Resumo: No presente trabalho examinamos a possibilidade de interposição do recurso especial previsto no artigo 105, inciso III da Constituição Federal de 1988, quando a norma violada for decreto emitido pelo Presidente da República, analisando se tal instrumento normativo se enquadra no conceito de lei federal a que alude o mencionado dispositivo constitucional.
Palavras-chave: recurso especial, lei federal, decreto presidencial.
Sumário: 1. Introdução. 2. O recurso especial na Constituição Federal de 1988. 3. Hipóteses de cabimento do recurso especial. 4. Conceito e função do decreto presidencial. 5. Enquadramento da violação ao decreto presidencial nas hipóteses do inc. III do art. 105 da Constituição Federal. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O recurso especial, nos termos do artigo 105, inciso III, da Constituição Federal de 1988, é o recurso excepcional constitucionalmente previsto para a impugnação de decisões dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais contrárias à legislação federal infraconstitucional (alínea a), bem como contra as decisões de tais órgãos que julgarem válido ato de governo local contestado em face de lei federal (alínea b) ou que derem à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal (alínea c). A competência para o julgamento dessa espécie de recursos é do Superior Tribunal de Justiça.
A questão que se coloca no presente artigo é se o decreto federal emitido pelo Chefe do Poder Executivo da União, o Presidente da República, veiculador de normas do âmbito de sua competência legislativa, por força de previsão constitucional, se insere no conceito de lei federal a que aludem as três alíneas do inc. III do art. 105 da Constituição Federal e se a violação de seu conteúdo normativo pode ou não ser objeto de recurso especial.
O RECURSO ESPECIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
No campo do direito processual, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu inovadora distinção no tocante aos recursos excepcionais. Na Carta anterior, a competência para processar e julgar recursos contra decisões contrárias às normas federais, nessas compreendidas tanto as constitucionais quanto as infraconstitucionais, era de um único órgão jurisdicional, o Supremo Tribunal Federal. O recurso cabível para ambos os questionamentos, constitucional ou infraconstitucional, também era o mesmo, o recurso extraordinário.[1]
Percebendo o grande acúmulo de processos no STF e a inviabilidade de seu julgamento sobre questões jurídicas mais diversas, especialmente sobre a legislação federal infraconstitucional[2], o constituinte de 1988 empreendeu esforços na criação de uma nova sistemática recursal, separando o julgamento dos recursos excepcionais em duas espécies: as questões constitucionais continuaram sendo objeto de recurso extraordinário e a competência para seu julgamento do Supremo Tribunal Federal[3], enquanto as decisões violadoras da legislação federal (infraconstitucional) passaram a ser objeto do recurso especial, criando-se o Superior Tribunal de Justiça como órgão competente para o seu julgamento.[4]
A partir daí o STJ, ora intitulado Tribunal da Cidadania[5], passou a ser o órgão jurisdicional constitucionalmente incumbido de zelar pela observância da legislação federal e conferir a melhor interpretação para sua aplicação em âmbito nacional.
HIPÓTESES DE CABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL
Prevê o art. 105, inc. III da CF/88, que compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004); c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
O objetivo do presente artigo, como já explicitado, é analisar se o decreto federal, emitido pelo Presidente da República, se enquadra em algumas das espécies normativas elencadas no referido dispositivo constitucional e, em caso positivo, em qual delas e, portanto, se é cabível ou não o recurso especial contra a decisão de tribunal que contrariar seu conteúdo.
Vale ressaltar que o Código de Processo Civil de 2015, instituído pela Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, disciplinou diversos aspectos do processamento do recurso especial, a partir da Seção II do Capítulo VI (art. 1.029 e ss.), mas as alterações infraconstitucionais por ele operadas não influem no exame da temática do presente artigo, o cabimento do referido recurso, cujas hipóteses são integralmente disciplinadas pela Constituição Federal.
CONCEITO E FUNÇÃO DO DECRETO PRESIDENCIAL
Para a conceituação do decreto presidencial, sua natureza jurídica e função no direito brasileiro, valemo-nos, primeiramente, das lições da doutrina administrativista. De acordo com o magistério de Maria Sylvia Zanella di Pietro, por exemplo (grifo no original):
Decreto é a forma de que se revestem os atos individuais ou gerais, emanados do Chefe do Poder Executivo (Presidente da República, Governador e Prefeito).
