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Considerações sobre o crime de sedução:

uma abordagem sociológica

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08/05/2004 às 00:00
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Discutiremos a eficácia do artigo 217 do Código Penal consoante aos pressupostos da Sociologia Jurídica. Salvo engano, o artigo 217, em que pesem seus fatores de ineficácia, permanece vigente e válido, motivo pelo qual preteri-lo configuraria desprezo aos preceitos jurídicos.

Resumo: Nossa intenção nesse estudo consiste em discutir a eficácia do artigo 217 do Código Penal consoante aos pressupostos da Sociologia Jurídica. Para tanto, lançaremos mão de análise jurisprudencial e intentaremos mostrar que sua abordagem deve ser relativizada, levando em consideração as condições de configuração delitiva: inexperiência e justificável confiança. Como se verá, o exame aqui empreendido baseia-se em dois quesitos fundamentais sobre a aplicação da lei, quais sejam, o tempo e o espaço.

Sumário: 1. Introdução; 2. Ineficácia: falta de adequação social; 3. Direito versus demanda social; 4. A inexperiência no tempo; 5. A inexperiência no espaço; 6. A justificável confiança como condição imutável no tempo e no espaço; 7. Artigo revogado ou em desuso?; 8. Considerações finais.

Palavras-chave: Crime de Sedução, Direito Penal, Eficácia do Direito; Inexperiência; Justificável Confiança; Sexualidade; Sociologia Jurídica.


1. Introdução

Constitui verdadeiro truísmo afirmar que muitas leis estão ultrapassadas, tornaram-se obsoletas em razão das inúmeras transformações por que passou a sociedade nas últimas décadas. Costuma-se argumentar, com freqüência, que certas normas não fazem mais sentido ou, como se diz vulgarmente, "não pegaram". Que prestígio goza uma lei que pretende punir o adultério numa sociedade que já deixara, há tempos, de expressar uma conduta recriminatória em relação à sua prática? Que credibilidade tem uma norma que visa condenar o comportamento de alguém que seduz uma adolescente tomando por base sua inexperiência, quando sabemos que tal inexperiência é, em tempos atuais, noção sujeita a inúmeras interpretações diante das amplas possibilidades de informação sobre a matéria sexual? Essas são questões refletidas tanto pelo leigo da área jurídica quanto pelos doutrinadores que se flagram insatisfeitos diante do descompasso existente entre a realidade social e a normatividade jurídica. São, ademais, questões tão importantes que sua solução exige atitude premente, sob pena de perpetuar a ausência de compatibilidade entre as leis e as necessidades sociais.

O estudo do tema de que ora nos ocupamos perfunctoriamente refere-se ao domínio da Sociologia Jurídica. Para esse campo do conhecimento científico, cujo fôlego vem sendo renovado com insistência nos meios acadêmicos, urge o entendimento das razões pelas quais algumas leis tornaram-se ineficazes em face de uma determinada conjuntura social. Mais que isso, procura esta disciplina a compreensão dos motivos responsáveis pelo fato das normas não serem sentidas e vividas pela população de acordo com suas expectativas do padrão ideal de justiça. Em realidade, o problema está circunscrito a duas ordens de análise não excludentes: a interpretação dos juristas e a ressonância da aplicação da lei no bojo da sociedade.

Nossa intenção nesse estudo consiste em discutir a eficácia do artigo 217 do Código Penal [1] consoante aos pressupostos da Sociologia Jurídica. Para tanto, lançaremos mão de análise jurisprudencial e intentaremos mostrar que sua abordagem deve ser relativizada, levando em consideração as condições de configuração delitiva: inexperiência e justificável confiança. Como se verá, o exame aqui empreendido baseia-se em dois quesitos fundamentais sobre a aplicação da lei, quais sejam, o tempo e o espaço.


