Resumo: O presente trabalho tem o desiderato de estudar o conceito de garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva, especialmente em um de seus vieses mais contemplados nas decisões judiciais, qual seja, teoricamente estancar a reiteração criminosa. Para tanto, avançar-se-á brevemente sobre a elasticidade do conceito de ordem pública, lançando-se luz sobre o tema, de modo a se permitir a compreensão do significado e de alcance. Dada a importância e a recorrência do conceito de ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva, será traçado um esboço a fim de se investigar uma das justificativas que mais permeiam decisões monocráticas e colegiadas: suposta futura reiteração da conduta delitiva. Logo, numa sinopse, tentar-se-á cumprir a árdua tarefa de, a partir de conceito aberto e vago de ordem pública, trabalhar a não menos discricionária aplicação deste requisito previsto no artigo 312 do Código de Processo Penal sob o vetor da preocupação com o estancamento da atividade criminosa, no mantra jurisprudencial da cessação da reiteração delituosa, em confronto com direitos fundamentais e princípios constitucionais e com a conjugação de elementos que deem musculatura ao fundamento. Na condução da abordagem analítica, em linguagem discursiva e propositiva, com posicionamentos pessoais críticos sobre o tema, investigar-se-ão posições doutrinárias e jurisprudenciais.
Palavras-chave: garantia da ordem pública; reiteração criminosa; periculosidade do agente; prisão preventiva.
Sumário: Introdução; 1. Ordem pública: importância e sua contextualização jurídica; 2. Prisão preventiva à luz do conceito vago da ordem pública do artigo 312 do Código de Processo Penal no país dos contrastes; 3. Reiteração criminosa como fundamento jurídico e princípios constitucionais; 4. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
O trabalho artigo, primeiro de uma série sequenciada projetada pelos subscritores, obviamente sem a pretensão de esgotar qualquer tipo de debate, tem o desiderato de abordar o conceito de ordem pública, cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado utilizada, como fundamento demonstrativo do periculum libertatis do agente, para a decretação da prisão preventiva.
O estudo da matéria abordada se revela imperativo em decorrência da necessidade de se jogar um pouco de luz sobre o tema, dada a sua enorme relevância e protagonismo no artigo 312 do Código de Processo Penal, já que é massivamente utilizada pelos magistrados para a decretação ou manutenção de uma prisão preventiva.
Neste cenário, uma abordagem explicativa e analítica ainda que breve é necessária, considerando-se em especial a ocorrência de previsão garantista de ordem constitucional a torna instrumento de proteção de direitos e garantias individuais.
A importância de se entender o motivo da aplicação da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva viabiliza e regula uma tensão dupla. De um lado, a garantia da ordem pública deve ser invocada com responsabilidade pelo Estado em seu múnus exclusivo da jurisdição penal para a excepcionalização do direito fundamental de liberdade de locomoção da pessoa humana. De outro, serve como escudo e garantia desse indivíduo de que, para ter a sua liberdade momentaneamente tolhida, deve-se observar um mínimo de liturgia, com a demonstração da necessidade excepcional de medida tão drástica e danosa.
Para as ciências humanas, como a jurídica, ao contrário do que ocorre com a matemática (onde as medidas são exatas), fatores de interpretação são inerentes ao próprio sistema, de modo que não se poder ter uma mesma bula com remédios diferentes para casos iguais. É aí que deve entrar o poder humano de transformação e de hermenêutica, com a adequação da lei ao caso concreto, de modo a torná-la mais próximo de um desfecho justo, ainda que tal pareça uma utopia.
A prisão cautelar, processual ou provisória, isto é, aquela decretada antes do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória ou de uma decisão colegiada equivalente por órgão colegiado é, muito provavelmente, ainda mais comum do que a prisão decretada para o cumprimento da pena privativa de liberdade.
Segundo dados atualizados extraídos do sítio virtual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Brasil atualmente encontram-se presas 911.208 pessoas, sendo que destas, apenas 307.855 (33,78%) têm condenação definitiva. Todas as demais (que representam 66,22%) estão submetidas a prisões processuais. Grosso modo, portanto, desprezando-se as frações, é possível dizer que dois a cada três presos encontram-se segregados por força de prisões não definitivas (CNJ, 2022, online).
Daí, a enorme relevância de não se fugir à discussão da matéria, tendo em vista que a função da prisão cautelar é processual, e não material, o que significa dizer que não implica em juízo de probabilidade de responsabilidade penal, que é, em última escala, o que o Estado-Juiz deve efetivamente perseguir.
