Capa da publicação Ativismo judicial e os limites da jurisdição constitucional
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Os limites da jurisdição constitucional e o fenômeno do ativismo judicial

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27/08/2015 às 08:44
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Uma das grandes polêmicas do Direito Constitucional reside no conflito entre democracia e constitucionalismo, isto é, na tensão entre o regime democrático e a jurisdição constitucional. Esse conflito é agravado diante de uma atuação mais incisiva do Poder Judiciário, em questões que não pertencem a sua seara.

Introdução

Uma das grandes polêmicas do Direito Constitucional reside no conflito entre democracia e constitucionalismo, isto é, na tensão entre o regime democrático e a jurisdição constitucional. Esse conflito é agravado diante de uma atuação mais incisiva do Poder Judiciário, em questões que não pertencem a sua seara, ocorrendo, portanto, o fenômeno do ativismo judicial.

A partir da análise de institutos clássicos do Direito Constitucional, é possível compreender como esse fenômeno ocorre nas sociedades contemporâneas, as quais se caracterizam por sua imensa complexidade. Assim, nos últimos anos, o Poder Judiciário brasileiro, principalmente através do Supremo Tribunal Federal, está atuando de uma forma bastante ativista, nas questões políticas, nos casos do mandado de injunção, da reclamação e das hipóteses em que o Pretório Excelso atua como um legislador, através de mecanismos de interpretação constitucional.

Dessa forma, através dessa análise, pode-se constatar como o Supremo tem influenciado a sociedade, agindo mais do que um órgão judicial, exercendo uma atividade legiferante, já que o Legislativo está continuamente se omitindo das questões sociais.


1 A democracia e o constitucionalismo

1.1 Aspectos essenciais da democracia[1]

A democracia está presente no mundo ocidental desde a Grécia Antiga, contudo, no decorrer do tempo, esse instituto foi se aperfeiçoando, tornando um instrumento eficaz para a sociedade. Em razão dessa evolução, surgiram vários modelos de democracia, de acordo com a participação do cidadão: a delegativa; a representativa; e a participativa. A primeira se caracteriza pela delegação que os cidadãos fazem aos seus representantes. Já na segunda, a sociedade elege seus governantes de acordo com certas regras preestabelecidas. E a última se caracteriza pela efetiva participação dos cidadãos, nas decisões executivas e legislativas (FREITAS, 2009, p. 118).

Esse regime se contrapõe aos ditatoriais que impõe regras excessivas e tolhe a liberdade humana, cerceando os direitos fundamentais, não por acaso que o grande marco do inicio da era contemporânea está na simbólica queda da Bastilha, a qual representava o Antigo Regime absolutista. Em razão disso, a função da democracia é estabelecer que a própria sociedade possa estabelecer sua organização e suas regras.

O Brasil, na Constituição de 1988, adotou o modelo representativo com certos elementos do participativo com o referendo e o plebiscito. Entretanto, a sociedade, no âmbito nacional, somente atuou diretamente no processo legislativo em duas oportunidades: a primeira foi no plebiscito previsto no ADCT art. 2º A qual previu a escolha da forma e do sistema de governo, em 1993; a segunda foi o referendo sobre o estatuto do desarmamento em 2003. Recentemente, a campanha “ficha limpa” está coletando assinaturas para utilizar a iniciativa prevista no § 2º do art. 61, a iniciativa popular. Além disso, em alguns municípios há possibilidade de as comunidades escolherem quais obras são necessárias para aquela localidade, é o denominado orçamento participativo, como ocorre na cidade do Recife.     

1.2 Jurisdição constitucional

1.2.1 Conceito e delimitação do termo

A jurisdição constitucional é a atividade estatal que visa concretizar as regras contida na lei fundamental, “fazendo com que as estruturas normativas abstratas possam normatizar  a realidade fática” (AGRA, 2004, p. 19). Por mais que pareça genérica tal afirmação, ela sintetiza bem a função da jurisdição constitucional, uma vez que tal atribuição foi construída, conforme explica Pedro Cruz Villalón, citado por Walber Agra (2004, p. 18), em três fase, as quais ratificam seu papel no Estado e desenvolvendo sua estrutura concreta.

