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A criação do Tribunal de Contas na história constitucional brasileira

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CONSTITUIÇÃO DE 1934

A Constituição de 1934 inaugurou a minúcia e o pormenor, a indistinção entre a legislação ordinária e a constitucional. Isso fica evidenciado pelo número e abrangência dos artigos. Enquanto a Constituição de 1891 tinha 91, a de 1934 mais que dobrou: 187 artigos. No caso das disposições transitórias, o crescimento foi maior ainda: saltou de oito para 26 artigos. O governo tinha enviado um anteprojeto menor para os constituintes, que o ignoraram, como em 1891: tinha 136 artigos e mais oito nas disposições transitórias. No campo das liberdades democráticas, a Constituição restringiu os direitos fundamentais. A introdução do conceito de segurança nacional recebeu destaque especial. Era uma novidade, produto do autoritarismo da década de 1930. Foram reservados nove artigos à segurança nacional e apenas dois aos direitos e garantias individuais.

Com o advento da Constituição de 1934, as competências do Tribunal foram ampliadas. Foi-lhe conferido, por exemplo, no artigo 99, o poder de julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos.

Há o retorno da exigência do registro prévio, que funcionava como condição de perfeição e eficácia do contrato, sendo a recusa do registro causa impeditiva de sua execução, até que o Legislativo sobre ele deliberasse.

A Lei nº. 156, regulou o funcionamento do Tribunal de Contas, sua instituição, sede, jurisdição, composição, organização da secretaria, as delegações, o Ministério Público, jurisdição e competências. Esta foi considerada a Lei Orgânica do Tribunal durante a Constituição de 193418.


CONSTITUIÇÃO DE 1937

A constituição de 1934 era uma espécie de pedra no caminho de Getúlio Vargas. Aceitou a realização da Constituinte, pois não havia mais como adiá-la, principalmente após os acontecimentos que levaram à Revolução Constitucionalista de 1932. Passou a ser ponto de honra a realização das eleições. Porém a plena constitucionalização do país era outra história, pois levaria ao estabelecimento de limites para a autoridade, a fixação dos mandatos, a possibilidade da alternância no poder, como em qualquer regime democrático. O problema residia justamente aí: a maior parte da elite política não comungava dos valores democráticos19.

A Carta de 1937 marca o fechamento do Congresso Nacional por Getúlio Vargas, por meio de um golpe de Estado que instalava a ditadura no país que ficou historicamente conhecida como “Estado Novo”.

Tal texto constitucional ficou conhecida como “A Polaca” dada a similitude que guardava com a Constituição ditatória polonesa de 1935, instituindo-se a pena de morte e o estado de emergência, o qual permitia ao Presidente da República suspender imunidades parlamentares, invadir domicílios e exilar opositores20.

Com a Constituição de 1937 e o autoritarismo da Era Vargas, o Tribunal de Contas perdeu força, sendo-lhe reservado um único artigo. Foi-lhe retirada constitucionalmente, por exemplo, a competência de emissão de parecer prévio nas contas prestadas pelo Presidente da República. O Tribunal de Contas foi inserido no capítulo atinente ao Poder Judiciário, muito embora dele não fizesse parte21.


CONSTITUIÇÃO DE 1946

Com euforia, após oito anos de ditadura, em 2 de dezembro de 1945 foram eleitos os constituintes e o presidente da República. Foi uma campanha meteórica. Somente com a queda de Vargas, em 29 de outubro, é que se teve plena certeza da realização das eleições. Havia um temor de que se repetisse o ocorrido em 1937. Para ver a dificuldade da campanha eleitoral, basta recordar que o estado de emergência foi revogado apenas em 30 de novembro, dois dias antes do pleito. E campanha eleitoral com estado de emergência não passa de simulacro. Pela primeira vez em uma Constituinte, os comunistas puderam apresentar livremente seus candidatos. Elegeram 15 deputados e um senador22.

A Guerra Fria só começaria, formalmente, no ano seguinte, porém no Brasil já tinha se iniciado. O enfrentamento entre os apoiadores dos Estados Unidos e da União Soviética estava presente em qualquer discussão da Constituinte, por mais banal que fosse.

