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A participação de cooperativas em licitações

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02/03/2004 às 00:00
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3 - AS COOPERATIVAS NAS LICITAÇÕES

3.1 - O PROCEDIMENTO LICITATÓRIO

A Constituição da República, no capítulo concernente à Administração Pública, trouxe para o ordenamento jurídico constitucional diversas diretrizes norteadoras da atividade pública, dentre elas a expressa menção aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, arrolados no caput do artigo 37.

Em consonância com os princípios constitucionais e a fim de propiciar à iniciativa privada a possibilidade de contratar com a Administração Pública, com ampla competitividade e em igualdade de condições, já que a Administração não supre internamente todas as suas demandas que se lhe apresentam, seja para adquirir bens de que não dispõe ou que não produz, seja para se valer de serviços que, por esporádicos ou especiais, não são prestados por seus próprios agentes, seja para qualquer outro fim que não possa atingir mediante manifestação unilateral de vontade, e, também, visando a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração nas suas contratações, o legislador constituinte previu no inciso XXI do art. 37 da CR/88 o instituto das licitações, in verbis:

Art. 37 (...)

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (g.n.)

Não obstante a base constitucional consubstanciada no referido texto normativo, a mesma necessitava ser regulamentada por uma lei, propiciando a sua aplicabilidade. Segundo o art. 22, inciso XXVII, da CR/88, tal regulamentação ficou a cargo da União, a quem compete legislar privativamente sobre normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas Diretas, Autárquicas e Fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Determinada a competência privativa da União, no dia 21 de junho de 1993, foi publicada a Lei Federal n.º 8.666/93 [28], regulamentando, então, o art. 37, inciso XXI da Constituição, que, muito além de estabelecer apenas normas gerais sobre licitações e contratos, minudenciou sobre todo o procedimento licitatório, desde a fase interna até a homologação pela autoridade competente.

Como todo ato da Administração Pública, os procedimentos licitatórios devem ser conduzidos em observância ao princípio da legalidade, que, diferentemente do âmbito privado em que é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, determina que na Administração só é permitido fazer o que a lei autoriza. HELY LOPES MEIRELLES [29] bem definiu essa nuança do princípio da legalidade da seguinte forma: "A lei para o particular significa ‘poder fazer assim’; para o administrador público, significa ‘deve fazer assim’".

Desta feita, como linhas norteadoras da monografia, podem-se arrolar algumas normas da Lei n.º 8.666/93 que serão necessárias para a elucidação de questões pertinentes ao tema. Não é sem propósito que, inicialmente, abordar-se-á o art. 3º, caput, e § 1º, inc. I, da Lei de Licitações, porquanto o legislador decidiu exemplificar os princípios segundo os quais a Administração Pública deverá observar na condução dos procedimentos licitatórios, não obstante os já consagrados princípios previstos no ordenamento jurídico constitucional.

Veja-se, então, o que prescreve o art. 3º, caput, e § 1º, inc. I, da Lei de Licitações:

Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos. (g.n.)

§ 1º. É vedado aos agentes públicos:

I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicilio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato; (g.n.)

Dispondo sobre os princípios da licitação, a norma supracitada é aquela que traduz os valores de todo o procedimento licitatório e lhe dá fundamentação, devendo, portanto, a atividade do administrador ser pautada, em especial, pelos princípios da isonomia, da seleção da proposta mais vantajosa, da legalidade e do caráter competitivo do certame. Dentre esses, assegura-se ao princípio da isonomia proeminência sobre os demais, uma vez que é inconcebível num processo de licitação pública a existência de tratamento diferenciado entre os licitantes que se encontram em posição de igualdade, o que frustraria todo o processo competitivo. Na oportunidade, é de bom alvitre relembrar que a isonomia é norma consagrada também no caput do art. 5º da Constituição da República de 1988.

Definidos os princípios da licitação, a análise volta-se para o seu objeto. Segundo dispõe o art. 2º c/c art. 6º, ambos da Lei n.º 8.666/93, serão necessariamente precedidas de licitação as obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública.

Adiante, no art. 9º, a Lei 8.666/93 contém norma proibitiva quanto à participação nas licitações, bem como para execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a ele necessários. Pela melhor hermenêutica, normas proibitivas, via de regra, se constituem em exceções e devem ser interpretadas restritivamente, de forma estrita, enquanto que os direitos se interpretam ampliativamente. Em licitações, a regra é que a participação no certame é direito de todos os interessados e deve, segundo esse princípio, ser entendida de maneira ampliativa. Por isso tudo, não cabe ao intérprete distinguir onde a lei não distingue.