  A primeira delas está vinculado à pacificação dos sujeitos políticos, isto é, atuava como uma jurisdição política, resolvendo os conflitos das câmaras e assembléias, sendo um instrumento de defesa dos procedimentos democráticos. A segunda procurou consolidar o conceito de supralegalidade da Constituição, determinando que as leis infraconstitucionais está submetida aos parâmetros constitucionais. Essa fase está atrelado ao conceito de constituição rígida, encontrado na constituição norte americana, e ao desenvolvimento do controle de constitucionalidade das leis. A última fase foi desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial, quando a jurisdição constitucional procurou concretizar os direitos fundamentais garantidos nas constituições.

A partir dessas atribuições, a jurisdição constitucional adquiriu uma importância maior na sociedade, uma vez que buscam proteger a constituição e garanti-la, em razão disso, seu conceito está vinculado à suas funções. Além disso, são essas as atividades que colidem com a atuação do Legislativo e do Executivo, por isso costumam ser bastante questionada, já que a jurisdição constitucional não foi eleita democraticamente, a denominada função contramajoritária.

1.2.2 Os limites da jurisdição constitucional e a sua legitimidade democrática

Há uma tensão entre a jurisdição constitucional e a democracia, que pode ser sintetizada pela seguinte pergunta: por que a decisão dos tribunais constitucionais, cujos membros não foram escolhidos pelo povo, deve sobrepor aos atos do Legislativo e do Executivo, os quais foram eleitos democraticamente pela população? Essa indagação é a mais polêmica do constitucionalismo contemporâneo, uma vez que as cortes constitucionais possuem o poder de proferir a última palavra em matéria constitucional.

Em razão desse questionamento diversas teorias foram desenvolvidas para assegurar a atuação da jurisdição constitucional, como um instrumento democrático. Gustavo Binenbjom enumera as diversas teorias que são a descrição das atividades da jurisdição constitucional, a qual visa, por exemplo, proteger os direitos fundamentais, o procedimento democrático e o direito das minorias (BINENBOJM, 2004, p. 54).

Discutir a legitimidade democrática da jurisdição constitucional é, na verdade, discutir os seus limites em uma sociedade democrática (VIEIRA, 2008, p. 336.). Além disso, o debate sobre a legitimidade, no Brasil, tem adquirido proporções ainda maiores em virtude o aumento da atuação do Supremo Tribunal Federal, principalmente nos últimos anos, contudo é necessário ressaltar que as decisões do STF tem corroborado com sua legitimidade, uma vez que tem garantido diversos direitos à sociedade, até mesmo nos casos de omissão legislativa. Dessa forma, por mais que haja um alargamento da jurisdição constitucional brasileira, ela está atuando não só em benefício da democracia, mas também em defesa dos direitos fundamentais, em face disso, ela  possui uma atuação legitima e democrática.    

1.3 A tensão entre a jurisdição constitucional e a democracia

Por mais que o constitucionalismo e a democracia possuam o mesmo objetivo que é o de limitar o poder dos governantes, para que não se repetisse os mesmos erros do passado, há uma tensão entre eles. O embate é caracterizado pela limitação que o constitucionalismo faz nos regimes democráticos, já que a Lei Fundamental deve prevalecer diante das leis infraconstitucionais. Essa tensão é agravada com o papel da jurisdição constitucional, a qual representa o constitucionalismo, principalmente, quando este desconstrói os atos do Legislativo e do Executivo, os quais foram escolhidos pela população.

Mas esse conflito tem origem na própria Constituição, uma vez que ela estabelece parâmetros para o legislador e regras que limita o ato legiferante, além disso compete à jurisdição constitucional, exercida principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, dizer o que está ou não está de acordo com a carta magna. O exercício do controle de constitucionalidade explicita essa tensão, já que a decisão de um órgão não eleito pela sociedade prevalece sobre aquela que foi realizada por pessoas as quais foram eleitas democraticamente.

