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Direito, religião e moral enquanto instrumentos de controle social

Agenda 07/10/2022 às 13:10

O direito não objetiva promover o aperfeiçoamento interior do homem; tal tarefa interessa ao campo da moral. Também não pretende preparar o ser humano para uma vida supraterrena, ligada a Deus, finalidade esta da religião.

Resumo: o debate que envolve a relação entre o Direito, a Religião e a Moral tem inspirado as reflexões de juristas e filósofos. Não obstante a proeminência ostentada pelo Direito, forçoso reconhecer que a complexidade da vida em sociedade, geradora de incontáveis conflitos, não poderia mesmo lhe conferir a exclusividade do controle social. Tendo em vista as peculiaridades das diversas relações cotidianamente estabelecidas pelos indivíduos, outros mecanismos assumem parte desta tarefa. Deste modo, o presente artigo analisa, em breves linhas, o Direito, a Religião e a Moral enquanto instrumentos de controle social.

Palavras-chave: Direito; Religião; Moral.


1. Introdução

NORBERT HORN (2005, p. 36-37 e 44), reconhecendo que o Direito não pode regular tudo, bem como que o indivíduo encontra-se inserido em um amplo contexto normativo, integrado por normas de diversas tonalidades, estabelece, classificatoriamente, que:

Distinguimos hoje, como resultado de uma diferenciação histórica e reconhecida a classificação propagada, entre: (1) normas jurídicas (Direito) como as normas de comportamento garantidas estatalmente, (2) normais morais (moral), que se dirigem à consciência do indivíduo e (3) normas sociais (costumes), que são observados sem coação estatal. Esta distinção [...] caracteriza diferenças no fundamento de validade, mas não necessariamente no conteúdo das normas. Quanto ao conteúdo estes âmbitos normativos em parte se sobrepõem, em parte não. Uma mesma norma pode pertencer ao Direito, mas ser simultaneamente norma moral e reconhecida pela sociedade. O exemplo mais próximo é o homicídio. Ele é infligido pelo Direito com pena, bem como moralmente reprovável e, por fim, desaprovado pelas concepções sociais. [...]. (HORN, 2005, p. 36-37 e 44)

No mesmo sentido, afirmam BITTAR e ALMEIDA (2011, p. 517) que as regras jurídicas não estão isoladas na constituição do espaço do dever-ser social, posto que existem muitos discursos fundantes de práticas determinadoras de comportamento, tais como a religião e a moral (como constitutiva de um grupo de valores predominantes para um grupo ou para uma sociedade), motivo pelo qual o grande grupamento da deontologia, o estudo das regras do dever-ser, coloca a experiência moral ao lado da experiência religiosa e da experiência jurídico-política. Destacam-se, pois, ao lado do Direito, outras formas instrumentais de normatização, tais como a religião e a moral, cada uma delas atuando nas respectivas esferas normativas e com objetivos que lhes são próprios.

2. O Direito enquanto Instrumento de Controle Social

A doutrina, de modo uníssono, caracteriza o Direito como um fato ou fenômeno social, não existindo, pois, senão na sociedade e, da mesma forma, não podendo ser concebido fora dela (ubi societas, ibi jus; onde está a sociedade, está o Direito), razão pela qual a sociabilidade constitui-se em uma de suas notas essenciais, correspondendo o Direito à exigência indeclinável de uma convivência harmônica, posto que nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade (REALE, 2002, p. 2). Tal constatação igualmente encontra apoio em DURKHEIM (1960, p. 17), para quem a sociedade, sem o Direito, sucumbiria, sendo este a grande coluna que a sustenta, relação (entre sociedade e Direito) que, segundo as lições de NADER (2017, p. 12 e 18), revela-se sob um duplo sentido de adaptação. Significa dizer, portanto, que ao mesmo tempo em que o Ordenamento Jurídico é elaborado como processo de adaptação social e, para isto, deve ajustar-se às condições do meio, por outro lado o Direito estabelecido cria a necessidade de o povo adaptar o seu comportamento aos novos padrões de convivência. Ademais, cumpre registrar, o Direito de um povo se revela autêntico quando retrata a vida social, quando se adapta ao momento histórico, quando evolui à medida que o organismo social ganha novas dimensões.

Malgrado a plena adequação das afirmações acima (de REALE e de DURKHEIM) à sociedade atual, cumpre registrar, conforme adverte NADER (2017, p. 31), que o mundo primitivo não distinguiu as diversas espécies de ordenamentos sociais, sendo que o Direito absorvia questões afetas ao plano da consciência, própria da Moral e da Religião, e assuntos não pertinentes à disciplina e equilíbrio da sociedade, identificados hoje por usos sociais. Tal processo de interação social, segundo leciona NADER (2017, p. 25), opera-se de três modos distintos, isto é, pela cooperação, quando as pessoas são movidas por um mesmo objetivo, razão pela qual conjugam esforços; pela competição, na qual se observa a existência de disputa, de concorrência, em que as partes envolvidas, reciprocamente, procuram obter o que almejam; e, por fim, pelo conflito, figura que se estabelece a partir do impasse, isto é, quando os interesses em jogo não logram uma solução pelo diálogo e as partes recorrem à luta (moral ou física) ou buscam a mediação da Justiça.

Não obstante a proeminência ostentada, neste cenário conflituoso, pelo Direito, forçoso reconhecer que a complexidade da vida em sociedade, geradora de incontáveis conflitos, não poderia mesmo lhe conferir a exclusividade do controle social. Tendo em vista as peculiaridades das diversas relações sociais cotidianamente estabelecidas pelos indivíduos, outros mecanismos assumem parte desta tarefa, posto que se apenas o Direito, com suas características próprias, entre as quais se destaca o poder de coerção, existisse com tal finalidade, as relações sociais restariam simplesmente travadas.

Procurando identificar a exata função a ser desempenhada pelo Direito no contexto do convívio social, BETIOLI (2008, p. 8-9) aduz que o Direito não objetiva promover o aperfeiçoamento interior do homem; tal tarefa, afirma o citado autor, interessa ao campo da moral. Da mesma forma, não pretende preparar o ser humano para uma vida supraterrena, ligada a Deus, finalidade buscada pela religião. O campo de atuação do Direito, destarte, consiste em disciplinar tão somente os fatos sociais considerados mais relevantes para o convívio social, regulamentando, assim, apenas as denominadas relações de conflitos, conforme explicado acima por NADER. No que se refere às relações de cooperação e competição, a intervenção do Direito, enquanto conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a realização da segurança, segundo os critérios de justiça, somente se justifica quando houver situação potencialmente conflituosa (NADER, 2017, p. 76).

Desta feita, a regulamentação e a organização sociais podem e devem ser levadas a efeito por meio de outros instrumentos, tais como a religião e a moral, restando conclusiva a importância a eles conferida, os quais, juntamente com o Direito, mas cada um a seu modo, possuem o mesmo propósito: viabilizar e condicionar a vivência do homem na sociedade.

3. A Religião enquanto Instrumento de Controle Social

O termo religião, do latim religare, remete a algo que religa o ser humano a Deus. A religião procura agregar, harmonicamente, o homem a Deus, atuando, ademais, como um poderoso obstáculo às ações humanas, contribuindo, desta feita, para o seu aprimoramento interior. Os Dez Mandamentos da Bíblia, por exemplo, atuam sobre os cristãos como verdadeira Lei Divina.

Segundo GIDDENS (2005, p. 427), as religiões envolvem um conjunto de símbolos, que invocam sentimentos de reverência ou de temor, estando ligadas a rituais ou cerimoniais dos quais participa uma comunidade de fiéis. Assim, a religião, através da , define o caminho a ser percorrido pelos crentes, estabelecendo, para atingir tal finalidade, uma escala de valores a serem cultivados e, em razão deles, dispõe sobre a conduta humana, atuando, pois, como um autêntico instrumento de controle individual, conforme reconhecido, inclusive, por NADER:

A Religião tem sido sempre um dos mais relevantes instrumentos no governo social do homem e dos agrupamentos humanos. Se esse grande fator de controle enfraquece, apresenta-se o perigo do retrocesso do homem às formas primitivas e antissociais da conduta, de regresso e queda da civilização, de retorno ao paganismo social e moral. O que a razão faz pelas ideias, a religião faz pelos sentimentos. (NADER, 2017, p. 34)

A distinção entre Direito e religião tem na alteridade uma de suas notas fundamentais. Na ótica de LEGAZ Y LACAMBRA (1961, p. 419), a alteridade, essencial ao Direito, não é necessária à religião, já que esta é caracterizada por ser uma relação entre o ser humano e Deus, e não entre os homens. Da mesma forma, o valor segurança, tão precioso e buscado pelo Direito, não seria, na concepção de LEGAZ Y LACAMBRA, algo atingível pela religião.

Ainda no que concerne aos termos distintivos básicos, pode-se dizer que a religião busca a harmonia do espírito, ao passo que o Direito dirige-se à convivência no plano terrestre. De qualquer modo, não obstante a nítida diferença entre os dois campos, é lícito concluir que a religião, assim como o Direito, atua como um autêntico instrumento propulsor de ações e influenciador da conduta humana. Nesse sentido, ASSIS (2012) assinala que a religião assume a função de manter a ordem social com suas práticas, sistemas simbólicos e crenças, em harmonia com a realidade objetiva socialmente construída, ou seja, em acordo com a sociedade e sistemas vigentes, registrando, outrossim, que tal função está em constante interação com outros sistemas e representações sociais, o que equivale dizer que as religiões estão em interação histórica e dialética com outras esferas e subsistemas da sociedade, tais como a política, a economia, a educação, a ideologia (e, evidentemente, o Direito), não existindo (nem subsistindo) independentemente dos demais subsistemas sociais; ao contrário, a religião está em permanente interação e, por isso mesmo, termina por interferir e sofrer interferências desses subsistemas de uma forma dinâmica e transformadora.

Sob o ponto de vista jurídico-teórico, importante é a questão sobre até que ponto, hoje, concepções cristãs influenciam nosso Direito. Os valores fundamentais do Estado democrático moderno, liberal e social remontam a ideias de valor que foram sobretudo desenvolvidas na filosofia do Renascimento do século XVIII. Essas, por sua vez, surgiram, por um lado, em repúdio à autoridade eclesial, por outro lado, amplamente orientadas no Cristianismo como o meio espiritual dominante de nossa cultura. Além disso, pensamentos cristãos, apesar de alguma repressão, sempre exerceram influência na formação jurídica moderna. Conceitos fundamentais da Constituição alemã, como dignidade humana ou a ideia do social, são impensáveis sem as concepções cristãs modernas. O mesmo se aplica também para fundamentos da imagem cristã da pessoa como liberdade e consciência. (HORN, 2005, p. 116)

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Cumpre consignar, por oportuno, que mesmo diante da consolidação do processo de laicização do Direito, não há como negar a influência ainda hoje exercida pela religião na elaboração do Direito. A título de exemplo, recorde-se, no âmbito constitucional, que a Carta Imperial (1824) estabelecia, no seu art. 5º, que a Religião Católica Apostólica Romana continuaria a ser a religião do Império, sendo as demais religiões permitidas com seu culto doméstico ou particular. No caso do Brasil, a separação entre Igreja e Estado operou-se a partir da Constituição de 1891, a primeira da República, cujo art. 72, § 7º, preceituava que nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.

4. A Moral enquanto Instrumento de Controle Social

Convém registrar que os egípcios, os babilônios, os chineses e os próprios gregos não estabeleciam distinção entre os campos do Direito e da moral (GUSMÃO, 2000, p. 69). Ainda segundo o aludido autor, os romanos, organizadores do Direito, definindo-o sobre a influência da filosofia grega, consideravam-no como ars boni et aequi, aduzindo, ainda, que o grande jurisconsulto PAULO, talvez compreendendo a particularidade do Direito, sustentava que non omne quod licet honestum est, ou seja, o permitido pelo Direito nem sempre está de acordo com a moral (GUSMÃO, 2000, p. 69).

VENOSA (2006, p. 183), dissertando sobre o vocábulo em epígrafe, afirma que a palavra moral decorre sociologicamente de mos (plural mores), que sob este sentido pode ser compreendida como o conjunto de práticas, de costumes, de usos, de padrões de conduta em determinado segmento social; desta feita, segundo o citado autor, cada povo, cada época, cada setor da sociedade possui seu próprio padrão, sua própria moral. Com efeito, pondera VENOSA que a moral de um povo nunca pode ser vista distante do seu conteúdo histórico: o que é de acordo com a moral hoje poderá não ter sido ontem e poderá não sê-lo no futuro. A moral, ainda segundo os ensinamentos de VENOSA (2006, p. 184), indica regras de conduta para o bem-estar e aperfeiçoamento da sociedade. Assim, o termo em questão, figurativamente, seria uma linha reta de comportamento, cujos desvios representam escorregões, transgressões da regra moral, isto é, afastamento da conduta justa e aceitável, sendo certo que tanto a moral como o Direito possuem conteúdos éticos.

O termo ética, a propósito, deriva do grego ethos, que, segundo ANA PEDRO (2014, p. 485), pode apresentar duas grafias, quais sejam, êthos (evocando o lugar onde se guardavam os animais, tendo evoluído para o lugar onde brotam os actos, isto é, a interioridade dos homens) e éthos (que significa comportamento, costume, hábito, caráter, modo de ser de uma pessoa). Em sua acepção abrangente, o vocábulo ética traduz o estudo dos juízos de apreciação referente à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto (cf. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, 2ª ed., Nova Fronteira, 1986, p. 733).

Sob essa ótica, é obrigatório deduzir que, em certas situações, o conceito amplo de ética, como valor da coletividade, em suas variadas expressões, abrange não só a denominada moral social (conjunto de costumes e convenções sociais), como igualmente o próprio Direito. Da mesma forma, ANA PEDRO (2014, p. 485), ao mesmo tempo em que admite que os conceitos de ética e moral sejam distintos, reconhece, por outro lado, a existência de uma estreita articulação entre ambos, na medida em que a ética tem como objeto de estudo a própria moral, não existindo desligada uma da outra, mas sendo independentes entre si, considerando a autora, inclusive, que tanto a ética implica a moral, enquanto matéria-prima das suas reflexões e sem a qual não existiria, como a moral implica a ética para se repensar, desenhando-se, assim, entre elas uma importante relação de circularidade ascendente e de complementaridade.

Uma vez registrada a relação existente entre ética e moral, cumpre consignar, posto que de suma importância para a compreensão do Direito, que as normas éticas, tais como as normas morais e as normas jurídicas, estruturam-se como um juízo de dever-ser específico, ou seja, apresentam-se como uma percepção interpretativa de um determinado fato social, por intermédio de uma valoração subjetiva inerente ao mundo cultural, produzindo, em consequência, uma previsão normativa comportamental. Tal quadro de ideias permite afirmar, exatamente como considera VENOSA (2006, p. 186), que a ordem moral e a ordem jurídica são normativamente distintas, mas intimamente relacionadas e interligadas.

De fato, consoante asseveram BITTAR e ALMEIDA (2011, p. 522), a ordem moral efetivamente se distingue da Ordem Jurídica, o que não significa dizer, no entanto, que haja, entre ambas, um distanciamento; ao contrário, a moral e o Direito aproximam-se sobremaneira e se complementam na orientação do comportamento humano.

5. Aspectos Distintivos entre Direito e Moral

Não obstante tal ponto de convergência, posto que ambas (as normas morais e as normas jurídicas) inserem-se no campo da ética e se complementam na orientação do comportamento humano, conforme registrado anteriormente, há aspectos distintivos a serem considerados. REALE, objetivando identificar a essência da moral, de modo a diferenciá-la, em um de seus aspectos fundamentais, do Direito, leciona que:

O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o indivíduo, por um movimento espiritual espontâneo, realiza o ato enunciado pela norma. Não é possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém pode ser bom pela violência. Só é possível praticar o bem, no sentido próprio, quando ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não pela interferência de terceiros, pela força que venha consagrar a utilidade ou a conveniência de uma atitude. Conquanto haja reparos a ser feitos à Ética de KANT, pelo seu excessivo formalismo, pretendendo rigorosamente que se cumpra o dever pelo dever, não resta dúvida que ele vislumbrou uma verdade essencial quando pôs em evidência a espontaneidade do ato moral.

A Moral, para realizar-se autenticamente, deve contar com a adesão dos obrigados. Quem pratica um ato, consciente da sua moralidade, já aderiu ao mandamento a que obedece. Se respeito meu pai, pratico um ato na plena convicção da sua intrínseca valia, coincidindo o ditame de minha consciência com o conteúdo da regra moral. Acontecerá o mesmo com o Direito? Haverá, sempre, uma adequação entre a minha maneira de pensar e agir e o fim que, em abstrato, a regra jurídica prescreve? No plano da moral, [...] essa coincidência é essencial, mas o mesmo não ocorre no mundo jurídico. (REALE, 2002, p. 44-45)

Historicamente, de acordo com GUSMÃO, deve-se a THOMASIUS (1655-1728), cujas ideias foram desenvolvidas por KANT, a distinção entre Direito e moral:

Partindo da consideração da coercibilidade como a marca do direito, não o confundiu com os deveres morais, por considerá-los incoercíveis, em contraposição aos jurídicos, que seriam coercíveis. Já KANT atribuiu à moral o julgamento dos motivos, das resoluções, da intenção e da consciência, enquanto ao direito, a disciplina da conduta exterior do homem e das manifestações da vontade. Por isso, diz KANT, o direito é coercitivo, enquanto a moral, incoercível. (GUSMÃO, 2000, p. 69)

As reflexões levadas a efeito por KANT quanto à diferenciação básica entre Direito e moral foram assim resumidas por VENOSA:

KANT encontrou na Moral a autonomia e, no Direito, heteronomia. No Direito há bilateralidade, relação jurídica. Coloca no centro da Moral, em vez do bem, o dever. A moralidade da ação não estaria no seu objeto ou conteúdo, mas apenas na sua forma, no seu móvel. O motivo de agir é o dever, colocando-se a moral dentro do conceito de imperativo categórico que criou. A ideia é no sentido de que cada pessoa aja de uma forma que o motivo de sua ação possa valer como uma lei universal. Desse modo, a moral é sempre um mandamento interno do indivíduo, pois o motivo para agir é sempre eterno. Para KANT, por outro lado, o direito é um conjunto de condições de arbítrio de cada pessoa que pode conciliar-se com o arbítrio de outrem. Desse modo, o direito estabelece uma ordem externa para regular as ações. Assim, nesse campo interessa apenas a legalidade, a conformação das condutas com as normas, independentemente da motivação do agente. Para KANT, a observância da lei jurídica também é um dever moral. O Direito, diferentemente da moral, situa-se no âmbito do imperativo categórico. (VENOSA, 2006, p. 186-187)

Também discorrendo sobre a distinção entre Direito e moral, GUSMÃO (2000, p. 70) assevera que DEL VECCHIO, além da coercibilidade específica ao Direito, indicou a bilateralidade como outro elemento que o destaca da moral, aduzindo, ainda, que:

O dever moral não é exigível por ninguém, reduzindo-se a dever de consciência, ao tu deves, enquanto o dever jurídico deve ser cumprido sob pena de sofrer o devedor os efeitos da sanção organizada, aplicável pelos órgãos especializados da sociedade. Assim, no direito, o dever é exigível, enquanto na moral, não. Entretanto, não é só, pois, enquanto o direito é heterônomo, por ser imposto ou garantido pela autoridade competente, mesmo contra a vontade de seus destinatários, a moral é autônoma, pois é imposta pela consciência ao homem. Destarte, podemos dizer que o direito, se não respeitado voluntariamente, poderá sê-lo pela intervenção dos aparelhos policial e judiciário, o que não ocorre com a moral, que exige a observância espontânea, voluntária, de seus preceitos. (GUSMÃO, 2000, p. 71)

NADER (2017, p. 40), por seu turno, assevera que a manifestação do Direito opera-se a partir de um conjunto de regras definidoras da dimensão da conduta exigida, as quais estabelecem o modo de agir (a norma de conduta), enquanto que as normas morais possuem diretrizes mais gerais, sem descer a particularizações. Ainda no âmbito da diferença entre Direito e moral, DIMOULIS, invocado por VENOSA (2006, p. 191), pontua que o Direito é um sistema denso e concreto, enquanto a moral apresenta-se como um sistema rarefeito e genérico; vale dizer, o ordenamento jurídico é massivo e complexo, representado por um sem-número de leis, tendo no ápice a Constituição. A moral, por sua vez, inscreve-se facilmente na mente de cada um, uma vez que os mandamentos morais são incutidos de geração em geração e são enunciados simples, representando uma orientação para orientação geral para a sociedade.

SOARES (2013, p. 19), também reconhecendo a existência de muitos pontos de contato entre as normas morais e as normas jurídicas, afirma que a moral se manifesta, prevalentemente, como uma instância de normatividade ética de natureza autônoma, interior, unilateral e menos coercitiva do que o direito, tutelada por meio de um conjunto de sanções difusas aplicadas pela opinião pública; o Direito, de seu lado, figura como uma instância de normatividade ética de natureza heterônoma, exterior, bilateral e mais coercitiva do que os padrões de moralidade social, protegida por um complexo institucional de sanções organizadas, que são aplicadas pelo Estado. Prosseguindo em uma abordagem distintiva, SOARES (2013, p. 19) explica que as normas morais se revelam como instâncias autônomas de normatização do agir humano, porque o sujeito moral sustenta a prerrogativa de orientar-se conforme a sua vontade, ao passo que as normas jurídicas são heterônomas, uma vez que são impostas por um ente distinto do indivíduo, independentemente da vontade do sujeito de direito. Da mesma forma, assinala SOARES (2013, p. 20) que as normas morais se dirigem para as dimensões interiores da existência humana, uma vez que regulam a consciência individual, sendo certo que, no plano da normatividade moral, a sanção é puramente interior, vale dizer, a única consequência desagradável da violação de uma norma moral seria o sentimento de culpa, um estado de incômodo, de perturbação ou de angústia, enquanto que as normas jurídicas necessitam de comportamentos exteriores para serem aplicadas.