Destarte, a indicação das pessoas enumeradas no art. 9º deve ser interpretada como um rol taxativo, não podendo o intérprete ampliar o campo de restrições previsto na Lei de Licitações. Nesse sentido, veja a seguir jurisprudência a respeito do tema:

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO [30]:

ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. COOPERATIVAS. PARTICIPAÇÃO. VIABILIDADE.

1. Mantida a sentença que julgou procedente o pedido e concedeu a segurança permitindo a participação de cooperativa em concorrência pública, pois o art. 9º da Lei nº 8.666/93 não faz as restrições pretendidas pela Administração.

2. Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 (art. 174, § 2º) estabelece princípio de estímulo ao cooperativismo e outras formas de associativismo, devendo ser prestigiada, desta forma, a licitação que observou o princípio em comento.

3. Apelação e remessa oficial improvidas.

(AMS – 71401, Proc. 200071020007582 – RS, 3ª T, Rel. Juíza Marga Inge Barth Tessler, publ. DJU 21/11/01, p. 336) (g.n.)

De grande valia, será a menção do art. 24 da Lei de Licitações que, taxativamente, dispõe sobre as hipóteses de dispensa de licitação. Entre aquelas hipóteses, incluem-se as dos incisos XIII, XX e XXIV, que se referem à possibilidade de contratação pelo Poder Público de associação sem fins lucrativos. Veja-se, então, a transcrição dos incisos supracitados:

Art. 24. É dispensável a licitação:

(...)

XIII – na contratação de instituição brasileira incumbida regimentalmente ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos.

(...)

XX – na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.

(...)

XXIV – para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.

A comparação com as associações sem fins lucrativos é oportuna, na medida em que os questionamentos referentes à participação dessas associações em procedimentos licitatórios são semelhantes aos da participação de cooperativas, em especial das cooperativas de trabalho, tendo em vista que as associações sem fins lucrativos são pessoas com regime jurídico diverso das sociedades tradicionais, e, por isso, possuem tratamento jurídico diferenciado.

Nesse diapasão, vale trazer à baila as bem lançadas palavras dos Mestres JÚLIO CÉSAR DOS SANTOS ESTEVES e MARIA COELI SIMÕES PIRES [31]:

Ora, se mesmo no caso de dispensa é possível a licitação, está claro que a previsão legal de hipóteses de dispensa envolvendo associações sem fins lucrativos, pressupõe a possibilidade de que tal categoria de pessoas se inclui no universo dos potenciais licitantes. Admitir-se, contrariu senso, que pessoas passíveis de contratação direta pela Administração Pública, sob o pálio da dispensa legal, não possam participar de licitação é incorrer em flagrante incoerência. (g.n.)

Se se admite a participação em procedimentos licitatórios de quem pode celebrar contratos com a Administração Pública via contratação direta, não há como negar esse direito às sociedades cooperativas, porquanto ninguém menos que o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL [32], no processo nº 313842, publicado em 09/04/01, declarou inexigível licitação para a contratação da Unimed Brasília Cooperativa de Trabalho Médico, fundamentado no art. 25, caput, da Lei nº 8.666/93, visando à prestação de serviços de Médicos-Hospitalares.

No que tange à fase de habilitação, a Lei n.º 8.666/93, exige, exclusivamente, dos interessados, documentação relativa à habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal. Importa ressaltar que quanto à documentação relativa à habilitação jurídica, o art. 28, inc. IV, da Lei de Licitações preceitua que no caso de sociedade civis, será necessário a apresentação do ato constitutivo, acompanhada da prova da diretoria em exercício. Verifica-se, portanto, que a Lei de Licitações autoriza expressamente o ingresso de sociedades civis nos certames licitatórios, e, nestes termos deve ser recebida a documentação jurídica das cooperativas com a apresentação de seu estatuto e últimas atas da Assembléia Geral.

Assim por diante, atendendo ao princípio da isonomia, a seguir analisado com mais propriedade, as exigências de habilitação dos licitantes devem se compatíveis com os seus respectivos regimes jurídicos.

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Necessário, ainda, ressaltar a previsão de equalização de propostas previstas para as licitações internacionais, ex vi do § 4º, do art. 42, da Lei n.º 8.666/93, porquanto há alguns doutrinadores que defendem a tese de que a referida norma deve ser aplicada às propostas apresentadas pelas sociedades cooperativas, tendo em vista os benefícios concedidos a tais sociedades. Essa corrente de pensamento aduz que a equalização das propostas é a única forma de garantir o cumprimento do princípio da igualdade nas licitações em que estejam participando sociedades cooperativas.