Outro agravante para essa situação, segundo Bianca Stamato, foi feito pelo próprio Poder Constituinte originário, já que quando há uma maior abrangência da Constituição, o legislador fica mais limitado e amplia a atuação do Judiciário, principalmente nas questões políticas, isto é, na judicialização da política (cf. STOMATO, 2005, p. 12). Contudo, por mais que pareça um mal esse conflito, é extremamente salutar para a sociedade, já que tanto a democracia quanto a jurisdição constitucional procuram sempre fiscalizar o limite de cada um, esse debate promove o progresso do Estado.

É preciso ressaltar que esse conflito acarreta em duas conseqüências: uma delas é a limitação do legislador ordinário; a outra é o oposto, o crescimento do Judiciário em razão do alargamento da jurisdição constitucional, que foi realizado pelo constituinte. Hoje é possível visualizar o Supremo atuando muito além das atribuições que um órgão judicial deveria possuir. Dessa forma, há uma nova organização da separação das funções estatais, já que o Poder Judiciário se sobrepõe ao Legislativo e ao Executivo.


2 A atual concepção da separação das funções estatais[2]

2.1 Evolução da separação das funções

A essência da separação das funções está na limitação do poder estatal, uma vez que sua concentração acarreta, na grande maioria das vezes, em governos despóticos, um exemplo disso foi o Absolutismo. A fim de compreender melhor a atual realidade das atividades estatais, é preciso analisar a origem e a evolução da teoria da separação das funções estatais.   

É na Antigüidade Greco-Romana que surgiu o embrião daquilo que seria no século XVII a separação das funções do Estado (cf. TAVARES, 2009, p. 1137), contudo foi John Locke que buscou organizar o melhor funcionamento do Estado, desenvolvendo a separação em três funções o legislativo, o executivo e o federativoo em tres endo a separaçeculo a666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666666. Somente Montesquieu sistematizou a separação das funções na obra “Espírito das Leis”, com os aspectos semelhantes aos atuais. O legado de deste filósofo se encontra até hoje nos países do ocidente, uma vez que sua teoria partia do pressuposto que o governante o qual possuía o poder tenderia a abusar dele, assim, a limitação do poder seria através do próprio poder, uma vez que ele organizava o Estado dividido nas seguintes funções: a função legislativa, a executiva e a judicial (cf. HARGER, 2005, p. 108).

Essa separação era extremamente bem definida, não havia possibilidade de intervenção de nenhuma função na outra. O que os teóricos da época procuravam era um maior afastamento do Absolutismo, o qual concentrava as funções estatais nas mãos do monarca, que principalmente legislava e executava. Nesse momento, a lei foi a principal forma de limitar o poder soberano, não é por mero acaso que nessa época foi desenvolvido o principio da legalidade. Em razão desse excessivo temor ao poder dos absolutistas, tenha o doutrinador francês construído uma teoria da separação das funções estatais tão rígida.

Entretanto, com uma separação tão estática, não permitiria que o Estado fosse mais dinâmico. Em face desse fato, nos Estados Unidos, foi desenvolvida a teoria dos Freios e Contrapesos (Checks and Balance) (SILVEIRA, 2001, p. 133).

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2.2 O Judiciário a frente das outras funções: um novo arranjo da separação das funções estatais

Originalmente, a função judicial foi visualizada pelos teóricos, como a função mais frágil, sem nenhum poder, não só Montesquieu defendeu essa tese, mas também o norte americano Alexander Hamilton, o qual chegou a afirmar, no artigo n° 78 dos artigos federalistas,  que dentre as funções o Judiciário era a menos “perigosa”, já que “não tem nenhuma influência nem sobre a espada e nem sobre a bolsa” (cf. HAMILTON, JAY e MADISON, 1987, p. 479.), estando sempre dependendo dos outros poderes para garantir suas decisões. Contudo, a evolução do Poder Judiciário mostrou que esses dois juristas estavam equivocados.

Há um outro fator que alterou o equilíbrio entre as funções do estado que foi a quebra da neutralidade do Poder Judiciário, conforme explica Tércio Sampaio, o Estado do Bem-Estar Social, através dos direitos sociais, permitiu que o juiz analisasse a lei com base na sua eficácia, isto é, se ela é capaz de concretizar os objetivos previstos por ela (cf. FERRAZ Jr, 1994, p. 18.). Isso permitiu que o Judiciário discutisse temas que estavam inseridos em um contexto mais político do que jurídico. Segundo o professor da USP, o juiz não fica mais preso a estrita legalidade, se preocupando com a consecução de finalidades políticas, tornado-se um importante ator na garantia dos direitos sociais (cf. FERRAZ Jr, 1994, p. 19.).

