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A admissibilidade, no processo penal, da prova obtida mediante gravação telefônica feita por um dos interlocutores

A admissibilidade, no processo penal, da prova obtida mediante gravação telefônica feita por um dos interlocutores

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INTRODUÇÃO

Desde que o Estado monopolizou a prestação jurisdicional chamando para si a responsabilidade de distribuir a justiça, utilizando-se, para isso, do processo, a teoria processual vem se desenvolvendo e com ela o processo. É através do processo que se apura a verdade dos fatos. O processo é instrumento útil à prestação jurisdicional e a prova é útil ao processo na medida em que é através daquela que este pode atingir sua finalidade, que é a descoberta da verdade.

Como se vê, o processo sem prova de nada adianta, visto que não se chegará à verdade e, portanto, à justiça, finalidade última da prestação jurisdicional. Eis aí a importância da prova, pois, ela vai além do processo; é sobre ela que se sustenta a verdade.

Todavia, na coleta das provas, há que se tomar certos cuidados com vista a não se admitir que ela seja colhida ou produzida a qualquer custo, em detrimento dos direitos e garantias constitucionais fundamentais previstos em nossa Lei Máxima. Dentre essas garantias está aquela da inadmissibilidade, no processo, de prova obtida por meio ilícito, prevista no art. 5º, inciso LVI da CF/88.

Referido dispositivo constitucional fala em "meios ilícitos", porém, sem deixar claro o que seriam eles. Diante dessa omissão, várias correntes doutrinárias tentam explicar quais meios são tidos como lícitos e quais são tidos como ilícitos. Veja-se que se o meio de obtenção da prova é ilícito esta também o será.

A garantia constitucional da inadmissibilidade da prova obtida por meio ilícito será clara a partir do momento em que se souber o que são tais meios. Decorre, portanto, que o desconhecimento a respeito desses meios gera uma grande dúvida entre as pessoas leigas e até mesmo entre os operadores do direito acerca da inadmissibilidade ou da admissibilidade, no processo, de provas obtidas por meio de escuta telefônica, de gravação telefônica, de interceptação ambiental, de escuta ambiental e de gravação ambiental, sem a autorização judicial.

O presente trabalho visa conceituar prova ilícita e prova lícita, dirimindo ou, pelo menos, diminuindo a dúvida acima citada, e verificar se a gravação telefônica feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro e sem autorização judicial é tida como meio lícito ou ilícito de obtenção da prova, concluindo-se, daí, sua admissibilidade ou inadmissibilidade no processo, mais especificamente no processo penal. Para atingir esse objetivo, verificaremos os posicionamentos jurisprudenciais e os das mais diversas correntes doutrinárias, conceituando, classificando, distinguindo e exemplificando provas e meios de sua obtenção.


1 QUESTÕES CONSTITUCIONAIS PERTINENTES

1.1 Histórico da Garantia Constitucional de Proteção à Intimidade

A garantia constitucional de proteção à intimidade, por meio do sigilo nas correspondências, tem se mostrado uma necessidade haja vista que o autoritarismo tem sido quase que uma constante nos governos, gerando daí uma devassa na vida das pessoas que "potencialmente" lhes seriam uma ameaça. Essa proteção vem evoluindo de conformidade com o surgimento de novas tecnologias nas comunicações.

O reclamo por um segredo da correspondência é tão antigo quanto o surgimento dos serviços postais. O aparecimento desses serviços postais trouxe grandes facilidades para quem deles precisava, porém, aumentou a possibilidade de os reis assenhorearem-se do conteúdo das mensagens. Nos reinados de Luís XIV e de Luís XV tornou-se corrente a passagem da correspondência por uma chamada cabbine noar, ou cabine negra, local em que era violentamente aberta e seu conteúdo devassado, sempre com o propósito de impedir ou tentar impedir a deflagração de movimentos e manifestações contrários ao status quo, punindo-se seus idealizadores. Mesmo na época moderna, são muito freqüentes as interceptações de comunicações telefônicas, que cada vez mais ganharam importância em relação às correspondências epistolares [1].

Diversamente dos Estados autoritários, nos quais é grande o desrespeito ao direito de sigilo nas correspondências, pela procura constante de possíveis opositores ao regime, ou mesmo na desarticulação de movimentos contra ele, a proteção à intimidade das pessoas no Brasil, através da garantia de sigilo das correspondências, tem sido tema em todas as constituições que aqui vigoraram.

A primeira Constituição Brasileira a tratar do assunto foi a Constituição Política do Império do Brasil – 1824, que em seu artigo 179 preceituava:

Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: O segredo das cartas é inviolável. A administração do correio fica rigorosamente responsável por qualquer infração deste artigo [...] [2].

Posteriormente, em 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, também previu a matéria em seu artigo 72:

Art. 72. A constituição assegura a brazileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e a propriedade nos termos seguintes:

[omissis]

§18. É inviolável o sigilo da correspondência (3).

A preocupação com o tema esteve, igualmente, presente nas constituições de 1946 e 1967.

Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 insere a inviolabilidade e sigilo das correspondências no titulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro, dispondo em seu artigo 5º que:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (4).

Como se pôde verificar, a preocupação com a proteção da intimidade das pessoas já é algo arraigado em nossas constituições e, a preocupação do constituinte de 1988 em colocar na Constituição dispositivos de proteção à intimidade, segundo José Carlos Barbosa Moreira, explica-se, em grande parte:

[...] por circunstâncias históricas. A Constituição foi elaborada logo após notável mudança política. Extinguira-se recentemente o regime autoritário que por tanto tempo dominara o país, e sob o qual eram freqüentes e graves as violações de direitos fundamentais, sem exclusão dos proclamados na própria Carta da República então em vigor, com a inviolabilidade do domicílio e da correspondência. Ninguém podia se considerar imune a diligências policiais arbitrárias ou ao "grampeamento" de aparelhos telefônicos. Quis-se prevenir a recaída nesse gênero de violências. É mister reconhecer que naquele momento histórico, não teria sido fácil conter a reação contra o passado próximo nos lindes de uma prudente moderação (5).

1.2 Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa

Como é cediço, a prestação jurisdicional se dá através do processo, no qual são dadas às partes oportunidades de demonstrarem suas versões e delas fazerem prova. Todo e qualquer ato processual deve ser conhecido das partes para que as mesmas possam exercer seu direito de ampla defesa ou de ampla acusação, conforme sejam elas de defesa ou de acusação. É, portanto, do contraditório que decorre a ampla defesa.

A exemplo do que se viu a respeito da garantia de proteção à intimidade, verifica-se, também, que outras garantias existem, como o direito de defesa, na forma mais ampla possível, e do contraditório. Esse direito é garantido tanto ao autor como ao réu, isto é, existe para as partes o direito de alegarem fatos e de prová-los através de meios lícitos.

A respeito, veja-se in verbis o que diz a CF/88:

Art. 5º. [omissis]

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (6).

Destarte, conclui-se que, assim como a todos é garantido o direito à inviolabilidade da intimidade, a todos também é garantido o direito de provar as alegações que fizer em processo judicial ou administrativo em que seja parte, utilizando-se, para isso, de provas obtidas por meios lícitos.

Nesse momento, inevitavelmente, surge a seguinte pergunta: como se poderá exercer o direito de defesa quando esta depender de prova que só possa ser obtida violando-se a intimidade de alguém, que se utiliza dessa proteção constitucional para praticar crimes e assegurar sua ocultação? Referida questão será, oportunamente, respondida.

1.3 Princípio da Inadmissibilidade da Prova Ilícita

O inciso LVI do artigo 5º da CF/88 repugna, expressamente, no processo, a presença da prova obtida por meio ilícito, assim prescrevendo:

Art. 5º [omissis]

LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (7).

Para o caso específico da interceptação telefônica, a Lei nº 9.296 de 24/07/1996 regulamenta a parte final do inciso XII do artigo 5º da CF/88, que trata do sigilo das correspondências e demais meios de comunicação. Porém, isso não resolve o problema, visto que há outros casos como, por exemplo, a gravação telefônica feita por um dos interlocutores sobre o qual paira a dúvida de ser esse um meio lícito de obtenção da prova.

Antes, porém, de procurar responder a questão proposta anteriormente, cumpre abordar, ainda que de maneira breve, a questão do direito de prova e o seu ônus, o que será feito no capítulo a seguir.


2 O DIREITO DE PROVAR E O SEU ÔNUS

Tem sido este um dos assuntos mais difíceis do direito processual em todos os tempos, haja vista o grande número de tratados sobre a matéria, toda ela envolvida em brocardos que vêm desde os romanos e que nem por isto conseguem a adesão unânime dos especialistas.

Chiovenda foi quem armou uma das soluções mais coerentes e de fácil aceitação: dividiu ele os fatos jurídicos em fatos constitutivos (que dão vida a uma vontade concreta da lei e à expectativa de um bem por parte de um indivíduo: ato lícito, testamento etc.); fatos extintivos (que extinguem a vontade concreta da lei ou expectativa de um bem) e fatos impeditivos (os que impedem que se formem os fatos constitutivos) [8]. São fatos extintivos o pagamento e remissão da dívida e fatos impeditivos o dolo, a violência, a ilicitude, etc. Com relação aos fatos constitutivos do seu direito, o autor tem de prová-los e o réu, por sua vez, tem de provar os fatos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito alegado pelo autor.

Tendo o autor de provar aquilo que constitui seu direito, poderíamos dizer que a prova não é somente um direito, mas um ônus. É como se diz: o ônus da prova cabe a quem alega. Esse adágio é conseqüência do princípio dispositivo, pelo qual o Juiz está impedido, para manter sua imparcialidade, de, ex officio, participar da produção da prova [9].

Em nosso processo penal esse princípio não é totalmente empregado, visto que, em certos casos, é permitido ao Juiz tomar a iniciativa pela busca da prova, pois, o que se quer com o processo é a obtenção da verdade real.

Corroborando essa afirmativa, eis a lição de Magalhães Noronha:

O sistema brasileiro abraçado pelo Código é o acusatório e não inquisitivo, e, conseqüentemente, deve ser comedida a atuação do magistrado, colocando-se eqüidistante das partes, e não empenhando-se (sic) ao lado de uma contra a outra, seja desenvolvendo atuação policial, seja de advogado da defesa. A lei lhe faculta determinar diligência, é certo que mesmo sem provocação das partes, mas sempre que isso for necessário para elucidação de pontos capitais; sem o que não poderá formar sua convicção. Prudência e senso de oportunidade devem ser seus guias [10][grifo nosso].

De se ressaltar que, no processo penal, nem mesmo a confissão do réu deve servir de prova absoluta de sua culpabilidade quando outros elementos probatórios indicarem em outro rumo.

Especificamente a respeito do ônus da prova, o artigo 156 do Código de Processo Penal, assim dispõe:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvidas sobre pontos relevantes (11).

Segundo Fernando Capez [12], há uma diferença entre ônus e obrigação, sendo esta um dever de praticar o ato, sob pena de se violar a lei, e aquele um adimplemento facultativo, de modo que o seu não-cumprimento não significa atuação contrária ao direito.

Cumpre, ainda, ressaltar que nem tudo que se alega deve, necessariamente, ser provado. Na lição de Fernando Capez, eis os fatos que independem de prova:

  1. fatos axiomáticos ou intuitivos: aqueles que são evidentes.[...] Exemplo: um ciclista é atropelado por uma jamanta e seu corpo é divido em pedaços. Dispensa-se o exame cadavérico interno, pois a causa da morte é evidente;
  2. fatos notórios:[...] é o caso da verdade sabida, [...] faz parte da cultura de uma sociedade. [...] Exemplo: não precisamos provar que no dia 7 de setembro comemora-se a Independência;
  3. presunções legais: [...] são conclusões decorrentes da própria lei, [...] podendo ser absolutas (júris et de jure) ou relativas (júris tantum).[...] Exemplo: não é necessário provar que um menor de 18 anos não tinha plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato, pois a legislação presume sua incapacidade de modo absoluto;
  4. fatos inúteis:[...] são os fatos, verdadeiros ou não, que não influenciam na solução da causa, na apuração da verdade real. Exemplo: a testemunha afirma que o crime se deu em momento próximo ao jantar, e o juiz quer saber quais os pratos que foram servidos durante tal refeição [13].

Além dos fatos acima relacionados, o direito, em regra, não precisa ser provado, na medida em que o juiz é obrigado a conhecê-lo. Porém, se o direito invocado for estadual, municipal, estrangeiro ou consuetudinário, caberá às partes prová-lo.

O que precisa ser provado está relacionado de forma não exaustiva e sim exemplificativa nos artigos 158 a 250 do CPP, que se referem ao exame de corpo de delito, ao interrogatório do réu, à oitiva das testemunhas, dentre outras providências. Além dessas são admitidas as chamadas provas inominadas, não previstas na legislação, mas que também podem ser úteis à elucidação do fato.

O direito de prova, decorrente do direito de ação, está garantido na CF/88 e, a respeito, assim se posiciona Vinicius Daniel Petry:

A Constituição Federal Brasileira de 1988 reputa o direito constitucional de ação e o direito à prova como garantias fundamentais do cidadão. Em conseqüência deste direito constitucional de ação, o cidadão pode demandar judicialmente, postulando ao Estado-Juiz que lhe seja entregue a proteção pertinente ao seu direito. O direito à prova é uma decorrência lógica do direito constitucional de ação. O cidadão, ao requerer a tutela jurisdicional, necessita apresentar as provas preexistentes ao ajuizamento do processo e postular a produção de outras cabíveis [14].

Sendo, portanto, o direito de produzir prova decorrente do direito de ação, este sem aquele se esvazia, pois, se às partes não for permitido provar o que alegam, de nada valerá a busca de uma tutela jurisdicional que não firme seus julgamentos na verdade provada. Não será possível encontrar-se a justiça em alegações não provadas.


3 A PROVA E SEUS DESDOBRAMENTOS

3.1 A Importância da prova para o processo

Como se sabe, toda demanda judicial requer um processo, seja ele de procedimento mais dilatado ou menos dilatado. É no processo que as partes expõem suas alegações. No entanto, para julgar com o maior acerto possível, o Juiz precisa firmar sua decisão em dados concretos que lhe tragam a certeza sobre quem está com a razão.

O Juiz precisa, portanto, de provas. Isso quer dizer que, sem elas, o julgamento fica prejudicado, isto é, permanece para o Juiz uma dúvida que o impede de julgar com juízo de certeza, mormente no processo penal, onde sempre se busca a verdade real.

Até mesmo para o processo civil onde, ao menos, em princípio, predomina a chamada verdade formal, a prova é de grande importância. É como diz Vinicius Daniel Petry: "pode-se afirmar a relevância da prova no âmbito de direito processual civil, porque é por meio dela que o Juiz forma seu convencimento acerca da procedência ou não da pretensão deduzida" [15].

Nesse sentido assim se pronuncia Fernando Capez:

O tema referente à prova é o mais importante de toda a ciência processual, já que as provas constituem os olhos do processo, o alicerce sobre o qual se ergue toda a dialética processual. Sem provas idôneas e válidas, de nada adianta desenvolverem-se profundos debates doutrinários e variadas vertentes jurisprudenciais sobre temas jurídicos, pois a discussão não terá objeto [16].

3.2 Conceito e Objeto

Apesar de os vários conceitos de prova dos doutrinadores nos revelarem de igual modo a sua essência e a sua natureza jurídica, cabe aqui verificar alguns deles para um melhor entendimento a respeito do que seja prova.

Começando, então, pelo conceito da professora Ada Pellegrini Grinover, para quem "a prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do Juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo" [17].

Já no entender de Capez, prova, do latim probatio:

É o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo Juiz (CPP, arts. 156, 2ª parte, 209 e 234) e por terceiros (p. ex., peritos), destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação (18).

Vê-se que os conceitos de prova são variados, porém, todos demonstram ser ela o meio pelo qual o juiz forma o seu convencimento a respeito da ocorrência ou não de determinado fato ou da veracidade ou não de determinada afirmação.

Das mais variadas maneiras se tenta conseguir esse convencimento, procurando-se demonstrar fatos, circunstâncias, causas etc. Estes são, pois, o objeto da prova, ou seja, tudo aquilo que precisa ser demonstrado para convencer o Juiz daquilo que foi alegado.

Segundo Fernando Capez [19], "objeto da prova é toda circunstância, fato ou alegação referente ao litígio sobre os quais pesa incerteza, e que precisam ser demonstrados perante o Juiz para o deslinde da causa."

"É o que se deve demonstrar, isto é, o fato, a circunstância, a causa etc., sobre o que versa o litígio", nesse sentido, o posicionamento de Magalhães Noronha [20].

3.3 Espécies

A prova tem várias classificações, dentre as quais pode-se citar algumas: quanto ao objeto (direta e indireta); em razão de seu efeito ou valor (plena e não plena ou indiciária); quanto ao sujeito ou causa (real e pessoal) e quanto à forma ou aparência (testemunhal, documental e material) [21].

Das várias classificações existentes, interessa ao presente trabalho estudar somente aquela que divide as provas em ilegais, ilícitas, ilegítimas e ilícitas por derivação, vez que esta melhor se relaciona com o tema aqui proposto. Nesse ponto serão conceituadas essas espécies de forma individualizada.

3.3.1 Prova Ilegal

Segundo a doutrina mais aceita, a prova ilegal é gênero do qual são espécies a prova ilícita e a prova ilegítima. Tratando acerca do tema, Nelson Nery Júnior esclarece a diferença prova ilegal e prova ilícita:

Considera-se a prova ilícita quando sua proibição é de natureza material, diferenciando-a da prova ilegal, que será sempre aquela violadora do ordenamento jurídico como um todo, compreendendo leis e princípios gerais, quer sejam de natureza material ou meramente processual (22).

Toda prova ilícita ou ilegítima é ilegal, pois atenta contra a ordem legal ou constitucional. A prova ilícita infringe norma de direito material e a prova ilegítima infringe norma processual, é o que nos ensina Fernando Capez [23], conforme será visto adiante.

3.3.2 Prova Ilícita

Segundo Vinicius Daniel Petry, prova ilícita:

[...] é a colhida com violação de normas ou princípios de direito material, principalmente de direito constitucional, tendo em vista que a controvérsia acerca do assunto diz respeito sempre à questão das liberdades públicas, onde estão assegurados os direitos e as garantias relativas à intimidade, à liberdade, à dignidade humana (24).

Fernando Capez, de maneira mais sucinta, chamando a prova ilícita de prova proibida, nos ensina que "é aquela produzida em contrariedade a uma norma legal específica, e, portanto, de forma ilícita" [25]. Como exemplo desse tipo dessa espécie de prova pode-se citar aquela obtida mediante tortura, pois, transgride-se o direito material à integridade física e moral do torturado.

3.3.3 Prova Ilegítima

Seguindo, ainda, o ensinamento de Fernando Capez, a prova ilegítima é verificada na seguinte circunstância: "quando a norma afrontada for de natureza processual, a prova vedada será chamada de ilegítima" [26]. Como exemplo de prova ilegítima pode-se citar a juntada de documento em língua estrangeira sem a devida tradução, quando isso se fizer necessário, haja vista que tal procedimento não é permitido pela norma processual penal, em seu artigo 236.

Conforme se pôde verificar, a prova ilegítima, assim chamada por Fernando Capez, nada mais é do que aquela que atenta contra a ordem legal de natureza processual.

3.3.4 Prova Ilícita por Derivação ou Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada

A prova ilícita por derivação é decorrente da doutrina dos "frutos da árvore envenenada", segundo a qual, toda prova surgida a partir de informações conseguidas por meio de provas ilícitas também é ilícita.

É, portanto, a prova ilícita por derivação, lícita em si mesma, porém, oriunda de alguma informação obtida ilicitamente. São exemplos desse tipo de prova a confissão colhida por meio de tortura, em que o réu revela onde se encontra o produto do furto, que, posteriormente, vem a ser apreendido, e a interceptação telefônica clandestina na qual se consegue a informação da existência de uma testemunha que, mais tarde, incrimina o acusado.

A prova ilícita por derivação, assim como a própria prova ilícita, têm sido tema de bastante polêmica entre doutrinadores e jurisconsultos como será visto mais adiante, nas posições doutrinárias e jurisprudenciais.

3.4 PriNcípio do In Dubio Pro Reo

Dada a sua importância, a prova ganha contornos ainda mais visíveis em sede processual penal, uma vez que, caso não haja prova que elimine a dúvida, aplica-se o princípio do in dúbio pro reo, pelo qual, ante à inexistência de prova exaustiva da verdade, decide-se a favor do réu, inclusive para absolvê-lo.

A esse respeito, válido transcrever o pensamento de Damásio E. de Jesus:

Os autores divergem na interpretação desse princípio: para uns, ele só se aplica em matéria de fatos, de interpretações das provas de um processo; para outros ele se aplica também nos casos de dúvidas na interpretação das leis, devendo aplicar-se ao réu a lei mais favorável quando, esgotados os meios de conhecer a vontade do legislador, continua irredutível o conflito entre o espírito e a letra da lei (27).

Referido princípio visa proteger o réu de provável injustiça que decorra de um julgamento feito com base em suposições ou em simples suspeitas. Ressalta-se que a condenação penal requer prova irrefutável contra o réu, pois, tal medida, por ser drástica para o condenado, deve ser aplicada com juízo de certeza.


4 DA POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA PROVA ILÍCITA NO PROCESSO PENAL

Sendo conhecido o conceito de prova ilícita, pode-se, agora, verificar quais são as posições doutrinárias acerca da sua admissibilidade.

Como se sabe, a ilicitude da prova decorre de sua obtenção ilícita, ou seja, conseguida através de meios que infrinjam uma norma legal de proteção à intimidade, dentre outros direitos. Há, nesse caso, um confronto de normas, sendo uma de proteção da intimidade, no caso específico do tema aqui tratado, e outra de direito de produção de prova como forma de se assegurar a ampla defesa. É, portanto, o sigilo que garante a intimidade e, a quebra daquele viola esta.

Retomando aquela questão posta anteriormente: como se poderá exercer o direito de defesa quando esta depender de prova que só possa ser obtida violando-se a intimidade de alguém, que se utiliza dessa proteção constitucional para praticar crimes e assegurar sua ocultação?

A essa questão a única resposta lógica é a seguinte: para se exercer o direito de defesa e assim se provar a inocência de alguém, faz-se necessária a utilização de prova ilícita, quando não houver outro meio. Apesar de parecer desastrosa e chocante essa resposta, não há outra saída para quem precisa provar sua inocência.

Analisando sua conseqüência, deve-se verificar a possibilidade de sua admissibilidade no processo, a depender do caso concreto.

A posição da doutrina a respeito da admissibilidade da prova obtida por meio violador do direito material protetor da intimidade, ou, simplesmente, da prova ilícita, depende das várias correntes doutrinárias que discutem o assunto.

A seguir, serão abordadas as principais delas:

4.1 Teoria Obstativa

Segundo essa teoria, a prova ilícita jamais poderá ser aceita no processo, visto que ela viola direito e a violação de direito de um não pode ser aceita na defesa de outro, pois, o ordenamento legal deve proteger de igual modo todos os direitos, formando um conjunto harmônico e indissociável de normas [28]. Essa teoria não leva em consideração a valoração dos direitos postos em confronto, pois os têm em igual valor.

Procura-se, a todo custo, proteger o ordenamento jurídico sem admissão de qualquer ameaça a sua integridade. Se o ordenamento garante o sigilo e a intimidade, isso é absoluto e não pode ser violado nem mesmo para a defesa de um inocente.

Segundo Vinicius Daniel Petry, um dos defensores dessa teoria é Francisco das Chagas Lima Filho, para o qual "a prova obtida por meios ilícitos deve ser banida do processo, por mais altos e relevantes que possam se apresentar os fatos apurados" [29].

4.2 Teoria Permissiva

Para essa teoria a prova obtida ilicitamente deve ser sempre admitida no processo, pois, sua ilicitude não lhe retira o valor probatório. Não é porque uma prova deixa de ser obtida licitamente que deixará, também, de demonstrar a verdade.

A admissão da prova ilícita é sempre aceita para fazer valer o interesse maior do descobrimento da verdade para que se faça a Justiça [30].

4.3 Teoria Intermediária

A teoria intermediária surgiu da necessidade de se arranjar uma alternativa diferente dos extremos das teorias obstativa e permissiva. Essa teoria tem por base o princípio da proporcionalidade, largamente adotado na jurisprudência alemã do pós-guerra, pelo qual nenhuma garantia constitucional tem valor supremo e absoluto, de modo a aniquilar outra de equivalente grau de importância, devendo sempre sopesar-se valorativamente os direitos postos em confronto [31].

Sempre que ocorrer referido confronto de direitos, deverá ser levado em conta aquele de maior valor. Deve haver uma análise de proporcionalidade dos bens jurídicos postos em confronto. Exemplificando: caso haja a necessidade de se violar a privacidade de alguém no interesse de se provar a inocência de outro, a prova obtida através dessa violação deverá ser admitida, pois, a liberdade de um inocente tem maior valor do que a privacidade de alguém.

Nesse sentido, válido transcrever orientação de Vinicius Daniel Petry:

Há dois pontos que precisam ser apreciados sob a ótica do princípio da proporcionalidade. O primeiro ocorre quando o direito de maior relevância for o violado. Neste caso, tal direito deverá ser tutelado pelo Poder Judiciário e, conseqüentemente, a prova ilicitamente obtida não deverá ser aceita. O segundo acontece no momento em que o direito oriundo da prova ilicitamente obtida possuir maior relevância que o direito violado pela ilicitude na obtenção da prova. Neste caso, a prova ilícita deverá ser aceita válida e eficazmente [32].

Especificamente, a respeito do direito de prova contraposto ao direito à intimidade, ambos garantidos na CF/88, caberá ao juiz, no caso concreto, sopesar tais direitos contrapostos, com base no princípio da proporcionalidade, e, então, admitir ou não, no processo, a prova obtida por meio violador da intimidade.

Reconhecendo a validade do referido princípio, o Superior Tribunal de Justiça, a respeito da licitude da prova obtida mediante gravação telefônica, o aplicou, nos seguintes termos:

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL. GRAVAÇÃO DE CONVERSA TELEFÔNICA POR UM DOS INTERLOCUTORES. PROVA LÍCITA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. "HABEAS CORPUS". RECURSO:

A gravação de conversa por um dos interlocutores não é interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal.

Pelo princípio da proporcionalidade, as normas constitucionais se articulam num sistema, cuja harmonia impõe que, em certa medida, tolere-se o detrimento a alguns direitos por ela conferidos, no caso, o direito à intimidade.[grifo nosso] (33)


5 DA ADMISSIBILIDADE DA PROVA OBTIDA POR MEIO DA GRAVAÇÃO TELEFÔNICA

Antes, porém, de se verificar a admissibilidade da prova obtida por meio da gravação telefônica, cabe verificar-se, primeiramente, quais são os meios de obtenção da prova gravada em áudio, dentre os quais está a própria gravação telefônica.

5.1 Meios de Obtenção da Prova Gravada em Áudio: Espécies e Distinção

Para melhor compreensão da distinção entre os meios de obtenção da prova gravada em áudio, faz-se necessário verificar o conceito de cada um deles. Resumindo as conceituações de Capez [34], tem-se o seguinte:

a) interceptação telefônica: é a intromissão significando, portanto, a conduta de um terceiro, estranho à conversa, que se intromete e capta a conversa dos interlocutores sem o conhecimento de qualquer deles. Exemplo: grampo telefônico;

b) escuta telefônica: é a captação da conversa feita por terceiro com o consentimento de um dos interlocutores. Exemplo: escuta feita pela polícia anti-sequestro de conversa com o seqüestrador e com o conhecimento da família do seqüestrado;

c) gravação telefônica: é a gravação da conversa telefônica feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro;

d) interceptação Ambiental: é a captação de conversa entre dois ou mais interlocutores por um terceiro, que se encontra no mesmo local ou ambiente em que se desenvolve a conversa, sem o conhecimento dos demais;

e) escuta ambiental: é a captação de conversa entre dois ou mais interlocutores por um terceiro, que se encontra no mesmo local ou ambiente em que se desenvolve a conversa, com o consentimento de algum deles;

f) gravação ambiental: é a gravação feita por um dos interlocutores, que se encontra no mesmo local ou ambiente em que se desenvolve a conversa, sem o conhecimento dos demais.