Assim dispõe o § 4º, do art. 42, da Lei n.º 8.666/93:

Art. 42. (...)

§ 4º. Para fins de julgamento da licitação, as propostas apresentadas por estrangeiros serão acrescidas dos gravames conseqüentes dos mesmos tributos que oneram exclusivamente os licitantes brasileiros quanto à operação final de venda.

Na doutrina, TOSHIO MUKAI [33] exige a equalização de propostas, de forma que seja cumprido o princípio da igualdade, verbis:

Quando indagados sobre tal questão temos posicionado no sentido de para que seja cumprido o princípio fundamental da igualdade haverá que se efetuar a equalização das proposta, somando-se à proposta da cooperativa, os tributos que recaem, na hipótese, sobre os preços das empresas. (g.n.)

Nesse sentido, também posicionou-se a NDJ CONSULTORIA [34]:

A par de todas estas considerações, a única solução que se vislumbra à espécie, no que tange à participação das cooperativas, consiste na equalização de suas propostas, que devem ser acrescidas, apenas para fins de se atingir a igualdade entre todos os concorrentes, dos gravames legais que oneram os demais partícipes, em analogia às determinações legais atinentes às propostas apresentadas por licitantes estrangeiros, na forma do art. 42, § 4º, da Lei nº 8.666/93. (grifos originais)

Por outro lado, CARLOS ARI SUNDFELD [35], contrariamente ao doutrinador acima referido, não admite a utilização de medidas de compensação no procedimento licitatório, senão veja-se:

Já se discutiu se esse princípio poderia servir de base à adoção, na própria licitação, de medidas que compensassem a desigualdade criada pela legislação previdenciária, tributária ou trabalhista, ao gravar de modo mais oneroso um tipo de entidade (as cooperativa) em detrimento de outras (as empresas), o que lhe dava condições de oferecer preços menores do que o dos concorrentes. A resposta correta parece ser negativa, visto ser incabível suprimir, no âmbito específico das licitações públicas, o tratamento privilegiado conferido às cooperativas pelo ordenamento brasileiro como um todo. (g.n.)

E, ainda:

SIDNEY BITTENCOURT [36]:

Parece-nos totalmente descabida a tentativa de equalizar propostas em edital visando à neutralização dos benefícios outorgados pela Constituição e pela lei para as cooperativas, por entendermos que, se o princípio é o da livre iniciativa e a Constituição Federal estabeleceu estas distinções, não cabe ao agente público, ao elaborar os editais ou julgar recursos, estabelecer distinções, negando esse tratamento beneficiado às cooperativas. (g.n.)

MARCOS JURUENA VILELLA SOUTO [37]:

Não cabe, por exemplo, a tentativa de equalizar propostas em edital para neutralizar os benefícios outorgados pela Constituição e pela Lei para as cooperativas, por força do qual eventualmente estariam numa situação melhor em relação às empresas. Isso, já existe hoje no art. 42, § 4º, da Lei nº 8.666/93, em relação às licitações internacionais (o que também é inconstitucional por estabelecer distinções além do benefício viabilizado pelos arts. 172 e 219 da Lei Maior). (g.n.)

O fato é que, ao administrador público, em razão dos princípios da legalidade, da livre iniciativa e da isonomia, não cabe desigualar uma situação que o constituinte resolveu desigualar.

Seguindo a linha de pensamento adotada neste trabalho, entende-se que a vedação à participação de sociedades cooperativas no certame licitatório ou a imposição de qualquer gravame, como fator de possível limitação a essa participação, deve ser interpretada de forma estrita, não se admitindo restrição a direitos por analogia, porquanto a Lei n° 8.666/93 determinou que a equalização de propostas deve ser feita nas licitações internacionais, e, ainda, caso contrário, estar-se-ia admitindo a neutralização dos benefícios outorgados pela Constituição.

Por derradeiro, tendo em vista a alegação de que a participação de cooperativas em licitações pode levar a Administração a ser compelida ao pagamento de encargos trabalhistas, previdenciários e fiscais, não pagos pelas sociedades cooperativas, cumpre dizer que quanto à responsabilização da Administração, há controvérsias na medida em que o § 1º, do art. 71, da Lei nº 8.666/93 diverge do posicionamento do EG. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO exposto no Enunciado 331.

Dispõe a Lei de Licitações que a inadimplência do contratado com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento. Por outro lado, prevê o inciso IV do Enunciado 331 do TST que o inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

Aqui, cumpre mencionar a posição de MOURA e CASTRO [38], Conselheiro do EG. TRIBUNAL DE CONTAS DE MINAS GERAIS, defendida em resposta à consulta n.º 439.155, a fim de resguardar a Administração de futuras condenações em processos judiciais, na condição de responsável subsidiariamente, senão veja-se:

A meu ver, são irretocáveis os argumentos aventados pelo Conselheiro Quintella, ao considerar impossível a utilização de cooperativas para contratação de mão-de-obra por parte do Estado, por fugir aos fins e contrariar a legislação que as criou, bem assim a responsabilidade do tomador (Estado) na eventual sonegação dos direitos trabalhistas e previdenciários dos profissionais prestadores de serviço, a teor da Súmula 331 do TST, e, ainda, a evidência de que a subordinação "dos cooperados" ao tomador de serviços configura a contratação de mão-de-obra por interposta pessoa.(g.n.)

Louvável é a preocupação do eminente Conselheiro do TCMG em tentar resguardar a Administração Pública da responsabilidade pela sonegação aos direitos trabalhistas e previdenciários dos profissionais prestadores de serviços, mas, entretanto, a questão atinente à referida responsabilização não deve ser confundida com a possibilidade jurídica de ingresso das sociedades cooperativas nos certames licitatórios. A sonegação de direitos trabalhistas e previdenciários, bem como a existência da pessoalidade e subordinação direta nas terceirizações podem ocorrer tanto com as sociedades cooperativas quanto nas sociedades comerciais.

Diante dessas considerações, reafirma-se que um dos pontos polêmicos contidos no contexto das licitações e contratações realizadas pelo Poder Público refere-se à possibilidade de participação de cooperativas nos certames licitatórios, tendo em vista as normas acima aduzidas, em especial a sua correlação com os princípios constantes na Constituição da República de 1988 e na Lei nº 5.764/71.

3.2 - A TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS

Tendo em vista que as mais acirradas discussões sobre a participação de sociedades cooperativas em licitações referem-se, principalmente, aos contratos de prestação de serviços, procurar-se-á neste trabalho dar prevalência a tal objeto, o que não quer dizer que as polêmicas indicadas adiante não se apliquem aos demais objetos das licitações, tais como o fornecimento de produtos, distinguindo-se, apenas, naquilo que lhe for peculiar.

Dessa forma, cumpre dizer, a priori, que cabe ao Poder Público zelar para que a prática de contratação de serviços de terceiros, modernamente denominada de terceirização de serviços, ocorra de forma bastante restrita, somente naqueles setores cujas atividades não constituam a atuação finalística do órgão, tais como os serviços de vigilância, conservação e limpeza, informática, etc., de forma a evitar burla à regra do concurso público, ex vi do inciso II, do art. 37, da Constituição da República. Tais serviços são denominados pela doutrina como aqueles que compõem a atividade-meio da Administração, ou seja, são as atividades necessárias para o suporte da máquina administrativa, possibilitando ao Poder Público a concentração de esforços para a consecução de sua atividade-fim.

No âmbito federal, o Decreto nº 2.271/97 [39] expressamente dispôs sobre a matéria supra:

Art. 1º. No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.

§ 1º. As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.

§ 2º. Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão o entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal. (g.n.)

Para o dicionário HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA [40], o vocábulo terceirização significa:

Terceirização s.f. (1991) ato ou efeito de terceirizar 1 ADM ECON forma de organização estrutural que permite a uma empresa transferir a outra suas atividades-meio, proporcionando maior disponibilidade de recursos para sua atividade-fim, reduzindo a estrutura operacional, diminuindo os custos, economizando recursos e desburocratizando a administração 2 p.met. contratação de terceiros, por parte de uma empresa, para a realização de atividades ger. não essenciais, visando à racionalização de custos, à economia de recursos e à desburocratização administrativa. (g.n.)

SÉRGIO PINTO MARTINS [41], citado por MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO na obra Parcerias na Administração Pública, distingue a terceirização lícita da ilícita, com seguintes palavras:

Para que a terceirização seja plenamente válida no âmbito empresarial não podem existir elementos pertinentes à relação de emprego no trabalho do terceirizado, principalmente o elemento subordinação. O terceirizante não poderá ser considerado como superior hierárquico do terceirizado, ou seja, independência, inclusive quanto aos seus empregados". (...) Aqui há que se distinguir entre subordinação jurídica e a técnica, pois a subordinação jurídica se dá com a empresa prestadora de serviços, que admite, demite, transfere, dá ordens; já a subordinação técnica pode ficar evidenciada com o tomador, que dá ordens técnicas de como pretende que o serviço seja realizado, principalmente quando o é nas dependências do tomador". (g.n.)

No que se refere às sociedades cooperativas, ainda que para a execução dos serviços contratados junto a terceiros o associado seja supervisionado por outro e submetido a mecanismos de controle, não se verifica a subordinação jurídica, pois este e o seu supervisor têm igual poder de decisão, quando reunidos em Assembléia, que pode inclusive revisar as próprias normas de supervisão ou até mesmo anular qualquer ordem dada, tendo em vista a singularidade de votos prevista no art. 4º, inciso IV da Lei nº 5.764/71 e, ainda, a soberania da Assembléia Geral.

Desta feita, desde já, refuta-se a tese de que todo e qualquer trabalho realizado pelos cooperados ao tomador de serviços configura-se como trabalho subordinado para fins de incidência da norma trabalhista que trata da relação de emprego. Todavia, isto não quer dizer que não possa ocorrer burla aos direitos sociais, garantidos constitucionalmente ao trabalhador, mas, o que aqui não se admite é a presunção de ilegalidade, tão pregada por alguns doutrinadores e tribunais.

Em artigo publicado pela Revista Jurídica Consulex, no ano de 1999, NAYRA FALCÃO [42], Coordenadora-Geral de Direito Administrativo da Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência e Assistência Social, à época, chegou a fazer a seguinte declaração a respeito das cooperativas de trabalho: "O mais correto seria denominar essas cooperativas de aliciadoras de mão-de-obra, já que a estrutura existente se propõe a utilizar um grande número de trabalhadores com dificuldades de opções de emprego".

Acontece que a repressão às "falsas cooperativas" deve ser feita de forma legítima pelo Ministério do Trabalho e pela Justiça do Trabalho, a fim de resguardar os direitos sociais, garantidos constitucionalmente aos trabalhadores. IVAN BARBOSA RIGOLIN [43], categoricamente, afirmou:

Em licitação existem licitantes habilitados e licitantes inabilitados, conforme no processo se irá apurar, mas não existem licitantes previamente "autorizados" a participar, nem outros previamente "desautorizados" de participar – salvo se apenados com suspensão desse direito ou ainda declarados inidôneos, mas este não é o caso que aqui se discute. (g.n.)

O Ministério do Trabalho, através da Portaria nº 925 [44], de 18 de setembro de 1995, que dispõe sobra a fiscalização do trabalho na empresa tomadora de serviços de sociedade cooperativa, reconhece as atividades das cooperativas de trabalho, recomendando a fiscalização dentro dos limites da Lei nº 5.764/71, cujos agentes de fiscalização, durante suas auditorias, devem fazer um relatório e remeter a autoridade superior.

Em alguns casos, na fiscalização das empresas tomadoras de serviços das cooperativas, têm sido verificadas algumas fraudes, que, em suma, são as seguintes:

a)prestação de serviços identificados com a atividade-fim da tomadora;

b)prestação de quaisquer serviços, por cooperado, em que estejam presentes a subordinação jurídica e a pessoalidade;

c)prestação de serviços por cooperados que são ex-empregados, associados em data próxima a que voltaram a trabalhar na tomadora, na condição de "cooperados" terceirizados;

d)prestação de serviços ininterruptos pelos mesmos cooperados à determinada empresa tomadora de serviços, por meio de cooperativas diversas (pessoalidade);

e)prestação de serviços diferentes dos contratados.

Todavia, compete ao Ministério do Trabalho autuar tão somente as "falsas" cooperativas, sem agir por meras presunções, de forma que aquelas cooperativas que atuam em observância aos ditames legais devem ter respeitada a sua liberdade de atuação, dentre esta o direito de participar de licitações e contratar com o Poder Público.

Cabe, portanto, ao Ministério do Trabalho a proteção de todos os cidadãos que praticam atividades lícitas, garantindo o trabalho destes, não somente daqueles que possuem carteira de trabalho assinada, mas também dos autônomos, dos profissionais liberais, dos cooperativados, etc., nos termos da Constituição.