2. Ineficácia: falta de adequação social

A eficácia do direito, objeto por excelência da Sociologia Jurídica, é tema dos mais complexos. O próprio termo eficácia sugere, ao menos, dois sentidos a partir dos quais se pode empreender seu exame. Primeiramente, há de se ressaltar a adequação da norma jurídica à realidade do momento em causa. Isso significa, evidentemente, observar a compatibilidade entre aquilo que diz a norma e a configuração do tecido social. Em segundo lugar, há um sentido mais objetivo: a possibilidade de a norma atingir os fins a que se propôs quando de sua formulação e conseqüente publicação. Sérgio Cavalieri Filho aborda esta problemática da seguinte forma: "ao afirmarmos que a Sociologia Jurídica preocupa-se com a eficácia do direito, queremos enfatizar que constitui também objeto dessa disciplina saber se as normas jurídicas estão ou não adequadas às necessidades sociais. Quer dizer, primeiro a Sociologia Jurídica preocupa-se com os fatos sociais que repercutem na ordem jurídica, e com as relações que necessitam receber o disciplinamento do direito; uma vez elaborada a norma disciplinadora empenha-se em saber se a referida atende ou não às necessidades sociais. Isso, (...), é da maior importância porque a norma, mesmo que no momento de sua elaboração esteja perfeitamente adequada à realidade social, com o correr do tempo pode ser tornar ultrapassada, ineficaz, em razão da constante evolução social, tornando-se necessário reformulá-la" [2].

Notemos que, na citação acima, a idéia do tempo desempenha um papel fundamental no que se refere à possibilidade de eficácia da lei. Mas ela não deve ser tomada em sua dimensão absoluta, não se trata apenas de uma questão temporal. O que se coloca em pauta são as alterações ocorridas na sociedade numa certa época; o tempo, em si, não nos diz nada sem a presença dessas modificações do tecido social.

Outro fator a ser levado em consideração, quando tratamos da eficácia das leis, diz respeito ao espaço geográfico e às condições socioculturais de uma determinada população. O fato de termos no Brasil uma acentuada diversidade cultural, variando de região para região, é significativo da maneira pela qual, muitas vezes, as leis são interpretadas e aplicadas distintamente se comparadas a uma outra realidade cultural e geográfica. A análise pormenorizada dos hábitos, das tradições, da cultura, em uma palavra, do meio social leva-nos à compreensão de que certas normas, embora vigentes, não são aplicadas. Eis porque, de certo modo, entram em desuso. Nesta perspectiva, Miguel Reale assinala um ponto importante sobre a obsolescência das normas jurídicas. Conforme suas palavras: "o que vemos, em verdade, são preceitos jurídicos que não são vividos pelo povo, por não corresponderem às suas tendências ou inclinações, por múltiplos motivos que não vêm ao caso examinar. Há um trabalho, por assim dizer, de desgaste ou de erosão das normas jurídicas, por força do processo vital dos usos e costumes. O hábito de viver vai aos poucos influindo sobre as normas jurídicas, mudando-lhes o sentido, transformando-as até mesmo em seus pontos essenciais, ajustando-se às necessidades fundamentais da existência coletiva" [3]. As considerações do autor são elucidativas para entendermos que a falta de eficácia de uma lei se deve, sobretudo, à ausência de identidade de concepção entre o sentimento do povo e a formulação da norma. Dito de outra maneira, as prescrições normativas não ressoam como próprias do povo, algo indissolúvel de suas aspirações. A razão por que isso acontece está calcada na forma pela qual o "desgaste" e a "erosão" se processam através dos costumes que, inexoravelmente, transformam-se com o tempo.

