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Violência contra a mulher, direitos humanos e gênero:

uma leitura da Lei Maria da Penha

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No Brasil, a Lei Maria da Penha, apesar das múltiplas controvérsias suscitadas, possibilita a realização de alguns direitos femininos que garantem a gradual construção e consolidação da dignidade e do exercício da cidadania e da liberdade feminina.

Resumo: Este estudo tem como preocupação discutir a violência contra a mulher e as relações com os direitos humanos numa perspectiva de gênero. Para tanto, são apresentadas concepções teóricas sobre gênero seguidas de explanações relativas a tratados e direitos humanos específicos nos casos de violência contra a mulher. Segue-se um detalhamento da Lei Maria da Penha e as mudanças implementadas a partir de sua sanção e vigência.

Palavras-chave: Violência. Direitos Humanos. Gênero. Lei Maria da Penha.

Abstract: This study concerns to discuss the violence against women and links with human rights from a gender perspective. To this end, it was presented theoretical conceptions about gender followed by explanations of agreements and specific human rights in cases of violence against women as well as a detailing of the Maria da Penha Law and the changes implemented from it´s sanction and validity.

Keywords: Violence. Human Rights. Gender. Maria da Penha Law.

Sumário: 1. Introdução; 2. Gênero: uma contribuição nos estudos sobre Direitos Humanos e violência contra mulheres; 3. Historicizando Direitos Humanos das mulheres e normativas; 4. Lei Maria da Penha e a violência contra a mulher na perspectiva de gênero e Direitos Humanos; 4. Considerações Finais.


1 INTRODUÇÃO

Relacionar a violência contra mulheres e direitos humanos apresenta-se como um dos objetivos da explanação. Tema recorrentemente anunciado na mídia escrita e televisiva, foco de estatísticas e análises estatísticas, a violência contra mulheres escancara-se por meio da exposição de dados numéricos alarmantes no Brasil. Desse modo, o estudo do tema em questão contribui para a ampliação da discussão e da visibilidade deste tipo específico de violência.

No âmbito metodológico, a pesquisa desenvolve-se com base em análise documental que inclui o estudo da legislação pertinente e em revisão bibliográfica pautada em sínteses elaboradas a partir de produções acadêmicas relativas ao tema em questão.

No sentido teórico, que funciona como orientador das reflexões sobre o tema destacam-se as concepções de gênero, de direitos humanos e de violências, apropriadas de estudiosos multidisciplinares e atuantes nas áreas da Antropologia, Sociologia, História e Direito.

Este aparato teórico-metodológico guia a investigação no sentido de fundamentar as diferenças de gênero no âmbito cultural, como criações humanas afloradas em contextos históricos específicos. Nesse sentido, a concepção de direitos humanos possibilita a crítica às posturas patriarcais e tradicionais que reproduzem práticas sexistas, conduzindo a conquistas de direitos vinculados aos princípios da dignidade humana e exercício da cidadania para mulheres submetidas a situações de violência.

Desse modo, e visando contemplar o objetivo da pesquisa, o trabalho foi organizado em três momentos específicos. No primeiro, apresentam-se concepções de gênero enquanto uma categoria de análise e suas possibilidades de contribuição nos estudos sobre violência contra mulheres. Afunilando o tema, na segunda parte, pontua-se a historicização dos direitos humanos e de normativas que originaram políticas e legislações internacionais e nacionais no âmbito de ações que coíbam a violência contra a mulher. Por fim, na parte final, realiza-se um estudo sobre a Lei Maria da Penha e suas possibilidades para a concretização de princípios fundamentais da dignidade e cidadania das mulheres.


2 GÊNERO: UMA CONTRIBUIÇÃO NOS ESTUDOS SOBRE DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES

Estudos sobre mulheres, em qualquer área do conhecimento, não são neutros, pois trazem em si questionamentos políticos sobre relações humanas específicas que envolvem o feminino e o masculino. Uma das características destas relações é a ideia de natureza e essência biológica na oposição entre o feminino e o masculino. Questionando esta naturalidade e essencialidade campos das ciências humanas e sociais defendem que a construção desta binaridade é histórica, localizada no tempo e no espaço, contribuindo para tornarem as pesquisas e estudos mais analíticos, por meio da problematização da oposição.

