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Entre o usuário e o traficante de drogas ilícitas

Agenda 19/10/2022 às 15:00

Abordamos o uso das drogas ilícitas maconha e cocaína na perspectiva do sistema de justiça criminal, propriamente na atuação de juízes responsáveis pela aplicação da lei.

Resumo: Neste artigo aborda-se o uso e o tráfico de maconha e a cocaína – na perspectiva do Sistema de Justiça Criminal, propriamente na atuação de juízes responsáveis pela aplicação da lei que criminaliza as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Tem por objetivo a identificação das categorias do dependente, do usuário recreativo, do usuário-traficante e do traficante mediante adoção dos métodos exploratório e comparativo entre proibicionismo adotado pelo Brasil e as políticas alternativas experimentadas pelo Uruguai, Colômbia, Portugal, com ênfase na quantidade e precificação das drogas ilícitas para diferenciar a destinação para consumo próprio.

Palavras-chave: Consumo de Drogas Ilícitas; Quantidade da Droga; Precificação.


Entre os opostos criminalização e a legalização ou descriminalização do consumo drogas, está a política adotada pelo Brasil, uma política híbrida de proibição, ou seja, que adota a vertente proibicionista defendida pela ONU ao tipificar como crime o porte ou a posse de substância entorpecente prevista em lei como ilícita e classificada como proibida por órgão oficial de Saúde Pública (BRASIL, 1998), mas que não comina pena privativa de liberdade e, sim, sanções pedagógicas, como advertência sobre os efeitos das drogas, medidas educativas de comparecimento a programas ou curso e, ainda, uma pena restritiva de direitos, consubstanciada em prestação de serviços à comunidade, que, na prática judiciária, pode ser convertida em prestação pecuniária relativa ao pagamento em dinheiro a entidade pública ou privada com destinação social (CP, art. 45 e 46).

No compasso da política brasileira sobre drogas ilícitas, encontra-se o Sistema de Justiça Criminal na condição de órgão estatal incumbido constitucionalmente de aplicar a lei derivada e inspirada nessa política, notadamente de coibir atos considerados ilícitos e impor cominações legais por meio de atos judiciais fundamentados em base probatória idônea, com preservação de direitos fundamentais previstos na Constituição, evitando a subjetividade que emerge de preconceitos e concepções prévias fundadas nos jargões da livre consciência ou do livre convencimento, sem qualquer cotejo analítico e/ou base empírica justificada.

O juiz criminal, parte integrante e essencial desse Sistema, precisa se despir da interpretação moral acerca do uso de drogas, uma vez que essa roupagem implica conclusões judiciais movidas por padrões éticos ou por crenças sociais de que apenas medidas coercitivas são suficientes e satisfatórias quando, indubitavelmente, o uso de drogas possui como matrizes o consumismo e as desigualdades sociais, identificadas pela falta de acesso ao trabalho e às políticas sociais. A mudança da cultura jurídica sobre drogas, entretanto, não resulta apenas de experiências simbólicas compartilhadas e de tudo o que é capaz de mantê-la (JAEGER; SELZNICK, 1964).

A cultura jurídica não se renova com a historicidade jurídica, engendrada e articulada na dialética da vida produtiva e das relações sociais, em um contexto interpretativo revelado pelo senso comum legislativo e pelo ritualismo dos procedimentos judiciais, em estrutura normativa sistematizada e permanente (WOLKMER, 2003), o que se explica pelo fato de o Sistema de Justiça funcionar com profissionais e operadores do Direito que aprendem a raciocinar pela dialética da contradição. A academia ensina a interpretação das leis e o uso da doutrina e da jurisprudência de modo a prepará-los para a lide ou o conflito, isto é, para uma disputa de interesses qualificada por uma pretensão resistida em que duas forças opostas lutam entre si e só pode haver um vencedor.