Neste sentido, é compreensível que uma norma possa viger sem, entretanto, cumprir suas finalidades sociais. Tomemos de empréstimo novamente as palavras do autor: "pode surgir, no entanto, uma lei que jamais venha a ser cumprida por absoluta falta de ressonância no seio da coletividade. Depois de promulgada, existe apenas como ''vigência'' formal, porquanto a sociedade não se ajusta a seus ditames, ou então, altera seu sentido para que possa ser parcialmente executada... São as leis que por não atingirem o momento da eficácia, não se podem dizer positivas" [4]. Como se vê, suas observações não são pertinentes para tratarmos dos crimes contra os costumes. A "falta de ressonância no seio da coletividade", à qual alude, não constituía fato por ocasião do sancionamento do Código Penal, em 1940; à época, havia uma adequação entre os artigos prescritos e a realidade social. Passado mais de meio século, não nos é dado preterir as inúmeras alterações por que passou a sociedade no que tange à sua moral e seus costumes. Quais seriam essas transformações e de que modo elas influíram, por exemplo, na concepção que se tem hoje sobre a sexualidade? Como poderíamos equacionar a incompatibilidade entre os artigos do Código Penal e os costumes hoje vigentes na sociedade? Observemos as ponderações de Marta Suplicy sobre essa questão: "O Código Penal aprovado naquele ano [1940] reflete uma determinada concepção de organização social e de valores morais. Tem um arcabouço muito bem pensado e coerente ao contexto da época. Em sua Parte Especial, foi incluído o Título ''Dos Crimes Contra os Costumes'', onde se inseriu o Capítulo ''Dos Crimes contra a liberdade sexual''. (...) A sociedade mudou. Surgiu a concepção dos direitos humanos universais, nesta década ampliados com os direitos das mulheres e muito recentemente, com os direitos à liberdade sexual, de mulheres e homens. Embora a condição da mulher tenha mudado em todos os níveis, a revolução sexual tenha liberado a mulher do ônus obrigatório da gravidez, permanecem muitos resquícios dessa herança pesada e patriarcal que encontram no Código Penal ultrapassado e obsoleto, um abrigo para sua persistência..." [5]. Reiteremos a distância abissal que separa a década de 1940 do início do século XXI. No decurso desse tempo, foram tantas as modificações sociais ocorridas que constituiria árdua tarefa elencá-las e apreciá-las de acordo como o fluxo histórico. É fato que falamos de artigos dotados de ineficácia e cuja percepção por parte da população e de legisladores é patente. Atualmente, há motivos de sobra para inferir que tal ineficácia fora gerada pelas informações disseminadas pela informática e acentuada, em larga medida, pelo processo da globalização em curso [6]. Contudo, embora os crimes contra os costumes não sejam mais adequados à nossa realidade, ainda constam do Código Penal e a aplicação da pena neles prevista continua a ser um imperativo.

Esta discussão, que se pauta pelas vicissitudes da vida social e sua interação para com a normatividade jurídica, parece-nos bastante fecunda, porquanto temos a possibilidade de fazê-la em diversos períodos da história consoante a uma premissa básica: a de que a realidade social e a jurídica se interpenetram, estabelecendo nexos e dissonâncias ao longo do tempo e do espaço. A relação entre ambas, com efeito, é de natureza interativa e exige, sempre que se pretenda a sua compreensão, a adoção de um foco capaz de abarcar sua totalidade. A esse respeito, as palavras de Miranda Rosa são elucidativas. Senão vejamos: "se o direito é condicionado pelas realidades do meio em que se manifesta, entretanto, age também como elemento condicionante. A integração entre todos os componentes de um complexo cultural é um dos fatos de maior significação da vida social. A exata compreensão da sociedade como um campo em que essa interação múltipla opera entre milhares de fatores influentes é indispensável a quem cuide do estudo das Ciências Sociais. Essa compreensão leva à convicção da extrema mutabilidade dos fenômenos dos grupos humanos, do estado de fluidez permanente que eles apresentam" [7]. A extrema mutabilidade dos fenômenos dos grupos humanos, à qual se refere o autor, é condição intrínseca à realidade social. Ocorre que muitas vezes, como já notamos, ela não se faz acompanhar do Direito. Eis porque se processa uma dissonância, uma incompatibilidade entre aquela e este. Ao que tudo indica, é esse o momento em que as normas jurídicas se tornam destituídas de amparo social e, portanto, ineficazes.


3. Direito versus demanda social

Na perspectiva em que abordamos o assunto, caberia discutir a adequação das normas jurídicas à realidade social na qual elas são estatuídas. Se em 1940 os artigos elaborados com vista a compor o Código Penal tinham sintonia com aquela ocasião, em tempos atuais o mesmo não acontece. No entanto, como entender que, mesmo quando da promulgação de novos códigos, as normas a viger não estejam em consonância com a realidade social? [8] Ao que tudo indica, a resposta a essa questão reside no fato de ser a sociedade passível de mudanças muito mais intensas e céleres do que a demanda do Direito pode abarcar. Vejamos como isso se deu em relação ao Código Penal de 1940. Para tanto, tomemos um trecho da "Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal", assinada pelo Min. Francisco Campos: "ao ser fixada a fórmula relativa ao crime em questão, partiu-se do pressuposto de que os fatos relativos à vida sexual não constituem na nossa época matéria que esteja subtraída, como no passado, ao conhecimento dos adolescentes de 18 (dezoito) anos completos. A vida, no nosso tempo, pelos seus costumes e pelo seu estilo, permite aos indivíduos surpreender, ainda bem não atingida a maturidade, o que antes era o grande e insondável mistério, cujo conhecimento se reservava apenas aos adultos. Certamente, o direito penal não pode abdicar de sua função ética, para acomodar-se ao afrouxamento dos costumes; mas, no caso de que ora se trata, muito mais eficiente do que a ameaça da pena aos sedutores, será a retirada da tutela penal à moça maior de 18 (dezoito) anos, que, assim, se fará mais cautelosa ou menos acessível" [9]. Subjacente às palavras do autor, há a idéia de que, em relação ao código anterior, os costumes e o estilo de vida então imperantes já eram outros. Tanto assim que a matéria sexual não se circunscrevia mais ao conhecimento dos "adultos" e passava a ser destituída do status de "mistério". Não obstante houvesse o reconhecimento de uma nova configuração dos costumes, seria incorreto dizer que se pretendeu, ao estatuir o artigo 217, alcançar uma adequação ideal entre a norma jurídica e o contexto social. Antes, o que se pretendia era proceder a uma reforma adaptativa, na qual o principal objetivo consistia em reduzir a idade da tutela penal de 21 para dezoito anos. Com esse expediente, acreditava-se que a possível vítima do crime de sedução ficasse "cautelosa ou menos acessível", como se o limite da idade fosse elemento suficiente para oferecer resistência aos ardis do sedutor. Não é à toa que Francisco Campos faz questão de ressaltar a impossibilidade de "acomodar-se ao afrouxamento dos costumes" em detrimento da "função ética" do Direito Penal. Um tal procedimento resultaria na adequação do artigo em pauta ao momento por que passava a sociedade.

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Mas, o que entendia o autor por "afrouxamento dos costumes"? Ao jurista interessado na eficácia da norma jurídica não deveria prevalecer, tanto quanto possível, a tentativa de adequação acima aludida? Trata-se, em nossa opinião, de uma posição tradicionalista [10], refratária aos destinos da modernização dos costumes que tinha lugar naquela emblemática década. Essa postura implica a recusa da flexibilidade dos costumes, sem a qual a própria sociedade estaria fadada à estagnação. Há que se reconhecer, portanto, que a volubilidade desses costumes é um dado inexorável da realidade social. Neste sentido, Darcy Medeiros e Aroldo Moreira ponderam que "hão de os costumes, que se estruturam em suas bases e se estabelecem segundo suas normas, sofrer também fluxos e refluxos no tempo e no espaço" [11]. Contudo, há objeções de natureza moral que impedem esse reconhecimento. Notemos: "ora, sob o ponto de vista estritamente moral, pode parecer degradação dos sentimentos o reconhecer-se o desfalecimento dos rigorosos fatores sociais, as metamorfoses evolutivas dos costumes que, a despeito de terem sido, em outras eras, intransigentemente defendidos, não podem parar no tempo. Não! Não se podem admitir objeções às forças de um truísmo, às razões de uma evidência incoercível. A evolução não se compadece com as diretrizes de mentalidades retrógradas, estacadas, e há de respeitar-se o seu progredimento. Isto será a dissolução dos costumes se resultar do confronto de épocas estacionárias e distintas. Não o será, porém, frente à lenta escalada da vida para a modernidade" [12].