Dessa forma, a prisão preventiva tem se tornado a regra, quando, na verdade, deveria ser a exceção, haja vista que é regida pelos princípios da excepcionalidade, provisoriedade e proporcionalidade, tríade que deve nortear o julgador quando medir a necessidade deste tipo de intervenção restritiva da liberdade ambulatorial. Certamente, essa utilização indiscriminada da prisão preventiva tem ocorrido pelo próprio conceito aberto e sem referencial semântico adequado do que necessária e objetivamente é garantia da ordem pública.
Diante desse cenário, o presente trabalho tem por objetivo geral demonstrar empiricamente que a fundamentação de garantia da ordem pública para a decretação da prisão preventiva, baseada especificamente na possibilidade de reiteração criminosa, muitas vezes é utilizada sem que haja uma correlação com a estrita necessidade da prisão dentro do processo penal.
Em decorrência disso, a segurança jurídica fica severamente fragilizada, pois qualquer conduta, a depender do intérprete (no caso, o magistrado criminal), pode caracterizar a necessidade de prisão preventiva para a garantia da ordem pública, dando vida ao dito em alhures, quanto à metáfora dos remédios diferentes para casos iguais.
A despeito de tudo isso, é forçoso reconhecer como já exposto que o critério interpretativo decorre da própria natureza da ciência jurídica. Sucede que o hermeneuta necessariamente deve se valer, em escala inversamente proporcional, da ideia de que quanto mais avançar na diminuição da discricionariedade, mais se distanciará de argumentos genéricos, em ululante prestígio do princípio da segurança jurídica.
A fim de atingir os objetivos propostos, o presente trabalho valer-se-á do método dedutivo e realizará necessária revisão bibliográfica, seja por meio de obras dos Direitos Constitucional e Processual Penal, seja por meio da análise de julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
1. ORDEM PÚBLICA: IMPORTÂNCIA E CONTEXTUALIZAÇÃO JURÍDICA
Há uma natural dificuldade de se avançar no exame de instituto jurídico que, seja pela imprecisão das palavras, seja pela pouca objetividade semântica, tem conceito jurídico vago, aberto e indeterminado.
Antes de debruçar sobre a difícil conceituação e aplicação do que vem a ser ordem pública, utilizado para fins da decretação da prisão preventiva, é imprescindível fazer breve retrospecto histórico e abordagem jurídica, para que se entenda desde quando existe e porque o tema é tão importante.
Nesse contexto, a expressão garantia da ordem pública, em que pese a sua imprecisão e o seu indeterminismo, sobrevive intacta, há oito décadas, na redação originária do art. 312 do Código de Processo Penal, vigente desde 1941.
E é exatamente esse indeterminismo que permitiu a legitimação das mais diversas ações autoritárias cometidas pela ditadura de Getúlio Vargas sob a égide da Carta Constitucional outorgada em 1937, durante o período que se convencionou chamar de Estado Novo (1930-1945).
O famoso e malsinado artigo 312 do Código de Processo Penal, ainda que por muitas vezes utilizado para endossar até mesmo as inexplicáveis prisões para averiguação, embora não tenha sofrido significativas alterações redacionais, possibilita que seja restringido um dos mais sagrados direitos fundamentais da pessoa humana: o da liberdade.
É certo que para a decretação dessa espécie de custódia cautelar, deve-se demonstrar a reunião dos requisitos, os quais, na lição de Mirabete (2006, p. 252) reforçada por Pacheco (2006, p. 681) , se bipartem em pressupostos e fundamentos.
Os primeiros (pressupostos), que dão corpo ao que se convencionou chamar de fumus comissi delicti (fumaça do cometimento do delito), são traduzidos pelo binômio prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, nominalmente referidos na parte final do caput do retromencionado art. 312, do CPP.
Por sua vez, os fundamentos indicam o periculum libertatis (perigo da liberdade) e colocam lado a lado as quatro hipóteses expressamente previstas sem hierarquia ou necessidade de concomitância na primeira parte do caput do art. 312, do CPP, a saber, garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal.
Exatamente por ser a de maior incidência, a garantia da ordem pública passa a ser o foco deste trabalho, haja vista que a doutrina processualista penal e os tribunais (estes, por meio da jurisprudência) têm conferido uma miríade de interpretações ao conceito retromencionado (garantia da ordem pública), tudo a depender do caso concreto e dos valores em jogo, e exatamente graças ao indeterminismo da malsinada expressão ordem pública.
