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Rui, Sobral e a Constituição de 1988.

Uma breve análise acerca da construção da democracia e da República no Brasil, a partir da experiência de dois ícones da advocacia nacional

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Presta-se uma homenagem aos profissionais da advocacia, passando pelas figuras dos dois maiores advogados da nossa história: Rui Barbosa e Sobral Pinto.

Não há motivo para me orgulhar. Não nos orgulhamos de ter cumprido um dever. Cumpri um dever de cidadão e de advogado. De cidadão porque era dever de todos protestar contra uma ditadura que se instalava. E de advogado porque era um perseguido que precisava de amparo e era meu dever dar esse amparo. Cumpri apenas um dever cívico e profissional e quem assim faz não se orgulha, somente fica tranquilo, porque a consciência aprova. Apenas isso. (Sobral Pinto) [1]


Senhoras e senhores,

1. Nesta breve intervenção pretendo homenagear os advogados e as advogadas do Piauí, no sagrado ministério de defender os direitos e os interesses de seus constituintes ou clientes.

2. E qualquer homenagem que se presta aos profissionais da advocacia tem de forçosa e necessariamente passar pelas figuras dos dois maiores advogados da nossa história: Rui Barbosa de Oliveira[2] e Heráclito Fontoura Sobral Pinto[3].

3. Segundo Rubens Approbato Machado[4], ex-presidente do Conselho Federal da OAB, o dia 5 de novembro é uma data mística, pois nesse dia e mês no ano de 1849 nascia Rui Barbosa, e no mesmo dia e mês mas no ano de 1893 nascia Sobral Pinto.

4. Só e somente só por esse motivo, o dia do advogado, que tem sido comemorado no dia 11 de agosto, data da criação dos cursos de Direito no Brasil, ocorrida no ano de 1827, deveria ser modificado para o dia 5 de novembro, pois nesse místico dia nasceram os dois maiores ícones da advocacia brasileira.

5. O 11 de agosto continuaria a ser o dia do estudante ou do professor de direito, mas o verdadeiro dia do advogado, daquele que vive e sobrevive na e da defesa dos direitos e interesses alheios há de ser o mencionado dia 5 de novembro.

6. Em nome das honradas memórias de Rui e de Sobral, postulo à Ordem dos Advogados do Brasil que envide esforços legislativos e estatutários para modificar o dia do advogado brasileiro para esse aludido dia 5 de novembro, pelas razões delineadas.

7. Continuo no dia 5 de novembro, mas do longínquo ano de 1849, dia do nascimento de Rui Barbosa.  Naquela época, a população brasileira gravitava em redor dos 8 milhões de habitantes. Hoje somos quase 200 milhões de pessoas. Naquele período no Brasil havia apenas 2 Faculdades de Direito (Pernambuco e São Paulo), hoje funcionam quase 1.300 cursos de Direito.

8. Naquele ano de 1849, em 1º de janeiro, os pernambucanos no calor da “Revolução Praieira” publicaram o “Manifesto ao Mundo” contendo as seguintes reivindicações:

1º O voto livre e universal do povo brasileiro;

2º A plena e absoluta liberdade de comunicar o pensamento por meio da imprensa;

3º O trabalho como garantia de vida para o cidadão brasileiro;

4º O comércio a retalho só para os cidadãos brasileiros;

5º A inteira e efetiva independência dos poderes constituídos;

6º A extinção do Poder Moderador e do direito de agraciar;

7º O elemento federal na nova organização;

8º Completa reforma do Poder Judiciário, de modo a assegurar as garantias dos direitos individuais dos cidadãos;

9º Extinção da lei do juro convencional;

10º Extinção do atual sistema de recrutamento militar.

9. Essa “Revolução Praieira” se insere no quadro de “insurreições e revoltas” que marcaram o Império brasileiro.

10. O Brasil, no ano do nascimento de Rui Barbosa, como todos sabemos, era governado pelo imperador D. Pedro II e regido pela Constituição de 1824[5].

11. Sobre essa Constituição, José Antônio de Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente)[6] publicou, no ano de 1857, o melhor livro de direito constitucional já escrito em língua portuguesa, nada obstante, reitera-se, versasse sobre o regime constitucional do Império.

12. No Preâmbulo[7] dessa Constituição constava que Dom Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, por obra e graça de Deus, e unânime aclamação dos Povos, em nome da Santíssima Trindade, jurava e mandava observar a Constituição do Império brasileiro, por ele outorgada em 25.3.1824.

13. É de ver, portanto, que a grande figura política do Império brasileiro foi o Imperador. E sua força política decorria do fato de empalmar o Poder Moderador, instrumento que amesquinhava os demais Poderes.

14. Com efeito, o art. 98 da Constituição enunciava que o “Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da Nação, e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia dos demais poderes políticos”.

15. A instituição desse Poder decorreu de uma importação “tupiniquim” das teses políticas do escritor suíço Benjamin Constant[8].  

16. Segundo Constant, os três poderes político-constitucionais conhecidos (o executivo, o legislativo e o judiciário) devem cooperar entre si, mas pode haver entrechoques e bloqueios.  Nessas situações de conflitos entre os Poderes surge a figura do poder neutro, típico das monarquias constitucionais, que pertenceria ao monarca, pois este não faria parte nem do executivo, nem do legislativo, nem do judiciário.

17. Por essa linha, o monarca estaria fora e acima de todos os demais poderes políticos, como um árbitro, um moderador dos eventuais conflitos que eventualmente surgissem. Constant mirava a experiência inglesa.