As observações dos autores evidenciam a necessidade de aceitação de valores que despontam na sociedade em determinadas épocas e lugares. Insurgir-se contra tal necessidade seria como pretender rechaçar o curso da história, congelando as oscilações idiossincráticas da coletividade. Em face disso, não é dado ao Direito preterir a busca pela sintonia entre a normatividade jurídica e a vida social. Para tanto, deve sujeitar-se a interagir com inúmeras concepções morais e subverter a mentalidade conservadora.


4. A inexperiência no tempo

Como se sabe, o artigo 217 do Código Penal prevê duas condições de configuração delitiva, quais sejam, a inexperiência da vítima e a justificável confiança que esta tenha depositado no acusado. No que se refere à primeira, há controvérsias constantes da jurisprudência sobre o significado do termo. Para alguns relatores, inexperiência "não significa falta de conhecimento sobre coisas do sexo" (RT 608/378); para outros, está vinculada à "esfera sexual" (RT 525/330). Há caracterização do delito quando a moça seduzida é desprovida da capacidade de aquilatar as conseqüências do ato sexual. Assim, em que pese a vivência que tenha da vida, a condição exigida se relaciona apenas à esfera do sexo e não se confunde com ingenuidade. Atualmente, há um consenso em afirmar que de acordo com as informações disponíveis hoje em dia, seria inaceitável conceber que uma moça, cuja idade esteja entre os quatorze e dezoito anos, não disponha de conhecimento sobre a prática sexual. Isso porque a dinâmica da vida moderna, per se, encerra tal conhecimento através dos meios de comunicação de massa. Ademais, o sexo já não é mais tabu, sendo discutido e propalado em vários níveis da sociedade. Vejamos como a jurisprudência trata, de modo conceitual, essa questão:

"O conceito de ''inexperiência'' está, como é óbvio, vinculado à inexperiência na esfera sexual. Mulher inexperiente é a mulher ingênua que se mostra incapaz de formular um juízo ético sobre a atividade sexual e as conseqüências de sua realização. Não se exige uma ignorância crassa a respeito das coisas do sexo. Basta que ''falte perfeita noção do sentido e das conseqüências do ato sexual (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, 3/512, 1962). Mas mulher inexperiente nos termos que o conceito comporta é raridade nos tempos que correm. A mulher de hoje não é mais a donzela crédula e inocente que serviu de modelo ao tipo há quase quarenta anos atrás quando as questões referentes ao sexo, a nível familiar, nas escolas e nos meios de comunicação eram tratadas como matéria proibida. Os costumes são outros. Discute-se sexo sem restrições, na família e mesmo na escola. Os jornais, as fotonovelas, o cinema, o teatro, o rádio, a televisão e a propaganda, certa ou erradamente, apelam para o sexo. Exploram o tema em toda sua extensão. Não se pode, portanto, desconhecer os efeitos sociais desta nova colocação da matéria. A mulher moderna, bem cedo, revela-se, de um modo geral em condições de apreender a problemática sexual e de avaliá-la em sua realidade e nas suas conseqüências. Sedução, por inexperiência mostra-se, portanto, um tipo penal que tende à discriminação em face das diminutas possibilidades de sua concretização fática" (RT 525/330).

O acórdão supracitado é paradigmático quanto às transformações dos costumes operadas na sociedade. Note-se que o relator assinala o descompasso havido num prazo de quarenta anos, tempo suficiente para que os costumes assumissem configuração diversa daquela então existente quando da promulgação do Código Penal. Esta decisão data de 1979, período no qual os meios de comunicação, sejam quais fossem, apelavam para o sexo, explorando o "tema em toda sua extensão". Supõe-se que, diferentemente de outrora, as questões sexuais não eram mais "tratadas como matéria proibida". Vamos a outro exemplo:

"Não se pode considerar à vítima como inexperiente se é preparada para o trato das coisas da vida, possuindo acesso aos meios de comunicação, freqüentando bailes, discotecas, fatos que a qualificam como uma jovem perfeitamente enquadrada na sociedade, onde se discute abertamente os problemas atinentes às questões que envolvem a sexualidade" (RT 673/348).