Nesta linha de pensamento, na década de 1980, o conceito de gênero passou a ser usado por pesquisadoras feministas1 que pretendiam romper com os trabalhos descritivos sobre as mulheres. Estas descrições centravam o caráter de universalidade da categoria mulher, como se as mulheres tivessem sempre as mesmas necessidades, desconsiderando variáveis específicas, com foco na premissa do domínio do “homem” sobre a “mulher”.

Sobre a conceituação de gênero, Guacira Louro2 orienta que:

Gênero não pretende significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino. Uma decorrência imediata para o trabalho prático: agora não se trata mais de focalizar apenas as mulheres como objeto de estudo, mas sim os processos de formação da feminilidade e da masculinidade, ou os sujeitos femininos e masculinos. O conceito parece acenar também imediatamente para a ideia de relação; os sujeitos se produzem em relação e na relação. (Grifo nosso).

Dois pontos são centrais na concepção de gênero como perspectiva analítica para os estudos sobre a mulher: a compreensão de que o sujeito feminino ou masculino constitui-se social e culturalmente em relação uns com os outros e nesta mesma relação. Assim, a formação do masculino e do feminino ocorre de maneira cultural, relacional e processual. Neste sentido, compreender o gênero enquanto construção cultural implica em aceitar a pluralidade, não apenas no sentido de diferentes concepções de homens e mulheres em variadas sociedades e temporalidades, mas observar que tais concepções dependem de outros elementos culturais, como classe, religião, idade, etnia.

A historiadora Joan Scott3 destaca que é necessário desconstruir a lógica binária de pares opostos, princípio sobre o qual opera o pensamento ocidental moderno. Oposições binárias indicam que dois pólos diferem e se opõem, mas também afirmam que cada um é idêntico a si mesmo, suspendendo a realização do outro. Ao aplicar esta lógica ao masculino e feminino, a diferença não estaria apenas na distinção das categorias homem e mulher, mas no sentido de que uma categoria desvia, suspende ou adia a consumação da outra. Ao apresentar em primeiro lugar o termo prioritário (em relação ao qual o outro difere – e por isso é o outro) essas dicotomias escondem a interdependência entre os pólos.

A proposta desconstrutivista orienta o deslocamento dos termos para demonstrar que cada um está presente no outro e evidenciar que oposições são histórica e linguisticamente construídas, como masculino e feminino, público e privado, produção e reprodução, cultura e natureza, etc. Neste âmbito conceitual do masculino e feminino, Scott questiona as concepções de igualdade e diferença, argumentando que essa dicotomia cria uma impossibilidade de escolha, pois a noção de igualdade pressupõe a diferença, uma vez que não seria necessário buscar a igualdade para sujeitos que são idênticos. Neste sentido, o igualitarismo “pressupõe um acordo social para considerar obviamente diferentes como equivalentes (não como idênticas) em relação a um dado propósito”4, numa evidente constatação de que o oposto da igualdade é a desigualdade e não a diferença. A manutenção da polaridade igualdade e diferença apenas fortalece a posição conservadora aceitando que as mulheres não podendo ser idênticas aos homens em todos os aspectos, não podem ser iguais a eles. A questão não é a de anular as diferenças entre os sujeitos, mas afirmar que tais diferenças têm sido usadas para justificar tratamentos desiguais, não equivalentes.

As identidades de gênero devem ser compreendidas numa diversidade historicamente variável, comprometida com diferentes propósitos e expressa em diferentes contextos. Não basta ver a diferença entre os sexos, mas perceber como tais diferenças represam a diversidade nos grupos de gênero. Retomando a lógica binária, Scott afirma que cada lado da oposição é tratado como fenômeno unitário. Ao problematizar esta lógica o processo desconstrutivista supõe a interdependência dos polos e implica no reconhecimento das diferenças internas a cada um, impossibilitando a existência de uma identidade exclusivamente feminina ou masculina.

Aplicado à violência contra a mulher, o gênero como categoria de análise refuta o determinismo biológico implícito nos termos “sexo” e “diferenças sexuais” que se refere às diferenças anatômicas entre homens e mulheres, fortalecendo o caráter cultural das relações entre os sexos5.