18. A tese era boa, mas a sua prática mostrou-se equivocada no Brasil. Com efeito, o Imperador não agia com moderação e nem como árbitro das disputas políticas, mas como “parte” interessada. Em clássica obra escrita em 1862, Paulino José Soares de Souza (o Visconde de Uruguai)[9], assinalou que a máxima “o Rei reina mas não governa” é completamente vazia de sentido para os brasileiros.

19. Com efeito, segundo os preceitos da Constituição de 1824, o Imperador exerce as suas atribuições que não podem ser entendidas nem limitadas por uma máxima estrangeira, válida para os ingleses e algumas outras monarquias europeias.

20. Segundo a Constituição, a pessoa do Imperador era inviolável e sagrada, e ele não estaria sujeito a responsabilidade alguma. Se o Imperador era irresponsável, quem se responsabilizava pelos seus atos? Na excelente monografia escrita em 1860 sobre esse tema, Zacharias de Góes e Vasconcelos[10], que foi presidente da Província do Piauí, concluiu que a responsabilidade seria dos seus ministros e conselheiros.

21. No Império a religião continuava a ser a “católica apostólica romana”, garantindo-se, todavia, que os cultos domésticos ou particulares de outras religiões fossem permitidos, desde que não houvesse a forma exterior de um templo.  O País tinha uma igreja oficial, mas não proibia a crença nem o culto de outras religiões.  

22. Para Afonso Arinos de Melo Franco[11], o estabelecimento de uma religião oficial, naquele período, teve como razão evitar: a) os distúrbios internos ou eventuais guerras civis decorrentes das cizânias religiosas; e b) a submissão às potências estrangeiras protestantes, especialmente a Inglaterra.

23. Por essa interpretação, mais do que o reconhecimento de uma tradição social e cultural, era uma atuação de caráter político a confirmação de uma igreja e religião oficial.

24. Segundo a Constituição, os representantes da Nação eram o Imperador e a Assembleia Geral (Poder Legislativo), sendo esta composta pela Câmara dos Deputados e pelos Senadores das Províncias.  A Constituição assinalava que todos os poderes do império do Brasil eram delegações da Nação. O poder era da Nação que delegava o seu exercício. Mas somente o Imperador, os Deputados e os Senadores eram os seus representantes políticos.  Os magistrados e os demais “funcionários públicos” exerciam um poder delegado pela Nação, mas não eram os seus representantes políticos.

25. Ao Poder Legislativo competia fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem como velar na guarda da Constituição e promover o bem geral da Nação.

26. O Império brasileiro não conheceu o controle judicial de constitucionalidade das leis.  Somente na República a solução definitiva acerca da validade normativa das leis contestadas em face da Constituição caberia ao Poder Judiciário. É a partir da República que ao Poder Judiciário, mormente ao Supremo Tribunal Federal, se atribui a guarda e a proteção do texto constitucional. [12]

27. Outra característica do sistema político-constitucional do Império brasileiro consistia no caráter censitário do processo eleitoral. Nem todos os brasileiros poderiam participar das eleições, sejam como eleitores, sejam como candidatos.  Estavam excluídos do regime eleitoral: as mulheres, os escravos, os libertos, os analfabetos, os pobres, os estrangeiros, os não-católicos, os solteiros menores de 25 anos, os casados menores de 21 anos, os religiosos de vida consagrada ao claustro, os criminosos... Ou seja, na “representação política imperial”, poucos podiam votar e raros podiam ser eleitos, ante esse modelo de exclusão política. [13]

28. Mas a grande exclusão do Império, o profundo “colapso moral” [14] daquele Brasil era a escravidão que aviltava as pessoas de cor negra, que os tornava “coisas” à mercê de seus senhores. Como todos sabemos, em nosso País, a escravidão somente foi abolida no ocaso do Império, em 13.5.1888, com a promulgação da “Lei Áurea”.

29. O Império era aristocrático: alguns poucos com muitos privilégios e a imensa maioria com poucos direitos e oportunidades. Mesmo a República tem sido aristocrática.

30. O Império brasileiro não conheceu o federalismo e a consequente autonomia política, legislativa, administrativa e financeira das Províncias e dos Municípios. Com efeito, nos termos da Constituição de 1824, os Presidentes de Província eram nomeados pelo Imperador e este poderia, ao seu talante e a qualquer momento, removê-los da função.

31.A Constituição assinalava a independência do Poder Judicial e a sua composição seria de juízes e de jurados, cabendo aos jurados a pronúncia sobre os fatos, e aos juízes a aplicação da lei, tanto em causas cíveis como nas criminais.  Os juízes de direito seriam perpétuos, mas eles poderiam ser mudados de lugar, ou suspensos pelo Imperador por queixas graves, ouvido o Conselho de Estado, e os próprios magistrados. Os juízes só poderiam perder o cargo mediante sentença judicial, sendo-lhes imputada responsabilidade por abusos de poder ou prevaricações cometidas no exercício da magistratura.

32.A Constituição reconhecia a possibilidade de as partes elegerem árbitros, tanto nas questões cíveis quanto em algumas causas penais, para a solução da controvérsia. E que as sentenças arbitrais, se assim convencionassem as partes, poderiam ser executadas sem recursos. As instâncias judiciais eram basicamente três: os juízes e jurados de primeiro grau; os tribunais de Relação em cada Província, e o Supremo Tribunal de Justiça, com sede na capital do Império, que seria a instância definitiva e pacificadora das controvérsias.

33.A Constituição de 1824 consagrava a distinção entre preceitos constitucionais materiais e preceitos constitucionais formais. Nela estava disposto no art. 178 que “é só constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos, e individuais dos cidadãos; tudo que não é constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”. Daí a possibilidade de as leis ordinárias cuidarem de temas apenas formalmente constitucionais.