A legislação, desde as Ordenações Filipinas (1603), passando pelo Código Criminal do Império de 1830, pelo Regulamento de 1851, pelo Código Penal de 1890, por dezenas de decretos, pelo Código Penal de 1940, pela Lei nº 5.726/1971 até a Lei nº 6.368/1976, com pequenas modificações posteriores, sempre transmitiu a ideia de que era necessário estabelecer um confronto com o usuário de drogas. As normas jurídicas dispuseram sobre prisões cautelares e penas privativas de liberdade para distinguir o cidadão daquele que consumia drogas, fomentando uma cultura repressiva que orientou juízes e tribunais no decorrer da história. Esse modelo repressivo-punitivo, pautado em uma concepção de repulsa contra as drogas, não se limitava apenas ao traficante, atingia também todo aquele que consumia droga, dependente ou usuário recreativo, por força da legislação vigente, em que pese as modulações aos comandos internacionais da ONU, sobretudo da busca de distinção jurídica entre as categoriais tanto do usuário quanto do traficante.

Ocorre que nos cursos de Direito se aprende que o que não está nos autos de processo não está no mundo, cabendo aos aplicadores do direito fazer a subsunção do fato à norma e aplicar a lei aos casos concretos. O apego restrito aos ditames da lei é reduzido aos autos do processo e conformado aos limites da ocorrência policial, ignorando-se os verdadeiros problemas (fisiológicos, psicológicos, pessoais, familiares) ou interesses (curiosidade, ser aceito por um grupo) que levaram alguém a procurar a droga, tornando-se dependente ou usuário dela como forma de preencher carências e necessidades de sua existência.

No Sistema de Justiça Criminal, a visão de abstinência, encarceramento ou internação conduz a questão do uso de drogas ao preconceito. Este, por sua vez, conduz ao prejulgamento da causa que envolve apreensão de drogas e impinge no pensar e no agir do juiz a tendência de coerção por prevalência do elemento criminoso e subsunção do fato tido por ilícito à norma, com a consequente aplicação das medidas processuais, nem sempre juridicamente corretas, ou mesmo justas na aspiração à boa aplicação da lei, e quiçá legítimas na ótica da concepção humanista, visto que a pedagogia, a medicina, a psicologia, a economia, a política, e talvez a própria moral, não admitem os atos ou as condutas antinaturais, anti-individuais e antissociais de prender, isolar e segregar (LYRA, 1963). Dessa forma, acredita-se que uma atuação integrada dos Sistemas de Saúde e de Justiça possibilitaria a melhor compreensão da política sobre drogas, e, ainda, que todas as pessoas deveriam ser educadas, conscientizadas e instruídas acerca das drogas.

A previsão legal de exame toxicológico obrigatório de larga janela de detecção em processo penal de tráfico de droga, quando há alegação ou dúvida judicial sobre dependência química, seria uma medida de política criminal determinante para comprovação da aplicação correta da Lei de Drogas ante o possível quadro jurídico de inimputabilidade ou semi-imputabilidade penal (CP, art. 26; Lei de Drogas, art. 45), em razão da incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

A medida processual, inclusive, envolve o ônus probatório clássico do Direito de que quem alega tem o dever de provar[1], de modo a excluir do cenário passivo da demanda penal o dependente químico, além de possibilitar a detecção do uso, seja para a correlação das sanções restritivas de direito ao consumidor não adicto, seja para a repressão penal proporcional ao usuário-traficante, seja para o afastamento da mera alegação de consumo (sem prova apta) pelo traficante ocasional ou profissional. Cabe aqui lembrar que dirigir sob a influência de substância psicoativa é crime autônomo (Código de Trânsito, art. 302, § 2º), e, de igual forma, conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem (Lei de Drogas, art. 39).

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Convém ressaltar que os parâmetros subjetivos previstos na Lei de Drogas para classificação do usuário podem ser desvirtuados por preconceitos ou tendências do juiz no enquadramento do pequeno traficante, do traficante ocasional (tráfico privilegiado) e do usuário-traficante, sobretudo pela ideologia da diferenciação (social) e da seletividade penal, de modo a incluir indevida ou inadequadamente, na conceituação do tráfico, o consumo compartilhado e a aquisição de drogas em conjunto para consumo próprio. Conforme se pôde extrair das diversas análises da Lei nº 11.343/2006, constantes de referências bibliográficas, não há parâmetros seguros de diferenciação entre as figuras do usuário e do pequeno, médio ou grande traficante. Não por outro motivo a prática judiciária tem demonstrado, entre inúmeras situações dúbias de destinação para uso próprio ou mesmo compartilhado, que a posse ou o porte de droga, em locais de comercialização ou de consumo coletivo, são invariavelmente interpretados como tráfico.