Para, Lilia Blima Scharaiber6, a violência de gênero expressa a violência doméstica por ocorrer no âmbito familiar e ser praticada contra a mulher, na maioria das vezes, por seus companheiros. A constatação é reforçada por Scharaiber7 ao afirmar que a “violência doméstica como violência de gênero representa assim a radicalização das desigualdades na relação entre homem e mulher”. A violência de gênero diz respeito a relações assimétricas, em que, a um dos pares, é conferido maior poder e autoridade, como resultado da cultura, modo de viver em sociedade como identidade masculina. Poder masculino reconhecido e legitimado pelo Outro feminino.

Maria Amélia de Almeida Teles e Mônica de Melo8 interpretam a categoria gênero como um instrumento que facilita a percepção das desequilíbrios sociais e econômicos entre mulheres e homens, causa da discriminação histórica contra as mulheres. Para as autoras, o gênero se firma como instrumento que oferece possibilidades mais amplas de estudo sobre as mulheres, percebendo-as em sua dimensão relacional com os homens e o poder. Com o uso desse instrumento, pode-se analisar o fenômeno da discriminação sexual e suas imbricações com classes sociais, com questões étnico-raciais, intergeracionais e de orientação sexual. As diferenças socioculturais existentes entre masculino e feminino se traduzem em desigualdades econômicas e políticas, colocando as mulheres em posição inferior à dos homens nas diferentes áreas da vida humana. Assim, violência de gênero pode ser vista como,

Uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas. Ou seja, não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos ás mulheres9.

Compreendendo o gênero como uma categoria analítica capaz de demonstrar que as relações entre feminino masculino são culturalmente instituídas, negando, desse modo, que as relações violentas entre ambos têm origem nas diferenças biológicas, é possível reler os direitos das mulheres numa perspectiva dos direitos humanos. A diferença não pressupõe a desigualdade, conforme indica Joan Scott. Desse modo, diferenças biológicas naturalizadas não devem orientar modos de estar no mundo instituindo interações entre homens e mulheres e lesando direitos garantidores da dignidade humana independente do sexo.

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3 HISTORICIZANDO DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E NORMATIVAS

As declarações Americana de Virginia (1776) e Francesa (1789) representam marcos históricos na concepção moderna de direitos humanos. Ambos os documentos resultaram de movimentos sociais e políticos que eclodiram no século XVIII, na América e na Europa, respectivamente, promovendo nas pessoas o questionamento de poderes arbitrários de reis e de governantes e mudanças nas condições de existência do indivíduo.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, redigida em pleno processo revolucionário francês, demarca o estabelecimento dos direitos fundamentais de primeira geração, com enfoque na liberdade do indivíduo diante do estado. Nesse período, os direitos civis ou individuais e políticos conformaram-se enquanto instrumentos de defesa perante o Estado, que teve sua área de atuação limitada para não interferir arbitrariamente na vida do indivíduo. Porém, esses direitos foram restritos aos homens, detentores de poderes político e econômico, sendo a igualdade de gênero desconsiderada10.

No século XX, após a Primeira Guerra Mundial, uma segunda geração de direitos, na qual o estado atuava como protetor de valores individuais, prevenindo ou remediando o detrimento de uma categoria social por outra a fim de promover a igualdade social. São direitos de igualdade, econômicos, sociais e culturais. Mas, como que ressaltando o seu escopo de cumprir uma função social para equalizar a sociedade, são ditos simplesmente direitos sociais. Esses direitos incidiram sobre relações trabalhistas numa tentativa de proteger grupos de trabalhadores contra a espoliação patronal. Uma vez mais, as questões de gênero foram deixadas em plano secundário11.