34. No art. 179 estava elencado o clássico rol de direitos fundamentais inspirados nas ideologias liberais, como se vê do caput desse aludido dispositivo: “A inviolabilidade dos direitos civis, e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte”.

35. Seguia um catálogo de 35 incisos que são muito similares ao da atual Constituição de 1988 e que foram repetidos pelas outras Constituições brasileiras. À guisa de exemplo: “I – nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da lei”; “II – nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”; “III – A sua disposição não terá efeito retroativo”.

36.As promessas constitucionais estampadas nos incisos do art. 179 também cuidavam da dignidade da pessoa humana:  “XIX – desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis”; “XX  - nenhuma pena passará da pessoa do delinquente...”; “XXI – as cadeias serão seguras, limpas, e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e natureza dos delitos”. No plano dos direitos fundamentais sociais estava enunciado que: “XXXI - a Constituição também garante os socorros públicos”; “XXX – a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”.

37. Como vimos, o quadro normativo da Constituição de 1824, pelo menos no plano formal, simbolizava um regime político aristocrático, com aparência de legitimidade representativa.  Mas, como todos sabemos, a “democracia” imperial era para poucos, era aristocrática, e não popular.

38.Com efeito, os negros, os índios, os pobres, as mulheres, os gays e as lésbicas, os não-católicos, as crianças, os idosos, os portadores de deficiência e todos os segmentos humanos historicamente menosprezados não encontravam leis nem práticas sociais ou estatais de proteção ou de emancipação. Para as pessoas nessas condições naturais ou sociais, a vida sempre foi muito difícil.

39.É nesse quadro social que Rui Barbosa surge e floresce.  Ele entra para a Faculdade de Direito de Olinda em 1865. Transfere-se para a Faculdade de Direito de São Paulo e se forma em 1870. A partir da faculdade Rui se aproxima de Castro Alves, de Joaquim Nabuco (também nascido em 1849) e de outras grandes figuras brasileiras e abraça a causa da Abolição da Escravatura. Rui se destaca na imprensa e na advocacia, e, paralelamente às lutas pelo fim da escravidão, começa a trovejar a favor da República. Nada obstante a sua adesão ao republicanismo, Rui é convidado para compor o gabinete imperial, mas declina, pois já estava comprometido com a causa republicana, vista por ele como remédio apto a curar os males públicos do Brasil.

40. A República, por meio de uma intervenção militar, é proclamada em 15.11.1889[15]. Rui Barbosa se insere como um dos líderes civis do movimento e assume a pasta do ministério da Fazenda e se torna o arquiteto jurídico da República. Praticamente todo o arcabouço normativo da República é fruto do trabalho e da inteligência de Rui Barbosa.[16]

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41.É convocado e se reúne o “Congresso Constituinte” com a missão de promulgar uma nova Constituição. Essa nova Constituição, a primeira da República, é promulgada em 24.11.1891. Nessa Constituição o trabalho de Rui se destaca e surgem novidades institucionais: a República, a Federação, o Presidencialismo,  a Separação dos Poderes,  o fim do voto censitário e separação entre o Estado e  a Igreja.[17]

42.Quanto à separação dos Poderes, surgiu o “controle judicial de constitucionalidade das leis” e a impossibilidade de o chefe de Estado (Presidente da República) de fechar o Congresso Nacional e de suspender os juízes. Não havia o “Poder Moderador” presidencial. Formalmente o Brasil tinha uma Constituição republicana, que foi inspirada nos textos constitucionais estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos. [18]

43.Mas logo ficou patente que a importação do modelo normativo norteamericano, com as pitadas da experiência inglesa, não surtiram os efeitos desejados por Rui Barbosa nas práticas políticas, profundamente enraizada na cultura social brasileira. [19]

44.As crises políticas, econômicas e sociais do alvorecer da República se acentuaram. Deodoro da Fonseca (eleito indiretamente pelo Congresso Constituinte como primeiro Presidente) renuncia. Assume o seu vice-Presidente o também marechal Floriano Peixoto. Com Floriano Peixoto tem início uma “ditadura constitucional” e Rui Barbosa, militante da causa republicana, passa a se tornar um corifeu das liberdades civis na defesa dos perseguidos políticos. Rui ousava desafiar a força da espada através das palavras de suas petições.

45.Segundo Edgar Costa[20], que foi ministro do STF, o primeiro julgamento relevante do Supremo Tribunal Federal foi o Habeas Corpus n. 300 impetrado por Rui Barbosa em favor de presos políticos desterrados por ordem do marechal Floriano Peixoto. Relatam os cronistas que o Marechal Floriano havia feito o seguinte comentário acerca da impetração do HC: Não sei quem amanhã dará habeas corpus para os ministros do Supremo Tribunal Federal...

46.Naquelas circunstâncias políticas, o  Tribunal  não ousou anular os atos presidenciais, sob a justificativa de que se cuidavam de atos políticos, insindicáveis judicialmente. Nada obstante esse entendimento inicial, Rui Barbosa continuou com suas invectivas contra os atos que entendia ilegais e abusivos do governo brasileiro. Por essa razão foi, inclusive, constrangido a buscar exílio, inicialmente na Argentina e posteriormente na Inglaterra.

47.Encerrada a ditadura constitucional de Floriano,  toma posse o presidente eleito Prudente de Moraes, em 1894. Em 5.11.1897 (aniversário de Rui e de Sobral) houve um atentado à vida do presidente Prudente de Moraes, no qual restou vitimado o ministro da guerra Carlos Machado Bittencourt. Ante esse quadro, foi decretado o estado de sítio e novas perseguições políticas contra os adversários do governo foram exercidas.

