"O descontentamento é o primeiro passo para o progresso, seja de um homem ou de uma nação" - Oscar Wilde.
A qualidade da representação democrática depende estritamente do nível de participação política. O ideal democrático é baseado na ideia de que o poder político vem do povo soberano.
A democracia é antes de tudo, plural. Não existe democracia sem pluralismo de ideias, ideais, partidos políticos e sobretudo, diálogo entre os diversos atores que compõem uma democracia, seja entidades públicas, privadas, organizações não governamentais, sindicatos – há de existir o contrabalanço em relação às questões sociais, posições divergentes e diversas formas de debate.
Pelo magistério de Max Weber:
O perigo político da democracia de massas reside, em primeiro lugar, na possibilidade de uma forte preponderância de elementos emocionais na política. As “massas”, como tais (quaisquer que sejam as camadas sociais das quais se compõem no caso concreto), “somente pensam até depois de amanhã”. Sempre estão expostas, conforme ensina toda experiência, à influência atual, puramente emocional e irracional.[1]
Quando insustentável se torna a vida cotidiana, devido a alta da inflação e custo de vida, desemprego elevado por estagnação econômica e pandemia, muitos eleitores se afastam do jogo democrático, deixando de participar ativamente.
Zygmunt Bauman sobre isso vai dizer:
Sem um seguro endossado coletivamente, os pobres e indolentes (e, de modo mais geral, os fracos que se equilibram à beira da exclusão) não tem estímulo para o engajamento político-tampouco para a participação no jogo democrático das eleições. É improvável que algum tipo de salvação venha de um Estado político que não é, e se recusa a ser, um Estado Social também. Sem direitos sociais para todos, um grande - e provavelmente crescente -número de pessoas irá considerar seus direitos políticos inúteis e indignos de atenção. Se os direitos políticos são necessários para se estabelecerem os direitos sociais, os direitos sociais são indispensáveis para manter os direitos políticos em operação. Os dois tipos de direitos precisam um do outro para sobreviver, essa sobrevivência só pode ser sua realização conjunta[2].
Em uma democracia, a Constituição nela referendada e o processo democrático como um todo vai justamente defender o indivíduo do Estado no rol dos direitos e liberdades fundamentais.
Como ensina Kelsen:
O rol dos direitos fundamentais e das liberdades fundamentais se transforma, de instrumento de proteção do indivíduo contra o Estado, em instrumento de proteção da minoria - de uma minoria qualificada - contra a maioria puramente absoluta; significa que as disposições referentes a certos interesses nacionais, religiosos, econômicos ou espirituais só podem ser decididas depois da aprovação de uma minoria qualificada, portanto só se a maioria e minoria estiverem de acordo. Se na origem parecia que o princípio da maioria absoluta correspondia mais à ideia democrática em vias de realização, hoje se percebe que o princípio da maioria qualificada, em determinadas circunstâncias, pode constituir uma aproximação ainda maior da ideia de liberdade, representando certa tendência à unanimidade na formação da vontade geral[3].
Uma cultura democrática, com efetiva participação popular passa pelo nível cultural, educacional, social e econômico. Uma democracia desigual, como a existente no Brasil é uma democracia frágil.
Na concepção filosófica de Rousseau, em o Contrato Social, “cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo”[4], de modo que cada cidadão tem uma parcela de soberania, participando da formação da vontade geral.
Sendo assim, todos devem votar, visto que o não fazendo, a vontade geral não é mais geral.
O voto surge acima de tudo como uma liberdade para garantir o indivíduo do poder político. O direito de votar é inicialmente uma liberdade de votar. O titular de um direito, se não for senhor do conteúdo desse direito, é senhor do seu exercício.
Em 1995, o filósofo e sociólogo Jean Baudrillard, em sua coluna no jornal francês Liberation já afirmava que vivemos em uma realidade política perfeitamente dissociada, visto que de um lado temos a classe política enquanto microssociedade paralela, evoluindo impunemente com episódios de corrupção, sem consequências decisivas e do outro lado uma sociedade real, totalmente desconectada da esfera política.
A direita, por sua vez, se identifica espontaneamente com esse fantasma inerte do corpo social e seu profundo ressentimento para com a política. Nesse sentido, é menos político do que transpolítico, ou seja, alinhado com o menor denominador comum de uma sociedade politicamente insatisfeita. Portanto, é ela quem tira os frutos dessa insatisfação. Mas como é também sua perspectiva política, as deserções da esquerda e da direita combinam-se harmoniosamente[5].
