido diante do nascimento dele com vida. Não se atribui tal direito ao natimorto, por força do § 3º, artigo 1800, do Código Civil, quem estipula: “Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida à sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador”.

Ao final, insta gizar que reconhecimento do direito à sucessão aos herdeiros é de natureza imutável, só se concebendo mudança na transmissão da herança em situações extremamente excepcionais, v. g., quando existirem herdeiros desconhecidos, que intentem ação de investigação de paternidade.

Desta forma,

Processo civil - Ação de investigação de paternidade - Legitimidade passiva - A existência de herdeiros testamentários, únicos contemplados, por si só, não afasta a condição de herdeiro prevista no Código Civil - Interesse moral do herdeiro na pesquisa do vínculo genético, que se resume na defesa da honra, da conduta reta e outros atributos de ordem moral e social, em favor do suposto genitor e autor da herança - Recurso não provido.[20]

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, neste tocante, reconheceu a ilegitimidade do espólio para figurar no pólo passivo de ação de reconhecimento de paternidade cumulada com petição de herança. Entendeu esta corte que o pólo passivo da demanda deva ser ocupado pelos herdeiros, sendo nula a citação da viúva inventariante. [21]


IV.A RELATIVIZAÇÃO DA FÓRMULA SAISINE

Como profetizado pelo positivismo de Augusto Comte, “Tudo é relativo. Eis o único princípio absoluto”.

O princípio da saisine, nesta esteira de raciocínio, é relativo, posição endossada pelos tribunais brasileiros, notoriamente o Superior Tribunal de Justiça.

Este, ao julgar o Recurso Especial nº 1.204.905 - ES (2010/0138662-6), pontuou:

Deve ser essa a melhor interpretação a ser conferida aos referidos dispositivos legais, de modo que a pretensão da parte recorrente, no sentido de que há fracionamento imediato do imóvel, pelo princípio da saisine e com a simples morte do então proprietário, não se coaduna com o sistema normativo brasileiro.

Impossível imaginar-se que, em havendo a morte do então proprietário, imediatamente parcelas do imóvel seriam distribuídas aos herdeiros, que teriam, individualmente, obrigações sobre o imóvel agora cindido. Poder-se-ia, inclusive, imaginar que o INCRA estaria obrigado a realizar vistorias nas frações ideais e a eventualmente considerar algumas dessas partes improdutivas, expropriando-as em detrimento do todo que é o imóvel rural.

Portanto, não há dúvidas de que o princípio da saisine de forma alguma implica em transmissão e consequente divisão do bem expropriado em frações ideais (unidades autônomas) imediatamente à morte do autor da herança.

Nessa linha de raciocínio, infere-se que o instituto da saisine, embora assegure a imediata transmissão da herança, deve ser obtemperado que, até a partilha, os bens serão considerados indivisíveis.

Ademais, mesmo considerando-se que a ocorra transmissão imediata da herança com a morte do seu autor, bem como que, de forma consectária, a partilha do imóvel objeto da expropriação seja efetivada na divisão de frações ideais respectivamente ao número de herdeiros, não se pode conceber que essa "ficta divisão" decorrente da saisine faça surtir efeito impeditivo à implementação da política de reforma agrária governamental. Isso porque essa divisão tão somente se opera quanto à titularidade do imóvel, a fim de assegurar a futura partilha da herança.

Logo, é de se concluir que a saisine, embora esteja contemplada no nosso Direito Civil das Sucessões (art. 1.784 do Código Civil em vigor), não serve de obstáculo ao cumprimento da política de reforma agrária brasileira.[22]

Vê – se que do cotejo da fórmula saisine com o princípio da função social da propriedade rural (estampado nos artigos 184, 185 e 186 da Constituição Federal de 1.988), o exegeta prestigiou o segundo em detrimento do primeiro.

É bem verdade que as diretrizes assumidas pela nova codificação civil relegaram para segundo plano o individualismo excessivo do Código Civil de Bevilácqua, priorizando o interesse coletivo em detrimento do individual.

Tal postura justifica a relativização da saisine, que cuida de interesses individuais, privados, não devendo ter alcance e aplicabilidade diante da socialidade vislumbrada na expropriação de terras para fins de reforma agrária.

Decisão contrária, colocaria em xeque o próprio espírito social do Código Civil de Reale, sobrepondo tal ao texto constitucional.

Neste sentido, avalizando o solidarismo da Codificação Civil de 2002, Ives Gandra da Silva Martins manifesta:

Se, por um lado, o bem comum é a potencialização do bem particular, por outro, tem primazia sobre o bem particular, pois o bem de muitos é melhor do que o bem de um só. Assim, se cada componente da comunidade é bom, o conjunto desses componentes é ótimo, uma vez que acresce ao bem particular de cada um a perfeição do conjunto. Isto porque, no bem do todo, está incluído o bem de cada uma das partes. Daí que se deva preferir o bem comum ao bem próprio. E daí também que, quando amamos o bem em toda a sua integralidade, é quando melhor nos amamos a nós mesmos. Na verdade, ao se buscar o bem comum, busca-se necessária e conseqüentemente o próprio bem, pelo benefício que a parte recebe do todo. Daí que ‘todas as coisas singulares amam mais o bem de sua espécie que seu bem singular’. O bem comum está, portanto, para permitir aos indivíduos a consecução de seus bens particulares, mas é superior a estes: o bem particular de um indivíduo não pode ser buscado em detrimento do bem comum da sociedade. [23]

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Sobre o autor
Rodrigo Alves da Silva

mestre e doutor em Direito. É pesquisador e parecerista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Advogado,regularmente inscrito na OAB/SP (204.358), docente da Escola Superior de Advocacia (ESA) e Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Alves. A fórmula "saisine" no Direito Sucessório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3443, 4 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23156. Acesso em: 19 mar. 2024.

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