Dado o tema do presente trabalho, a gravação telefônica é o meio de obtenção da prova gravada em áudio que nos interessa. A compreensão de seu conceito é, portanto, de fundamental importância para que se possa verificar se ela viola ou não a proteção constitucional da intimidade e, daí, concluir-se pela sua admissibilidade ou inadmissibilidade no processo penal. Essa conclusão será mostrada nas posições doutrinárias e jurisprudenciais.

5.2 O Sigilo da Correspondência e sua Violação

Antes de mencionar-se cada posição doutrinária acerca da admissibilidade da prova obtida por meio de gravação telefônica vamos procurar entender melhor o que vem a ser o sigilo da correspondência e como se dá a sua violação. Isto se faz necessário, pois, é desse entendimento de sigilo e de sua violação que os doutrinadores, concluindo ser lícita ou ilícita a prova obtida por meio de gravação telefônica, firmam suas posições.

Se a gravação telefônica for considerada lícita, esta será admitida por qualquer das correntes e, se for considerada ilícita, somente será aceita pela corrente permissiva e pela intermediária, sendo que para esta última deverá ser verificado se o direito a ser provado tem maior valor que o direito violado (princípio da proporcionalidade).

Para fazer este estudo foi escolhido o eminente constitucionalista Celso Ribeiro Bastos [35], que, de forma bem profunda e esclarecedora, explica o seguinte: "o sigilo da correspondência é um direito que deflui de outro, qual seja: o da preservação da própria intimidade. Mantém em conseqüência também íntima correlação com a inviolabilidade do domicílio".

Prossegue, ainda, o grande mestre:

Dizer que a correspondência assim como as comunicações telegráficas, de dados e telefônicas são invioláveis significa que a ninguém é lícito romper o seu sigilo, isto é: penetrar-lhe o conteúdo. Significa ainda mais: implica, por parte daqueles que em função de seu trabalho tenham de travar contato com o conteúdo da mensagem, um dever de sigilo profissional. Tudo se passa portanto como se a matéria transmitida devesse ficar absolutamente reservada àquele que a recebe.

Atenta pois contra o sigilo da correspondência todo aquele que a viola, quer rompendo o seu invólucro, quer se valendo de processo de interceptação ou quer, ainda, revelando aquilo que teve conhecimento em função de ofício relacionado com as comunicações [36].

José Celso de Melo Filho [37], de forma brilhante, esclarece que a mensagem transmitida pertence ao remetente e ao destinatário e, não sendo este último obrigado a mantê-la em sigilo tal como acontece com o padre ou com o médico, por exemplo, não se estará violando o direito de sigilo da correspondência, ao divulgar-se a mensagem, pois, pertencendo esta ao destinatário, dela ele poderá fazer uso como prova de sua inocência, por exemplo. Cabe, aqui, ressaltar que, agindo dessa maneira, o destinatário não estará violando a intimidade do remetente, pois, a mensagem está sendo levada a conhecimento do órgão judiciário e não de terceiros com vista a prejudicar o remetente em sua imagem.

Mesmo considerando que tal divulgação viole a intimidade do remetente, por ser seu conteúdo comprometedor de sua imagem, ainda assim, ao juiz, no caso concreto, caberá sopesar essa violação quando esta estiver contraposta ao direito defesa ou de acusação de uma pessoa inocente num dado processo.

5.3 Posições Doutrinárias e Jurisprudenciais

A grande maioria dos doutrinadores é favorável à admissibilidade no processo da prova obtida por meio de gravação telefônica feita por um dos interlocutores.

Eis, então, as posições doutrinárias de três desses doutrinadores:

Celso Ribeiro Bastos tem a seguinte visão acerca do texto constitucional que prevê a inviolabilidade do sigilo das correspondências (art. 5º, XII): "O atual Texto procurou uma forma de não tolher de forma absoluta a utilização de meios que importem na violação da correspondência. Parece haver mesmo muitas hipóteses em que o interesse social sobreleva ao particular" [38].

Deste trecho do pensamento de Celso Ribeiro Bastos pode-se concluir ser ele pertencente à corrente doutrinária intermediária, que admite a prova ilícita através da aplicação do princípio da proporcionalidade.

Corroborando tal entendimento, eis o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

EMENTA:

PROVA ILÍCITA. INTERCEPTAÇÃO, ESCUTA E GRAVAÇÃO, TELEFÔNICAS E AMBIENTAIS. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. ENCOBRIMENTO DA PRÓPRIA TORPEZA. COMPRA E VENDA COM DAÇÃO EM PAGAMENTO. VERDADE PROCESSUALIZADA. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA.

1 – [omissis]

2 – O princípio da proporcionalidade, que se extrai dos artigos 1º e 5º da Constituição Federal, se aplica quando duas garantias se contrapõem. A lei nº 9.296/96 veda, sem autorização judicial, a interceptação e a escuta telefônica, mas não a gravação, ou seja, quando um dos interlocutores grava a própria conversa. A aplicação há de ser uniforme ao processo civil, em face da comunicação entre os dois ramos processuais, mormente dos efeitos de uma sentença penal condenatória no juízo cível e da prova emprestada. [grifo nosso]

3 – [omissis]

4 – A prova testemunhal, ainda que indiciária, robora a existência do negócio jurídico havido entre as partes (39).

Outro doutrinador que segue o mesmo pensamento é Fernando Capez. Veja-se o que ele diz:

Se, por um lado, a Constituição garante a proteção da intimidade e o sigilo das comunicações, por outro assegura também o direito do acusado ao devido processo legal e à ampla defesa. Se uma prova ilícita ou ilegítima for necessária para evitar uma condenação injusta, certamente deverá ser aceita, flexibilizando-se a proibição dos incisos X e XII do art. 5º da CF. (40).

A Constituição Federal protege tanto o direito à intimidade quanto o direito ao sigilo das correspondências, por outro lado há, também, a garantia do direito de prova e, se esses direitos, no caso concreto, vierem a se contrapor, caberá ao juiz, utilizando-se do senso de justiça e do poder de discricionariedade, sopesar valorativamente os direitos contrapostos e decidir pela proteção daquele que considerar de maior valor [41].

Especificamente, a respeito da prova obtida mediante a gravação telefônica Capez prossegue dizendo o seguinte:

Aqui não existe a figura do terceiro, e, portanto, não se pode falar em interceptação. Trata-se de gravação telefônica, a qual se encontra fora da garantia da inviolabilidade do sigilo e é admitida tanto no Brasil como, em geral, no mundo inteiro [...] A gravação somente não será admitida, e será considerada ilícita, quando afrontar outra garantia, qual seja, a da inviolabilidade da intimidade (CF, art. 5º, X). (42)

Ainda, segundo Capez [43], excepcionalmente, se o conteúdo da prova for muito acintoso de forma a trazer humilhação ao outro interlocutor, poderá ela ser considerada ilícita. Todavia, pode-se concluir ser este doutrinador favorável à possibilidade de utilização da prova obtida mediante gravação telefônica no processo penal, por considerar que ela, por si só, não viola a intimidade. Somente se o seu conteúdo for muito acintoso, que imponha humilhação ao outro interlocutor, poderá ela ser considerada ilícita.

Relativamente a essa matéria, válido ressaltar que:

O STF já aceitou como válida a gravação de conversa telefônica como prova, uma vez que a garantia constitucional do sigilo refere-se à interceptação telefônica de conversa feita por terceiros, o que não ocorre na hipótese (44). [grifo nosso]

No mesmo sentido o Ministro Moreira Alves, no habeas corpus 74.678-1/SP, 1ª T, votação unânime, D.J. 15/JUL/1997:

Seria uma aberração considerar como violação do direito à privacidade a gravação pela própria vítima, ou por ela autorizada, de atos criminosos, como o diálogo com os seqüestradores, estelionatários e todo tipo de achacadores. No caso, os impetrantes esquecem que a conduta do réu apresentou, antes de tudo, uma intromissão ilícita na vida privada do ofendido, esta sim merecedora de tutela. Quem se dispõe a enviar correspondência ou telefonar para outrem, ameaçando-o ou extorquindo-o, não pode pretender abrigar-se em uma obrigação de reserva por parte do destinatário, o que significa o absurdo de qualificar como confidencial a missiva ou a conversa. [grifo nosso]

Opinião diversa, no sentido de não ser admissível a prova obtida através de gravação telefônica é a de Magalhães Noronha, para quem:

A gravação de uma conversa telefônica poderá servir como prova lícita, se para tanto houver autorização judicial, sendo que tal prova correrá em autos apartados, posteriormente apensados ao inquérito policial ou à ação penal [45].

Verifica-se, desta maneira, haver divergência de sua opinião em relação à maioria dos doutrinadores, posto que, com relação à licitude da prova obtida mediante a gravação telefônica, pode-se concluir que, tanto a doutrina quanto a jurisprudência dominantes, é pela sua admissibilidade, por considerar que referida prova não viola a intimidade e, portanto, é lícita.

Para demonstrar essa conclusão, no que diz respeito à jurisprudência, veja os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:

EMENTA: RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE CORRUPÇÃO. FLAGRANTE. TRANCAMENTO. DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE. GRAVAÇÃO DE CONVERSA POR INTERLOCUTOR. PROVA LÍCITA. ALEGAÇÃO DE FLAGRANTE PREPARADO. INOCORRÊNCIA. COMBINAÇÃO FEITA PELO PRÓPRIO ACUSADO. De acordo com a jurisprudência dominante, a gravação realizada por um dos envolvidos nos fatos supostamente criminosos é considerada como prova lícita, ainda mais porque serve de amparo da notícia sobre o crime de quem a promoveu. Inocorre o dito flagrante preparado quando o próprio acusado é quem conduz o ato delituoso, não sendo, portanto, induzido por qualquer ação da vítima. [grifo nosso] Recurso desprovido [46].

Outra jurisprudência que também aborda o tema é a seguinte:

EMENTA: PROCESSO PENAL – PROVA OBTIDA MEDIANTE GRAVAÇÃO FEITA EM FITA MAGNÉTICA – INTIMAÇÃO DA DEFESA PARA A AUDIÊNCIA DE OITIVA DE TESTEMUNHA. Conforme salientou o v. acórdão recorrido, a gravação foi feita por um dos interlocutores. Tal circunstância exclui a ilicitude do meio de obtenção da prova. O Supremo Tribunal Federal, nesta esteira, tem entendido que não há qualquer violação constitucional ao direito de privacidade quando "a gravação de conversa telefônica for feita por um dos interlocutores ou com sua autorização e sem o conhecimento do outro, quando há investida criminosa deste último (HC 75.338/RJ, Rel. Ministro NELSON JOBIM, DJU 25.09.1998) : - No que tange a possível ausência de intimação da defesa para a audiência de oitiva da testemunha de acusação, o recurso não merece melhor sorte. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que intimado o defensor do réu da carta precatória, desnecessário sua intimação para audiência de oitiva de testemunha. [grifo nosso] Recurso desprovido [47].