Em 18 de setembro foi promulgada a quinta Constituição brasileira, a quarta republicana. Afinal, havia pouco mais de um ano terminara a Segunda Guerra Mundial e parecia que o mundo caminhava para um longo período de paz. No brevíssimo preâmbulo, os constituintes registraram que estiveram reunidos “sob a proteção de Deus”. Em 1934 a redação foi distinta: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo nossa confiança em Deus”. E a Constituição teve vida curta, curtíssima, e abriu caminho para a ditadura estado-novista.

Com 218 artigos, foi, até então, a Constituição republicana mais extensa – e democrática. Manteve a denominação Estados Unidos do Brasil, tal qual as três Constituições anteriores. Dedicou atenção especial ao Legislativo. O Congresso foi dividido em duas casas. O ano legislativo foi ampliado para nove meses. A Câmara dos Deputados teve nova representação proporcional. Foi estabelecido o número mínimo de deputados para um estado, sete, o que traria sérias consequências para o futuro da representação popular. Se a Constituição de 1934 tinha determinado que cada estado teria direito a dois senadores, a de 1946 aumentou para três. E mais: criou o suplente de senador. O vice-presidente da República, cargo que também foi recriado e que era inexistente na Constituição de 1934, exerceria a função de presidente do Senado Federal, onde tinha voto de qualidade23.

Vale observar que não obstante as previsões na Constituição anterior, somente com o fim da Era Vargas e o advento da Constituição de 1946, pode-se falar que o Tribunal recuperou sua força e independência24.

A nova Constituição acrescenta atribuições à Corte de Contas, entre elas, julgar a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, além de competir-lhe aquilatar a legalidade dos contratos administrativos, estando suas competências disciplinadas nos artigos 76 e 7725.

Insta Consignar que Pontes de Miranda já defendia que o Tribunal de Contas exercia função de julgar, constituindo-se no plano material, um órgão judiciário, e no formal, auxiliar do Congresso Nacional26.

Vale mencionar que competia ainda ao Tribunal de Contas o registro prévio dos contratos que interessem à receita ou à despesa, contratos estes que só se consideravam perfeitos após o registro, funcionando a recusa do registro como causa de suspensão da execução do contrato, estabelecendo a necessidade de pronunciamento do Congresso Nacional.


CONSTITUIÇÃO DE 1967 E EMENDA 1/69

O golpe civil-militar de abril de 1964 encerrou a chamada república populista. Os novos donos do poder foram pródigos na imposição de uma renovada ordem legal marcada pelo arbítrio e violência. Apesar de manter as aparências – a Constituição de 1946 continuou em vigor –, a prática foi extremamente distinta. Em 9 de abril, o autointitulado Comando Supremo da Revolução, formado pelo general Costa e Silva, pelo vice-almirante Augusto Hademaker e pelo brigadeiro Francisco de Mello, editou o Ato Institucional (AI) n.º 1 – foram 17, no total. O mais curioso é que em Brasília já havia um governo constituído, chefiado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, como dispunha a Constituição27.

No ano seguinte veio o AI-2, em 27 de outubro. Manteve o modelo do anterior, com um longo prólogo. Fez diversas citações do AI-1, mas dessa vez alterando vários artigos da Constituição de 1946. Um deles foi sobre a tramitação dos projetos do Executivo no Congresso. Dava 90 dias, no máximo, para a tramitação nas duas Casas. Se o prazo não fosse suficiente para a votação, os projetos seriam considerados aprovados na forma como foram encaminhados pelo Executivo. Era uma antiga demanda e motivo de crítica da “paralisia” do Legislativo pelos defensores de um Executivo forte28.

Em 3 de outubro de 1966, o Congresso “escolheu” Costa e Silva, presidente da República. Não teve opositores. Tomaria posse em março do ano seguinte. Castelo Branco cassou seis parlamentares e fechou o Congresso por 32 dias.

Diferentemente das Constituições republicanas anteriores, a de 1967 não determinou claramente a denominação do Brasil. Desapareceu a designação Estados Unidos do Brasil. Contudo, não há outra definição clara. Só é definido, no artigo 1.º, que o Brasil é uma república federativa. Pressupõe-se, portanto, que a denominação tenha se resumido a “Brasil”. Revelando que o regime militar ainda não tinha definido claramente seu perfil, a Constituição manteve a eleição direta para governador e vice, e do prefeito e vice (arts. 13 e 16). Porém o presidente da República seria “eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão pública e mediante votação nominal”. O Colégio Eleitoral “será composto dos membros do Congresso Nacional e de delegados indicados pelas Assembleias Legislativas dos estados”. Cada assembleia “indicará três delegados e mais um por quinhentos mil eleitores inscritos, no estado, não podendo nenhuma representação ter menos de quatro delegados”29.

