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O preâmbulo e a Constituição

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18/07/2017 às 17:10
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Analisa-se o preâmbulo constitucional, discorrendo sobre seu conceito, natureza jurídica, teses quanto a sua força normativa e a jurisprudência do STF nesse aspecto, funções e possível prescindibilidade.

INTRODUÇÃO

O preâmbulo é interessante elemento da Constituição. Sua preposição ao Texto Constitucional anuncia sinteticamente os valores em que se pauta o Estado, quem foi o responsável pela elaboração da nova ordem jurídica, as justificativas para tanto e as suas razões legitimadoras.

Doutrinadores há que alegam não passar o preâmbulo de mero exórdio da Constituição, não sendo dotado de qualquer valor interpretativo nem normativo. Outros entendem que o texto preambular alcança função de integração da Constituição, colaborando na interpretação desta, e outros, ainda, afirmam ter ele a mesma força normativa que a parte articulada do Texto Constitucional.

Estudiosos como Jorge Miranda e Gilmar Ferreira Mendes alegam ser o preâmbulo elemento dispensável da Constituição. No Brasil, contudo, verifica-se que todas as Constituições o tiveram. E acerca do texto preambular da atual Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou algumas vezes, criando interessante entendimento quanto à sua força e eficácia normativa, conforme se verá no presente trabalho.           


1 CONCEITUAÇÃO E SIGNIFICADO DE PREÂMBULO

Etimologicamente, da expressão latina praembulus, que significa aquilo que precede ou vai adiante, é que deriva a palavra preâmbulo[1]. No dicionário, preâmbulo é descrito como “introdução, prefácio, exórdio, proêmio que precede um discurso, um livro etc.;  relatório que antecede uma lei ou decreto; parte preliminar em que se anuncia a promulgação de uma lei ou de um decreto”[2].

Além da conceituação ordinária, dada pelos dicionários, a doutrina revela conceitos para preâmbulo em um aspecto especificamente jurídico, designando seu significado ante a Constituição a que precede. Entre algumas dessas conceituações, tem-se v.g. que preâmbulo é: a) “uma afirmação principiológica, o resumo do pensamento que permeou a Assembleia Constituinte no trabalho de elaboração constitucional”[3]; ou b) “uma declaração de propósitos com fundamentos ideológicos, políticos, sociais e econômicos, que antecede a parte dogmática, e informa a nova ordem constitucional que se inicia”[4]; ou, ainda, c) "proclamação mais ou menos solene, mais ou menos significante, anteposta ao articulado constitucional.”[5]

Destes três conceitos apresentados, é possível se perceber que mais do que um simples texto introdutório, o preâmbulo é para a Constituição o enunciado que resumidamente revela as intenções ideológicas que deram fundamento à sua elaboração. E essas intenções, por vezes, são capazes de desvendar as linhas fundamentais que estruturam a história constitucional de uma Nação. No Brasil, por exemplo, de acordo com Dalmo de Abreu Dallari, a análise dos preâmbulos de qualquer das oito Constituições que entraram em vigor identifica a instituição, órgão ou personagem criador de cada Constituição, bem como as circunstâncias políticas que deram causa à criação de cada uma delas[6].


2 NATUREZA JURÍDICA DOS PREÂMBULOS

Doutrinariamente, há relevante discussão que objetiva definir a natureza jurídica do preâmbulo constitucional. O assunto ganha destaque ao buscar esclarecer se o elemento comentado é ou não integrante do corpo da Constituição, se tem eficácia normativa e se é, consequentemente, dotado de caráter deôntico[7]. Na seara deste debate, três teses pertinentes se manifestam: a) tese da irrelevância jurídica; b) tese da relevância jurídica indireta; e c) tese da plena eficácia.           

2.1 Tese da Irrelevância Jurídica

De acordo com a tese da irrelevância jurídica, o preâmbulo se situa no âmbito da política ou da história, mas não no do Direito[8]. Para os que sustentam esta tese, o preâmbulo permanece fora do mundo jurídico. Nesse aspecto, por exemplo, revela Kildare Gonçalves Carvalho que “A Constituição da França, de 1946, excluía o preâmbulo do controle da constitucionalidade, que não poderia ser revelada em razão do contraste de preceito normativo com o preâmbulo”[9].