No Brasil, o constituinte de 1988 adotou a “separação dos poderes” como um Princípio Fundamental no art. 2°, sendo a União formada pelo legislativo, o executivo e o judiciário, harmônicos e independentes entre si. Contudo é preciso destacar que mesmo havendo um equilíbrio entre as funções, não há uma igualdade, uma vez que existe uma “hierarquia relativa” (cf. HARGER, 2005, p. 111), entre as funções estatais. Essa hierarquia advém da própria constituição, uma vez que ela estabelece regras as quais submete uma função à outra, de tal forma que o Judiciário possui uma preponderância dentre os demais. Quando o órgão judicante exorbita de suas funções ou interfere nas outras funções ocorre o fenômeno do ativismo judicial.


3 Ativismo judicial

3.1 Delimitação do termo

A expressão Ativismo Judicial tem origem em uma matéria sobre a Suprema Corte norte-americana, na revista Fortune, no seguinte artigo “The Supreme Court: 1947” do jornalista Arthur Schlesinger Jr. (VALLE, 2009, p. 20). Em que pese a revista não fosse voltada para o mundo jurídico, a matéria destacava o perfil dos juízes mais ativistas e os que defendiam a autolimitação judicial da suprema corte. Após essa publicação, o termo foi usado frequentemente no sentido pejorativo, quando se tinha o objetivo de criticar as decisões da Suprema Corte. 

A partir desse marco a doutrina passou a utilizar essa expressão em diversos significados. Dentre esses sentidos, é possível destacar cinco conceituações, segundo o jurista norte-americano Keenan Kmiec, as quais são as mais empregadas pela doutrina hodierna.

a) prática dedicada a desafiar atos de constitucionalidade defensável emanados de outros poderes; b) estratégia de não-aplicação dos precedentes; c) conduta que permite aos juízes legislar “da sala de sessões”; d) afastamento dos cânones metodológicos de interpretação; e) julgamento para alcançar resultado pré-determinado (VALLE, 2009, P. 21.).

No presente trabalho, será analisado e discutido a atuação do Supremo Tribunal Federal nas hipóteses “a” e “c”, isto é, o desempenho dos ministros quando interferirem na competência de outras funções alheias as que foram concedidas pelo constituinte.

Além disso, por mais que alguns doutrinadores considerem o Ativismo Judicial sendo um fenômeno recente, é preciso destacar que a existência de um Judiciário mais ativo já remonta a um dos mais célebres casos do Direito Constitucional o Marbury vs Madison, em 1803, quando o chief Justice Marshall avocou a atribuição da Suprema Corte em realizar o controle de constitucionalidade em nome do princípio da Supremacia da Constituição, ato que foi denominado de Judicial Review.

Diante desse marco, a estrutura da separação das funções imaginada por Montesquieu foi completamente reformulada, como foi analisada anteriormente, e o Judiciário adquiriu uma significativa importância.

3.2 Ativismo judicial vs. autocontenção judicial

Como não há uma unanimidade na aceitação do ativismo judicial, existe uma corrente que defende uma posição diametralmente oposta que é a da autocontenção judicial ou self-restraint. Nessa corrente, há uma valorização no regime democrático, em detrimento da jurisdição constitucional, a qual não pode minimizar a função daqueles que foram eleitos pela população, uma vez que quem exerce a jurisdição constitucional não foi escolhido pelos cidadãos. Mesmo o juiz constitucional, assegurando a constituição através do controle de constitucionalidade, não o pode tornar como o senhor supremo, determinado o que é certo ou o que é errado.

A autocontenção pode ocorrer de diversas formas, uma delas é, segundo Sergio Moro (cf. 2004, p. 221.), através da “reserva de consistência”, isto é, as decisões e interpretações do Judiciário dever possuir uma boa fundamentação, a fim de que sobreponha à interpretação do legislador. Dessa forma, o Poder Judiciário não só dever fundamentar bem sua decisão, mas também selecionar os argumentos necessários para demonstrar o objetivo que pretende alcançar, principalmente no exercício da Jurisdição Constitucional, uma vez que colide com a atuação de outras funções estatais. Assim, o Supremo Tribunal Federal não pode discricionariamente declarar uma lei inconstitucional.