Nesse sentido, a Justiça do Trabalho, em observância ao que dispõe o art. 9º, bem como o parágrafo único do art. 442, ambos da CLT, tem avaliado cada caso para verificar a existência de burla à legislação trabalhista e cooperativista e coibir as fraudes praticadas pelas cooperativas infratoras. É o que se verifica na jurisprudência trabalhista que ora reconhece o vínculo de emprego, ora manifesta-se pela inexistência do vínculo empregatício.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO [45]:

Cooperativa de trabalho – Fraude. Configurada a fraude, estabelece-se a relação de emprego, com suas obrigações e conseqüências, afastando a aplicação do art. 90 da Lei n° 5.764/71 e do parágrafo único do art. 442 da C.L.T. (2ª T. – RO n° 4023/99, Rel. Juiz Alaor S. Rezende, publ. no D.J.M.G. em 01/03/2000, pág. 16) (g.n.)

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO [46]:

Cooperativa– Relação de emprego. Presentes os requisitos dos arts. 2° e 3° da C.L.T. e não comprovados os dois princípios inerentes ao cooperativismo ("dupla finalidade" do cooperado e "princípio da retribuição pessoal diferenciada" do cooperado), impõe-se o reconhecimento de vínculo empregatício entre cooperado e cooperativa. (3ª T. – RO n° 1001/97, Rel. Juiz Maurício José Godinho Delgado) (g.n.)

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 10ª REGIÃO [47]:

Mandado de Segurança. Direito líquido e certo à prestação de serviços através de cooperativas. Art. 442, parágrafo único, da CLT. O deferimento de liminar em Ação Civil Pública (...) viola sue direito líquido e certo de se utilizar de prerrogativa legal inserida no art. 442, parágrafo único, da CLT, que faculta a prestação de serviços através de cooperativas, sem que isto expresse a existência de vínculo empregatício. A pretensão do Ministério Público do Trabalho esbarra em garantia fundamental inserida no art. 5º, II, da Constituição Federal, uma vez que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. (10ª T. – MS n° 0140/99, Rel. Juiz Braz Henriques de Oliveira – julg. 21.07.1999) (g.n.)

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO [48]:

Trabalhadores organizados em cooperativa. Prestação de serviços a terceiros. Relação de emprego. Inexistência. Trabalhador associado a cooperativa de trabalho regularmente constituída, que presta serviços a vários tomadores distintos, sem fixação, portanto, a nenhuma fonte de trabalho, não pode ser considerado empregado nem daquela nem de nenhum destes, a teor do que dispõe o parágrafo único do art. 442 da CLT, com redação da Lei nº 8.949/94. (5ª T. – RO n° 12736/96, Rel. Juiz Márcio Ribeiro Valle, publicado no D.J.M.G. em 18/01/1997) (g.n.)

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO [49]:

Mandado de Segurança. Decisão concessiva de liminar requerida em sede de Ação Civil Pública ajuizada contra empresa ora impetrante consistente na proibição de se contratar os serviços de cooperativa de trabalhadores; na suspensão da prática de intermediação de mão-de-obra em favor da empresa e na determinação de imediata contratação dos empregados com registro em carteira. Resta, de outra parte, evidenciada a abusividade da decisão impugnada (a concessão da tutela antecipada pelo juiz de Sobral) na ação mandamental (o Mandado de Segurança impetrado pela empresa no TRT da 7ª Região) por ter subtraído o direito de a empresa servir-se da mão-de-obra advinda da Cooperativa. (Recurso Ordinário em Mandado de Segurança no 589373/99, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, publ. DJ 12/05/00, p. 232). (g.n.)

Entretanto, é oportuno ressaltar que não cabe à Justiça do Trabalho dizer quem pode ou não e quando terceirizar, mas sim, se esta ou aquela terceirização é lícita ou ilícita e se há ou não fraude na aplicação de direitos dos trabalhadores eventualmente contratados. Esse entendimento tem amparo na jurisprudência do TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO [50], Rel. José Luiz Magalhães Lins, processo nº 109.514-696.

A seguir, serão analisadas as demais controvérsias existentes, em especial, à aplicação dos princípios da isonomia e da legalidade, que, sob olhares desatentos ou movidos por outros interesses, podem levar a conclusão de que a participação de cooperativas nas licitações, mormente as cooperativas de trabalho, causaria um desequilíbrio entre as licitantes, ou, até mesmo, que a participação dessas seria vedada por lei.

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Sobre o autor
Samuel Mota de Souza Reis

advogado em Belo Horizonte (MG), mestrando em Direito Administrativo pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Samuel Mota Souza. A participação de cooperativas em licitações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 238, 2 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4916. Acesso em: 30 abr. 2024.

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