A Constituição de 1967, ratificada pela Emenda Constitucional 1/69, retirou do Tribunal o exame e o julgamento prévio dos atos e dos contratos geradores de despesas, sem prejuízo da competência para apontar falhas e irregularidades que, se não sanadas, seriam, então, objeto de representação ao Congresso Nacional. O Tribunal de Contas também teve suprimida sua atribuição de analisar a legalidade das aposentadorias e pensões para fins de registro.

A denominação Tribunal de Contas da União – TCU surgiu dentro do quadro de reformas da Carta de 1967, por meio da Emenda 1 de 1969. Outra alteração relacionada à Emenda 1/69 foi a criação dos Tribunais de Contas Municipais para os Municípios que tivessem, população superior a dois milhões de habitantes e renda tributária superior a quinhentos milhões de cruzeiros novos, assim permaneceram somente os Tribunais de Contas dos Municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo.


CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIAS ATUAIS

Realização das eleições diretas para os governos estaduais, em 1982, consolidou o caminho para a redemocratização. Concluiu o ciclo iniciado com a extinção do AI-5 e a anistia aos perseguidos pelo regime militar (1979). No início do ano legislativo de 1983 foi apresentada uma Emenda Constitucional por um deputado de Mato Grosso, Dante de Oliveira (PMDB), restabelecendo a eleição direta para a Presidência da República. A emenda acabou empolgando o país.

A derrota da emenda contou com a participação decisiva do governo federal, dos partidários de Paulo Maluf e do presidente do PDS, José Sarney, que pressionaram os deputados usando de todos os meios imagináveis. Houve uma enorme frustração nacional. A saída encontrada foi o lançamento do governador mineiro, Tancredo Neves, como candidato oposicionista à Presidência.

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Em 15 de janeiro de 1985 Tancredo foi eleito presidente. Tancredo teve de ser internado às pressas na véspera da posse. Depois de passar por sete operações, faleceu em 21 de abril. José Sarney assumiu a Presidência.

O texto final da Constituição foi aprovado na sessão de 22 de setembro de 1988. Recebeu 474 votos favoráveis e apenas 15 contrários. Os 15 eram da bancada do PT, que considerou a Carta “elitista e conservadora”.

Duas semanas depois, em 5 de outubro, após longos 20 meses de trabalho, foi promulgada a Constituição, com cerimônia transmitida por rádio e televisão. A data foi escolhida a dedo: era o aniversário de nascimento de Ulysses Guimarães.

Com a Constituição de 1988 o Tribunal de Contas recuperou sua importância como nunca antes visto na História do Brasil República. Além das funções que já possuía nas sistemáticas constitucionais pretéritas, foi ungido de poderes para, auxiliando o Congresso Nacional exercer a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade, fiscalização da aplicação das subvenções e da renúncia de receitas30.

Assim, na forma do artigo 70 da Constituição de 1988, “A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder”.

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;

V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;

VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

VII - prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

Nesse sentido, com a entrada em vigor da Constituição de 1988 cabe ao Tribunal de Contas a realização prévia, concomitante e posterior da fiscalização financeira e orçamentária da União seja em seus entes da administração direta e indireta.

O intuito fundamental das competências do TCU é sem dúvida buscar a eficiência na atuação administrativa, com a necessária diminuição de custos e aprimoramento dos serviços, primando sempre pela legalidade e moralidade.

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Sobre o autor
Luis Eduardo Oliveira Alejarra

Advogado no escritório Oliveira e Becker. Formado em Direito pelo Instituto Processus. MBA Executivo em Finanças Corporativas. Pós-graduado em Direito Empresarial. Doutorando pela Universidade de Buenos Aires. Especialista em Direito Empresarial, Tribunal de Contas da União e Licitações Internacionais Diretrizes Banco Mundial - BIRD.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALEJARRA, Luis Eduardo Oliveira. A criação do Tribunal de Contas na história constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3952, 27 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27898. Acesso em: 5 mai. 2024.

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