A “reserva de consistência” ocorre de uma forma especial e bastante conhecida, a reserva do possível. O juiz não pode conceder direitos indistintamente, uma vez que, segundo essa corrente, o Estado, primeiro, atende a coletividade e não pode privilegiar aqueles que procuram o Judiciário; e, segundo, Ele, na insuficiência de meios materiais, não pode atender a esses anseios. Sob esses argumentos, o juiz limita sua própria atuação (cf. MORO, 2004, p. 224).

Outra forma em que ocorre a autocontenção é quando o juiz adota uma postura minimalista, mutatis mutandis, não aplica decisões demasiadamente abrangentes, principalmente, em uma sociedade tão plural. A decisão minimalista permite que o Judiciário realize uma evolução mais avançada, não havendo um congelamento de determinados entendimentos (cf. MORO, 2004, p. 218.).

 Os defensores dessa corrente acreditam que diante do pluralismo social é melhor que as controvérsias políticas não sejam discutidas no Judiciário, devendo as instituições democráticas solucionar tais conflitos. Segundo esses doutrinadores, é mais conveniente o juiz não decidir do que decidir erroneamente (cf. MORO, 2004, p. 207). Grandes equívocos da Suprema Corte Norte-Americana são utilizados para corroborar com tal raciocínio, como o caso “Dread Scott vs Sandford”, nesse evento, a Suprema Corte declarou que homens brancos e homens negros são diferente e que é legitimo a escravidão e a segregação racial.


4 O ativismo judicial na realidade brasileira

4.1 A judicialização da política

O poder Judiciário, principalmente o Supremo Tribunal Federal, vem decidindo questões que pertencem mais a seara política do que jurídica, esse fenômeno é denominado de judicialização da política. Nesse sentido, Torbjörn Vallinder, explicado por Marcelo Casseb, define judicialização da política como sendo “a atuação mais expansiva do Judiciário, no sentido de que ele passa a decidir matérias até então reservadas à esfera dos Poderes Executivo e Legislativo” (CONTINENTINO, 2008, p. 58).     

Segundo alguns doutrinadores, como Marcos Faro de Castro, esse fenômeno é uma forma de ativismo judicial. Segundo o autor, por mais que pareça prejudicial à democracia, a judicialização da política não o é, uma vez que ela funciona como um mecanismo que aperfeiçoa a interação entre as funções estatais, portanto, um beneficio para a democracia (CASTRO, acesso em 02.09.09).

Esse fenômeno pode ser constatado a partir da expansão do Judiciário, principalmente, a partir da Segunda Guerra Mundial, quando essa buscou assegurar os direitos fundamentais (CONTINENTINO, 2008, p. 57). Além desse fator, Werneck Vianna considera o grande número de ações ajuizadas pelas diversas classes das sociedades civis para a solução de conflitos de ordem política outras hipóteses em que desenvolvem a judicialização (BURGOS; CARVALHO; MELO; VIANNA, 1999, p. 50.).

Dessa forma, o exercício da atividade judicial nas questões políticas com a devida participação da sociedade torna o ativismo judicial legitimo para o aperfeiçoamento da democracia.

4.2 O ativismo judicial exercido através de instrumentos processuais: a reclamação constitucional e o mandado de injunção

O Supremo Tribunal Federal tem utilizado certos instrumentos processuais a fim de exercer o seu ativismo judicial. Não só as conhecidas ações constitucionais, como a ação declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade, as quais o tornam o “legislador negativo”, segundo a doutrina kelseniana, mas também através de duas outras ações, a reclamação constitucional e o mandado de injunção. Essa constatação foi observada pelo Laboratório de Análise Jurisprudencial, o qual foi coordenado pela professora Vanice Lírio do Valle.

