Artigo Destaque dos editores

A legitimidade do Poder Judiciário e a função de corte constitucional do Supremo Tribunal Federal

Exibindo página 2 de 3
23/02/2006 às 00:00
Leia nesta página:

4. O Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional.

            No intuito de esclarecer se o STF é realmente uma autêntica Corte Constitucional faz-se mister traçar algumas premissas históricas acerca do controle de constitucionalidade.

            O controle jurisdicional de constitucionalidade surgiu em duas vertentes, frutos de processos históricos e culturais: o difuso e o concentrado.

            O controle difuso surgiu nos Estados Unidos da América mediante uma inovadora e notável interpretação realizada pela Suprema Corte, através do juiz John Marshal, no caso Marbury versus Madison, em que se entendeu que todos os atos do Governo (Estado), inclusive atos legislativos, decorrem da Constituição e a ela devem respeito, devendo, pois, serem afastados no caso concreto aqueles atos não conformes com a decisão máxima. Aqui a decisão que afasta a constitucionalidade da norma tem efeito apenas entre as partes envolvidas no litígio (inter partes).

            Assim, criou-se um controle do Poder Judiciário sobre os demais atos políticos, atribuindo-se poder a qualquer juiz ou tribunal de afastar a validade de norma ou ato que fosse incompatível com a Constituição. No Brasil, desde a Constituição Republicana de 1891 que tal modelo vem sendo expressamente adotado.

            O controle concentrado originou-se na Áustria, tendo por seu principal criador Kelsen. Tal modelo atribui a um órgão especial a função de declarar a inconstitucionalidade da norma ou ato frente à Constituição. Cria-se a chamada Corte Constitucional a qual detém o monopólio e função primordial de proteger e preservar a Constituição. Nenhum outro órgão ou juiz terá a atribuição de declarar a inconstitucionalidade da norma ou ato. Registre-se que a típica Corte Constitucional detém competências para tratar de questões de grande relevância constitucional, sendo que além do próprio controle de constitucionalidade em si, julga causas que envolvam o Pacto Federativo, a separação do Poderes, garantia dos direitos fundamentais, entre outras. [18]

            A eficácia da decisão do Tribunal Constitucional terá o condão de expurgar do ordenamento jurídico o ato ou norma em desconformidade com a Constituição, tendo eficácia contra todos (erga omnes). Decorre, pois, da noção de controle concentrado de constitucionalidade a idéia de Corte Constitucional.

            O Brasil, que já vinha adotando a técnica do controle difuso herdada do modelo norte americano, mediante a Constituição Federal de 1891, passou com a Constituição de 1934 a esboçar uma nova técnica de controle de constitucionalidade, mediante ação direta (intervenção federal) junto ao STF para efeito de garantia dos chamados princípios sensíveis da constituição Federal.

            A partir de então, evoluiu o ordenamento jurídico para, finalmente, introduzir-se no Brasil, com a Emenda Constitucional 16/65, o controle concentrado da constitucionalidade de lei ou ato normativo, originário do modelo austríaco.

            Outrossim, a Constituição de 1988 consagrou e até ampliou a técnica mista de controle de constitucionalidade combinando as duas técnicas iniciais: difuso e concentrado. Coube, pois ao STF, em decorrência da técnica híbrida de controle de constitucionalidade, por força do próprio texto constitucional, um plexo de competências (art.102) que implica em tal órgão ter que conciliar duas importantes posturas: a de órgão de cúpula do Poder Judiciário (Corte de Apelação) e a de Corte Constitucional.

            É certo que, com o advento da constituição de 1988 e a conseqüente criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), buscou-se repassar a este algumas competências que antes estavam a cargo do STF, o que otimizou a jurisdição constitucional. Contudo, ainda assim, o STF cumula as duas posições mencionadas, o que define uma pletora de atribuições.

            Diante de tais premissas é de se perguntar: o STF é autêntica Corte Constitucional nos moldes europeus?

            Impende desde já apontar que em razão de aspectos históricos, culturais e da própria evolução jurídica, não seria razoável conceber um modelo de Corte Constitucional para o Brasil que fosse simplesmente uma cópia do modelo europeu, fato este que por si só já afastaria a idéia de plena autenticidade entre tais órgãos.