Por se situar na seara política, de acordo com a tese da irrelevância jurídica, deve o preâmbulo ser objeto de estudo da Ciência Política[10]. Celso Ribeiro Bastos, ao comentar tal tese, explica que para esta o preâmbulo “desempenha um papel extrajurídico de funcionar como um legitimador da Constituição, antecipando o conteúdo da Carta que se seguirá”[11]. E o professor Paulo Bonavides ensina que visto sobre este prisma o preâmbulo não é dotado de caráter normativo, e não disciplina direitos constitucionalmente previstos nem gera obrigações aos indivíduos e aos Poderes Públicos[12].

2.2 Tese da Relevância Jurídica Indireta

Esta tese, também chamada de tese da relevância jurídica específica, aduz que o preâmbulo, apesar de não possuir força normativa, é fonte interpretativa, pois proclama diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas do legislador constituinte, e que, em razão disso, é auxiliar na aplicação das normas constitucionais e também da atividade política do governo[13].

Para este entendimento, o preâmbulo possui específicas características jurídicas, as quais impedem seja ele identificado com o articulado do Texto Constitucional, mas permitem que funcione como contribuinte da atividade interpretativa deste[14]. Dessa forma, os princípios que norteiam o preâmbulo são mecanismos auxiliares de interpretação e de integração da Constituição[15], podendo ser invocados para aclarar o concreto significado de preceitos normativos de entendimento não suficientemente definido[16].

Cabe aqui destacar minucioso estudo de Orlando Bitar, citado por Gilmar Mendes, acerca do status jurídico dos preâmbulos de várias constituições. Entre estas, a dos Estados Unidos da América, a que o estudioso mais dedicou atenção, chegou ele à conclusão de que “apesar de todo o valor informativo de que se reveste esse enunciado solene, a opinião corrente é no sentido de não considerá-lo como parte do texto constitucional”[17].

2.3 Tese da Plena Eficácia

A tese da plena eficácia diz que em nada se diferencia o texto preambular da parte dogmática da Constituição, e por isso possui força normativa igual aos dos demais preceitos constitucionais[18]. Considera-se, de acordo com aqueles que adotam esse entendimento, o preâmbulo como parte integrante da Constituição, pois é derivado do mesmo poder que a criou - o Poder Constituinte Originário - e funciona como esclarecedor da intenção daqueles que instituíram a Constituição de um novo Estado, estando por isso acima das leis ordinárias[19].

Entre os adeptos dessa tese manifesta-se Jorge Miranda, para quem

o preâmbulo é parte integrante da Constituição, com todas as suas consequências. Dela não se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo instrumento em que se contém. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficácia ou pelo papel que desempenha. O preâmbulo dimana do órgão constituinte, tal como as disposições ou preceitos; é aprovado nas mesmas condições e o acto de aprovação possui a mesma estrutura e o mesmo sentido jurídico. Nem deixaria de ser estranho que, estando depositado num mesmo documento e inserido numa mesma unidade, fosse subtraído ao seu influxo ou fosse considerado despiciendo para a sua compreensão. Tudo quanto resulte do exercício do poder constituinte - seja preâmbulo, sejam preceitos constitucionais - e conste da Constituição em sentido instrumental, tudo é Constituição em sentido formal[20].


3 FUNÇÕES DO PREÂMBULO 

Na lição de Peter Hàberle, os preâmbulos representam funcionalidade bem além da conceituação a que os dicionários linguísticos os atribuem. Para o autor, aqueles funcionam como verdadeiras “pontes no tempo”:

seja para evocar ou esconjurar o passado, a depender das circunstâncias históricas de cada processo constituinte; seja para falar ao presente, ocasionalmente orientando desejos; seja, enfim, para contemplar tanto o presente quanto o futuro e, com relação a este, ademais, para antecipar, quanto possível, o encontro de um povo com esse almejado porvir[21].

Outras duas funções trazidas pela doutrina aos preâmbulos, de relevante significado, são a de vetor hermenêutico e a de enunciado normativo. A primeira, como aponta Gilmar Mendes, não é passível de discussão, podendo até mesmo ser dita como imprescindível, pois pelos preâmbulos “se expressam o ethos e o telos da Sociedade e da sua Lei Fundamental, dados materiais de partida que funcionam para o intérprete como verdadeira condição de possibilidade do compreender constitucional”[22]. A segunda, no entanto, como já se analisou no presente trabalho, dependerá da tese acatada: enquanto a tese da irrelevância jurídica a nega, a da relevância jurídica indireta reconhece a parte preambular como sendo mecanismo de auxílio interpretativo da Constituição; e por fim a tese da eficácia plena reconhece nos preâmbulos força de norma equivalente ao do Texto Constitucional.