A pesquisa foi publicada no livro “Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal”, o grupo avaliou que a transformação da jurisdição constitucional brasileira se deu na renovação da composição do STF a partir de 2003 aliado as alterações na Constituição através da emenda constitucional de nº 45 (cf. VALLE, 2009, p. 7.). Outra Constatação foi a modificação da compreensão processual, como pode ser percebida na ampliação do acesso à justiça e no aumento da garantia da prestação jurisdicional (cf. VALLE, 2009, p.42.). Essas alterações refletiram em dois instrumentos processuais: a reclamação e o mandado de injunção, como serão analisados.        

4.2.1 A reclamação constitucional

A fim de garantir as decisões do STF, foi desenvolvido o instituto da reclamação, o qual existe desde a própria criação do Supremo, contudo somente na década de 40 que as primeiras reclamações constitucionais foram ajuizadas, sem que houvesse uma base teórica concreta (cf. VALLE, 2009, p. 43.). A reclamação tem como objetivo preservar a competência do STF e, principalmente, garantir a autoridade das decisões do próprio Pretório Excelso (cf. BRANCO; COELHO; MENDES, 2007, p. 1231.).

Em que pese, seja um instituto tão antigo, somente recentemente, houve uma significativa evolução, principalmente, após a emenda constitucional de nº 3, a qual garantiu o efeito vinculante nas decisões em sede de controle concentrado, com a ação declaratória de constitucionalidade (cf. VALLE, 2009, p. 47.).

A reclamação é considerada uma ação constitucional, aproximando das ações diretas do controle concentrado, uma vez que a decisão corrobora o efeito vinculante da decisão anterior a qual a reclamação visa assegurar. Além disso, essa ação está sendo extremamente democrática, já que não possui um rol taxativo de legitimados para sua propositura. A reclamação 4.335-5/AC, cujo relator é o ministro Gilmar Mendes, é uma demonstração desse argumento, uma vez que quem ajuizou a ação foi a defensoria pública da União do Acre, discutido um assunto que estaria atrelado ao controle abstrato de constitucionalidade. Essa reclamação possui também certas peculiaridades, as quais tornam a reclamação um instrumento do ativismo judicial, já que o certe do debate é a aplicação da eficácia erga omnes no controle difuso, sem a intervenção do Senado. A origem da polêmica está na decisão do juiz acreano que não concedeu a liberdade dos presos respeitando a lei de crimes hediondos que, antigamente, vedava a progressão da pena, mesmo tendo o STF declarado o dispositivo que vedava a progressão inconstitucional.

A partir disso, a defensoria ajuizou a reclamação. O debate vai além quando se analisa os votos dos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, os quais defendem a mutação da competência do Senado (art. 52, X). O processo foi arquivado pelo Presidente do STF, contudo através dos votos proferidos é possível constatar que há a intenção do Supremo em ampliar sua competência através desse instrumento.        

4.2.2 O mandado de injunção

O constituinte de 1988 inovou o ordenamento jurídico com uma nova forma de proteger os direitos e garantias fundamentais, através do qual o judiciário poderia ser acionado, nas hipóteses de omissão legislativa, dois institutos são os exemplos dessa inovação: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.

O mandado de injunção merece uma atenção especial, já que, segundo Luis Roberto Barroso, não há, no direito comparado, nenhum instituto que seja similar, além disso, outro ponto que merece destaque é que o constituinte destacou uma patologia nacional, em razão da inércia do Poder Legislativo (cf. 2009, p. 253). Dessa forma, por mais que esse remédio constitucional tenha trazido um imenso avanço, ele destacou um grave problema do legislador, contudo a questão não se limita a isso, já que há uma série de fatores que contribuem para esse dado, o número excessivo de medidas provisórias e a própria qualidade do legislador.

Esse writ está previsto no art. 5º, LXXI[3], inicialmente, ao entrar no ordenamento jurídico não foi bem recebido pela doutrina, uma vez que ele seria uma ameaça à separação das funções estatais e, na prática não possuía uma aplicabilidade plena. Luiz Roberto Barroso, por exemplo, na parte em que trata do instituto crítica em razão da sua finalidade, já que no início o STF somente dava ciência ao legislador, chegando até a publicar um artigo “Mandado de injunção: o que foi sem nunca ter sido: uma proposta de reformulação”. Contudo o professor da UERJ, modificou seu entendimento com a nova postura do STF como pode ser visto na última edição do livro “O direito constitucional e a efetividade de suas normas” (cf. BARROSO, 2009, p. 273-275).

De fato, o mandado de injunção somente adquiriu uma aceitação na doutrina depois uma evolução, uma vez que para atingir o patamar atual, foi necessário o desenvolvimento de três correntes, conforme explica Gilmar Ferreira Mendes (cf. BRANCO; COELHO; MENDES, 2007, p. 1150-1153.). A primeira defende que o Tribunal somente deve constatar a omissão e determinar que o legislador suprisse a falha, o mandado de injunção de nº 107, cujo relator foi Moreira Alves, é um exemplo dessa corrente. Já a segunda, se caracterizou pelo prazo estipulado pelo Supremo, se a lei não estivesse publicada, caberia ao STF satisfazer os direitos negligenciados, adotando uma solução de caráter normativo, o exemplo dessa corrente foi o mandado de injunção de nº 283, o relator foi Sepúlveda Pertence. Por fim, a última corrente, a qual é a mais avançada de todas, ocorreu nos mandados de injunção de nº 670, 708 e 712, nesses casos, o STF adotou uma postura de “legislador positivo”, uma vez que enquanto o Poder Legislativo não realizasse seu dever, seria aplicado as regras da decisão do STF.

Essa última corrente, segundo Luis Roberto Barroso (cf. BARROSO, 2009, p. 273.), foi a postura defendida pela maioria da doutrina. Todos os casos discutiam a possibilidade de greve dos servidores públicos, a qual deveria haver uma lei específica, segundo o art. 37, VII. Em face da omissão do legislador, que já havia sido notificado da omissão, o STF aplicou a lei de greve dos trabalhadores da rede privada com certas alterações, lei de nº 7.783 de 1989. Assim, o Supremo encontrou uma forma de assegurar os direitos previstos na Constituição através de um instrumento que inicial e aparentemente não havia uma finalidade concreta. Contudo esse remédio constitucional fortaleceu ainda mais o conflito da tradicional separação das funções estatais, já que o Judiciário está atuando como um veradeiro legislador positivo (cf. VALLE, 2009, p. 61.).

4.3 As atividades “legislativas” do Supremo Tribunal Federal

Através do princípio dos freios e contrapesos, o Judiciário possui certas atribuições de caráter legislativo, como as regras do Regimento Interno, contudo, hodiernamente, o STF tem exercido certas atividades de natureza legiferante. As súmulas vinculantes e determinadas técnicas de decisão podem ser caracterizadas como atos legislativos, em certas situações, os quais colidem com as atribuições do Congresso Nacional.

4.3.1 As súmulas vinculantes

Não é de hoje que se discute os efeitos das decisões com efeito vinculante no STF, a eficácia erga omnes da decisão nas da ação direta de inconstitucionalidade foi desenvolvida através de uma constante evolução jurisprudencial no Supremo, contudo somente foi inserida na constituição em 1993 e em 2004, na instituição da ação declaratória de constitucionalidade e na “reforma do judiciário”, respectivamente. Toda essa discussão estava voltada para o controle abstrato de constitucionalidade, uma vez que no difuso, prevalece a regra de que compete ao Senado “suspender a execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, nos termos do inciso X do art. 52.

O debate sobre a eficácia erga omnes no controle difuso retornou com a instituição da sumula pela emenda constitucional de nº 45. Esse instituto foi introduzido a fim de assegurar as decisões, nesse modelo de controle, já que o Senado não cumpre com a sua atribuição e está ocorrendo perante o STF um número excessivo de recursos extraordinários repetitivos. O certe desse problema se encontra na importação do judicial review norte americano, uma vez que no common law prevalece o principio do stare decisis (cf. LEITE, 2007, p. 128), isto é, o precedente do tribunal tem força vinculante.