A minoria é contra qualquer tipo de prova que viole algum direito, mesmo que o direito violado tenha menor valor que o direito a ser provado. Como se viu, anteriormente, faz parte dessa corrente, segundo Vinicius Daniel Petry, Francisco das Chagas Lima Filho, para o qual "a prova obtida por meios ilícitos deve ser banida do processo, por mais altos e relevantes que possam se apresentar os fatos apurados [48]".

Por todo o exposto, vê-se que tanto a doutrina quanto a jurisprudência dominantes são da opinião de que a gravação telefônica não viola a garantia constitucional de intimidade e, sendo assim, não é considerada prova ilícita, podendo, portanto, ser admitida no processo penal.


CONCLUSÃO

Como se viu, existe um preceito constitucional que garante o direito à intimidade, que, indubitavelmente, deve ser mantido, porém, sem o caráter absoluto, pois, a essência da justiça advém da harmonia dos direitos contrapostos. Referida harmonia deve ser entendida quando da aplicação do princípio da proporcionalidade no caso de haver confronto do direito à intimidade com o direito à liberdade de quem necessita de uma prova que a viole. É, portanto, a aplicação desse princípio que resolve a questão, quando o direito de um viola o direito de outro.

Para que se possa chegar à Justiça deve ser aplicado o referido princípio, ou seja, um direito violado que, no caso concreto, seja de menor importância, deve dar lugar a outro que, mesmo sendo violador, seja de maior importância.

Desta forma, entende-se que, embora haja a proteção constitucional para a intimidade, há, todavia, o direito não menos valioso de defesa no processo. O princípio da proporcionalidade é que, no caso concreto, deverá ser aplicado pelo juiz para se verificar a admissibilidade da prova ilícita.

No entendimento majoritário da doutrina a prova ilícita, por sua vez, não se confunde com a prova obtida mediante gravação telefônica, pois, esta é tida como lícita, por não violar a intimidade.

A unanimidade da jurisprudência brasileira também considera a prova obtida mediante gravação de conversa telefônica por um dos interlocutores (gravação telefônica) como não sendo viladora do direito material à intimidade garantido em nossa Constituição, portanto, sendo lícita. Desta forma nem é necessário aplicar o princípio da proporcionalidade, pois, a gravação telefônica, sendo lícita, não se contrapõe a qualquer direito material.


OBRAS CONSULTADAS

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Notas

1 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 71

2 MARCOCHI, Marcelo Amaral Colpaert; JÚNIOR, Reinaldo Ribeiro Checa. A garantia constitucional da intimidade e a quebra do sigilo bancário consoante a Lei Complementar nº 105/2001. Disponível em: <jus.com.br/artigos/3756>. Acesso em: 12/02/04. p. 02

3 Ibidem. p. 03

4 MANNRICH, Nelson. Constituição Federal – Consolidação das Leis do Trabalho – Legislação Previdenciária. 4 ed. rev, atual e ampl. São Paulo: RT, 2003. p. 22

5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas. Disponível em: <http://www.forense.com.br/Atualida/Artigos_DP/ef08f.htm>. Acesso em: 16/01/04. p. 09

6 MANNRICH, op. cit. p. 27

7 MANNRICH, op. cit. p. 27

8 Cf. CHIOVENDA apud SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia Jurídica. V. 2.0. Elfez, 1998

9 Cf. FILHO, Vicente Greco. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 185

10 NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 26. ed. São Paulo, Saraiva, 1998. p. 117

11 PINTO, Antonio Luiz de Toledo; WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos; CÉSPEDES, Lívia. Código de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 50.

12 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 264

13 Ibidem. p. 252.

14 PETRY, Vinícius Daniel. A Prova Ilícita Disponível em: <jus.com.br/artigos/4534> Acesso em: 26/12/03. p. 11

15 PETRY, op. cit. p. 11

16 CAPEZ, op. cit. p. 251

17 GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2001. p. 348

18 CAPEZ, op. cit. p. 251

19 Ibidem.

20 NORONHA, op. cit. p. 114

21 Cf. CAPEZ, op. cit. p. 262

22 NERY JÚNIOR apud PETRY, op. cit. p. 15

23 Cf. CAPEZ, op. cit. p. 254

24 PETRY, op. cit. p. 15

25 Ibidem

26 CAPEZ, op. cit. p. 254

27 DAMÁSIO apud SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia Jurídica. V. 2.0. Elfez, 1998

28 Cf. PETRY, op. cit. p. 02

29 Ibidem. p 15.

30 Cf. Ibidem. p. 03.

31 Cf. Ibidem. p. 04.

32 Ibidem. p. 18.

33 Precedentes do STF. (RHC nº 7216/SP, STJ, 5ª T, Rel. Min. Edson Vidigal, D. J. 25.05.98, por unanimidade, negar provimento).

34 Cf. CAPEZ, op. cit. p. 25

35 BASTOS, op. cit. p. 70

36 Ibidem.

37 Cf. MELO FILHO apud BASTOS, op. cit. p. 73.

38 BASTOS, op. cit. p. 72

39 Apelação Cível nº 70004590683, TJRS, 2ª Câmara Especial Cível, Rel. Des. Nereu José Giacomolli, Data do julgamento 09.12.2002, negado provimento, unânime.

40 CAPEZ, op. cit. p. 261

41 Cf. Idem.

42 Ibidem

43 Cf. Ibidem.

44 STF, HC 75.338-RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 11-3-1998, Informativo do STF, n. 102, mar. 1998.

45 NORONHA, op. cit. p. 114.

46 STJ, RHC 14041/PA, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ. 09-12-2003

47 STJ, RHC 9735/SP, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ. 20-08-2001

48 PETRY, op. cit. p. 15.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Silas Soares. A admissibilidade, no processo penal, da prova obtida mediante gravação telefônica feita por um dos interlocutores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 469, 19 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5829. Acesso em: 26 abr. 2024.