48.Novamente Rui Barbosa ingressa com ordens de Habeas Corpus perante o STF na defesa dos perseguidos políticos. Dessa vez o Tribunal concede a ordem para garantir o comparecimento em juízo dos pacientes. Já era uma vitória. Mas, no julgamento do mérito, o Tribunal manteve a orientação de que os atos praticados durante o estado de sítio são atos políticos e insindicáveis judicialmente, sendo competência do Congresso a sua apreciação.

49.Posteriormente o Tribunal evoluiu e passou a conceder as ordens de HC em face de presos políticos. Rui provocava o STF a tomar medidas que a mentalidade judicial brasileira não estava acostumada: a invalidar ou a cassar atos governamentais por inconstitucionalidade. Nessa fase da experiência republicana brasileira, o STF começava a entender o significado de ser o “guardião” da Constituição.

50.A primeira República foi um período conturbado tanto nos aspectos políticos, quanto nos aspectos sociais e econômicos, e frágil era a democracia brasileira, pois as instituições republicanas ainda estavam dominadas por uma mentalidade caudilhesca e patrimonialista. A República ainda não tinha se firmado como o governo da Lei e do respeito às instituições. Lei que deveria punir o poderoso e proteger o fraco. Lei que deveria ser aplicada com justa equidade para todos. Instituições que deveriam aplicar milimetricamente os preceitos normativos.

51.Interessou-nos o Rui advogado, mas não podemos esquecer do Rui político, verdadeiro estadista. Rui foi 2 vezes candidato à Presidência da República. A candidatura mais marcante, mais empolgante foi o pleito que disputou contra Hermes da Fonseca, em 1910. Essa candidatura foi chamada de “campanha civilista”, na qual Rui percorreu o Brasil, realizando comícios, discursos e empolgando a juventude e as classes profissionais urbanas. Mas naquele Brasil rural, de mentalidade provinciana e da “política dos governadores”, o governo situacionista abusava das fraudes eleitorais, da corrupção e do abuso de poder, de sorte que o candidato governista saiu vitorioso na eleição, mas as sementes das insatisfações já estavam lançadas e 2 décadas depois seriam colhidas, em outubro de 1930.

52.Rui falece em 1º.3.1923, sob o governo de Arthur Bernardes.  À época da morte de Rui Barbosa, conquanto não houvesse escravidão negra, as condições sociais dos negros, dos pobres, dos analfabetos, das mulheres e todos os socialmente subalternizados não era muito diferente da época do Império. Com efeito, a República não era menos aristocrática que o Império. O abuso de poder e as ilegalidades cometidas pelos poderosos não eram menores do que as cometidas durante o Império. Na substância, pouca coisa tinha mudado na passagem do Império para a República, pois os vícios institucionais foram transplantados.

53.O Brasil ainda não vivia uma “Democracia Republicana”, pois nem todos eram livremente iguais nem equitativamente responsáveis perante as leis. A aplicação da lei era seletiva.

54.Nesse ano de 1923, ano da morte de Rui Barbosa, Sobral Pinto, conquanto jovem, já era um respeitado advogado, mas ainda não militava na seara das liberdades civis. Sobral Pinto tinha 30 anos, pois nasceu no ano de 1893. Nesse ano também nasceu Alceu do Amoroso Lima (o Tristão de Ataíde) outra grande figura brasileira.

55.No ano do nascimento de Sobral, Antônio Conselheiro se estabelece no pequeno arraial de Canudos, no sertão baiano.  Naquele ano, no Rio Grande do Sul, estoura a Revolução Federalista. Se no ano do nascimento de Rui tivemos a “Revolução Praieira”, de caráter republicano e federalista, no nascimento de Sobral tivemos a “Federalista”, de caráter federal e republicano também. Com efeito, pretendiam os “federalistas gaúchos” “libertar” o Rio Grande da tirania constitucional de Júlio de Castilhos, que ao lado de Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, representavam a anti-republicana política dos governadores.

56.A ironia da história consiste no fato de que o agente que implodiria esse modelo da política dos governadores foi um discípulo dessa trinca: o também gaúcho Getúlio Vargas. Pois bem, Getúlio Vargas, candidato derrotado nas eleições presidenciais de março de 1930, assume o poder graças à Revolução de outubro de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e não permitiu a posse do candidato eleito Júlio Prestes. Cuide-se que Getúlio Vargas foi ministro da Fazenda de Washington Luís, mas acabou sendo o candidato pelas oposições. Seria o mesmo que o atual ministro Guido Mantega fosse o candidato a presidente pelas oposições atacando as práticas políticas do governo petista.  Paradoxos e paroxismos tipicamente brasileiros.

57.Com a ascensão de Getúlio, estava sepultada a Primeira ou Velha República e a Constituição de 1891. Todavia, se com Getúlio morre a “política dos governadores”, remanescem algumas das velhas práticas “coronelistas”, como o mandonismo, o nepotismo e a ocupação de cargos públicos pelos aliados, a perseguição aos adversários e o abuso nas eleições. Em 1932 estoura a Revolução Constitucionalista em São Paulo, sufocada pelas tropas federais fieis a Getúlio. Em 1933 são convocadas eleições para a uma nova Assembleia Constituinte.  As mulheres puderam votar nesse pleito.

58.Em 16.7.1934[21] é promulgada a 3ª Constituição do Brasil, a 2ª da República. A Constituição de 1934 inaugura o constitucionalismo social no Brasil, e a crença infantil nos poderes mágicos da Constituição. Tem início o “fetichismo constitucional” ou “idealismo romântico”.  O “fetichismo constitucional” ou “feitiço da Constituição” consiste na crença de que a enunciação de promessas normativas no texto da Constituição seria suficiente e bastante para a sua concretização e para a transformação social e cultura do Brasil.

59.Na Constituição de 1934 foram enunciados vários preceitos que visam criar prestações positivas do Estado nas áreas sociais, como trabalho, saúde, previdência, família, educação, cultura etc. A Constituição deixa de ser um instrumento normativo de limitação jurídica do poder político do Governante para se tornar um instrumento de atuação social do Estado.

60.A ingenuidade normativista acredita que os textos jurídicos têm poderes mágicos. Que as palavras na Constituição são capazes de mudar as realidades. Que basta enunciar um direito para que as práticas culturais se modifiquem. O pensamento mágico normativista brasileiro tem trabalhado com esse mito. Ou por ingenuidade, ou por má-fé....

61.Com efeito, a Constituição de 1934 trouxe algumas novidades em relação à de 1891, como a cota de representação política para as profissões ou corporações: lavoura e pecuária; indústria, comércio e transportes; profissões liberais e funcionários públicos. A Constituição instituiu a aposentadoria compulsória para os magistrados que atingissem os 75 anos de idade. Também vedava ao Judiciário o conhecimento das questões exclusivamente políticas. Dispunha como uma das  hipóteses de cabimento do recurso extraordinário para a Suprema Corte, nova denominação do STF, a “violação à literal disposição de tratado ou de lei federal”.

62.Essa Constituição tem duração efêmera, pois em 10.11.1937[22] Getúlio Vargas outorgava a 4ª Constituição do Brasil, “atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro”. Getúlio, exímio manipulador, maquiavelicamente utiliza os medos e os receios de parcela das classes dominantes brasileiras, especialmente quanto à instalação de uma ditadura do proletariado comunista ou de uma ditadura extremista fascista, e dá um golpe de Estado.

63.Com efeito, o Mundo vivia a ascensão política do “fascismo” e dos governos autoritários: Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, Pilsudski na Polônia, Franco na Espanha, Salazar em Portugal. No campo da esquerda comunista, a experiência da ditadura do proletariado comunista na União Soviética também era vista como um espectro a assombrar as pessoas daquele período. Getúlio Vargas flertava e tinha maior proximidade com o autoritarismo fascista. E a partir de 1937 impôs ao Brasil um regime autoritário de direita.

64.Esses governos autoritários tinham dois extremos: o de esquerda, simbolizado por Joseph Stálin na União Soviética; e o da direita, simbolizado por Adolf Hitler na Alemanha. Em comum: o fortalecimento do poder coletivista do Estado e o enfraquecimento das liberdades individuais.  A principal diferença residia no fato de que na extrema direita havia a possibilidade de o grande capital se tornar parceiro do autoritarismo político. Mas tanto o “fascismo” quanto o “socialismo” eram governos antidemocráticos, antirrepublicanos e anti-inviduais. O indivíduo (pessoa) não passava de um objeto a serviço do Estado e do Poder.

65.Volto ao Brasil e à Constituição de 1937, de inspiração fascista (apelidada de “Polaca”). Dessa Constituição vale registrar dois preceitos: o art. 180 e o parágrafo único do art. 96. O 180 dispunha que “Enquanto não se reunir o Parlamento Nacional, o Presidente da República  terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias de competência legislativa da União”. Esse Parlamento Nacional nunca foi convocado nem reunido, e Getúlio governou soberanamente até sua deposição em 1945.

66.O aludido parágrafo único do art. 96 dispunha que “No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República seja necessária ao bem estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal”. Como não havia Parlamento, Getúlio com esteio no art. 180 poderia anular as decisões do STF segundo a sua conveniência.

67.A Constituição, ao invés de ser um instrumento normativo de limitação dos eventuais abusos governamentais, se tornava um instrumento normativo de justificação desses abusos. Todos os abusos de Getúlio tinham respaldo na Constituição. Era um texto meramente semântico, na lição de Karl Loewenstein[23]. Era uma anti-Constituição.

68.Empalmando tanto poder, Getúlio inicia a perseguição aos seus inimigos e adversários políticos. A partir daí, entra em cena o advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Sobral, que era um católico fervoroso, um cristão abnegado, é designado pela OAB para defender os comunistas Luís Carlos Prestes e Harry Berger.[24]

69.E com a coragem dos justos e com a paixão dos santos, Sobral passa a defender esses presos comunistas. Se Rui era um vulcão erudito, Sobral era um terremoto intelectual, e assim como Rui usou de toda a sua criatividade para defender os presos políticos. O momento mais marcante e mais fantástico da epopeia de Sobral ocorre quando ele lê no jornal uma notícia acerca da condenação de um proprietário de cavalo por maus-tratos ao seu animal. Com essa informação, ele tem a ideia de requerer ao Tribunal a aplicação da lei de proteção aos animais, pois os seus constituintes estavam em condições subumanas, com tratamento pior que o destinado às bestas, bestilizados pois. Ante essa situação real e diante da força dos argumentos de Sobral, o Tribunal de Segurança Nacional foi constrangido a decidir favoravelmente aos presos comunistas.[25]

70.Essas lutas de Sobral ocorrem até o fim da ditadura Vargas, em 1945, quanto se restaura a democracia. Em 18.9.1946[26] foi promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte a 5ª Constituição do Brasil. Esse texto, de inspiração liberal democrática, marca uma fase de transição na política e na economia brasileira. Momentos políticos dramáticos ocorrem nesse período, como o suicídio de Getúlio, a tentativa de golpe de Café Filho, e a tentativa de golpe contra a posse de Juscelino Kubitscheck (JK).

71.Sobral, que não era eleitor de JK, que não era do partido de JK, sai em defesa de Juscelino em nome da legalidade e do respeito à vontade democrática do eleitor que escolhera JK como Presidente, contra o candidato udenista Juarez Távora, apoiado por Sobral Pinto. Como reconhecimento e como gratidão, JK ofereceu a Sobral a possibilidade de lhe indicar para o STF. Sobral recusou, assim como Rui já havia recusado. Outros tempos. Outros homens. Hoje muitos são capazes de qualquer coisa para terem assento nos Tribunais, especialmente no STF e nos Superiores. Pois Sobral e Rui recusaram o que lhes foi gratuitamente oferecido. Hoje, sabemos todos, não são poucos os que se oferecem desavergonhadamente, sem qualquer pudor, para uma cadeira em um Tribunal.

72.Após a estabilização política, ocorrida no governo JK, novas eleições sucedem, e finalmente um udenista, Jânio Quadros, se elege. Todavia, com 7 meses de governo, Jânio renuncia. A vaga deveria ser ocupada pelo Vice-presidente João Goulart (Jango). Nova crise política se instala, pois parcela substantiva do estamento político não aceitava a posse de Jango. Como solução implanta-se o parlamentarismo, e que seria convocado um plebiscito popular para decidir qual o sistema de governo deveria viger no Brasil. [27]

73.Em 1963 o plebiscito popular decidiu pelo presidencialismo. Jango volta a ter poder. Mas as forças contrárias armam um golpe. Em 1º.4.1964 Jango sofre um golpe militar. Esse golpe teve um forte apoio da sociedade civil, inclusive de Sobral Pinto, pois se imaginava que Jango tramava instalar uma república sindical no Brasil ou implantar um regime socialista similar ao de Cuba. [28]

74.Sucede, todavia, que o golpe militar que tinha como objetivo aparente impedir a instalação de uma ditadura socialista se transformou em um regime autoritário, ilegítimo, usurpador do poder civil. Nesse momento, quando Sobral percebe a instalação de uma ditadura militar, ele imediatamente passa a denunciar essa ditadura e a exigir a devolução do poder aos civis e restauração democrática.[29]

75.Para dar uma aparência de legitimidade normativa, foi promulgada em 24.1.1967[30] a 6ª Constituição brasileira. Mas essa também teve vida efêmera, assim como a de 1934. Com efeito, em 13.12.1968 foi editado o Ato Institucional n. 5 (AI 5) que consagrava definitivamente a ditadura militar.[31] Em 17.10.1969[32], a Junta Militar que usurpara o poder editou a Emenda Constitucional n. 1, que foi uma nova Constituição.

76.E, assim como ocorrera durante o “Estado Novo getulista”, Sobral Pinto mais uma vez se vê na contingência de defender presos e perseguidos políticos, especialmente os “comunistas”. A repressão política foi feroz, mas Sobral, assim como fizera durante a ditadura Vargas, sai em defesa dos inimigos da ditadura Militar. Foram tempos difíceis. Sobral chegou a ser preso, e sofreu ameaças. Teve a sua vida e liberdade em perigo, mas a sua respeitabilidade, e o seu nome eram grandes demais, e os militares não ousaram lhe fazer mal. Sobral foi uma trincheira da restauração democrática e da defesa das liberdades civis. Nessa luta, Sobral não esteve solitário. Outras figuras e instituições estavam do mesmo lado: OAB, CNBB, ABI... [33]

77.O Judiciário brasileiro, constrangido pela força arbitrária das armas, nem sempre ousava decidir contrariamente aos interesses dos governantes autoritários. Para intimidar os magistrados brasileiros, os militares aposentaram 3 ministros do STF. Mesmo assim, o Tribunal concedeu algumas ordens de HC para garantir a integridade física dos presos políticos.[34][35]

78.A partir dos governos Geisel e Figueiredo têm início o processo de redemocratização. O ponto culminante se deu com a campanha das “Diretas Já”, em 1984.  Sobral, um senhor de 90 anos, um velho combatente das palavras e da razão, se engaja nessa luta do povo brasileiro por democracia. Nada obstante a derrota das “Diretas Já”, a redemocratização brasileira já era uma realidade, e com a eleição de Tancredo e de Sarney, derrotando os candidatos da situação Paulo Maluf e Flávio Marcílio (este piauiense de Picos), encerrava-se o ciclo militar no Brasil.

79.Em 5.10.1988[36], há 25 anos, promulgava-se a vigente e reinante Constituição brasileira. Espera-se que seja a última, pois uma nova Constituição significa que houve ruptura traumática da “legítima legalidade”.

80.Sobral faleceu no dia 30.11.1991, há 22 anos. De lá para cá muita coisa tem ocorrido no Brasil. Mas induvidosamente alcançamos a estabilidade política e os governos brasileiros desde 1988 têm sido legítimos, pois escolhidos pelo eleitorado popular, mediante o voto, principal instrumento de legitimidade do representante do povo.

85.É de se indagar: vivemos em uma “democracia republicana”? Como podemos compreender os termos “democracia” e “república” hoje, 25 anos depois de promulgada a Constituição? E qual o legado deixado por Rui e por Sobral para nós, advogados?