Assim, a função dessas súmulas é reduzir o demasiado número de processos nessa corte, contudo, tal inovação constitucional implicou na derrogação do art. 52, X como bem explica Glauco Salomão (cf. LEITE, 2007, p. 85) e na possibilidade de o Supremo atuar como um verdadeiro “legislador positivo”, em que pese o aludido autor discorde de tal posicionamento. Entretanto, não é possível defender tal posicionamento, uma vez que a natureza desse instrumento se caracteriza pela generalidade e pela abstração, mutatis mutandis, esses são as características da lei em sentido material. Não por acaso, na Reclamação 4335-5/AC, os ministro Gilmar Mendes e Eros Grau defenderão a mutação desse dispositivo, o qual além de estar ultrapassado teria o significado de competir ao Senado a atribuição de dar publicidade às decisões do STF, a doutrina contesta bastante a opinião dos aludidos ministros.

É necessário ressaltar que há um agravante, as súmulas vinculates têm status constitucional, quer dizer que se uma lei ou uma emenda constitucional estiver em desacordo com a súmula, elas serão consideradas inconstitucionais no momento em que entrar no ordenamento jurídico brasileiro. Uma seria conseqüência desse instituto é que, por mais traga benefícios ao STF, estará tornando-o um constituinte.        

4.3.2 As técnicas de interpretação do Supremo Tribunal Federal

Recentemente, o STF tem aperfeiçoado suas técnicas de interpretação constitucional nas suas decisões, uma vez que tem aplicado diversos métodos de origem alemã. A interpretação conforme a constituição, declaração da inconstitucionalidade sem pronuncia da nulidade, a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto e o “apelo ao legislador” são exemplos dessas novas técnicas de decisão.

Há alguns autores, como Cláudio Colnago, os quais defendem que algumas dessas técnicas funcionam para amenizar a tensão entre o Legislativo e o Judiciário (cf. 2007, p. 62). Segundo o aludido autor, mesmo havendo um certo desequilíbrio entre as funções estatais, já que a guarda da constituição pelo STF implica necessariamente na sujeição do Legislativo ao Judiciário, as decisões interpretativas é uma forma encontrada pelo Supremo de aproveitar o máximo o texto da lei fornecida pelo legislador (cf. COLNAGO, 2007, p. 63), assim, a finalidade de tal atitude do STF é não causar uma instabilidade ainda maior entre as funções estatais.

Contudo, há outros doutrinadores que defende uma posição diametralmente oposta, Álvaro Ricardo Souza Cruz argumenta que essas técnicas de decisão são na verdade uma forma especial de legislar. O professor da PUC Minas não só destaca a “função legislativa” do STF nos parâmetros kelseniano de “legislador negativo”, mais também nos casos de interpretação conforme à constituição e na declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, uma vez que “essas sentenças produzem atos normativos que inovam em relação ao provimento legislativo do parlamento” (cf. CRUZ, 2004, p. 128). Além disso, segundo o doutrinador, na “interpretação conforme”, em nome da segurança jurídica, há uma redução no valor polissêmico da lei, restringindo, portanto, o ato do Poder Legislativo.

Outra forma apresentada pelo autor é no caso de omissão do legislado, que a decisão funciona como um projeto de lei (cf. CRUZ, 2004, p. 130). Hoje, como foi analisado anteriormente, o STF atua como um verdadeiro legislador, já que define as regras que devem ser aplicadas no caso concreto. Álvaro Ricardo Souza Cruz ainda destaca outro mecanismo do Judiciário que pode ser considerado um ato legislativo positivo (cf. CRUZ, 2004, p. 130), é o efeito repristinatório nas declaração de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes.    

Como se pode perceber, as atividades do Supremo Tribunal Federal vão muito além daquelas descritas por Kelsen como um “legislador negativo”, hoje o STF atua como um verdadeiro legislador positivo. As inovações da Constituição com as novas técnicas de decisão no controle de constitucionalidade somente corroboram com essa constatação, uma vez que alteram o direito positivado pelo legislador. Além disso, o Poder Legislativo se mostra continuamente inativo, abrindo espaço para o constante crescimento do Supremo.   

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Rafael Vitor Macedo. Os limites da jurisdição constitucional e o fenômeno do ativismo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4439, 27 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41466. Acesso em: 24 abr. 2024.

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O artigo foi apresentado em congresso realizado pela Faculdade de Direito do Recife, UFPE.

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