Nos regimes jurídicos comparados, há similitudes normativas e também convergências de procedimentos quanto o controle do tráfico de drogas. Em relação ao consumo, verificou-se, na investigação comparativa, um signo comum a todos: a quantidade de droga para categorizar a destinação da droga para uso próprio. Trata-se de uma tendência mundial, consoante se pode constatar no Seminário de Peritos sobre Quantidades Limites, realizado conjuntamente pelo Transnational Institute (TNI) e pelo European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA) em janeiro de 2011[2], na cidade de Lisboa. Essa vertente está inserida na política de legalização da cannabis no Uruguai, na despenalização da cocaína na Colômbia e na descriminalização de ambas em Portugal.

A distinção jurídica entre as categorias usuário e traficante, tendo a quantidade de droga apreendida como critério objetivo preponderante para julgamento de casos judiciais, seria a medida legal ou regulatória que conduziria à redução substantiva do encarceramento cautelar e, além disso, modularia penalidades conforme a lesividade social ou dano coletivo. Sobretudo, permitiria a classificação da terceira categoria, (a do usuário-traficante), mediante subtração da quantidade de droga destinada para uso próprio do total apreendido, observando se o remanescente ultrapassa os limites de tolerância do organismo humano. A quantificação objetiva levaria à aceitação jurídica de porte/posse para consumo pessoal, desde que o peso da droga apreendida não excedesse os limites fixados dentro de balizas fisiológicas do indivíduo adulto[3].

Nas ruas, a cocaína é comercializada em pinos, um tipo de embalagem de plástico para endolação, embrulho comum na comercialização da cocaína representado por uma cápsula, cujo conteúdo costuma ser, no mínimo, 1g; e em gelinho ou sacolé; embalagem também utilizada para acondicionamento da droga de 25g, denominada de papelote por ser feita com papel (FORMIGONI, 2014).

Importante ponderar que a quantidade a ser considerada como critério para destinação pessoal não poderia olvidar os riscos sociais de transtornos psicóticos (maconha) e overdoses (cocaína e derivados).

Não cabe às Ciências Sociais divagar sobre as doses máximas de substâncias entorpecentes para consumo humano, seja decorrente de vício, seja para uso recreativo, mas, sim, à Medicina.

Aqui quatro preocupações com a saúde individual e coletiva relacionadas à cocaína e a seus derivados. A primeira envolve a transformação da pasta de cocaína pura no pó para ser aspirada em razão do acréscimo de outras substâncias (talco, aspirina em pó, farinha de trigo, açúcar, cal e pó de mármore) para aumentar o volume e/ou rendimento da droga (FORMIGONI, 2014), fato que poderia também evidenciar o tráfico de pequenas quantidades pela fraude, falsificação ou simulação do produto. A segunda preocupação relaciona-se ao crack, cuja nocividade é potencializada pelas misturas de substâncias tóxicas para substituir o bicarbonato de sódio, como vermífugo para tratamento de parasitas, anestésicos, anti-inflamatórios, cal, cimento, querosene, ácido sulfúrico, acetona, amônia, sílica e soda cáustica, que não apenas debilitam física e mentalmente o organismo, mas colocam seus consumidores em estado de permanente delírio e alucinação, levando a situações extremas de fissuras que provocarão agressividade, obsessão e descontrole sexual, culminando em violência, subtrações (roubo e furto) e prostituição sem os cuidados mínimos de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis (MALDANER, 2011). A terceira preocupação é a de que o crack provoca lesões no cérebro, causando perda gradativa da função dos neurônios, resultando em deficiências de memória e de concentração, baixo limite para frustração e dificuldade de ter relacionamentos afetivos. O tratamento permite reverter parte dos danos, mas às vezes o quadro é irreversível (AGÊNCIA SENADO, 2012). A quarta preocupação diz respeito à possibilidade concreta de recorrentes overdoses, que podem resultar em sequelas neurológicas graves, ou em mortes quando se consome quantidade superior àquela que o organismo do usuário poderia suportar ou absorver para provocar os efeitos mentais ou emocionais. Pessoas diferentes respondem de forma diferente à mesma dose de uma droga, embora a tolerância de uma substância também dependa do seu uso repetido e das características genéticas, como altura, peso e condicionamento físico (FORMIGONI, 2014).