            Ademais, conforme se verificou em poucas linhas, o ordenamento brasileiro adotou um modelo híbrido de controle de constitucionalidade, o que implicou em concentrar nas mãos de mesmo órgão atribuições de Corte de Apelação e de Corte Constitucional, de forma que já não se poderia falar em plena congruência com a noção de Corte Constitucional européia, haja vista a adoção apenas do controle concentrado.

            Por conseguinte, em decorrência do acúmulo de competências em poder do STF, termina-se por inviabilizar que o mesmo as desenvolva a contento.

            De fato, em razão da própria estrutura constitucional, o STF está assoberbado de várias causas para dirimir, sendo certo que o mesmo termina por se ocupar em resolver pequenas demandas individuais, restando ínfimo tempo para resolver as questões de alta indagação, típicas de uma verdadeira Corte Constitucional.

            A Corte Constitucional deve se ocupar das questões de alta repercussão política, especializando-se em resolver questões de cunho tipicamente constitucional, cabendo-lhe ter tempo de amadurecer a discussão das causas a fim de melhor solucioná-las, razão pelo que não pode se ocupar com outras de natureza distinta.

            Não consegue, portanto, o STF, atuar como autêntica Corte Constitucional, pois em face do acúmulo de competências outras, não detém tempo de resolver as questões que realmente lhe deveriam ser afetas. [19]

            Por outro lado, mesmo quando o STF se dispõe a julgar tais questões inerentes à Corte Constitucional, em razão da quantidade enorme de atribuições e do pouco tempo, termina normalmente por julgar mal a causa, geralmente em prejuízo do povo e da efetividade constitucional.

            Tomando por modelo de autêntica Corte Constitucional européia o Tribunal Federal Alemão, podemos ainda estabelecer outros aspectos necessários para situar a real condição do STF enquanto Corte Constitucional.

            A Corte Constitucional Alemã, uma das mais criativas desta última metade do século, é composta por duas seções, cada uma delas integrada por oito juízes, que funcionam independentemente e com competências fixadas pela lei orgânica do tribunal. Os juízes são eleitos por dois terços dos membros do Parlamento, sendo a metade pelos representantes do povo e a outra pelos representantes dos Landers. O processo de acesso é, pois, político, sendo considerado de grande legitimidade.

            O STF é composto por onze ministros, sendo todos indicados e nomeados pelo Presidente da República, sendo ainda submetidos à aprovação junto ao Senado Federal.

            Na prática, é certo que o Senado Federal tem simplesmente só homologado as indicações do Presidente da República, o que implica numa total prevalência da força de decisão do Poder Executivo na composição do STF.

            Ademais, o texto constitucional concedeu uma ampla margem de decisão ao Presidente da República em escolher os membros do STF, estando limitado apenas a poucos critérios, um de caráter objetivo, a idade (maior de 35 e menor de 65 anos) e outro de caráter subjetivo (notável saber jurídico e reputação ilibada).

            Portanto, a legitimidade do acesso ao STF é também um dos aspectos que infirma ou pelo menos diminui a condição de autêntica Corte Constitucional, haja vista a ausência de participação do povo na escolha dos membros, que nem mesmo indiretamente (através da Câmara dos Deputados) pode escolher os futuros ministros. Some-se isso aos fatos: da ampla liberdade de escolha pelo Poder Executivo e do Senado Federal não exercer efetivo controle sobre as decisões do Presidente da República.

            Uma das principais missões da Corte Constitucional é garantir a eficácia das normas constitucionais, notadamente os direitos fundamentais.

            O STF não tem desempenhado satisfatoriamente seu mister de garantir a eficácia dos direitos fundamentais, tendo, pois, afastado-se de seu papel de Corte Constitucional. Atribui-se tal fracasso à forma de acesso de seus membros o qual reflete a dependência da cúpula do STF aos ditames do Chefe do Executivo.

            Por conseguinte, tem o STF, arrogando-se da condição de Corte Constitucional, diante de muitas causas afetas aos direitos fundamentais, adotado critério de julgamento puramente político em detrimento do povo e da própria Constituição, conforme já se demonstrou outrora.