86.No longo processo de construção e de consolidação da “democracia” no Brasil, podemos entendê-la como a prática da liberdade e da tolerância, da aceitação do diferente, do respeito às maiorias, da proteção e da consideração às minorias. Democracia como o regime de governo no qual o adversário não é o inimigo que deva ser destruído, aniquilado, mas como reino da convivência na divergência. Na democracia não é legítimo nem lícito que o governante lance mão do discurso do ódio e da divisão, atribuindo aos adversários as culpas ou responsabilidades pelo insucesso ou êxito.

88.Democracia é pluralidade de visões de mundo e reino das múltiplas oportunidades, de modo que todos e cada um possam realizar os seus projetos existenciais de vida e de felicidade. Democracia como liberdade porque todos somos igualmente dignos, merecedores de respeito e de consideração. Democracia com liberdade de expressão e de imprensa no limite da responsabilidade. Democracia como possibilidade real de a oposição vir a se tornar situação e de que esta – a situação – possa vir a ser oposição. Democracia como salutar e desejável alternância no poder.

89.E República? República como regime da legalidade. Mas não a legalidade meramente formal, meramente aparente, mas a legalidade legítima. República como o governo de homens e mulheres que obedecem às leis e respeitam às instituições. República como a prática de não usar o poder para privilegiar ou favorecer os amigos e para perseguir ou prejudicar os inimigos ou adversários. República como governo que serve ao povo, em vez de servir-se dele. República como administração que se pauta pela eficiência e pela moralidade, com transparência e publicidade. República como uso do que é público apenas de modo justificado e legítimo, sem privilégios ou distinções inaceitáveis.

90.República que significa igualdade equitativa de todos perante a lei. As diferenciações ocorrem somente ou pela necessidade ou pelo merecimento. Crianças necessitam de um tratamento diferenciado. Professores merecem um tratamento diferenciado. República em que o poderoso é alcançado pela lei. Que o humilde é protegido pela lei. República que pune o culpado e absolve o inocente. República que significa segurança e certeza de que todos, sejam ricos ou pobres, brancos ou negros, homens ou mulheres, crentes ou ateus, hetero ou homossexuais, que todos deverão receber a igual proteção e igual submissão às leis.

91.E nós advogados o que queremos da República? Que os juízes e tribunais cumpram rigorosa e milimetricamente a Lei. República é Estado de Direito, é devido processo legal, com ampla defesa e contraditório. Na República o magistrado não é midiático nem se deixa intimidar ou seduzir pelos grandes veículos de comunicação.  Na República o magistrado é servo da legalidade, e não o senhor da Lei. O magistrado há de ser um vassalo da Constituição, e não o seu suserano.

92.Com efeito, a nossa sociedade tem trilhado um longo caminho para construir um Estado que seja “democrático” e “republicano”, que seja legal e legítimo. É bem verdade que conquistamos a estabilidade política. Também conquistamos a estabilidade econômica. Falta conquistarmos a estabilidade social.

93.Como o Direito e os advogados podem contribuir para essa estabilidade? O Direito é uma tecnologia normativa serviço das ideologias políticas predominantes. O Direito há de ser legítimo ou ilegítimo.  Nós os advogados somos os principais operadores dessa tecnologia. O nosso trabalho é utilizar essa tecnologia em favor dos nossos clientes.

94.Se o Direito for um instrumento normativo a serviço do crescimento econômico, do florescimento das potencialidades existenciais, do surgimento de oportunidades individuais, ele pode vir a ser um poderoso aliado no desenvolvimento social. Cabe a nós, advogados, os principais interessados no rigoroso e milimétrico cumprimento do da lei, postular pela aplicação desse direito legítimo. Insisto. A advocacia é a profissão da legalidade legítima. É a profissão da liberdade responsável. Só os livres são responsáveis. Só há responsabilidade na liberdade.

95.Pois bem, nesse longo e sinuoso percurso, Rui e Sobral foram dois importantes guias, duas estrelas que iluminaram os nossos passos. O legado deles é atual.  Eles foram homens que colocaram o seu talento e a sua capacidade a serviço da solução de problemas humanos. Essa é a principal herança deles. Nem Rui nem Sobral eram teóricos especulativos. Foram homens de ação e de palavras.  Todo o cabedal de conhecimentos que possuíam, tanto jurídico, quanto filosófico, político, histórico, foi posto a serviço dos seus clientes e das causas que defenderam. Essa é mensagem para nós advogados.

96.Toda a nossa cultura e saber devem estar a serviço dos nossos clientes e das nossas causas. O advogado há de ser um pragmático realista, sem prejuízo da esperança moral. Reitero, o advogado deve ser um profissional apto a solucionar os problemas de seus clientes e constituintes.  É isso que ele deve ser: um solucionador de problemas normativos dos clientes. O único compromisso do advogado deve ser com a versão da verdade do seu cliente, com o direito do seu cliente e com a justiça para o seu cliente.

97.O advogado não deve ter medo de criar inimizades.[37] Nem de constranger os magistrados na defesa dos interesses de seus clientes. O advogado é um profissional que luta utilizando como arma a palavra e o argumento, em favor da justiça para o seu cliente. Para o advogado, a causa do cliente deve ser sagrada, deve ser inviolável, e ele deve brigar com todas as suas forças e com todo o seu talento em defesa dela.

98.E como as Faculdades de Direito podem auxiliar na formação desse profissional da Justiça? Os cursos de Direito devem preparar profissionais capazes de serem criativos na solução de problemas concretos da vida real das pessoas. As Faculdades devem preparar profissionais pragmáticos, em vez de acadêmicos especulativos. Toda boa filosofia ou toda boa teoria deve ter um sentido e uma função prática.  Teoria que não serve na prática, não tem utilidade. Não deve nem ser considerada. É perda de tempo. Dizia Geraldo Ataliba: “não há nada mais útil do que uma boa teoria”.