Ainda em uma perspectiva distintiva, SOARES (2013, p. 20-21) argumenta que as normas morais são unilaterais, porque estão destinadas à disciplina do comportamento de um indivíduo isolado, motivo pelo qual o dever moral não pode ser exigido compulsoriamente por outro agente social; as normas jurídicas, por sua vez, são bilaterais, posto que regulam sempre uma relação intersubjetiva, uma vez que o Direito enfoca a conduta em sua interferência intersubjetiva (correlação entre o fazer de um ou impedir do outro). Por fim, segundo o mesmo autor, as normas jurídicas são geralmente mais coercitivas do que as normas morais, atuando no psiquismo do potencial infrator de modo mais contundente, já que o temor da aplicação de uma sanção jurídica é maior que a aflição gerada pela possibilidade de materialização de uma sanção moral.

6. Direito, Moral e Teorias dos Círculos

Não obstante a referida confusão conceitual inicial, problema percebido desde a Antiguidade Clássica (REALE, 2002, p. 53), fato é que a relação existente entre o Direito e a moral é, contemporaneamente, um dos temas mais controvertidos na seara da Filosofia do Direito, conforme reconhecido, inclusive, pelo insigne REALE:

Encontramo-nos, agora, diante de um dos problemas mais difíceis e também dos mais belos da Filosofia Jurídica, o da diferença entre a Moral e o Direito [...]. Nesta matéria devemos lembrar-nos de que a verdade, muitas vezes, consiste em distinguir as coisas, sem separá-las [...].

Muitas são as teorias sobre as relações entre o Direito e a Moral, mas é possível limitarmo-nos a alguns pontos de referência essenciais, inclusive pelo papel que desempenharam no processo histórico. (REALE, 2002, p. 41)

Objetivando estabelecer o modo como se opera a relação existente entre o Direito e a moral, cumpre destacar e analisar as Teoria dos Círculos Concêntricos (JEREMY BENTHAM), dos Círculos Secantes (CLAUDE DU PASQUIER), dos Círculos Independentes (HANS KELSEN) e do Mínimo Ético (GEORG JELLINEK).

6.1. Teoria dos Círculos Concêntricos

Trata-se de teoria formulada por JEREMY BENTHAM (1748-1832), segundo a qual a Ordem Jurídica encontra-se totalmente incluída no campo da moral, afirmação da qual se extraem duas conclusões imediatas: a) o campo da moral afigura-se mais amplo que o do Direito; b) o Direito subordina-se por completo à moral.

Segundo as premissas de tal teoria, todas as normas jurídicas são igualmente morais, o que não corresponde à realidade, mormente se considerarmos a existência de normas jurídicas imorais (isto é, contrárias à moral) e amorais (ou seja, indiferentes ao campo da moral, cujo conteúdo normativo nada possui de positivo ou negativo). Esquematicamente, tal perspectiva teórica pode ser representada por dois círculos concêntricos, sendo o maior pertencente à moral.

6.2. Teoria dos Círculos Secantes

Desenvolvida por CLAUDE DU PASQUIER, a teoria em epígrafe assevera que o Direito e a moral possuem uma área comum e, ao mesmo tempo, um espaço particular e independente (inerente a cada um). Segundo afirma VENOSA (2006, p. 187-188), a teoria ora examinada, ao abandonar a figura dos círculos concêntricos, concebendo o fenômeno do Direito e da moral como dois círculos secantes, isto é, moral e Direito podem ter áreas comuns, mais ou menos amplas, mas não coincidem ou se identificam, traduz-se, incontestavelmente, no arcabouço teórico que mais se aproxima da realidade, posto que muitas normas jurídicas são também normas morais; da mesma forma, conforme assinala VENOSA, há normas jurídicas que vão além dos princípios morais e outras que se posicionam aquém, cabendo recordar, neste aspecto, o tradicional brocardo: nem tudo que é justo é honesto.