            Os critérios a serem adotados pelo Poder Judiciário devem ser jurídicos, os quais normalmente comportam em si critérios políticos. Contudo, a adoção simplesmente de critérios puramente políticos (econômicos, financeiros, internacionais, governamentais) estranhos à Constituição ou ao ordenamento jurídico implica em afastamento da legitimidade do STF, e por sua vez, em distorção de sua missão como Corte Constitucional.

            O STF ao julgar com base em critérios escusos à Constituição deixa de ser Corte Constitucional, passando a ser um canhestro braço do Poder Executivo.

            Ressalte-se por fim, que a Corte Constitucional Alemã prevê instrumento de provocação da questão constitucional através do povo o qual pode levar a discussão à sua apreciação. Tal circunstância não se apresenta no Brasil, onde o povo não tem legitimidade de deflagrar diretamente o controle concentrado de constitucionalidade, ficando restrito a provocar um dos legitimados pela CF/88 para ventilar a questão constitucional.

            Em razão da forma como a própria Constituição se encarregou de tratá-lo como Corte de Apelação e como Corte Constitucional cumulando uma série de competências, seja em razão da forma pouco democrática de acesso dos seus membros, seja pela forma sofrível e distorcida de como vem atuando, o STF não pode ser considerado como autêntica Corte Constitucional. [20]

            Diante de todos os aspectos aqui suscitados, em rápida análise, tem-se que o STF não se apresenta como autêntica Corte Constitucional nos moldes da Europa, sendo um mero esboço ou arremedo de tal órgão, estando ainda muito distante de cumprir o complexo mister constitucional que lhe fora atribuído pela Constituição de 1988.


5. Conclusões.

            Fez-se uma imersão na essência do Poder Judiciário e identificou-se a crescente ilegitimidade de suas funções tendo ainda constatado a impossibilidade do Supremo Tribunal Federal atuar como verdadeira Corte Constitucional.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            Registrou-se que a noção de legitimidade decorre da aceitação ou reconhecimento da validade dos atos estatais pelo povo, não se confundindo exatamente com a legalidade.

            Para efeito de identificação da legitimidade do STF, adotou-se a teoria do ciclo de poder, investigando a maior ou menor participação popular na fase de acesso ao Poder Judiciário (concurso público e indicação para tribunais superiores), exercício do poder político (função jurisdicional) e recebimento do produto final pelo povo (decisão judicial), momento em que se alertou para a notória insuficiência de participação popular no ciclo de poder, assim como, para a gritante desconsideração de preceitos constitucionais, o que implica em crescente ilegitimidade do Poder Judiciário, notadamente do STF.

            Noutro aspecto, analisou-se o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro em relação aos modelos norte-americano e europeu, e constatou-se que o STF não assume condição de autêntica Corte Constitucional, principalmente por: cumular competências de Corte de Apelação e Corte Constitucional, o que implica em não conseguir satisfazer seus misteres a contento; o acesso antidemocrático, mediante escolha pelo Presidente da República, o que se afasta da técnica de escolha democrática adotada nas Cortes Constitucionais; as decisões puramente políticas em prejuízo dos direitos fundamentais, o que afasta o STF de seu papel de garantidor da ordem constitucional.

            O STF assume, pois, a condição de arremedo de Corte Constitucional, uma frustração do constituinte pátrio.


6. Referências bibliográficas.

            BASTOS, Celso Ribeiro. Tavares, André Ramos. As Tendências de Direito Público – No limiar de um novo milênio. São Paulo: Saraiva, 2000.

            BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000.

            ________. Ciência Política. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

            ________. Do país constitucional ao país neocolonial – A derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004.

            DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003.

            MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. O Supremo Tribunal Federal na Crise Constitucional Brasileira (Estudos de Casos – abordagem interdisciplinar). Fortaleza, ABC Fortaleza – 2001.

            MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro / São Paulo: Renovar, 2003.

            ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995.

            SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 17ª edição, 2000.

            VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 3ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

            VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal – Jurisprudência Política. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Agapito Machado Júnior

procurador federal, especialista em Direito Público (UNIFOR), especialista MBA em Direito Constitucional (UCAM/RJ), mestrando em Direito (UFC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO JÚNIOR, Agapito. A legitimidade do Poder Judiciário e a função de corte constitucional do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 965, 23 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7992. Acesso em: 18 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos