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Direito e literatura:

Lima Barreto e o problema da verdade no Homem que sabia javanês

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Agenda 20/06/2007 às 00:00

Resumo: O ensaio trata do conto O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto, à luz de prováveis desdobramentos jusfilosóficos. Relaciona-se ética e verdade. Revela-se, mais uma vez, escritor comprometido com relações humanas marcadas pela transparência. O texto permite aproximação entre Direito e Literatura.

Palavras-Chave: Direito. Literatura. Lima Barreto. O Homem que Sabia Javanês. Ética. Verdade.


Abstract: The paper approaches a famous Brazilian short-story, The Man who Knew Javanese, written by Lima Barreto. It does so from the vantage point of it’s unfolding in terms of jurisprudence. It relates Ethics to Truth. Once again, one tries to reveal a Brazilian writer quite attached to the improvement of human relations. The paper allows some fruitful relation between Law and Literature.

Key-Words: Law. Literature. Lima Barreto. The Man who Knew Javanese. Ethics. Truth.


Sumário:.1.Introdução e Contornos da Investigação.2.Síntese e Retomada da Narrativa.3.O Problema da Verdade no Homem que Sabia Javanês.Referências Bibliográficas


1.Introdução e Contornos da Investigação

A relação entre direito e literatura sugere que se abandonem fronteiras epistêmicas clássicas. A par do direito na literatura, que consiste em se alcançar aspectos jurídicos na produção literária de ficção, pesquisa-se também a literatura no direito, isto é, pretende-se fazer teoria e crítica literárias em textos jurídicos, que variam de decisões judiciais a petições, com estações em excertos de doutrina; toca-se em material burocrático, que não despreza o conteúdo das próprias normas jurídicas.

Neste último sentido, recorre-se à antiga classificação aristotélica, referente às modalidades do discurso (tema de retórica). Ao lado de discursos deliberativos (proferidos em assembléias políticas, onde se aconselha ou desaconselha, identificando-se o útil e o nocivo) e de discursos epidícticos (centrados no ouvinte, a exemplo de orações fúnebres, instâncias de louvor ou de censura, quando se separa o nobre do vil), encontram-se também discursos judiciários (típicos dos tribunais, acusando-se ou defendendo-se, buscando o justo e o injusto). É esta a taxonomia aristotélica. Estes últimos, discursos judiciários, permitem que se capte a literatura no direito, menosprezando-se a estética romântica, para a qual a literatura só seria identificada na ficção.

Há quem veja com ceticismo a aproximação entre direito e literatura; é que o conhecimento geral que a literatura propicia não se prestaria para solucionar questões marcadas pela lógica e pela abstração (cf. BARON, 2004, p. 2273). A aproximação entre esses dois campos do saber é ambiciosa (cf. WARD, 1993, p. 323 e ss.). A literatura permite que a discussão de problemas jurídicos tome os mais inesperados caminhos (cf. ARISTODEMOU, 1993, p. 153 e ss.). Cria-se campo interdisciplinar no qual se engendra crítica cultural muito expressiva (cf. POST, 2000, p. 1247 e ss.). É mais uma tentativa de se aproximar o direito com demais núcleos de compreensão humana (cf. BARON, 1998, p. 1059). O modelo afirma o papel transcendente da literatura nas sociedades contemporâneas (cf. SEATON, 1999, p. 479 e ss.)

No presente ensaio, no entanto, procuro o ambiente literário para problematizar temas de interesse de filosofia jurídica. É nesse sentido que busco no conto O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto, substrato para crítica sobre a relatividade da verdade, com projeções na fala e ideais normativos, que desprezam o sentido grego de άλεθέια (aletéia-verdade) em favor de verossimilhança, percepção já anunciada por Aristóteles nos Tópicos, capítulo do Organon, que trata dos silogismos dialéticos, base da retórica, que renasce em Chaim Perelman, não obstante desprezo recorrente na tradição ocidental, plasmada nos cânones do cristianismo e da racionalidade.

Trato de Lima Barreto. Ele viveu estado de permanente exclusão, o que certamente justificou o alcoolismo crônico que o derrubou, tirando-lhe a vida ainda muito jovem. Lima Barreto faleceu com pouco mais de 40 anos. Observador de ordem política que nascera da escravidão - - ele mesmo descendente direto de escravos - -, e que se fizera aliada de bacharelismo oco sem limites, Lima Barreto criticou a cultura oficial que ornava o Brasil dos bacharéis. Hostilizou cultura de ornamentos, fazendo-o especialmente na pessoa do Barão do Rio Branco. Este último conduzia o Itamaraty como quem dirige a própria casa. Rio Branco morava em palácio governamental, e Lima Barreto insistia que o velho barão não fora autorizado para tal. As nomeações que se faziam no Ministério das Relações Exteriores evidenciavam o desprezo do Barão para com os excluídos. Lima Barreto sempre criticou o modo como se recrutavam representantes brasileiros no exterior. O Itamaraty era espaço para a elite.

Lima Barreto faz com que reflitamos a propósito da verdade, e de sua validade em âmbito pragmático, quando fins e meios tendem a se justificar mutuamente. Isto é, Lima Barreto deslegitimou a mentira como mecanismo de ascensão social. Ele viveu à margem, amanuense no Ministério da Guerra, com salários que permitiam sobrevivência frugal, situação que se agonizava com a necessidade de cuidar da família, sustentando o pai (que sofria de demência aguda) e os irmãos. Especificamente, indagava Lima Barreto: haveria legitimidade em se construir carreira com fundamento em uma mentira? Ele percebia nos bacharéis trajetórias montadas a partir de bases pouco sólidas. O Homem que Sabia Javanês, parece-me, é texto que denuncia este estado de coisas.

As presentes reflexões não se prestam para encaminhar relato piegas, prenhe de moralismo, no sentido de se explicitar que a literatura faria as vezes de mestra da vida. O que se pretende, do ponto de vista metodológico, é demonstrar o modo como o ambiente literário pode propiciar reflexões de cunho jurídico, e de natureza deontológica.


2.Síntese e Retomada da Narrativa

O narrador, Castelo, relata a um amigo (Castro), em uma confeitaria, como pregara peças contra "às convicções e às respeitabilidades, para poder viver". Narrava também que certa vez em Manaus escondera a qualidade de bacharel, "para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho". O traço crítico ao bacharelismo é nítido. Castelo trabalhava no serviço diplomático, chefiava um consulado. O modo como alcançou a posição é a alavanca que Lima Barreto usou para denunciar o bacharelismo. O artifício de uma mentira - - Castelo não sabia a língua exótica que um dia se propôs a ensinar - - fora o ponto de apoio para que obtivesse posição de cônsul.

Confessou ao amigo que já fora professor de javanês. E acrescentou que fora nomeado cônsul justamente por isso. Contou que quando chegou no Rio de Janeiro vivia na miséria, fugindo das casas de pensão. Foi quando leu anúncio no Jornal de Comércio, que dava conta de que alguém necessitava de um professor de malaio. Imaginou que se tratava de ocupação para a qual não haveria muitos pretendentes. E arrematou:

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" (...) se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu". (LIMA BARRETO, O Homem que Sabia Javanês, 2002, p. 25 ).

A fala remete-nos a diplomata viajado, e disso pode dar prova o capiscasse, que nos faz recordar verbo italiano que em português teria por equivalente o entender. Por outro lado, pode-se cogitar de português macarrônico, tal como falado por imigrantes italianos, anarquistas, que grassavam no Rio de Janeiro do início do século. Lima Barreto demonstrou que o professor putativo de javanês estava disposto a ganhar a sobrevivência, não interessa a que custo. E contou:

"A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los. À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente. Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí (...)" (LIMA BARRETO, cit., loc.cit. )

Castelo lembrou que continuava fugindo do encarregado dos aluguéis dos cômodos, o que evidenciava que a necessidade de empregar-se era absoluta. Pedia mais tempo, explicando que seria nomeado professor de javanês, "(...) uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor". Enviou uma carta ao jornal, oferecendo-se para a vaga inusitada que se abria. Continuou estudando a exótica língua da Oceania; não se dedicou com tanto afinco ao alfabeto e às sutilezas do idioma, tal como se entrava à bibliografia e à história literária da Ilha de Java. E adiantou:

"Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que numero. E preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico". (LIMA BARRETO, cit., p. 26)

Com sinceridade, descreveu o caminho até o empregador, relatando as dificuldades passadas, especialmente relativas aos quatrocentos réis da viagem. Do ponto de vista retórico, feito o exórdio, e apresentado o problema, Castelo tratou de fixar os argumentos (invenção), de organizá-los (disposição), plasmando narrativa cheia de credibilidade. Justificava-se:

"É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, Com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza... Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada, mas não sei porque me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas. Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento. Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos... " (LIMA BARRETO, cit., loc.cit. ).

Castelo informou que logo em seguida chegou o dono da casa, um pouco atrasado. Tratava-se de um ancião. Teimosamente (coisa peculiar de velhos, segundo Castelo), o aluno queria saber onde o professor aprendeu javanês. Castelo observou que não contava com aquela pergunta. Disse que imediatamente arquitetou uma mentira. Teria falado que o pai era javanês, tripulante de navio mercante, que se estabeleceu nas proximidades de Canavieiras, na Bahia, como pescador; que teria se casado, e que prosperou. Foi com o pai que aprendeu javanês, explicou-se Castelo. Castro questionou a respeito do físico de Castelo, que já tinha resposta pronta:

"- Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro". ( LIMA BARRETO, cit., p. 27 )

O aluno era da nobreza. Tratava-se do Barão de Jacuecanga. Uma estória curiosa justificaria o interesse no estudo de língua tão pouco falada por estas bandas, e de utilidade questionável. O velho então explicou a Castelo porque queria aprender javanês. A razão determinante era surpreendente:

"- O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me 1embrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí." (LIMA BARRETO, cit., p. 28).