No avançar do século XX, a concepção de direitos humanos é retomada diante do holocausto ocorrido na Segunda Guerra Mundial. No contexto do pós-guerra, a ideia de direitos humanos permeia a prerrogativa de ter direito a ser sujeito de direitos, conforme defendia a filósofa Hannah Arendt. Antecipada, em dois meses, pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, na qual são valorizados os princípios de liberdade, igualdade e propriedade como direitos essenciais da pessoa, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Esta sim se pode dizer que, historicamente, é o primeiro documento a tratar das mulheres como portadoras de direitos, numa abordagem genérica, geral e abstrata sobre o tema. Preconiza o preâmbulo desta Declaração que: ”[...] todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”12. A ideia de igualdade é reforçada no artigo 2º:

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades [...] sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

É notório que a Declaração trata de “pessoas” sem estabelecer distinções entre homens e mulheres, estendendo direitos ao ser humano sem prerrogativas de sexo. A partir da discussão desencadeada no âmbito internacional de que o ser humano é detentor de direitos protetivos, instaurou-se a concepção de que os direitos humanos são “inerentes, à pessoa, independentemente de seu reconhecimento pelo estado, cultura, nacionalidade, sexo, orientação sexual, cor, etnia, classe social [...]”. Assim “toda pessoa, pelo simples fato de ser um ser humano, é titular de direitos”13..

A introdução deste tema na esfera internacional, como objeto de proteção por parte dos Estados nacionais, causou impacto nas Constituições de diversos países. Normas nacionais e o direito internacional passaram a constituir um sistema de proteção jurídica dos direitos humanos, inspirados nos tratados internacionais e nas Constituições Federais14.

A partir de um contexto mundial favorável aos olhares sobre as minorias marginalizadas e, muitas vezes, violentadas em múltiplas instâncias da dignidade humana, a violência contra as mulheres, em suas diversas práticas, passou a ser tratada como um problema de saúde pública e de lesão aos direitos fundamentais do ser humano. Ações desencadeadas contra as mulheres em nome de pretensas diferenças biológicas e culturais chamaram a atenção de grupos ativistas, de governos e da comunidade internacional. Nesse rastro, a violência contra a mulher entrou na pauta das convenções e tratados internacionais assim como outras ações que objetivaram romper a desigualdade de gênero instaurada por longas práticas sexistas.

No que diz respeito à discriminação contra a mulher, em 1979, a Organização das Nações Unidas (ONU), através da “Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher”, acordada com cento e setenta estados, fundamentou a dupla obrigação de eliminar a discriminação e assegurar a igualdade das mulheres. O Brasil ratificou o documento apenas no ano de 1984, após a abertura política ao regime militar15.

A violência contra as mulheres como uma violação aos direitos humanos foi reconhecida, em 1993, na “Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos”. Desde então, os governos dos países-membros da ONU e as organizações da sociedade civil têm trabalhado para a eliminação desse tipo de violência, que já é reconhecida também como um grave problema de saúde pública. Porto16 informa que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “as consequências do abuso são profundas, indo além da saúde e da felicidade individual e afetando o bem-estar de comunidades inteiras”. No mesmo ano, e especificamente relacionado à violência contra a mulher, a ONU aprovou a “Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher”.

Os documentos elaborados pela ONU decorrem de um sistema de proteção dos direitos humanos e possuem jurisdição global dentre os estados-membros. Complementarmente, existe um sistema regional que também visa proteger os direitos humanos. Para a América, esse sistema é regido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que aprovou a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher” ou “Convenção Belém do Pará”, em 1994, sendo ratificada pelo Brasil um ano depois.

A “Convenção de Belém do Pará” é emblemática para os movimentos de mulheres, pois define a violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais o que, consequentemente, limita total ou parcialmente as mulheres de gozarem plenamente de seus direitos. Classifica esta forma de violência como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à pessoa do sexo feminino, tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Seguindo as orientações internacionais, o documento preconiza que o Estado deve garantir o direito de uma vida livre de violência para as mulheres. Segundo este entendimento, pela primeira vez na história se admite que a violência cometida contra a mulher, ainda que no âmbito doméstico, representação do privado, interessa à sociedade e ao poder público17.

O foco central desta Convenção, conforme orienta Reis18, é o compromisso do Estado com ações de prevenção, punição e erradicação das violências contra as mulheres mediante medidas que possibilitem a investigação, apuração e punição dos agressores, bem como garantir recursos adequados, suficientes e efetivos para o devido atendimento e compensação às vítimas de violação. Nesse sentido, caso os Estados não o façam incorrem em omissão, uma vez que devem fazer relatórios periódicos e demonstrar que medidas ou políticas estão sendo adotadas. Estão também sujeitos a serem alvos de petição junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que após detalhada análise, e conferindo aos Estados o direito de se manifestarem, adotam as medidas cabíveis aos casos de omissão. São dois os mecanismos de implementação das diretrizes estabelecidas na Convenção de Belém do Pará no âmbito dos Estados. O primeiro ocorre através de relatórios nacionais e o segundo por meio da apresentação de denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos de violação ao preceituado no documento.

Em se tratando de Brasil isoladamente, a Constituição Federal (CF) de 1988, fundamentou possibilidades de igualdade entre homens e mulheres, numa perspectiva de relativização das diferenças consideradas elementos de não exercício da cidadania. O artigo 5º da CF professa que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se [...] a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Ainda mais claro fica a defesa da igualdade na esfera cível quando no inciso I do citado artigo conclama-se que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.

Também na sociedade conjugal os direitos entre homens e mulheres foram equiparados, conforme preconiza o artigo 226, § 5º, da CF. A coibição da violência contra a mulher na esfera doméstica também está descrita no artigo 226, § 8º, tal qual o planejamento familiar considerado livre decisão do casal. No âmbito do trabalho, a CF, artigo 7º, Inciso XXX, proíbe a discriminação por sexo ou estado civil. Exemplar é a Lei nº 9.029/95, que veta a exigência de atestado de gravidez e esterilidade ou outra forma de discriminação para permanência da mulher no mercado de trabalho.

Apesar do indicativo constitucional, a violência contra as mulheres foi considerada juridicamente, no Brasil, até o advento da Lei Maria da Penha19, como infração de menor potencial ofensivo, isto é, cuja pena máxima não poderia ultrapassar dois anos, sendo os casos atendidos nos Juizados Especiais Criminais. Os Juizados Especiais seguiam como um dos princípios a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, havendo possibilidade de penas alternativas20.

Nesse sentido, as denúncias de violência contra a mulher tornavam-se situações dramáticas, pois poucas eram as condenações e menor ainda a punição. As denúncias davam origem ao processo investigativo sem que o agressor fosse preso em flagrante, nem pagasse fiança. No Juizado Especial ouvia-se a vítima e o agressor, com a possibilidade de uma conciliação. Havendo acordo, o processo se encerrava e nada constaria nos registros do agressor, e caso a agressão repetisse, novo acordo e nova indenização poderiam ser determinados, sucessivamente. Nestes casos, a mulher não poderia mais apresentar a representação, pois havia renunciado ao processo. Uma vez que a mulher não concordasse com a reparação civil, ela deveria expressamente manifestar sua vontade para que o processo prosseguisse. Se condenado, o agressor estaria sujeito às penas restritivas de direito, que consistiam em prestação de serviço à comunidade ou, o que ocorria com frequência, em pagamento de cestas básicas para entidades assistenciais ou multa em dinheiro21.

A partir da esfera internacional posturas estatais e não-governamentais mobilizaram-se, no decorrer do século XX, em busca de alternativas para a redução da violência contra a mulher, considerando-a um problema de saúde pública que extrapolava o espaço privado e as diretrizes instituintes do direito privado. Significava que a violência passava a ser preocupação do estado e da sociedade.

A tendência norteadora das práticas legais vinculadas a violência contra as mulheres embasa-se nos pressupostos dos direitos humanos, tendo-os como premissa para a equidade de gênero. Estas premissas encontram-se presentes e reproduzidas em vivências nas quais se concretizem princípios básicos para o ser humano, independente de seu gênero, como a dignidade humana e a liberdade. Neste sentido, é necessária a apropriação da concepção de gênero nas diretrizes estatais e nas ações cotidianas de homens e mulheres, concebendo que as diferenças são culturalmente instituídas e que não justificar explicar submissões arbitrárias por meio de qualquer tipo de violência.

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Sobre os autores
Diego Ramires Bittencourt

Bacharel em Direito pelas Faculdade Santa Amélia - Secal/Ponta Grossa

Adriana Mello

Doutora e Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Cultura e História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Licenciada em História pela UEPG. Professora de Filosofia do Direito no Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais (CESCAGE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTENCOURT, Diego Ramires ; MELLO, Adriana. Violência contra a mulher, direitos humanos e gênero:: uma leitura da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3969, 14 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28394. Acesso em: 24 abr. 2024.

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