Curiosamente, a quantidade excedente ao limite máximo de consumo da substância psicotrópica poderia ser apurada dentro de um tempo de validade, ou seja, ancorado no correspondente período que ainda produzisse efeitos. Na gíria dos usuários de maconha, diz-se que o baseado é ruim quando perde a qualidade (gosto e potência). Sabe-se que a conservação de qualquer transformação química envolve temperatura, luminosidade, umidade, armazenamento adequado e tempo de perecimento. Um estudo orientado pela farmacologia poderia apontar a validade para o consumo de quantidade da droga em tempo determinado (LLAMAS; HART; SCHNEIDER, 1978).

Por outro lado, não se pode ignorar a quantidade comercializada nas ruas por gramas. Caso contrário, a indicação pode ter o efeito indesejado de aumentar os níveis de persecução ao consumo ou ao tráfico de pequena escala, mantendo-se o problema de classificação entre o usuário e o traficante, bem como não se firmando a identificação do usuário-traficante. Nesse ponto, merece destaque a previsão normativa do regime jurídico português ao reconhecer a figura do traficante-consumidor como aquele que não faz do tráfico uma forma de vida, mas a ele se dedica como forma de angariar meios para sustentar seu vício, seja dependente, seja mero usuário. Essa conduta é estabelecida como tipo privilegiado de crime, o que ocorre com base na quantidade de plantas, de substâncias ou de preparações cultivadas, detidas ou adquiridas, se excedem a quantidade necessária para o consumo médio individual. Não obstante, que a jurisprudência lusitana ressalva a possibilidade de se provar a destinação para consumo e a contraprova do perigo abstrato, ou seja, de que não houve, na conduta, propósito de atender o consumo de outrem (LOBO, 2021).

No Brasil, a matéria, tratada atualmente no § 2º do art. 28 da Lei nº. 11.343/2006, dispõe:

Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

O equívoco ou falha na compreensão da lei pelos agentes de persecução penal não elidem a obrigação do juiz em decidir o caso apresentado com base da Lei de Drogas.

Independentemente da criminalização ou não do porte ou da posse de drogas para o consumo pessoal, é imprescindível que se estabeleça um critério objetivo para distinguir consumo de tráfico.

A quantificação da droga permitiria a uniformização na aplicação da Lei de Drogas a partir de indicação por gramas das quantidades variáveis que, na jurisprudência, são expressas por adjetivos, tais como irrisória, ínfima, inexpressiva, pequena, considerável, grande, vultuosa e expressiva, entre outros.

Por certo, a discricionariedade policial na classificação do tráfico urbano seria drasticamente diminuida e a subjetividade judicial na avaliação das circunstâncias do fato, como local e condições em que se desenvolveu a ação, ao passo que as circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes do agente passariam a ser elementos secundários ou periféricos da subsunção normativa.

Seria evitada a odiosa seletividade penal ao sabor do preconceito social, que se materializa na discriminação de raça e de gênero, bem como em escolhas e opções ideológicas de agentes públicos, com vontades e sentimentos pessoais, que representam órgãos do Sistema de Justiça Criminal, Polícias, Ministério Público, Juízos de Direito e Tribunais de Justiça.

Atente-se que, no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 635.659, o Ministro Roberto Barroso assentou que, [...] independentemente de qualquer juízo que se faça acerca da constitucionalidade da criminalização, impõe-se a determinação de um parâmetro objetivo capaz de distinguir consumo pessoal e tráfico de drogas. A ausência de critério dessa natureza produz um efeito discriminatório, na medida em que, na prática, ricos são tratados como usuários e pobres como traficantes. E recomenda, à luz dos estudos e critérios existentes e praticados no mundo, recomenda-se a adoção do critério seguido por Portugal, que, como regra geral, não considera tráfico a posse de até 25 gramas de cannabis.[4]

Obviamente, esse critério referencial não impediria que o juiz, no caso concreto, entendesse que quantidades superiores fossem destinadas para uso próprio, nem que inferiores fossem valoradas como tráfico, estabelecendo-se, nesta hipótese, o ônus argumentativo do juiz, em decisão inteligível baseada em circunstâncias e elementos probatórios do fato. Poder-se-ia, nessa senda, adotar a quantidade fixada no Uruguai (40g para a maconha), ou as apontadas em trabalhos científicos específicos. Importa é que o parâmetro seja objetivo, e aplicável também à cocaína, que não é neutra, visto que produz efeito jurídico e social perceptível a todos os seguimentos que lidam com a questão das drogas.

