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Multa superior a 100% do valor do tributo: confisco ou com o Fisco?

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Análise sobre aplicação do princípio do não-confisco às multas tributárias e da possibilidade de aplicação do percentual máximo objetivo, de 100% do valor do tributo, a todas as espécies de multas fiscais, à luz do STF.

Do estudo dos princípios constitucionais que regem o tema em debate, da natureza, finalidade e proporcionalidade da multa tributária e da construção da atual jurisprudência da Corte Suprema, surge uma indagação: “MULTA SUPERIOR A 100% DO VALOR DO TRIBUTO, ‘é confisco!’ ou ‘é com o Fisco!’?”

É oportuno lembrar que o título acima nos remete ao embate entre o poder de tributar por parte do Fisco e a necessidade de se estipular limites a esta atividade, os quais poderão ser encontrados genericamente (posicionamento atual da jurisprudência do Supremo) ou através do postulado ("princípio") da proporcionalidade (que requer a análise particular de cada caso). 

Caso seja escolhida a alternativa que se coaduna à posição do STF, qualquer multa superior a 100% terá natureza confiscatória, a luz do princípio objetivado no art. 150, IV, da CF/88 (princípio do não-confisco). Por outro lado, se a resposta tiver como base o postulado da proporcionalidade, uma multa superior a 100% poderá ser confisco, ou não, a depender da aplicação que se coaduna àquele postulado. Em resumo, o Fisco teria discricionariedade em aplicar uma multa superior a 100% (“é com o Fisco”), a depender da gravidade da infração.

Antes de definir qual a melhor solução para a questão acima, é imprescindível observar algumas premissas obtidas na análise do conjunto das decisões que construíram a atual jurisprudência da Corte. 

A Premissa n°1 é a possibilidade de o Poder Judiciário alterar o percentual de uma multa, caso ela seja gravosa e exorbitante, em busca de uma solução razoável. Firmou-se a tese de que, mesmo legalmente imposta, a multa poderá ser reduzida pelo Judiciário, atentas as circunstâncias de cada caso concreto. Esse argumento decorre da interpretação do art. 108, inciso IV, do CTN cuja redação informa que, na ausência de disposição expressa, a autoridade competente, poderá usar da equidade. 

É importante observar que no RE 78.291/SP o STF usou desse argumento para reduzir o percentual de uma multa moratória (de 50% para 20%), mesmo existindo disposição legal expressa a favor do percentual aplicado pelo Fisco. Inclusive, tal fato foi observado no voto do Min. Luiz Gallotti. A equidade tornou-se a principal justificativa para a não aplicação da sanção tributária (ou para a sua redução) em situações onde existiam lacunas, e também em situações previstas pela lei.

Por fim, é evidente o uso do postulado da razoabilidade, concomitantemente com a equidade, como justificadores da atuação do judiciário. É possível afirmar que a termo “razoável” foi utilizado como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto (razoabilidade como equidade), quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. 

A Premissa n° 2 é a constatação de que a multa tributária pode assumir um caráter confiscatório quando não for razoável. As primeiras decisões nesse sentido se referiam às multas moratórias no valor de 100%, sendo reduzidas para 30% do valor do tributo (RE 81.550/MG, RE 91.707/MG e RE 92.165/MG; todos do STF). O principal argumento utilizado pelo STF era que a multa por simples atraso da obrigação principal deveria ter uma sanção razoável cujo percentual deveria ser menor que o do próprio tributo devido. Por outro lado, tem-se como decorrência lógica que a multa devida pelo cometimento de uma infração grave justificaria a aplicação de percentuais mais graves. Até esse momento, não se discutia um percentual máximo objetivo.

A Premissa n° 3 é corolário da premissa anterior, decorre da promulgação da Constituição: o reconhecimento da aplicação do princípio do não-confisco (art. 150, IV, CF/88) às multas tributárias. A Constituição é clara quando afirma que os tributos não podem ter natureza confiscatória. A jurisprudência, respaldada por boa parte da doutrina, estendeu a aplicação da vedação ao confisco às multas fiscais. Torna-se necessária a análise de alguns pontos problemáticos das decisões que deram causa a este posicionamento do STF. 