Ele pode conter, da mesma forma que a lei, regras gerais e abstratas que se dirigem a todas as pessoas que se encontram na mesma situação (decreto geral) ou pode dirigir-se a pessoa ou grupo de pessoas determinadas. Nesse caso, ele constitui decreto de efeito concreto (decreto individual); é o caso de um decreto de desapropriação, de nomeação, de demissão. [6]
Ainda segundo a ilustre doutrinadora, quando produz efeitos gerais, o decreto pode ser: regulamentar ou de execução, quando expedido com base no artigo 84, IV da Constituição Federal[7], para fiel execução da lei; e independente ou autônomo, quando disciplina matéria não regulamentada em lei, sendo que tal espécie, a partir da Constituição Federal de 1988, encontra-se restrito às hipóteses do art. 84, inc. VI, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 32/01 (organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos).
E prossegue Di Pietro afirmando que (grifos do original):
O decreto só pode ser considerado ato administrativo propriamente dito quando tem efeito concreto. O decreto geral é ato normativo, semelhante, quanto ao conteúdo e quanto aos efeitos, à lei.
Quando comparado à lei, que é ato normativo originário (porque cria direito novo originário de órgão estatal dotado de competência própria derivada da Constituição), o decreto regulamentar é ato normativo derivado (porque não cria direito novo, mas apenas estabelece normas que permitam explicitar a forma de execução da lei).[8]
Para Alexandre de Moraes, os regulamentos expedidos pelo Chefe do Poder Executivo, com fundamento no art. 84, inc. IV da CF, têm por finalidade precípua facilitar a execução das leis, removendo eventuais obstáculos práticos que podem surgir em sua aplicação e se exteriorizam por meio de decreto[9]. E cita que, na clássica lição do ex-Ministro Carlos Velloso:
Os regulamentos, na precisa definição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização do Estado, enquanto poder público. Editados pelo Poder Executivo, visam a tornar efetivo o cumprimento da lei, propiciando facilidades para que a lei seja fielmente executada. É que as leis devem, segundo a melhor técnica, ser redigidas em termos gerais, não só para abranger a totalidade das relações que nelas incidem, senão também, para pdoerem ser aplicadas, com flexibilidade correspondente, às mutações de fato das quais estas mesmas relações resultam. Por isso, as leis não devem descer a detalhes, mas, conforma acima ficou expresso, conter, apenas, regras gerais, Os regulamentos, estes sim, é que serão detalhistas. Bem por isso leciona Esmein, são eles prescrições práticas que tÊm por fim preparar a execução das leis, completando-as em seus detalhes, sem lhes alterar, todavia, nem o texto, nem o espírito[10].
Percebe-se, portanto, que o decreto presidencial, embora tenha sempre a natureza de ato jurídico de direito público, pode ter natureza de ato administrativo, com efeitos concretos e direcionado a pessoas ou bens específicos (como no caso dos decretos de desapropriação) ou de ato normativo, isto é, veiculador de normas gerais e abstratas, destinadas a pessoas indistintas, como no caso dos decretos regulamentares.
Essa distinção é importante na análise do cabimento de recurso especial relativo à aplicação do decreto, como veremos adiante.
ENQUADRAMENTO DA VIOLAÇÃO AO DECRETO PRESIDENCIAL NAS HIPÓTESES DO INC. III DO ART. 105 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Postas as premissas acima, importa perquirir se a decisão judicial que contraria o decreto presidencial pode ser inserida entre as hipóteses de cabimento do recurso especial, previstas nas alíneas do inc. III do art. 105 da Constituição, do que se faz necessário identificar se o decreto se insere no conceito de lei federal a que aludem as alíneas a (contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência), b (julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal - redação dada pela Emenda Constitucional nº 45) e c (der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal).
Quanto à referida expressão (lei federal), esclarece Perseu Gentil Negrão:
Assim se consideram todas as leis emanadas do Poder Legislativo da União. Em regra, sua ação e eficácia se exercem sobre todo o território da República. Entretanto, o caráter de federal, que lhe é dado, não advém da condição de sua obrigatoriedade e aplicação em todo o território nacional. Decorre da condição de ter sido decretada pelos poderes federais, para regular matéria cuja competência é atribuída ao Congresso Nacional. Dessa forma, são federais todas as leis que somente possam ser instituídas pelo Congresso Nacional, não importando, assim, a natureza da matéria que por elas se institua[11].