A expressão garantia da ordem pública, apesar de mantida por oito décadas, e em que pese calçar como coringa outros incontáveis casos de segregação de liberdade, deve ser interpretada cada vez mais à luz de garantismo penal condizente com os dias atuais não o nefasto garantismo hiperbólico monocular.
Partindo-se, contudo, do propósito de brevidade e concisão deste trabalho, sem olvidar a importância da delimitação, ainda que volátil, do tema central, é imperiosa a incursão, porém com certa verticalidade. Assim, a primeira premissa verdadeira que se pode cravar é a de que a indeterminação de um conceito de termos ambíguos ou imprecisos evidentemente exigirá a sua complementação por quem os aplicará.
É aí que entra o intérprete/hermeneuta (no caso, o magistrado criminal), importante e inegociável fator humano, que, mais do que pronto para aplicar um conceito matemático a questões confinadas em numerus clausus, deve estar a postos para preencher as lacunas legislativas existentes. Essa tarefa pertence a cada operador do Direito em tempos passados e contemporâneos, dada a perpetuidade do instituto jurídico.
Para tanto, mentes bastante privilegiadas já tentaram diminuir o quadrante de raciocínio a ser exercido sobre a questão, vale dizer tentaram, ainda que timidamente, definir o conceito indeterminado de ordem pública, o que nos servirá de farol para o desenvolvimento de alguma reflexão sobre o tema.
Nesse compasso, Bechara (2005, p. 97) leciona que:
A ordem pública enquanto conceito indeterminado, caracterizado pela falta de precisão e ausência de determinismo em seu conteúdo, mas que apresenta generalidade e abstração, põe-se no sistema como inequívoco princípio geral, cuja aplicabilidade manifesta-se nas mais variadas ramificações das ciências em geral, notadamente no direito, preservado, todavia, o sentido genuinamente concebido. A indeterminação do conteúdo da expressão faz com que a função do intérprete assuma um papel significativo no ajuste do termo.
Em raciocínio linear e complementar, Mirabete (2006, p. 377) assenta que o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão.
Nota-se, portanto, que a doutrina processualista penal ensaia conceituar o que, na definição de Pitombo (2000, p. 129), deva ser tomada como porosa, vale dizer, na lição do autor retromencionado, a expressão garantia da ordem pública seria () posta para absorver qualquer situação, alargando-lhe, sem medida, a interpretação, a qual, por sua natureza, precisa emergir estrita.
Num cenário de imprecisão do conceito de ordem pública, tal expressão revela-se cláusula aberta, alvo de interpretação jurisprudencial e doutrinária, e traz consigo uma árdua, tortuosa e quiçá perigosa tarefa hermenêutica, tendo em vista que fica a cargo do julgador, e não do legislador, o papel de apontar o seu conceito e amplitude.
Com o avançar dos tempos, em decorrência notadamente da presença do alcunhado demissionismo legislativo (em poucas palavras, a omissão do parlamento em editar leis que a Constituição ordenou que assim fizesse) e do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CRFB), os magistrados atuantes na esfera criminal passaram a construir, solitariamente ou em colegiado, argumentos que, segundo a sua concepção, seriam aptos ao preenchimento dessa lacuna acintosamente deixada pelo legislador ordinário.
Diante desse cenário, surgiram, como fruto do labor jurisprudencial e doutrinário, ao menos sete vetores interpretativos conferidos à expressão ordem pública, para fins de decretação da prisão preventiva, a saber: I) para se evitar a reiteração da prática criminosa; II) baseada na periculosidade do agente; III) considerando-se a gravidade do delito; IV) com base no caráter hediondo do crime; V) tendo em vista a repercussão social do fato delituoso; VI) a fim de se garantir/assegurar a credibilidade da Justiça; e, finalmente, VII) clamor social, público ou popular.
Essa interpretação e, por que não dizer, elastecimento? do conceito de ordem pública nada mais é do que a tentativa de compensação da carência de instrumentalidade processual por circunstâncias alheias ao Direito Penal, que, longe de ser uma crítica, vê-se como mera alternativa à ausência de atuação de quem, na verdade, deveria agir.
Não há dúvidas de que um personagem importante do próprio sistema de freios e contrapesos (checks and balances system) se esconde nessa relação, e, em decorrência disso, o já mencionado e malsinado demissionismo legislativo.
