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Maconha e racismo no atual contexto de proteção à dignidade da pessoa humana

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O discurso demonizador da maconha visa discriminar uma prática cultural africana e, portanto, incita o racismo. Assim como a umbanda não deve encontrar mais restrições institucionais que o catolicismo, a maconha não deve encontrar mais rejeição que o álcool por parte do Estado.

Este texto pretende ser uma ligeira verticalização em um dos pontos abordados no artigo “Inovações científico-tecnológicas e o vício em ideias: a inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria n. 344 da ANVISA”[1]. Trata-se de abordar uma questão ainda pouco explorada nas discussões sobre a maconha, a saber, a problemática da proteção à dignidade dos maconheiros.

Uma correta análise desse tema depende de considerações históricas cruciais que nos permitam conhecer e avaliar o contexto da proibição da cannabis no Brasil. Nosso país veio a conhecer o fumo de maconha por meio dos escravos negros, que consumiam a planta em sua terra de origem como uma legítima prática cultural. Tal hábito africano não foi bem aceito pelo Estado brasileiro, que embasado em trabalhos que identificavam a cannabis como causadora de agressividade, violência, delírios furiosos, loucura, taras degenerativas,degradação física, idiotia e sensualidade desenfreada, proibiu a planta. Tal postura estatal contou com o apoio da mídia e da população em geral que presenciaram o “caráter explicitamente racista do seu processo de criminalização, quando foi associada a uma perversão própria dos descendentes dos africanos que teriam trazido tal doença para a sociedade civilizada” (MAGALHÃES, 1994, p.107).

Esclarecidas tais raízes históricas, resta-nos apontar que a evolução científico-tecnológica permitiu avaliar mais corretamente os efeitos do uso da maconha. A conclusão científica que aqui nos interessa é de que a maconha é bem menos nociva que o álcool, tanto na perspectiva de dano ao usuário quanto nos danos sociais. Estando isso constatado, salta aos olhos um grande problema jurídico-social de nosso tempo: como têm sido tratados pelo direito e pela sociedade os usuários de uma planta menos nociva que o álcool? Como são vistos e tratados os consumidores de álcool e os de maconha? É evidente que dessas perguntas não pretendemos concluir que devamos passar a temer e maldizer os consumidores de álcool. Pretendemos apenas concluir que se não vemos os usuários de álcool como pessoas ruins, temos ainda menos razões para julgar dessa forma os maconheiros.

Embora cientificamente menos nociva, a maconha se apresenta como um golpe à cultura tradicional judaico-cristã. Enquanto o álcool, mais nocivo, goza de ampla aceitação jurídico-social por estar há milênios inserido na cultura judaico-cristã, a maconha, menos nociva, é repelida por representar um hábito de culturas não hegemônicas. O problema é que tal postura não pode ser admitida em um Estado Democrático de Direito laico e defensor do multiculturalismo.

O discurso demonizador da maconha visa, quer saiba disso ou não, discriminar uma legítima prática cultural africana (e de outras culturas não hegemônicas) e, portanto, incita o racismo. Entendemos por racismo não apenas as ofensas direitas a determinados povos, mas também as tentativas de reprimir e exterminar suas culturas. Dessa forma, cremos correto considerar racismo as práticas que combatam a umbanda, candomblé, capoeira ou a maconha. Deve ficar claro que não nos opomos às regulamentações de tais práticas, mas assim como a umbanda não deve encontrar mais restrições institucionais que o catolicismo, a maconha não deve encontrar mais restrições institucionais que o álcool.

A postura discriminatória adotada até hoje afeta diretamente a dignidade do maconheiro, afetando inclusive seu autorreconhecimento, vez que é desencorajado a assumir que usa maconha, sendo forçado a fumar escondido enquanto os bares permanecem lotados de usuários de substância mais nociva ao organismo e à sociedade.

Se pretendemos realmente construir um Estado no qual há respeito à dignidade da pessoa humana, não podemos aceitar que uma prática cultural legítima e pouco ofensiva como o consumo de maconha seja demonizada. É urgente que o preconceito e a ignorância cedam lugar à ciência e ao respeito para que se possa tratar o uso de maconha como o que ele realmente é: uma prática cultural legítima e menos danosa que a prática cultural igualmente legítima do consumo de álcool.


Referências

MAGALHÃES, Raul Francisco. Crítica da razão ébria. São Paulo: Annablume, 1994.

RIBEIRO MENDES, Brahwlio Soares de Moura. Inovações científico-tecnológicas e o vício em ideias: a inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria n. 344 da ANVISA. In: ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direitoda UFJF, n. 3, nov-mai, 2011. pp. 47-58.


Nota

[1] O artigo completo está disponível em http://periodicoalethes.com.br/media/pdf/3/periodico-alethes-edicao-3.pdf

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Sobre o autor
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes

Graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Brahwlio Soares Moura Ribeiro. Maconha e racismo no atual contexto de proteção à dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3918, 24 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27090. Acesso em: 18 abr. 2024.

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