Trata-se, por conseguinte, da teoria mais adequada no que se refere ao esclarecimento da relação que permeia os aludidos campos, posto que, indiscutivelmente, há regras do Direito que não possuem qualquer relação com a moral (e, da mesma forma, existem regras morais que nenhuma afinidade guardam com o Direito). Como exemplo, cite-se a norma (contida no Código de Trânsito Brasileiro Lei nº 9.503/97) que impõe o tráfego de veículos pela direita. Refletindo a respeito das premissas estabelecidas pela teoria em questão, é de se questionar: qual seria o conteúdo moral de tal regra? A toda evidência, não se identifica, na referida regra de trânsito, qualquer aspecto de natureza moral, o que demonstra o acerto da Teoria dos Círculos Secantes, retratada conforme o esquema abaixo.

6.3. Teoria dos Círculos Independentes

HANS KELSEN (1881-1973), autor da Teoria Pura do Direito, diferentemente das concepções defendidas por JEREMY BENTHAM (Teoria dos Círculos Concêntricos) e por CLAUDE DU PASQUIER (Teoria dos Círculos Secantes), entendia que nenhum ponto de contato haveria entre o Direito e a moral, tratando-se, pois, de dois sistemas completamente independentes entre si (Teoria dos Círculos Independentes). Para o festejado jurista, a norma jurídica seria o único elemento essencial ao Direito, cuja validade não dependeria de conteúdos morais.

A Teoria dos Círculos Independentes, retratada através do gráfico anterior, reflete algumas conclusões firmadas por KELSEN na sua monumental obra, a Teoria Pura do Direito, cujas ideias principais, no que se refere ao tema vertente, foram assim sintetizadas por SGARBI:

a) A teoria pura do direito consiste no projeto de KELSEN de levar o conhecimento jurídico ao patamar de conhecimento científico;

b) A teoria pura do direito é uma teoria pura do direito e, não, do direito puro. KELSEN distingue o campo da política, cuja tarefa é valorar e produzir normas, do campo da ciência do direito, cujo propósito é o de elaborar um conhecimento que explique o fenômeno normativo, de modo controlado, tornando, assim, possível a predição de possíveis ocorrências normativas futuras;

c) Problemático, contudo, é que o objeto da ciência jurídica, como estrutura de dever, não se diferencia, em essência, das estruturas de dever da moral e da religião. Por conta disso, KELSEN estabelece três pontos de delimitação das normas jurídicas: elas são instrumentos de motivação indireta, respaldadas na força monopolizada pelo Estado, e pertencentes ao mundo da cultura, ao mundo da vontade e contingência humanas; [...]

i) Não cabe à teoria pura do direito dizer o que é o justo. A justiça ou a injustiça das normas cabe ser avaliada pelos destinatários, pelos juízes, e pelos atores partícipes das mobilizações políticas. Cumpre à teoria pura do direito apenas fornecer instrumental para a descrição das normas produzidas nas ordens jurídicas. A teoria pura não prescreve, ela não diz, ao homem, como ele deve pautar o seu destino; [...]. (SGARBI, 2007, p. 27-28)

6.4. Teoria do Mínimo Ético

Coube a GEORG JELLINEK (1851-1911), jurista alemão do final do século XIX e começo do século XX, o desenvolvimento da Teoria do Mínimo Ético, segundo a qual o Direito representa o mínimo de preceitos morais necessários ao bem-estar da sociedade. Como nem todos os membros da coletividade desejam cumprir espontaneamente as regras morais, surge a necessidade de se estabelecer elementos de coerção, capazes de assegurar um regramento ético mínimo, produzindo a essência da normatização jurídica. Neste sentido, a lição de REALE:

A teoria do mínimo ético consiste em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos dessa doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas como as violações são inevitáveis, indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão dos dispositivos que a comunidade considerar indispensável à paz social.