Certo é que a dissociação política, crises econômicas e de identidade da representação política favorecem abalos na estrutura da democracia.
Em 2020, a classe média no Brasil correspondia a 51% da população, que são as famílias que recebem entre R$ 4.180,01 a R$ 10.450,00 mensais. Em 2021, o percentual caiu para 47%. Cenários desse jaez abrem caminho para o populismo.
O cientista político francês Pascal Perrineau entende que o populismo é uma crise da democracia. Para o sociólogo Robert S. Jansen, que há tempos estuda o termo populismo, o jargão deve ser considerado como um projeto político, que se utiliza de práticas de mobilização que procura cooptar os marginalizados de uma sociedade:
Qualquer projeto sustentado, em grande escala política, que mobiliza normalmente os setores sociais marginalizados em ação política publicamente visível e controversa, ao mesmo tempo em que se articula uma retórica nacionalista anti-elite que valoriza as pessoas comuns[6].
Para Jansen, a “mobilização popular” desses atores vai se dar através de comícios, marchas, manifestações, reuniões públicas que desafiam as convenções, estruturas ou poder político dominante. Sempre buscar-se-á uma pauta de forma a tornar a mobilização coerente. (JANSEN, 2011: p. 9)
Nem sempre nessas mobilizações estará presente a figura da retórica nacionalista de “antielite”, que valoriza pessoas comuns. Os líderes populistas podem desenvolver argumentos de que se dirigem ao “povo”, formado pelos pobres urbanos, camponeses, sem-terra, população indígena, bem como profissionais de classe média ou mesmo certos segmentos da elite, o que torna o populismo massa de manobra tanto da esquerda quanto da direita.
Buscam enfatizar as semelhanças e se afastarem das diferenças. E então, a retórica populista se difere da retórica baseada em classes, de grupos de interesse ou questões específicas. A retórica populista representa uma tentativa de forjar um “povo solidário” por meio de sua invocação retórica (JANSEN, 2011: p. 10).
O que está em jogo em uma eleição é o poder, tanto de quem vota quanto de quem é votado.
Para Foucault, “O poder não para de questionar, de nos questionar, não para de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa. Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para produzir riquezas[7].”
Com o advento da tecnologia, vieram os desafios, mas cabe a cada um de nós fazer o nosso papel, como nos ensina Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis, no livro Cegueira Moral:
Essa é uma história velha, muito velha, contada e recontada: machados podem ser usados para cortar lenha ou decepar cabeças. A escolha não é dos machados, mas de quem os segura. Qualquer que seja a escolha, o machado não vai se importar. E não interessa quão afiados possam ser os gumes com que ela esteja atualmente cortando, a tecnologia em si não vai “promover o avanço da democracia e dos direitos humanos” por você (e em seu lugar)[8].
Como diz Lorde Illingworth, na peça uma mulher sem importância, de Oscar Wilde: O mundo se divide simplesmente em duas classes: a daqueles que acreditam no inacreditável, como o povo, e daqueles que fazem o improvável.
Partindo dessa premissa, que nós, enquanto brasileiros, acreditemos no inacreditável, mas que igualmente, consigamos eleger políticos que façam o improvável (para o bem).
[1] WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva V 2. Brasília: Ed. UNB, 2004, p.583.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p.71/72.
[3] KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.68.
[4] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_rousseau_contrato_social.pdf> p. 10. Acesso em 15 de setembro de 2021.
[5] BAUDRILLARD, Jean. Les ilotes et les élites. Liberation, 04/09/1995, Seção Tribune. Disponível em: <https://www.liberation.fr/tribune/1995/09/04/les-ilotes-et-les-elites_145112/>. Acesso em 25 de junho de 2021.
[6] JANSEN, Robert S. Populist Mobilization: A New Theoretical Approach to Populism. Disponível em: <http://www-personal.umich.edu/~rsjansen/docs/ST_2011.pdf> p.8. Acesso em 16 de setembro de 2021.
[7] FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.29.
[8] BAUMAN, Zygmunt & Leonidas Donskis. Cegueira Moral. A perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. p.55.