A circunstância legal da quantidade da droga poderia, ainda, ser aperfeiçoada como critério somatório, qual seja a precificação das drogas no mercado clandestino para classificação de traficantes, instrumento relevante para graduação também do tráfico em pequena, média e grande escalada, extraindo-se maior certeza, assim, para separação das categorias dependente, usuário, usuário-traficante e traficante ocasional e profissional.

A partir dessa união ou junção [quantidade somada à precificação], é possível modular penalidades conforme a lesividade social ou dano coletivo e, sobretudo, classificar a terceira categoria perseguida, qual seja, a do usuário-traficante, mediante subtração da quantidade de droga destinada para uso próprio do total apreendido. Poderia se aceitar, juridicamente, o porte/posse para consumo pessoal desde que o peso da droga apreendida não excedesse os limites fixados dentro de balizas fisiológicas do indivíduo adulto, isto é, a quantidade remanescente não poderia ultrapassar os limites de tolerância do organismo humano.

Note-se que o critério objetivo da quantidade de droga, para distinguir o consumo do tráfico, não se reduz à política de prevenção para grupos vulneráveis ou pessoas em risco, tampouco às intervenções médicas e psicológicas, que objetivam evitar ou adiar o consumo de substâncias psicotrópicas, reduzir a intensidade e evitar a escalada para o consumo, de modo a preservar a política de despenalização do uso e da criminalização do tráfico, com singela edição de ato regulatório expedido pelo Ministério da Saúde, ou mesmo um novo anexo de portaria que defina medicamentos e substâncias controladas para a relação de drogas ilícitas e seus precursores no Brasil. É preciso considerar que a Lei de Drogas dispõe sobre a proibição das substâncias entorpecentes, mas reserva ao órgão oficial da saúde pública indicar quais são elas, no chamado fenômeno legislativo denominando norma em branco[5].

Na essência, a precisão em separar ou retirar aquele que consome drogas do Sistema de Justiça potencializa o tratamento da toxicodependência em regime ambulatorial, clínica geral, hospitais ou clínicas psiquiátricas, comunidades terapêuticas e centros residenciais de tratamento especializado, incluídos os métodos de redução de danos.

Outro ponto positivo no tocante à quantificação das drogas é o tratamento jurídico diferenciado entre pequenos e grandes traficantes, visto que o peso líquido possibilita aferir a produção e a comercialização, tendo como referência a precificação da droga para fins de: (1) decretação de prisão preventiva (leia-se encarceramento provisório) ou substituição por medidas cautelares alternativas; (2) dosimetria da pena justa, com preponderância da natureza e da quantidade da droga, do grau de envolvimento do criminoso no tráfico e do pertencimento ou não a organizações criminosas; (3) fixação do regime prisional fechado, semiaberto ou aberto na hipótese de pena privativa de liberdade, com conversão ou não em penas restritivas de direitos.

Frise-se que os elementos de configuração do tráfico privilegiado são objetivos (primariedade, ausência de antecedentes e não envolvimento em atividades ilícitas ou em organizações criminosas). Em uma acusação de tráfico, o silogismo para dedução de uma hipótese de tráfico privilegiado é mais singelo ou factível do que a desclassificação para uso próprio. Sem maiores incursões, a ausência do parâmetro objetivo para definição da quantidade máxima que o indivíduo pode portar para ser considerado usuário é fator que obsta as agências policiais e o Sistema de Justiça de determinarem desde os estereótipos quem será tido por consumidor e quem poderá ser considerado traficante para fins de imputação penal, em que pese a incidência de outras variantes que circundam o fato, além do grau de confiabilidade atribuída ao policial que efetua a apreensão, da validade da cadeia probatória (provas lícitas), da precisão de pesagem e da constatação da natureza da droga em laudo pericial.