Em casos como este, de acordo com Hirschl (2004, p. 212), citado por Paiva (2009, online),
O incremento do poder judicial através da constitucionalização oferece um conveniente refúgio aos políticos, no qual podem evitar ou atrasar decisões políticas. Conflitos que envolvem assuntos perpassados por grande contenciosidade são tratados como questões legais e não políticas, o que leva à concomitante assunção de que as cortes e não os representantes eleitos devem resolvê-los.
Em tal perspectiva, de um lado tem-se o legislador ordinário que se omite em diminuir a amplitude de interpretação do Poder Judiciário e deixa de cumprir a obrigação de legislar objetivamente; e, de outro, o julgador, que não pode declinar de sua responsabilidade de exercer a jurisdição (dizer o direito), ainda que para isso preencha por si só os vazios de uma legislação que claudica.
Destarte, a interpretação da norma como posta desde a concepção e mantida intencionalmente aberta depende do exercício de fatores humanos e de contenção, vetores evidentemente voláteis e incertos.
2. PRISÃO PREVENTIVA À LUZ DO CONCEITO (VAGO) DA ORDEM PÚBLICA DO ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NO PAÍS DOS CONTRASTES
A liberdade de ir e vir, ambulatorial ou de locomoção é um dos mais sagrados direitos humanos, vez que, no âmbito externo, é consagrado no art. 13, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no art. 7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica); e, na seara interna, é assegurada pelo art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal.
Diante disso, o sacrifício do direito à liberdade, ainda que momentâneo, somente pode ocorrer se, de alguma forma, a manutenção de tal direito causar lesão ou ameaça de lesão à sociedade.
Para que não se exponha a limitação desse exercício ao reles arbítrio do magistrado, o legislador criou mecanismos de consulta e justificativa, numa aparente imposição de legalidade restrita a casos amoldáveis à previsão legal.
Nesse compasso, a prisão preventiva poderá ser decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que, em qualquer dessas hipóteses, houver prova da existência do crime e indícios suficientes da autoria, além de perigo gerado pelo estado de liberdade (status libertatis) do indivíduo.
O que se vê na prática, contudo, muitas vezes, é a utilização da prisão cautelar como antídoto para todas as mazelas da sociedade, principalmente quando o agente a quem se imputa o crime não tem protagonismo social, político ou econômico dentro da comunidade.
Como se vê, o próprio texto normativo não ajuda quando confere ao hermeneuta uma enorme margem de interpretação, dentro de uma discricionariedade aparentemente vinculada, mas que permite decisões diametralmente opostas para o mesmo caso concreto.
Caso emblemático e recente é o do RHC n. 126.272/MG (rel. Min. Rogerio Schietti Cruz), julgado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em junho de 2021. Nele, utilizou-se o mecanismo da justiça criminal para a manutenção da segregação cautelar de quem tentou furtar o correspondente a R$ 4,00 (quatro reais) de alimentos (mais precisamente, dois bifes de frango), quantia esta que representava cerca de 0,5% (meio por cento) do valor do salário mínimo à época.
Note-se que se movimentou todo o Sistema de Justiça, desde a Polícia Civil, o Ministério Público estadual, a Justiça comum de primeiro grau, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ/MG) e finalmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) para, finalmente, determinar-se o trancamento da ação penal em decorrência do reconhecimento da insignificância penal.
Ocorrida no ano de 2017, a conduta do agente, formalmente típica, mas materialmente atípica, ocupou a atenção de diversos personagens de um massivamente ocupado Sistema de Justiça, o que evidentemente gerou gastos públicos desnecessários e atentou contra princípios basilares do Direito, como os da efetividade e da economicidade, além, obviamente, do bom senso dos participantes.
Em que pese no caso paradigma a prisão em flagrante do faminto ter sido inicialmente homologada, porém revogada no dia seguinte, percebe-se a distinção de tratamentos e a utilização de institutos jurídicos a depender de quem se imputa.
Apenas para firmar contrapartida a esse exemplo, também é de conhecimento público que alguns protagonistas do cenário político brasileiro, apesar de responderem a uma miríade de procedimentos investigatórios e de ações penais por crimes do colarinho branco (white collar crimes), não são submetidos a medidas cautelares mais drásticas (como a prisão preventiva), mormente quando criam em torno de si campos de força.
Com referência à análise dos pressupostos referidos no capítulo anterior, faz-se necessária a averiguação das condições de exigência do decreto de prisão preventiva, ou seja, dos requisitos autorizadores de referida medida cautelar de restrição da liberdade ambulatorial.