Relevante apontamento é feito pela professora Maria Garcia, que afirma ser o preâmbulo o substrato ético-jurídico das Constituições, tendo ele a função de estabelecer os valores supremos da sociedade, expressando-os como uma totalidade ética a ser seguida e revelando o papel da Constituição: integrar a todos em convivência. A nobre professora, citando Mitre, alega ainda que o preâmbulo tem função de “pórtico da Constituição”, “e sem as portas a entrada não existe: através do Preâmbulo a Constituição é promulgada, portanto, passa a ter existência”[23].

Há, ainda, a função preambular encarada sob o aspecto político, explicada por Humberto Lima de Lucena Filho, a qual assume tríplice perspectiva: a) ser o preâmbulo a expressão do que Carl Schmitt chamou de decisão política fundamental, que é estabelecida quando da elaboração e entrada em vigor de uma Constituição, pois esta não seria ato normativo ou volitivo, mas uma decisão de viés político (teoria decisionista); b) ser o preâmbulo teto ideológico da forma política constitucional, pois no nele são previstas a identidade ideológica e a síntese material e formal da Constituição; c) ser o preâmbulo fator de integração nacional, no aspecto material, pois o Estado existe unicamente em razão das manifestações sociais, e é no preâmbulo que estão calcados os valores substantivos de uma comunidade na participação estatal, como objetivos a que o Estado deverá alcançar e como fins de sua própria existência[24].

O mesmo Humberto de Lucena Filho ensina que o preâmbulo tem a árdua tarefa de “disseminar no meio social o sentimento de constitucionalidade, compreendido como a sensação coletiva de que há uma correspondência entre normas e realidade ou, ainda, que se opera na conduta de massa e individual de aderência às normas constitucionais de um país”[25]. E mais, é ele basilar instrumento para a solução pacífica de controvérsias materiais e processuais, devendo ser um norte orientador a ser observado na interpretação e na elaboração das leis. E materialmente há duas formas que pode o preâmbulo se manifestar: “a utilização diária da tentativa de pacificação dos conflitos nos atos processuais e a formulação de políticas públicas referentes à gestão das controvérsias, ambas com arrimo nos valores emanados pelo prólogo constitucional”[26].


4 PRESCINDIBILIDADE DO PREÂMBULO NAS CONSTITUIÇÕES

Acerca da prescindibilidade do preâmbulo nas Constituições, vale-nos citar o pensamento de Jorge Miranda, esboçado por Gilmar Ferreira Mendes, para quem o elemento preambular “não é componente necessário de qualquer Constituição; é tão-somente um elemento natural de Constituições feitas em momentos de ruptura histórica ou de grande transformação político-social”[27]. E o próprio Gilmar Mendes garante que “um grande número de textos constitucionais apenas contém fórmulas de apresentação, promulgação, sanção ou outorga; e, por vezes, nem isso”[28].

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Em que pese a prescindibilidade do texto preambular, o Estado brasileiro trouxe, em todas as suas já vigorantes oito Constituições, um preâmbulo: alguns mais curtos e outros alongados, mas em todas elas presente esteve um preâmbulo[29], como se verá na análise da história destes nas Constituições brasileiras. 


5 OS PREÂMBULOS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Como dito alhures, todas as Constituições que o Brasil já teve trouxeram, antes do corpo dogmático, preâmbulos. E estes são preciosos meios reveladores de como se apresentava o País, em termos sociopolíticos, em cada momento em que foram postas em vigor as Constituições. No âmbito histórico, bem revela Dalmo Dallari que “a simples leitura dos Preâmbulos das constituições que o Brasil já teve é suficiente para revelar, em suas linhas fundamentais, a história constitucional brasileira”[30]. Contudo, o mesmo autor também adverte que os preâmbulos não podem ser a única referência para se analisar por completo o contexto político de uma dada época, pois certas expressões, como democracia e liberdade, podem tomar rumo diverso no decorrer do tempo, daquele que as autoridades pretendiam quando as escreveram[31].

Adiante, teceremos algumas considerações específicas sobre os preâmbulos de cada Constituição que já brindou o ordenamento jurídico brasileiro.