Qual essa é sociedade em que "se discute abertamente os problemas atinentes às questões que envolvem a sexualidade"? De que sociedade se fala quando se tem em mente que o tabu sexual é coisa do passado? O acórdão, datado de 1991, guarda uma distância temporal superior a dez anos, se comparado ao mencionado anteriormente. Note-se, contudo, que relativamente à argumentação da inexperiência em muito se assemelham, deixando claro o debate aberto sobre a sexualidade.

Como pudemos notar até o presente momento de nossa exposição, a jurisprudência sobre o assunto aborda a questão calcada em dois pontos básicos: o amplo acesso à informação da matéria sexual nas últimas décadas e as modificações dos costumes, implicando a supressão do tabu sexual. Conviria apontar os fatores responsáveis por tais transformações e analisá-los de acordo com a conjuntura social na qual emergiram e se consolidaram. Ao que tudo indica, ocupam papéis fundamentais nessa discussão as políticas de educação sexual e a influência da mídia sobre o comportamento dos adolescentes.

Ao remontar à história da educação sexual no Brasil, Mary Figueró mostra que a iniciativa pioneira de incluí-la "num currículo escolar data de 1930, no Colégio Batista do Rio de Janeiro, cuja experiência prosseguiu por vários anos, até que em 1954, o professor responsável foi processado e demitido do cargo" [13]. Depois disso, somente na década de 1960 surgiriam novas empreitadas nessa área. No entanto, a irrupção do golpe de Estado de 1964 faria retroceder sua consolidação nas escolas; os projetos em andamento foram proibidos pelas Secretarias de Educação, pois estas lhes atribuía a pecha de "imoralidade, irresponsabilidade e inutilidade" [14]. Mais recentemente, a controvérsia sobre a inclusão do tema nas escolas de formação básica veio à tona. Em 1995 o Ministério da Educação já estudava a introdução de "um currículo mínimo básico para as escolas de primeira a quarta série de primeiro grau" [15]. Desse currículo deveriam constar, embora não concentrados em cadeiras específicas, os chamados temas transversais, dentre eles a orientação sexual. Reagindo a esta proposta, os dirigentes da Igreja Católica no Brasil acabaram por recusá-la com fins preventivos. Assim, quando a discussão marcava forte presença na sociedade, D. Lucas Moreira Neves, então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), afirmou que a Igreja só concebe "a inclusão do sexo nos currículos das escolas se for tratado como educação para o amor e não como estímulo à atividade sexual" [16]. Pouco tempo depois, chegou a cogitar a possibilidade de pedir ao Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, que desistisse "da idéia de incluir no currículo escolar do próximo ano ensinamentos que ''incitem o uso do sexo sem amor''". [17] A polêmica acerca das posições da Igreja não se esgota aí e, no tocante ao escopo deste estudo, não nos cabe exauri-la. Antes, interessa-nos evidenciar que a educação sexual no Brasil teve uma história repleta de percalços e desventuras. Conquanto se diga que uma tal educação não se faz necessária, em razão das orientações que os adolescentes recebem de seus pais, especialistas na área de sexologia argumentam ser insuficiente a orientação sexual dada pela família, ainda que realizada de forma liberal. A escola poderia cumprir, de modo eficiente e sistemático, o verdadeiro papel rumo à conscientização das matérias referentes ao sexo. Sobre este ponto, pondera Marta Suplicy: "o adolescente pode ter pais liberados, existirem no lar muitos livros sobre sexo, pais que conversam com seus filhos e tudo o mais. Mas não tem jeito. Em casa não se dá aula. (...) Em casa vai se respondendo uma coisa aqui outra ali; às vezes até se deixa de responder. (...) Assim, a informação que se recebe no lar é muito parcial, tem mais o sentido de formação" [18]. Também a esse respeito, haveria de se notar que a própria estrutura familiar da sociedade enseja uma postura passiva diante da questão, como observa Regis de Morais: "... se introduzirmos em nossas considerações o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas (a mídia) e sua subserviência aos princípios da sociedade de consumo logo constataremos os efeitos corrosivos dessa mídia – em nosso século XX imensamente potencializada pela televisão – sobre a estrutura familial. Isto ao ponto de as famílias já não se sentirem capazes de educar as crianças, pubertários e adolescentes, demitindo-se de suas atribuições pedagógicas, muitas vezes" [19]. Atentemos para o desempenho da mídia, já que, como vimos, ela é constantemente mencionada na jurisprudência citada.