Para José Afonso da Silva, no entanto:
Será lei federal quando tendo origem federal tiver também natureza de direito federal, isto é, quando se enquadrar na competência normal da União, quando versar matéria da competência legislativa dos órgãos federais[12].
O decreto não é lei. Ao menos não em sentido estrito, ou no sentido previsto no art. 59, incs. II a IV, e nos arts. 61 a 69 da CF. Indubitavelmente, porém, pode ser instrumento veiculador de normas e, por ser expedido por autoridade federal, é instrumento normativo federal. A questão que se coloca é: sendo ato normativo federal, pode ser enquadrado como lei federal, em sentido amplo, para efeitos de cabimento do recurso especial?
Para Araken de Assis[13] a resposta à pergunta acima é positiva, conforme se extrai de suas lições (grifos nossos):
Resta estabelecer o que se entende por lei federal para fins de cabimento do recurso. Em princípio, prevaleceu o entendimento de que abrangeria toda regra de direito produzida pela União Federal. Por óbvio, abarca as espécies normativas ortodoxas do art. 59, II a VI, da CF/1988: leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos. E a expressão examinada abrange os decretos e regulamentos do Presidente da República (art. 84, IV, in fine, e VI, a e b, da CF/1988). Leis estrangeiras porventura aplicáveis a litígios julgados no Brasil também se incluem na órbita sob foco. Todavia, não formam questões federais relevantes para controle da integridade na interpretação e na aplicação as portarias, os avisos, as circulares e as resoluções administrativas às quais a Administração outorga natureza normativa. Nesse sentido, decidiu a 4ª Turma do STJ: Portaria ministerial e resolução normativa não se qualificam como lei federal na acepção em que empregada a expressão na alínea a do inciso III do art. 105 da Constituição[14].
No mesmo sentido, Daniel Amorim Assumpção Neves:
Por lei federal a doutrina entende que o legislador está a se referir às leis de abrangência territorial nacional, incluídas as leis nacionais e federais, não importando a espécie de lei, de modo que estão abrangidas a lei complementar, a lei ordinária, lei delegada, decreto-lei, decreto autônomo e até mesmo a medida provisória, que tecnicamente não é lei, mas é entendida com a mesma força normativa. Excluem-se da previsão legal as portarias ministeriais, as resoluções normativas, as normas de regimento interno de tribunais e as súmulas. A expressa previsão de tratado, que também deve ser interpretado de forma ampla, abrangendo ajuste, acordo, compromisso e tratado strcito sensu, decorre da regra de que o tratado internacional, quando incorporado ao ordenamento jurídico, tem força de lei ordinária, espécie de lei federal[15].
Antigo julgamento do Superior Tribunal de Justiça já indicava (grifo nosso) que na expressão lei federal estão compreendidos apenas a lei, o decreto, o regulamento e o direito estrangeiro (AgRg 21.337-DF, DJ 03.08.92), rel. Min. Garcia Vieira).
Aliás, traduz bem esse entendimento a conceituação dada pelo Código Tributário Nacional[16], ao estabelecer em seu art. 96 (grifos nossos) que:
Art. 96. A expressão "legislação tributária" compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes.
Misael Montenegro Filho[17] sucintamente limita a conceituação de lei federal a: (a) lei federal em sentido estrito, dizendo respeito a direito federal, ou seja, aplicado em todo o território nacional, não em localidade específica, como, por exemplo, no Distrito Federal; (b) decreto federal; e (c) regulamento federal. De outro lado, exclui do conceito de lei federal as portarias, circulares, resoluções, instruções normativas, provimentos, convênios, regimentos internos dos tribunais e as súmulas.
Parece, portanto, não haver dissenso na doutrina quanto ao enquadramento do decreto presidencial como espécie de lei federal, para o cabimento do recurso especial, com fundamento no art. 105, III, a da CF. Na jurisprudência, o entendimento também não é diferente, como se observa na seguinte ementa:
EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO A DECRETO PRESIDENCIAL. CABIMENTO. COMUTAÇÃO DE PENA. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO AOS DELITOS NÃO HEDIONDOS. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 9º E 10 DO DECRETO N. 4.011/2001. PRECEDENTES DO STJ. DECISÃO AGRAVADA RECONSIDERADA. RECURSO IMPROVIDO.
1. Para efeito de cabimento de recurso especial (CF, art. 105, III), compreendem-se no conceito de lei federal os atos normativos (de caráter geral e abstrato) produzidos por órgão da União com base em competência derivada da própria Constituição, [...] como os decretos autônomos e regulamentares expedidos pelo Presidente da República (REsp 787.396/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/05/2009, DJe 18/05/2009).
2. A comutação somente pode ser negada nas hipóteses expressamente indicadas no decreto presidencial, não alcançando delitos não relacionados.
3. Interpretando os arts. 9º e 10 do Decreto n. 4.011/2001 extrai- se a regra de que estão excluídas da comutação apenas as infrações nele previstas, possibilitando que os delitos não delineados taxativamente no rol possam ser alcançados pelo benefício.
Precedentes do STJ.
4. Decisão agravada reconsiderada. Recurso especial improvido.
(AgRg no REsp 859.349/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/02/2015)
PROCESSUAL CIVIL. COMPENSAÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO. RECURSO ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADO. SÚMULA 13/STJ. CONCEITO DE LEI FEDERAL. SÚMULA 211/STJ. POSSIBILIDADE DE LANÇAMENTO.
(...)
2. A jurisprudência assentada no STJ considera que, para efeito de cabimento de recurso especial (CF, art. 105, III), compreendem-se no conceito de lei federal os atos normativos (= de caráter geral e abstrato) produzidos por órgão da União com base em competência derivada da própria Constituição, como são as leis (complementares, ordinárias, delegadas) e as medidas provisórias, bem assim os decretos autônomos e regulamentares expedidos pelo Presidente da República. Não se incluem nesse conceito os atos normativos secundários produzidos por autoridades administrativas, como são as instruções normativas da SRF.
(...)
(REsp 787.396/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/05/2009, DJe 18/05/2009)
Fica clara, diante da conceituação doutrinária do decreto presidencial, bem como do tratamento jurisprudencial dado ao termo lei federal do art. 105, III, a, a função integrativa e dependente do decreto regulamentar em relação à lei, sem a qual não tem fundamento de validade, nem eficácia. Tal premissa é de suma importância na análise do cabimento do recurso especial contra decisão violadora das normas regulamentares veiculadas através de decreto presidencial, bem como para seu enquadramento entre as hipóteses de fundamento do referido recurso.
É que, se o decreto regulamentar tem a função de integrar a lei federal, dando-lhe execução prática e pormenorizada, natural concluir, por uma questão de congruência do ordenamento federal, que o mesmo também integra a legislação federal em sentido amplo e o conceito de lei federal da alínea b do inc. III do art. 105 da Constituição Federal.
Em outras palavras, se a função do decreto regulamentar é complementar a lei federal que o fundamenta, é certo que o mesmo integra a legislação federal, inclusive para os efeitos do cabimento do recurso especial.
De outro lado, têm-se como pacífica a exclusão das portarias, circulares, resoluções, instruções normativas, provimentos, convênios, regimentos internos dos tribunais e as súmulas do conceito de lei federal. A razão para isso remete à distinção dos atos normativos federais regulamentares da lei (decretos regulamentares) dos concretamente executivos dos mandamentos legais ou organizadores da administração pública (portarias, circulares, ordens de serviço, alvarás etc). Também da decorrente distinção que há entre tais espécies na veiculação de normas gerais e abstratas, em complemento à legislação federal infraconstitucional (caso dos decretos regulamentares), da concretização de atos do poder público direcionadas a casos ou pessoas específicas (demais instrumentos jurídicos da administração pública). Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EXAME DA OAB. RECURSO ESPECIAL. ARREDONDAMENTO DE NOTA DA PROVA OBJETIVA. CONCEITO DE "LEI FEDERAL" PARA FINS DO ART. 105, III, DA CRFB. PROVIMENTO Nº 81/96. ATO NORMATIVO DE AUTARQUIA . NÃO-INCLUSÃO. SÚMULA Nº 07/STJ.
1. O conceito de lei federal, para efeito de admissibilidade do recurso especial na jurisprudência assentada no STJ, compreende regras de caráter geral e abstrato, produzidas por órgão da União com base em competência derivada da própria Constituição, como o são as leis (complementares, ordinárias, delegadas) e as medidas provisórias, bem assim os decretos autônomos e regulamentares expedidos pelo Presidente da República (Emb.Decl. no Resp 663.562, 2ª Turma, Min. Castro Meira, DJ de 07.11.05). Não se incluem nesse conceito os atos normativos secundários produzidos por autoridades administrativas, tais como resoluções, circulares e portarias (Resp 88.396, 4ª Turma, Min. Sálvio de Figueiredo, DJ de 13.08.96; AgRg no Ag 573.274, 2ª Turma, Min. Franciulli Netto, DJ de 21.02.05), instruções normativas (Resp 352.963, 2ª Turma, Min. Castro Meira, DJ de 18.04.05), atos declaratórios da SRF (Resp 784.378, 1ª Turma, Min. José Delgado, DJ de 05.12.05), ou provimentos da OAB (AgRg no Ag 21.337, 1ª Turma, Min. Garcia Vieira, DJ de 03.08.92).
2. Inocorre afronta à Lei nº 8.906/94, quando o aresto recorrido limita-se a discutir a controvérsia sob o enfoque interpretativo de Provimento, acerca da impossibilidade de acolher o pedido mandamental no que diz respeito ao arredondamento de nota da prova objetiva.
3. Deveras, a matéria implicaria em invasão fático-probatória, vedada ao STJ pela Súmula nº 07.
4. Recurso parcialmente conhecido, e nessa parte desprovido.
(REsp 797.272/SC, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/08/2006, DJ 18/09/2006, p. 282, REPDJ 07/11/2006, p. 253)
Neste outro caso, para excluir a interposição de recurso especial por violação de Resolução:
CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. PRESTAÇÕES INDEXADAS AS TAXAS DE CDB. TEORIA DA IMPREVISÃO.
Ação visando o reajustamento das prestações devidas por arrendatário mercantil, em contrato firmado durante a vigência do plano cruzado, alterando-se o critério contratual de indexação segundo a maior taxa de captação dos CDBS. Procedência da demanda, nas instancias ordinárias.
A aplicação da teoria da imprevisão, em determinado caso concreto, não contraria os artigos 7. 8. da lei 6099/74, nem o artigo 82 do código civil.
Recurso especial. Admissibilidade.
Não se admite recurso especial sob arguição de contrariedade a resoluções administrativas, mesmo que de natureza normativa. a expressão 'lei federal', do artigo 105, III, 'a', da Constituição Federal, abrange apenas as leis e os respectivos regulamentos de aplicação.
Não ocorrência de dissídio pretoriano, ante os dessemelhantes pressupostos do aresto recorrido e dos arestos paradigma.
Recurso especial não conhecido.
(REsp 9.182/PR, Rel. Ministro ATHOS CARNEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/1992, DJ 08/09/1992, p. 14366)
Aqui, para afastar o cabimento em relação à Portaria:
PROCESSUAL CIVIL. ALEGADA VIOLAÇÃO A PORTARIAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 284/STF. MATÉRIA CONSTITUCIONAL.
1. Não pode ser conhecido recurso especial que indica ofensa a dispositivos de Portaria, por não estar esta espécie de ato normativo compreendida na expressão "lei federal", constante da alínea a do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal.
2. A ausência de indicação do modo como teria ocorrido a suposta ofensa à legislação federal não autoriza o conhecimento do recurso especial pela alínea a do permissivo constitucional (Súmula 284/STF).
3. O acórdão recorrido assenta sobre fundamentação de índole eminentemente constitucional, razão pela qual, estando a competência do STJ, delimitada pelo art. 105, III, da Constituição, restrita à uniformização da legislação infraconstitucional, é inviável o conhecimento do recurso especial.
4. Recurso especial não conhecido.
(REsp 640.758/AL, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 07/11/2006, p. 235)
Há também exemplos sobre convênios administrativos (AgRg 36323), resoluções ministeriais (REsp 41745, AgRg 737624, REsp 809329), regimento de tribunal e súmula (Súmula 399 do STF, REsp 21401), entre outros atos administrativos (REsp 879221 e 782699).
O entendimento extraível das decisões do STJ permite concluir que o decreto presidencial passível de violação em decisões de tribunais, para o cabimento do recurso especial, somente pode ser o que veicula conteúdo normativo, de caráter geral e abstrato, ou seja, o decreto regulamentar. Decretos do Chefe do Poder Executivo com conteúdo diverso, isto é, individual e concreto, são meros atos administrativos e, portanto, insuscetíveis de impugnação, por sua violação, em sede de recurso especial.
De outra banda, Daniel Barbosa Lima Faria Corrêa de Souza e Letícia Barbosa Lima de Souza asseveram importante ponto sobre os decretos emanados da Presidência da República, com fundamento diretamente na Constituição Federal, sem intermediação legal, ressalvando o cabimento do recurso especial com fundamento na alínea a do inc. III do art. 105 da CF:
Outrossim, quando estivermos tratando de decretos ou regulamentos autônomos, também será cabível recurso especial. Isso porque tais atos têm seu fundamento de validade fulcrado na própria Constituição Federal. Portanto, diferem dos decretos ou regulamentos de execução, os quais buscam sua fonte de validade em lei infraconstitucional[18].
Importante repisar que os decretos autônomos são editados como fontes normativas, não havendo previsão para decretos autônomos de efeitos concretos. Nesse passo, ainda, interessante exemplo de decreto autônomo (para além do previsto no art. 84, VI) é o decreto de indulto, porquanto também trata de hipótese de decreto presidencial com fundamento diretamente constitucional (art. 84, XII). O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de examinar a admissibilidade de recurso especial manejado contra decisão de tribunal apontada como violadora de norma contida nessa espécie de decreto, entendendo sempre pelo seu cabimento.
RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE VIGÊNCIA. PENAL. INDULTO. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. DECRETO Nº 2.002/96. INTERPRETAÇÃO DA EXPRESSÃO "CRIMES REFERIDOS NA LEI Nº 8.072".
1. A expressão crimes referidos na Lei nº 8.072/90 inserta no Decreto Presidencial nº 2.002/96 significa que devem ser excluídos do indulto apenas os condenados por crimes hediondos. O atentado violento ao pudor somente tem esta qualificação quando dele resultar lesão corporal de natureza grave ou morte. Fora destas hipóteses não há falar em crime hediondo, não podendo ser negado ao sentenciado o indulto pleiteado.
2. Recurso não conhecido.
(REsp 172.524/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 03/11/1998, DJ 30/11/1998, p. 218)
RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO PENAL. COMUTAÇÃO. ESPÉCIE DE INDULTO PARCIAL. IMPOSSIBILIDADE DE COMUTAÇÃO PARA CONDENADOS POR CRIME HEDIONDO.
1. É cediço nesta Corte o entendimento de que a comutação da pena é espécie de indulto parcial, não podendo ser concedida nos casos em que a lei excepciona; na espécie, o Decreto n.º 2.838/98 veda, expressamente, a concessão de indulto aos condenados por delito hediondo;
2. Recurso especial provido.
(REsp 610.190/SP, Rel. Ministro PAULO MEDINA, Rel. p/ Acórdão Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 30/05/2006, DJ 25/06/2007, p. 310)
RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO PENAL. FUGA. FALTA GRAVE. PERDA DOS DIAS REMIDOS. APLICAÇÃO DO ART. 127 DA LEI N.º 7.210/84. SÚMULA VINCULANTE N.º 9 DO PRETÓRIO EXCELSO. LEI N.º 12.433/2011. NOVA REDAÇÃO AO ART. 127 DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS. PERDA DE ATÉ 1/3 (UM TERÇO) DOS DIAS REMIDOS. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. APLICABILIDADE. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PARA OBTENÇÃO DE BENEFÍCIOS PELO CONDENADO. PROGRESSÃO DE REGIME: CABIMENTO. LIVRAMENTO CONDICIONAL E INDULTO: AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS DE OFÍCIO.
1. A perda dos dias remidos em razão do cometimento de falta grave pelo sentenciado não ofende o direito adquirido ou a coisa julgada. O instituto da remição, como prêmio concedido ao apenado em razão do tempo trabalhado, gera apenas expectativa de direito, sendo incabível cogitar-se de reconhecimento de coisa julgada material. Aplicação da Súmula Vinculante n.º 9 do Supremo Tribunal Federal.