Transportando-se alguns conceitos do Direito Processual Civil obviamente com as devidas adaptações ao tema de medidas cautelares do Processo Penal, pode-se manter a ideia genérica de requisitos do periculum in mora e do fummus boni iuris, até porque a ideia é a mesma. Todavia, neste ramo do Direito (Processo Penal), não se perquire a fumaça do bom direito ou o perigo da demora do provimento final, mas outra ótica, como a materialidade do delito e os indícios suficientes de autoria (fummus comicti delicti), além do perigo que a liberdade do autor do fato delituoso representa à sociedade, ao processo penal e à aplicação da lei penal (periculum libertatis).
Para que o fummus comicti delicti tenha lugar, é necessária a demonstração do cometimento de um delito (materialidade delitiva) com força tamanha que se ultrapasse a linha da mera possibilidade para a de substancial probabilidade de ocorrência. Por outro lado, tamanha robustez de evidenciação de elementos probatórios não se exige com relação à autoria, porquanto o magistrado pode amparar-se em meros indícios e não em provas robustas de autoria ou participação.
Para Lopes Júnior (2013, p. 66-67), o fummus comissi delicti significa a fumaça da existência de um crime, o que não necessariamente redunda num juízo de certeza, mas em uma probabilidade razoável de que determinado indivíduo cometeu certo delito. De acordo com o processualista penal retromencionado (2013, p. 66-67),
O fumus comissi delicti exige a existência de sinais externos, com suporte fático real, extraídos dos atos de investigação levados a cabo, em que por meio de um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e consequências apresentam como responsável um sujeito concreto.
Por sua vez, o periculum libertatis é considerado por muitos como o verdadeiro fundamento da prisão preventiva.
Trata-se de releitura doutrinária das hipóteses legais do artigo 312 do Código de Processo Penal, especialmente nas frações que permitem a decretação da prisão cautelar nos casos em que estiverem em risco as ordens pública e econômica, a instrução criminal (persecução penal) ou mesmo a própria aplicação da lei penal.
Parte-se da avaliação de risco processual baseada no perigo que o estado de liberdade (status libertatis) do imputado pode causar à comunidade, ao processo ou ao próprio poder-dever decorrente do Estado-Juiz em aplicar a justa punição.
Rigon e Silveira (2014, online, p. 17), examinando a questão sob a ótica de Prado (2011, p. 117), entendem que:
Enquanto o sistema das cautelares exige que se comprove o mérito substantivo (periculum libertatis) para que a prisão preventiva possa ser decretada pelo juiz, demandando elementos de convencimento que racionalmente apontem para a probabilidade da pessoa que se quer prender seja realmente responsável pelo fato investigado, o periculum libertatis surge como a situação jurídica a ser enfrentada após a averiguação dos indícios de existência do crime e de autoria, momento em que deverão ser avaliados os riscos que a liberdade do imputado representa ao procedimento penal.
Em outra vertente, é importante destacar que parcela significativa da doutrina processualista penal entende que a prisão preventiva decretada para garantia das ordens pública e econômica não atende à sua finalidade precípua como medida cautelar. Isso porque tais fundamentos para decretação da prisão preventiva não tem o propósito de acautelar o processo como ocorre com a prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal ou para aplicação da lei penal.
Sucede que a prisão preventiva decretada com fundamento (periculum libertatis), uma vez evidenciada a necessidade de se assegurar a garantia das ordens pública ou econômica, visa acautelar, na verdade, o meio social (daí falar-se em cautelaridade social), e não o processo em si, o que não deslegitima sua finalidade enquanto medida cautelar.
Nesse sentido, acerca da cautelaridade social da prisão preventiva, Mougenot Bonfim (2011, p. 112) leciona da seguinte forma, com muita propriedade:
As prisões cautelares têm por finalidade resguardar a sociedade ou o processo com a segregação do indivíduo. Daí falar em cautelaridade social, cujo escopo é proteger a sociedade de indivíduo perigoso e cautelaridade processual, que garante o normal iter procedimental, fazendo com que o feito transcorra conforme a lei e que eventual sanção penal seja cumprida.
Atingida esta profundidade na abordagem do tema, e verificando-se que há uma variação exponencial de vieses a serem explorados, centraliza-se a discussão neste momento à reiteração criminosa como vetor da possibilidade de decretação da prisão cautelar, tema proposto desde o início.