Também nesta perspectiva, ao avaliar o elevado índice de gravidez precoce, entre meninas de dez a quatorze anos, constatado pelo Sistema Único de Saúde, em 1999, o então ministro da Saúde, José Serra, estabelecera sua relação para com a programação televisiva. De acordo com suas palavras: "esse é o ponto em que o drama da gravidez precoce e a responsabilidade da mídia se entrelaçam. Não há dúvida de que os meios de comunicação exercem enorme influência sobre o comportamento nessa delicada fase da vida" [20]. Sua observação expõe um dado bastante conhecido da população brasileira: o de que a mídia exerce forte influência sobre o comportamento sexual dos adolescentes. Novelas, filmes e minisséries com cenas eróticas são veiculados em horários impróprios, de sorte a sujeitar o telespectador adolescente a assisti-los. Como se não bastasse isso, há ainda programas de auditórios nos quais são freqüentemente aceitas danças e coreografias que insinuam o sexo de forma irrefletida, motivo pelo qual a programação televisiva dos últimos anos tem sofrido inúmeras acusações de vulgaridade. Por isso, "as campanhas de educação sexual não têm sido capazes de neutralizar a influência causada pela onda de hipersexualização que tomou conta de boa parte da programação da TV" [21]. Tirante um número reduzido de programas televisivos com proposta educativa, a mídia passou a assumir um papel de incontestável divulgador da sexualidade. Embora os recursos de que lança mão para obter altos índices de ibope sejam questionáveis, cumprem a função de expor o assunto abertamente. Não restam dúvidas de que isso seja feito de modo descabido, invertido e consoante a deturpações sexuais que incutem práticas perniciosas na personalidade dos adolescentes. Contudo, a simples exposição de temas sexuais propicia à população a possibilidade de discussão do que vai ao ar. Com efeito, a despeito de seu caráter, muitas vezes tido como libidinoso e imoral, os veículos de comunicação de massa "podem fornecer informações úteis, mas ao mesmo tempo estimular atitudes e comportamentos descolados da realidade dos mais de 34 milhões de adolescentes brasileiros" [22].

Ainda que de forma ambígua, a ação da televisão propicia deliberadamente o contato com os temas sexuais – fato que corrobora as inúmeras colocações encontradas na jurisprudência sobre os crimes de sedução. Não é de estranhar, pois, que muitos relatores insistam na função da programação televisiva como maneira de informar os jovens. Veja-se um exemplo:

"Inexperiência sexual exigida pela lei penal, tornou-se de difícil configuração, nos dias atuais. Mulher, ou qualquer pessoa, ingênua, quase insciente das coisas do sexo, são casos raros, já que se vive em plena era das comunicações, onde quantidades quase que excessivas de informações a respeito são jogadas ao ar pelos meios de comunicação de massa. Apenas, como exemplo, cita-se o programa de prevenção e controle de grave moléstia transmitida por contágio sexual. Ora, mesmo com catorze anos à época do fato, a ofendida já havia tido breves namoros, cursou a 5ª série da escola, assistia televisão com freqüência, ia esporadicamente ao cinema e disse que o pouco que sabia sobre sexo havia aprendido com sua mãe e com uma amiga. É evidente que os requisitos da inexperiência não se caracterizaram" (TJSP – AC – Rel. Márcio Bártoli – RJTJSP 128/491).