99.Aqui, vale registrar a imperiosa advertência de Oliveira Viana, feita no ano de 1921, mas de extrema atualidade, sobre os eruditos e intelectuais brasileiros, e sobre a formação universitária deles:

No Brasil cultura significa expatriação intelectual. O brasileiro, enquanto é analfabeto, raciocina corretamente e, mesmo inteligentemente, utilizando o material de observações e experiências feitas sobre as coisas que estão ao derredor dele e ao alcance dos seus sentidos, e sempre revela em tudo este inalterável fundo de sensatez, que lhe vem da raça superior originária. Dêem-lhe, porém, instrução; façam-no aprender o francês; levem-no a ler a História dos Girondinos, de Lamartine, no original – e então já não é o mesmo. Fica ‘homem de ideias adiantadas’, cai numa espécie de êxtase e passa a peregrinar – em imaginação – por ‘todos os grandes centros da civilização e do progresso’. Se, acordando-o da hipnose, damos-lhe um safanão e desfechamos-lhe, à queima-roupa, uma pergunta concreta e precisa sobre as possibilidades da ‘siderurgia no Brasil’ ou sobre o ‘valor seletivo do zebu na pecuária do Triângulo’, ele nos olha atônito, num estado de imbecilização sonambúlica; ou então entra a dizer coisas disparatadas sobre rebanhos ingleses e australianos; ou desenvolve, um pouco confusamente, os primeiros capítulos de um filosofia das aplicações do ferro na economia contemporânea. Sobre o nosso problema pecuário, ele nada dirá, porque nada sabe, nem mesmo poderá saber, dado esse estado particular do seu espírito.

100.As Faculdades de Direito não devem formar advogados que especulam ou elucubram sobre os problemas normativos, mas advogados capazes de resolvê-los.

101.Rui e Sobral, nada obstante fossem profundos conhecedores das boas teorias, sabiam apontar solução para os problemas de seus clientes e para as causas que defendiam.  Ambos foram exemplos de profissionais dedicados e competentes. Foram homens honrados e realistas. Eles, como todos os bons advogados, acreditavam na força argumentativa das palavras como busca da verdade e da justiça para os seus clientes.

102.Nem Rui nem Sobral padeciam dos terríveis vícios que impedem o pleno desenvolvimento de qualquer profissional: a preguiça, a inveja e o ressentimento. [38]

103.Nós advogados não devemos ter inveja do sucesso alheio nem nos felicitarmos com a infelicidade do outro. Nós advogados não devemos ser preguiçosos; devemos ser profissionais dedicados, estudiosos, incansáveis e intransigentes na defesa dos interesses de nossos clientes. A leitura é o nosso alimento. Ler de tudo, principalmente os textos normativos e as decisões judiciais. Ler para saber, pois sem leitura não há sabedoria. Não genialidade nem criatividade jurídica fora da leitura.

104.Nós advogados não devemos ser ressentidos e não devemos atribuir aos outros a culpa e a responsabilidade pelos nossos erros ou fracassos, nem imputar ao êxito alheio a causa de nossas derrotas. Essa mentalidade vencedora, positiva, contagia a todos e serve de conforto e de confiança para o cliente.

105.Chegará o dia – e esse dia irá chegar - em que somente o caráter da pessoa e a competência do profissional servirão de parâmetro de valor do indivíduo. Chegará o dia em que a cor da pele ou dos olhos ou do cabelo, a crença religiosa, a tendência sexual, a idade, o sobrenome, o parentesco ou as amizades não terão valor algum como critério de diferenciação.

106.Chegará o dia em que o sonho de Martin Luther King[39] se concretizará, mas para isso é preciso estarmos todos acordados e vigilantes. As pessoas decentes e honradas não podem cochilar, pois os indecentes não vacilam nem perdoam. Mas é preciso ter uma esperança realista. E, nesse campo da esperança realista e da fé pragmática, Rui e Sobral foram ícones. Eles nunca perderam a fé nos homens. Nunca perderam a esperança na justiça.

107.Nós advogados também não podemos perder a fé nem a esperança, especialmente em nós mesmos, em nossa dedicação, em nossa seriedade e nos compromissos éticos e profissionais.

108.Finalizo. Rui e Sobral não foram “super-heróis” ou “sobre-humanos”. Eles não possuíram poderosos exércitos, nem ricas fortunas, tampouco eram dotados de poderes mágicos ou excepcionais.

109.Simplesmente, foram homens que no sagrado exercício da advocacia, eram defensores apaixonados das causas que patrocinavam, inimigos pessoais das injustiças praticadas contra as pessoas inocentes, movidos por um profundo sentimento de dever, de piedade, de honra e de decência.

110.Na verdade, Rui e Sobral não passaram disso: “homens demasiadamente humanos”. Que nós, advogados, também saibamos ser “humanos, demasiadamente humanos”.

Muito obrigado pela generosa atenção!

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Rui, Sobral e a Constituição de 1988.: Uma breve análise acerca da construção da democracia e da República no Brasil, a partir da experiência de dois ícones da advocacia nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3815, 11 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26074. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Texto de palestra proferida por ocasião do lançamento do primeiro número da Revista Científica da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Piauí. Evento realizado na sede da OAB/PI, na cidade de Teresina, em 26.11.2013, sob a organização dos advogados e professores Leandro Cardoso Lages e Eduardo Albuquerque Rodrigues Diniz.

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