Castelo notou que "os olhos do velho se tinham orvalhado". E observou que depois de enxugar discretamente os olhos, o Barão lhe perguntou se queria ver o livro. Depois de chamar o criado, e explicar que havia perdido todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, e que esta última tinha apenas um filho, "débil de corpo e de saúde frágil e oscilante", ordenou que lhe trouxessem o cartapácio. Castelo descreveu o livro, que suscitou toda a situação:

"Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito". (LIMA BARRETO, cit., p. 28).

Castelo dissimulou que lera as informações em inglês. Tomou o cuidado de não revelar ao Barão que o inglês que sabia lhe possibilitava compreender as linhas gerais do livro. Contratou condições, preço e hora. Comprometeu-se a fazer com que o velho "lesse o tal alfarrábio antes de um ano". As aulas começaram. O ancião não era muito diligente. Pelo contrário, preguiça e displicência pareciam ser as características de estudante. Castelo observou que levaram um mês com metade do alfabeto. O aluno aprendia e desaprendia. A filha e o genro do Barão não se preocupavam com as aulas. Pelo contrário, alegravam-se com o fato de que o Barão se divertia. O genro, aliás, impressionava-se com o professor de javanês. Dizia que aquilo era um assombro. E continuou Castelo, entabulando relações que lhe abrirão as portas para a vida burocrática:

"O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo". (LIMA BARRETO, cit., p. 29).

O compromisso com eventual verdade foi definitivamente rompido quando Castelo revelou que nada sabia de javanês (o que o leitor já sabe desde o início), mas que compôs histórias tolas, a título de traduzir o livro, e que o velho acreditava em todas elas. E ainda:

" Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos ! Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada. Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também". (LIMA BARRETO, cit., p. 29).

O bote foi dado. A partir do genro do Barão, Castelo teria conseguido se aproximar da vida diplomática. Trata-se do momento mais significativamente crítico do conto, na medida em que Lima Barreto indicou as linhas gerais que marcaram a entrada de Castelo para o serviço diplomático. A diplomacia era o sonho de muitos intelectuais, que disporiam de tempo para dedicação exclusiva ao estudo e às atividades literárias. Segundo Castelo, eis como ele teria alcançado o Itamaraty:

"Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. – ‘Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!’ Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso. O diretor chamou os chefes de secção: ‘Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!’ Os chefes de secção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: ‘Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!’ O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: ‘É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?’ Disse-lhe que não e fui à presença do ministro. A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: ‘Então, sabe javanês?’ Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. ‘Bem, disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!" (LIMA BARRETO, cit., pp. 29-30).

Castelo estava definitivamente empregado. Observou ao amigo que nada sabia de javanês, e que representaria o Brasil num congresso de sábios. O Barão havia morrido um pouco antes. O livro escrito em javanês ficou com o filho, que o deixaria para o neto. Castelo foi brindado no testamento do aluno, com alguns benefícios materiais. Continuava estudando as línguas malaio-polinésias, porém confessava que não havia forma de as aprender. Comprava livros, assinava revistas. Era apontado nas ruas como o homem que sabia javanês. E continuava:

"Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna..." (LIMA BARRETO, cit., p. 30).

Contou ao amigo que descrevia a ilha de Java com o auxílio de dicionários, com alguns livros de geografia, que citava o tempo todo. O amigo perguntou se alguém duvidara do conhecimento que Castelo teria do javanês, se já teria passado por algum apuro. Ao que respondeu o narrador:

"- Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - uf!" (LIMA BARRETO, cit., p. 31).

Castelo ainda contou sua participação no encontro de sábios. O professor de javanês estava entre os eruditos, era especialista em assunto hermético, e de conhecimento reduzido a um pequeno grupo de iluminados. Seguro da posição, e de que sabia javanês, Castelo atendeu o congresso, com muita segurança:

"Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na secção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela secção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a secção do tupi- guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi. Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga." (LIMA BARRETO, cit., p. 31).

Castelo não se arrependia de tudo que viveu, e pelo que passou. A opção para o ensino de javanês, uma língua que desconhecia, fora a alternativa para a sobrevivência, para que se livrasse das agruras na cidade-grande. Fez-se como professor de javanês, língua que ninguém conhecia. E justificava-se:

"Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia. Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia." (LIMA BARRETO, cit., loc.cit.).

A glória nacional, ovacionada por todas as classes, recebida pelo presidente da república, com quem almoçara, surgira de uma farsa, de uma mentira. Havia legitimidade na atitude?

Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura:: Lima Barreto e o problema da verdade no Homem que sabia javanês. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1449, 20 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10040. Acesso em: 24 nov. 2024.

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