Assim sendo, o Direito não é algo diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantias específicas. A teoria do mínimo ético pode ser reproduzida através da imagem de dois círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, que tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral e jurídico. (REALE, 2002, p. 42)

Nota-se, pois, que, à luz desta teoria, o Direito encontra-se totalmente incluído no campo da moral, concepção teórica que pode ser traduzida também pela mesma ideia de círculos concêntricos, sendo o maior correspondente à moral, e o menor inerente ao Direito. Depreende-se, ainda, que tal teoria acaba por concluir, equivocadamente, que todas as normas jurídicas são igualmente morais, sendo certo que, destas, apenas as mais relevantes são alçadas, pelo Estado, à condição de normas de Direito. A fim de demonstrar o equívoco ao qual a Teoria do Mínimo Ético conduz, cumpre reconhecer a existência de normas jurídicas imorais (isto é, contrárias à moral) e amorais (ou seja, indiferentes ao campo da moral, cujo conteúdo normativo nada possui de positivo ou negativo). Na mesma linha de raciocínio, REALE, criticando a conclusão a que chega JELLINEK, explica que fora da Moral existe o imoral, mas existe também o que é apenas amoral, ou indiferente à Moral, asseverando, pois, que:

Há, pois, que distinguir um campo de Direito que, se não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos secantes. Podemos dizer que dessas duas representações de dois círculos concêntricos e de dois círculos secantes, a primeira corresponde à concepção ideal, e a segunda, à concepção real, ou pragmática, das relações entre o Direito e a Moral. (REALE, 2002, p. 41-42)

NADER afirma que, através do emprego da expressão mínimo ético, pretende-se assinalar que o Direito deve conter apenas o mínimo de conteúdo moral, indispensável ao equilíbrio das forças sociais, em oposição ao pensamento do máximo ético:

Se o Direito não tem por finalidade o aperfeiçoamento do homem, mas a segurança social, não deve ser uma cópia do amplo campo da Moral; não deve preocupar-se em trasladar para os códigos todo o continente ético. Diante da vastidão do território jurídico, não se pode dizer que o mínimo ético não seja expressivo. Basta que se consulte o Código Penal para certificar-se de que o mencionado bem-estar da coletividade exige uma complexidade normativa. A não adoção dessa teoria, assim interpretada, implicaria a acolhida do máximo ético, pelo qual o Direito deveria ampliar a sua missão, para reger, de uma forma direta e mais penetrante, a problemática social. (NADER, 2017, p. 43-44)

Citado por VENOSA (2006, p. 187), PAULO HAMILTON SIQUEIRA JR. aduz que, nos termos da teoria do mínimo ético, o Direito representaria um mínimo moral declarado obrigatório para sobreviver como tal, vale dizer, seria o instrumento de força para o cumprimento de certos princípios éticos, do que se infere que o Direito não se traduz em algo diverso da moral, mas, sim, uma parte desta, dotada de garantias específicas, uma vez que, segundo os defensores de tal concepção teórica, nem todos os membros da sociedade estão dispostos a realizar de maneira espontânea as obrigações morais.

7. Conclusão

Malgrado a proeminência ostentada pelo Direito, forçoso reconhecer que a complexidade da vida em sociedade, geradora de incontáveis conflitos, não poderia mesmo lhe conferir a exclusividade do controle social. Tendo em vista as peculiaridades das diversas relações sociais cotidianamente estabelecidas pelos indivíduos, outros mecanismos assumem parte desta tarefa, posto que se apenas o Direito, com suas características próprias, entre as quais se destaca o poder de coerção, existisse com tal finalidade, as relações sociais restariam simplesmente travadas.

Conforme sintetizado por BETIOLI (2008, p. 8-9), o Direito não objetiva promover o aperfeiçoamento interior do homem; tal tarefa, afirma o citado autor, interessa ao campo da moral. Da mesma forma, não pretende preparar o ser humano para uma vida supraterrena, ligada a Deus, finalidade buscada pela religião. O campo de atuação do Direito, destarte, consiste em disciplinar tão somente os fatos sociais considerados mais relevantes para o convívio social, regulamentando, assim, apenas as denominadas relações de conflitos, conforme explicado acima por NADER.

Desta feita, a regulamentação e a organização sociais podem e devem ser levadas a efeito por meio de outros instrumentos, tais como a religião e a moral, restando conclusiva a importância a eles conferida, os quais, juntamente com o Direito, mas cada um a seu modo, possuem o mesmo propósito: viabilizar e condicionar a vivência do homem na sociedade.


Referências Bibliográficas

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VENOSA, Sílvio. Introdução ao Estudo do Direito Primeiras Linhas, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2006.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Direito, religião e moral enquanto instrumentos de controle social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7037, 7 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100540. Acesso em: 21 nov. 2024.

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