2. A partir da vigência da Lei n.º 12.433, de 29 de junho de 2011, que alterou a redação ao art. 127 da Lei de Execução Penal, a penalidade consistente na perda de dias remidos pelo cometimento de falta grave passa a ter nova disciplina, não mais incidindo sobre a totalidade do tempo remido, mas apenas até o limite de 1/3 (um terço) desse montante, cabendo ao Juízo das Execuções, com certa margem de discricionariedade, aferir o quantum, levando em conta "a natureza, os motivos, as circunstâncias e as conseqüências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão", consoante o disposto no art. 57 da Lei n.º 7.210/84.
3. Por se tratar de norma penal mais benéfica, deve a nova regra incidir retroativamente, em obediência ao art. 5.º, inciso XL, da Constituição Federal.
4. Ademais, verifica-se flagrante ilegalidade, a ensejar a concessão de habeas corpus de ofício.
5. O cometimento de falta grave, embora interrompa o prazo para a obtenção do benefício da progressão de regime, não o faz para fins de concessão de livramento condicional, por constituir requisito objetivo não contemplado no art. 83 do Código Penal. Súmula n.º 441 deste Tribunal.
6. Só poderá ser interrompido o prazo para a aquisição do benefício do indulto, parcial ou total, se houver expressa previsão a respeito no decreto concessivo da benesse. Precedentes.
7. Recurso especial parcialmente provido para, cassando o acórdão recorrido, determinar o retorno dos autos ao Juízo de Execuções, para que complete o julgamento, aferindo novo patamar da penalidade quanto à perda dos dias remidos, à luz da superveniente disciplina do art. 127 da Lei de Execuções Penais. Habeas corpus concedido, de ofício, para restringir a interrupção do prazo somente para fins de progressão de regime.
(REsp 1238456/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 01/12/2011)
O cabimento de recurso especial contra a decisão de tribunal violadora do decreto de indulto se extrai, também, a contrariu sensu, da jurisprudência consolidada no STJ do não cabimento de habeas corpus substitutivo de recurso especial, como decidiu o referido tribunal reiteradas vezes em casos relacionados ao benefício penal em questão, a exemplo do seguinte julgado:
EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. NOVA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL. INDULTO. DECRETO 8.172/2013. AUSÊNCIA DE PARECER PRÉVIO DO CONSELHO PENITENCIÁRIO. IRRELEVÂNCIA. REQUISITO NÃO EXIGIDO PELO NORMATIVO PRESIDENCIAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
I - A Primeira Turma do col. Pretório Excelso firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus substitutivo ante a previsão legal de cabimento de recurso próprio (v.g.: HC n.109.956/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 11/9/2012; RHC n.121.399/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 1º/8/2014 e RHC n.117.268/SP, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 13/5/2014). As Turmas que integram a Terceira Seção desta Corte alinharam-se a esta dicção, e, desse modo, também passaram a repudiar a utilização desmedida do writ substitutivo em detrimento do recurso adequado (v.g.: HC n.284.176/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 2/9/2014; HC n. 297.931/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 28/8/2014; HC n. 293.528/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 4/9/2014 e HC n. 253.802/MG, Sexta Turma, Rel. Min.Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 4/6/2014).
II - Portanto, não se admite mais, perfilhando esse entendimento, a utilização de habeas corpus substitutivo quando cabível o recurso especial, situação que implica o não conhecimento da impetração. Contudo, no caso de se verificar configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, recomenda a jurisprudência a concessão da ordem de ofício.
III - Por absoluta disposição literal do art. 5º do Decreto 8.172/2013, apenas as faltas graves praticadas pelo sentenciado nos últimos 12 (doze) meses que antecederam a publicação do ato presidencial impossibilitam a concessão da comutação da pena.
IV - In casu, o paciente não praticou falta grave nos doze meses que antecedem o citado Decreto, de se concluir que houve imposição de requisito não estabelecido no referido ato normativo, constituindo-se em flagrante ilegalidade, porquanto é vedado ao Poder Judiciário estabelecer requisitos diversos dos previstos no Decreto presidencial.
Habeas Corpus não conhecido.
Ordem concedida de ofício para cassar o v. acórdão prolatado pelo eg. Tribunal de origem, mantendo-se a r. decisão de primeiro grau pelos seus próprios fundamentos.
(HC 334.246/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 10/11/2015, DJe 26/11/2015)
Se não é cabível o habeas corpus contra decisão de tribunal violadora das normas do indulto objeto de decreto presidencial por ser então cabível o recurso especial, a contrario sensu o decreto é espécie de lei federal, nos termos do art. 105, III, a da CF, como já demonstrado.