Na ADI 1.075-MC/DF, observa-se que uma possível constatação de ofensa à cláusula de vedação confiscatória dependeria da “análise de situações concretas fundadas em realidades fáticas”, tal fato decorreria da dificuldade de conceituar o que seria “confisco”, e a partir de quanto ocorreria a ofensa. Além disso, é necessário observar que, até então, o STF havia analisado questões que envolviam multas moratórias, em outras palavras, não havia precedentes relativos a multa punitiva por descumprimento de obrigação acessória (situação em análise nesse julgado).

Estas observações foram consagradas no voto do Min. Sepúlveda Pertence, “o risco da infração há de ser muito maior do que a vantagem tributária que dela, infração, pudesse decorrer para o contribuinte”, em outras palavras, “a multa, para alcançar sua finalidade, deve representar um ônus significativamente pesado, de sorte a que as condutas que ensejam sua cobrança restem efetivamente desestimuladas. Por isto mesmo pode ser confiscatória”. (MACHADO, 2018, grifo nosso).

O julgamento da ADI 1.075-MC/DF, em sede de controle concentrado, impossibilitou o debate, por parte do Supremo, sobre o qual a finalidade da multa fiscal, sacrificando a ideia de que as penalidades devem ser proporcionais à gravidade do ilícito. Em resumo, não houve a aplicação do postulado da proporcionalidade ao caso em tela.

A premissa n° 3 foi reafirmada na ADI 551/RJ. Além disso, constata-se o argumento de que a “desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta [...]”. (BRASIL, 2004, p.73). Este argumento, inicialmente utilizado no RE 91.707/MG, passou a constar noutras decisões da Corte; como, por exemplo, no RE 582.461/SP. 

Ainda há uma grande discussão doutrinária sobre a possibilidade de aplicação da vedação de confisco às multas tributárias, cuja natureza difere da natureza dos tributos. Entretanto, é possível encontrar um ponto de intercessão entre as doutrinas divergentes: ambas afirmam que a multa deve obedecer um limite, seja pela aplicação do princípio do não-confisco, seja pela aplicação que privilegie a eficácia da sanção tributária através do postulado da proporcionalidade. Ademais, o STF juntamente com parte da doutrina que defende a aplicação do Art. 150, inciso IV, da CF/88, às multas; reconhecem a importância da razoabilidade e proporcionalidade, como observado acima, para Coêlho (1999, p.253):

“O princípio do não-confisco tem sido utilizado também para fixar padrões ou patamares de tributação tidos por suportáveis [...] ao sabor das conjunturas mais ou menos adversas que estejam se passando. Neste sentido, o princípio do não-confisco se nos parece mais com um princípio da razoabilidade da tributação [...]”. (COÊLHO, 1999, p.253, grifo nosso).  

O termo “razoabilidade” empregado acima denota a exigência de harmonia das normas com suas condições externas, conforme a doutrina de Humberto Ávila. Para Machado Segundo, o termo “confiscatório”, empregado pela jurisprudência do STF, significa a não observação do postulado da proporcionalidade: 

O Supremo Tribunal Federal tem precedentes nos quais aplica às penalidades pecuniárias em matéria tributária essa exigência de proporcionalidade entre a pena e o ilícito praticado, eventualmente empregando a expressão “confiscatória” para designar a penalidade que não a observa, por incorrer em excesso. (MACHADO SEGUNDO, 2012, p.71). 

O referido autor também afirma que o princípio do não-confisco (Art. 150, IV, CF88) é exclusivo dos tributos. Nos parece que a melhor saída é a que privilegia a aplicação do postulado da proporcionalidade, servindo este como definidor dos limites impostos à multa tributária. A proporcionalidade entre a gravidade da infração e a aplicação da sanção sempre foi um forte argumento usado pela Suprema Corte. Sendo assim, torna-se imprescindível a análise da situação fática, e, posteriormente, a aferição se a multa aplicada é necessária, adequada e proporcional (análise da sanção à luz do postulado da proporcionalidade).

Em resumo, antes da positivação do princípio do não-confisco, já havia precedentes do STF que afirmavam a possiblidade da multa ter um caráter confiscatório (premissa n°2), entretanto, isso era sinônimo de desproporcionalidade. Com a promulgação da CF/88, houve a tendência de aplicar a cláusula vedatória às multas, deixando em segundo plano o postulado da proporcionalidade quer requer a análise de toda o contesto fático. A aplicação do princípio do não-confisco às sanções tributárias obrigou o STF a definir um quantum máximo, um limite uniforme para as multas. 