5.1 O preâmbulo na Constituição de 1824

Assim se apresentava o preâmbulo da Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824):

DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que tendo-Nos requeridos o Povos deste Imperio, juntos em Camaras, que Nós quanto antes jurassemos e fizessemos jurar o Projecto de Constituição, que haviamos offerecido ás suas observações para serem depois presentes á nova Assembléa Constituinte mostrando o grande desejo, que tinham, de que elle se observasse já como Constituição do Imperio, por lhes merecer a mais plena approvação, e delle esperarem a sua individual, e geral felicidade Politica: Nós Jurámos o sobredito Projecto para o observarmos e fazermos observar, como Constituição, que dora em diante fica sendo deste Imperio a qual é do theor seguinte: Em Nome da Santíssima Trindade.[32]

O preâmbulo da Carta de 1824, a primeira do Brasil que acabara de se tornar independente, reflete o caráter autoritário do Imperador Dom Pedro I, que a outorgou após dissolver a Assembleia Constituinte que ele mesmo convocara em 1823. Assim, percebe-se que o texto preambular da Constituição de 1824 não apresenta caráter libertário, limitando-se a indicar sua autoria e os motivos de sua elaboração. Assim também o seria com as Constituições de 1937, 1967 e 1969, todas autoritárias e contrárias à democracia[33].

De acordo com Humberto Filho, a referência religiosa “Em Nome da Santíssima Trindade”, posta no preâmbulo, reflete a adoção do catolicismo como religião oficial do Império[34]. Alega Dallari, todavia, que a expressão ora tratada, bem como a frase “juntos em Câmaras” contêm ambigüidades: aquela porque não foi manifestamente um sinal de intensa religiosidade do Imperador que outorgou a Constituição, mas tratou-se de artifício de caráter político, para se agradar a Igreja Católica, de forte influência panorama político do Brasil na época, haja vista que Dom Pedro I nunca manifestou fervor religioso; e esta em razão de que, em verdade, foram poucas as Câmaras Municipais que aprovaram o projeto de Dom Pedro I. Fazendo-o porque “sem outra perspectiva, decidiram manifestar sua concordância com os termos do projeto, sugerindo que ele fosse logo publicado e posto em vigor como Constituição”[35].

5.2 O preâmbulo na Constituição de 1891

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891), trazia o seguinte preâmbulo:

Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL[36]

Esse preâmbulo, com poucas palavras, demonstrou que o Brasil passava de monarquia a república como forma de governo, e adotava o presidencialistmo como sistema de governo. Chama atenção a frase “para organizar um regime livre a democrático”, refletindo o ideário republicano de “rejeição à monarquia, ao absolutismo e a todas as formas de tirania, mas também a afirmação da opção por um tipo de sociedade na qual os indivíduos deveriam ter plena liberdade individual, ao lado da liberdade econômica, sem riscos e limitações para a propriedade privada e para o uso dos bens”[37]

5.3 O preâmbulo na Constituição de 1934

O preâmbulo da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934), assim descrevia:

Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL[38]

Dallari afirma que a Assembleia Nacional Constituinte que elaborou esse preâmbulo era marcada por heterogeneidade de forças políticas. Isso ficou bem delineado, e ainda que tenha sido ele um tanto quanto sintético, “mostra que houve um esforço para conciliar idéias, crenças, interesses e objetivos bastante diferenciados”[39].

5.4 O preâmbulo na Constituição de 1937

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937), trouxe o extenso preâmbulo:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL,

ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil;    

ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente;

ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo;

Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas;

Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o Pais[40]

Para Zimmermann, a extensão desse preâmbulo revelava a intenção de tentar legitimar o golpe no regime democrático e o fim da Constituição de 1934[41]. Dalmo de Abreu Dallari afirma que esse texto preambular antecipava que o decreto publicado por Getúlio Vargas não era autenticamente uma Constituição, mas sim uma imposição ditatorial. “A última frase do Preâmbulo deixa evidente esse caráter, quando determina o cumprimento imediato das regras contidas naquele texto, que só representava a vontade do ditador”[42]

Humberto Filho pontua que foram isentos a população o legislativo na elaboração da Constituição de 1937, que teve sua outorga apoiada pelos militares, e seu preâmbulo foi um discurso de autoritarismo de Getúlio Vargas[43]

5.5 O preâmbulo na Constituição de 1946

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946) continha o seguinte preâmbulo:

Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil[44].