Temos aqui um claro exemplo do quão complicado é a definição do termo "inexperiente" em razão das características da vida moderna. A freqüência excessiva a bailes, cinemas, casas de espetáculos e o contato com os veículos de comunicação, entre tantos outros hábitos, exemplificam como a vida dos adolescentes é permeada por costumes estranhos à realidade conjuntural na qual foi concebido o artigo do crime de sedução. A questão do tempo e da alteração dos costumes, insistimos, não pode ser negligenciada se pretendemos compreender o teor de algumas decisões jurídicas.

Mas dizer apenas que a sociedade mudou e que passou por inúmeras alterações no campo da moral não constitui argumento suficiente para entendermos a ineficácia do artigo 217. Salvo engano, o que sofreu radical transformação foi toda uma mentalidade moral afeita à década de 1940. À época, era patente a ausência de condições capazes de irromper um movimento de liberação sexual, colocando em xeque as concepções até então havidas e disseminadas. Tal movimento, como se sabe, só lograria acontecer por volta de 1960, com a chamada revolução sexual. Com ela, houve não apenas uma mudança de hábitos sexuais, mas também o surgimento de uma nova concepção sobre o comportamento sexual. Neste sentido, ao aludir às mudanças relativas à década de 1960, Míriam Scavone observa: "Duas foram, na verdade, as mudanças ocorridas. A primeira é que o que antes era velado tornou-se, por assim dizer, oficial. O sexo deixou de ser conversa de banheiro ou de livro proibido para virar assunto de publicações sérias e programas de televisão. Deixou de ser feito às escondidas nas garçonières e no banco de trás dos carros para ganhar os espaços ''institucionais'' dos motéis e até da casa dos pais. Estes últimos perderam a função de guardiães da virgindade das filhas" [23]. Deste modo, a geração que primava pela liberdade sexual como valor universal apostava suas fichas na idéia de que era imprescindível a fruição de uma vida hedonista. Aos olhos de muitos indivíduos, isso assumia claros matizes da banalização da sexualidade, porquanto consideravam as relações sexuais vulgarizadas e inconseqüentes. Já na década de 1980 houve quem acreditasse na possibilidade de redefinição dessa situação de extrema permissividade sexual, em razão surgimento da Aids. O aparecimento do primeiro caso no Brasil, datado de 1982, ocasionou novamente uma profunda transformação nos hábitos sexuais da população. Diante da ameaça iminente de disseminação generalizada da doença, houve inúmeras campanhas de prevenção nas quais o objetivo precípuo consistia em educar o povo para a prática do sexo seguro. Tanto autoridades competentes quanto a sociedade civil se viram na obrigação de esclarecer em larga escala os riscos impostos pela epidemia [24]. Se as iniciativas de orientação sexual até aquela década eram contestadas e criticadas, passaram a ser um imperativo, em que pesem as fortes resistências da Igreja Católica, reinantes ainda hoje. Observe-se, ademais, que a presença da Aids na sociedade brasileira, além de dar novo impulso à prática da educação sexual, acabou por colocar na ordem do dia a questão da sexualidade, fazendo com que o assunto viesse a público destituído de seus tabus e com forte conotação moral. Nesta perspectiva, Richard Parker pondera que "a Aids marcou a discussão da vida sexual no Brasil contemporâneo, fornecendo interesse não só para pesquisas médicas mas também para um discurso moral" [25].

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Sobre o autor
Roberto Barbato Jr.

mestre em Sociologia, doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP, professor de Sociologia nos cursos de Direito da METROCAMP (Campinas) e UNIP (Limeira)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBATO JR., Roberto. Considerações sobre o crime de sedução:: uma abordagem sociológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 305, 8 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5211. Acesso em: 27 abr. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado na Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 814, agosto de 2003.

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