A Premissa n°4 é a definição objetiva de um limite para a multa tributária. A partir do julgamento da ADI 551/RJ ficou definido que a multa tributária não poderia ser superior ao valor do tributo (limite máximo é 100%): “as multas são acessórias e não podem, como tal, ultrapassar o valor do principal”. (BRASIL, 2004, p.77, grifo nosso). Esse argumento já havia sido utilizado no RE 78.291/SP, ele decorre do Art. 920 do CC/1916, atual ar. 412 do CC/02: “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.” (BRASIL, 2002, grifo nosso). 

Em resumo, o STF usou de uma analogia para propor um limite objetivo máximo. Torna-se oportuno lembrar que a analogia é a aplicação: “[...] de disposições legais positivadas a casos não totalmente conformes e não regulados expressamente, mas que podem ser subsumidos as ideias fundamentais daquelas disposições. (FERRAZ JR, 2003, p.301, grifo nosso). 

Torna-se fundamental saber a validade dessa analogia proposta pelo STF. É importante lembrar que o Direito Civil é um ramo do direito privado que regulamenta as obrigações decorrentes autonomia da vontade das partes, ou seja, prioriza-se a vontade das partes, as quais definem as obrigações, principais e acessórias (natureza contratual). No Direito Tributário, as obrigações decorrem da lei e surgem com a ocorrência do fato gerador. Além disso, a analogia só será possível quando houver ausência de disposição expressa, de acordo com o art. 108 do CTN. O próprio diploma tributário traz consigo a definição de obrigação principal e acessória, a saber:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.   (BRASIL, 2012, grifo nosso).

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A multa tributária (penalidade pecuniária) é tida como obrigação principal, no direito tributário, conforme afirma o art. 113, §1°. Sendo assim, entre o tributo e a multa, não haveria uma hierarquia, pois ambas são classificadas como obrigações principais. A obrigação acessória, no direito tributário, decorre de prestações, positivas ou negativas. Ademais, a penalidade decorrente do não cumprimento da obrigação tributária acessória, tem natureza de obrigação principal, de acordo com o art. 113, § 3º. Cumpre esclarecer que, “o objeto da obrigação acessória é sempre não patrimonial. Na terminologia do Direito privado diríamos que a obrigação acessória é uma obrigação de fazer.” (MACHADO, 2004, p.123, grifo do autor). São exemplo de obrigações tributárias acessórias: emitir uma nota fiscal, escriturar um livro, inscrever-se no cadastro de contribuintes; não receber mercadorias desacompanhadas da documentação legalmente exigida e admitir o exame de livros e documentos pelo fiscal. (MACHADO, 2004, p.124). 

Dito isso, pode-se afirmar que a analogia proposta pelo STF é incompatível porque as obrigações cíveis não têm a mesma natureza das obrigações tributárias, e mais, é incompatível com o próprio CTN, conforme explicitado acima. O STF estipulou o limite máximo de 100%, do valor do tributo, de forma equivocada. A maioria das decisões, sobre multas tributárias, analisavam àquelas decorrentes do simples inadimplemento do tributo. Mesmo assim, a jurisprudência do Supremo criou um limite máximo aplicável a todas as espécies de multa (moratórias, punitivas e isoladas). 

Outro argumento que comprova o equívoco da jurisprudência da corte é que, como a multa deve ser proporcional à gravidade da infração (essa é a opinião do próprio STF), a sanção não poderá levar em conta somente o valor do tributo, sendo este apenas um dos elementos a ser considerado. Aplicando um limite objetivo máximo a todas as situações concretas, o STF deixa de lado aspectos como, por exemplo, o emprego de meios fraudulentos, a adulteração de documentos, o recurso a interpostas pessoas, etc. (MACHADO SEGUNDO, 2012, p.71). Em outras palavras:

[...] se um contribuinte atrasa o pagamento de um tributo, mas a operação correspondente foi contabilizada, e o débito foi declarado, a gravidade de sua conduta não é a mesma daquele que contabiliza a operação mas não declara a dívida, que tampouco pode ser equiparado àquele que sequer contabiliza a operação, fazendo, para tanto, uso de documentos fraudulentos. E, em sendo diversos os graus de gravidade dos ilícitos (que impactam, como se vê, de maneira diversa os princípios constitucionais pertinentes), diversas deverão, por igual, ser as penalidades aplicáveis. (MACHADO SEGUNDO, 2012, p.71, grifo nosso).