Verifica-se a opção por um preâmbulo breve, invocando-se a proteção de Deus e a asserção de que a Assembleia Constituinte fora convocada para conceber um regime democrático. Uma das explicações para o não alongamento deste preâmbulo, nos dizeres de Dalmo Dallari, recai no fato de que o mundo já assistia a disputa entre capitalismo e socialismo, e “a predominância de conservadores e liberais burgueses, contrários à intervenção do Estado e à extensão dos direitos sociais, fez com que não se fizesse a enumeração de objetivos específicos”[45]. 

5.6 O preâmbulo na Constituição de 1967

Abria-se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 com o seguinte preâmbulo:           

O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição do Brasil[46].

A outorga da Constituição de 1967 representou uma forma de legitimação do Golpe Militar de 1964[47], e seu preâmbulo “equivalia mais a uma cláusula promulgatória”[48], chegando Dalmo Dallari a dizer que se trata de “um falso Preâmbulo de uma falsa Constituição”[49].

5.7 O preâmbulo na Emenda Constitucional de 1969

Em 1969, o mesmo preâmbulo da Constituição de 1967 foi repetido, após uma série de considerações, como se vê: 

Os ministros da Marinha, de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3o. do Ato Institucional número 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o parágrafo Io do artigo 2 o do Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968,e,

Considerando que, nos termos do Ato Complementar n. 38, de 13 de

dezembro de 1968, foi decretado, a partir dessa data, o recesso do Congresso Nacional;

Considerando que, decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo Federal fica autorizado a legislar sobre todas as matérias, conforme o disposto no § 1º do art. 2o. do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968;

Considerando que a elaboração de emendas à Constituição, compreendida no processo legislativo (art. 49,1), está na atribuição do Poder Executivo Federal;

Considerando que a Constituição de 24 de janeiro de 1967, na sua maior parte, deve ser mantida, pelo que, salvo emendas de redação, continuam inalterados os seguintes dispositivos;

Considerando as emendas modificativas e supressivas que, por esta forma, são ora adotadas quanto aos demais dispositivos da Constituição, bem como as emendas aditivas que nela são introduzidas;

Considerando que, feitas as modificações mencionadas, todas em caráter de Emenda, a constituição poderá ser editada de acordo com o texto que adiante se publica,

Promulgam a seguinte Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967:

O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil[50].

Apesar do status de Constituição, verifica-se que formalmente o texto promulgado em 1969, fora intitulado como “Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967”, contudo, foi tão grande o número de alterações que o resultado foi o de um texto novo. Dallari considera que, novamente, como fora em 1967, tratava-se de um falso preâmbulo, que tentava mascarar, sem sucesso a ditadura que vigorava[51]. 

5.8 O preâmbulo na Constituição de 1988

A chamada Carta Cidadã de 1988 traz o seguinte preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.[52]

Reconhecidamente, trata-se de um dos mais belos preâmbulos de que se tem conhecimento, construído sob clima democrático e de renovação de esperanças[53]. O país recém saído da ditadura trazia tão sublime prólogo ao texto constitucional.

Dallari ressalta o fato de estar esse preâmbulo em consonância com o que exigiu a Declaração Universal de 1948, em relação aos Direitos Humanos e o Pacto de Direitos Humanos aprovado pela ONU, em 1966. E, mais que isso, aponta que nele é colocada a expressão “assegurar o exercício de direitos”, o que tem relevo bem maior em termos de consecução de direitos, pois garantir o exercício é mais que simplesmente declarar direitos sem se preocupar com sua efetivação[54].

Em que pese a beleza das palavras, contudo, Gilmar Mendes esboça uma visão crítica à citada garantia do exercício dos direitos que o preâmbulo aduz, pois, de acordo com este doutrinador, utilizou-se linguagem “cheia de promessas, de intenções e de anseios, para não dizer sonhos, tantas e tão generosas são as expectativas suscitadas pelo seu palavreado.”[55]

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Sobre o autor
Antônio Rogério Lourencini

Possui Graduação em Direito pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (2017); Discente do Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Mestrado, da UNESP; Estudante do Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil Brasileiro e Comparado, da UNESP; Oficial de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8921531226046140

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENCINI, Antônio Rogério. O preâmbulo e a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5130, 18 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58052. Acesso em: 6 mai. 2024.

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