Por outro lado, a segurança jurídica é uma das bases do nosso ordenamento. Realmente, as multas moratórias e isoladas devem receber um tratamento financeiramente menos grave que o próprio valor do tributo (no caso da moratória). A crítica em relação ao limite máximo não se destina ao aplicado a essas multas, embora se defenda que na aplicação delas se deve analisar toda a situação fática. É aceitável definir um limite máximo de 100% para essas modalidades de multas. Machado Segundo tece importantes observações quanto ao valor da multa isolada:

Parece claro, à luz do que foi explicado nos itens anteriores, que tais multas são desproporcionais. Em situações assim, a ofensa aos valores consagrados constitucionalmente, e que autorizam a imposição de multas aos contribuintes que descumprem obrigações tributárias, principais ou acessórias, se existente, não guarda nenhuma relação ou proporção com o valor do tributo ou da operação, tampouco podendo ser equiparada à lesão que se verifica quando o tributo não é recolhido. (MACHADO SEGUNDO, 2012, p.73, grifo do autor).

A fixação, por parte do STF, de um patamar máximo objetivo encontrará problemas quando da aplicação das multas punitivas (quando essas decorrerem da sonegação fiscal, por exemplo). Como já afirmado acima, a multa deve servir de resposta proporcional ao ilícito praticado, quanto mais grave a ofensa aos ditames constitucionais, maior deve ser a resposta da multa. Coaduna-se a isso, a opinião de Hugo de Brito Machado, quando da análise da constitucionalidade da multa punitiva de 300%:

A multa de 300% do valor da mercadoria vendida sem nota fiscal é, sem dúvida, um excelente instrumento de combate à sonegação de tributos. Muito melhor do que a ameaça de cadeia resultante da criminalização da conduta evasiva, ilícita, do contribuinte. Nenhum comerciante pode alegar que não sabe ser obrigatória a emissão da nota fiscal, e não é razoável lhes seja permitida a prática dessa infração tão evidente e tão significativa no controle da arrecadação tributária.

Pretender-se que a multa legalmente cominada para a venda de mercadoria sem nota fiscal não seja confiscatória, mas suportável, de sorte que os comerciantes possam incluí-las nos seus custos operacionais, é pretender inteiramente ineficaz a sanção que restará assim convertida num verdadeiro tributo de exigência eventual. (MACHADO, 2018, grifo nosso).

É latente que o referido autor não se refere apenas à desobediência da obrigação tributária acessória (emitir nota fiscal), mas quando esta é meio para a prática de sonegação fiscal. Em resumo, o que os críticos da jurisprudência do STF (Premissa n°4) alegam é a impossibilidade de se aferir e punir ofensas com gravidades diferentes, ferindo o postulado da proporcionalidade, o qual é um argumento reiteradamente presente nas decisões da corte.

O próprio STF atesta a impossibilidade de se afirmar, de forma genérica, o caráter confiscatório de uma multa, ou seja, sem a aferição mediante exame do quadro fático. No caso em análise julgou-se procedente uma multa moratória de 50% do valor do tributo, alegando que o caráter confiscatório somente é constatado através do exame fático. Seguindo o próprio raciocínio da Suprema Corte, seria impossível definir o percentual de 100% como limite objetivo, pois isso também seria uma forma genérica de definir o caráter confiscatório de uma multa qualquer. 

Dito isso, a melhor solução para o questionamento inicial, é o reconhecimento do postulado da proporcionalidade como limite aferível em cada caso concreto. Para que isto seja possível, o STF deverá rever a estipulação do limite máximo genérico, deixando que o quadro fático guie o Fisco na aplicação da penalidade.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA JÚNIOR, Francisco Edson Pereira. Multa superior a 100% do valor do tributo: confisco ou com o Fisco?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5470, 23 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66446. Acesso em: 24 abr. 2024.

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