Como mecanismo de diferenciação enseja também a construção de níveis de incidência do poder punitivo voltada à dedicação criminosa ou ao tráfico (antecedentes e reincidência) e, de igual forma, em relação às organizações criminosas, com reprovabilidade mais acentuada quando caracterizado tráfico interestadual e internacional.

Enfim, na ótica da liberdade do indivíduo, desde que ele não cause danos a outrem, a descrição de quantidades específicas, para uso ou consumo próprio, substitui a teoria da abstinência pela moderação, inclusive sob acompanhamento médico, a exemplo do tabaco, álcool e medicamentos controlados.

Certamente, o Sistema de Justiça Criminal, além de cumprir sua primordial função de julgar com imparcialidade, denodo e juridicidade, respeitados os princípios constitucionais da igualdade, presunção de inocência, proporcionalidade da pena e razoável duração do processo, eliminaria seu maior dilema ao interpretar a Lei de Drogas, resolvendo em sua integralidade, com foco amplificado e dirigido ao ser humano.

Por efeito, acredito que esses critérios identificados aumentam a racionalidade e reduzem a discricionariedade, bem como delimitam a interpretação sobre os valores abstratos e os conceitos indeterminados que conduzem ao erro judiciário e a injustiça social.


[1] CPC, art. 373. “O ônus da prova incumbe a quem alega”. Adágios jurídicos:  Allegatio partis non facit jus - A alegação da parte não faz direito; Actori uncumbit ônus probandi – Ao autor cabe a obrigação de provar.

[2] TNI-EMCDDA Expert Seminar. Este seminário de especialistas compõe uma série de diálogos técnicos sobre políticas de drogas da Transnational Institute (TNI), que se estende pela América Latina, pela Europa e pelo Sudeste Asiático, para gerar aperfeiçoamento de leis domésticas e internacionais e disseminar as melhores práticas de jurisdição criminal nos países participantes. Disponível em: https://www.tni.org/files/publication-downloads/thresholds-expert-seminar.pdf. Acesso em: 28 jul. 2021.

[3] Sobre o uso e tolerância a drogas psicotrópicas, veja publicações da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Departamento de Psicobiologia, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP) e Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) Disponível em: https://www.supera.org.br/material/.

[4] Andamento Processual do sítio eletrônico do STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/juris prudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506. Acesso em: 14 abr. 2021.

[5] “São normas nas quais o preceito secundário (cominação da pena) está completo, permanecendo indeterminado o seu conteúdo, tratando-se, portanto, de uma norma cuja descrição da conduta está incompleta, necessitando de complementação por outra disposição legal ou regulamentar, ou seja, a lei é complementada por outro ato normativo infralegal, como uma portaria ou um decreto, como por exemplo o art. 33 da Lei nº 11.343/2006 – Lei de Tóxicos, em que há uma portaria do Ministério da Saúde elencando o rol de substâncias entorpecentes para o fim da referida lei” (CAPEZ, 2020, p. 112-113).


Referências

AGÊNCIA SENADO. Consequências do uso do crack para a saúde. Senado Notícias, 20/01/2012. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2012/01/20/consequencias-do-uso-do-crack-para-a-saude. Acesso em: 8 nov. 2020.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 2.632, de 19 de junho de 1998. Dispõe sobre o Sistema Nacional Antidrogas, e dá outras providências. Diário Oficial da União de 22 jun. 1998, p. 4. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2632.htm. Acesso em: 19 abr. 2014.

_____. Presidência da República. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União de 24 ago. 2006, p. 2. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11343.htm. Acesso em: 15 jun. 2020.

CAPEZ, F. Curso de Direito Penal. v. 1. parte geral. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020 [versão digital].

FORMIGONI, R. A Última Pedra. Rio de Janeiro: Unipro, 2014.

JAEGER, G.; SELZNICK, P. A normative theory of culture. American Sociological Review, v. 29, n. 5, p. 653-669, oct. 1964.

LLAMAS, R.; HART, D. R.; SCHNEIDER, N. S. Allergic bronchopulmonary aspergillosis associated with smoking moldy marihuana. Chest, v. 73, n. 6, p. 871872, 1978.

LOBO, F. G. Droga Notas Doutrina Jurisprudência Legislação Conexa. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2021.

LYRA, R. As execuções penais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1963.

MALDANER, A. A droga. Ministério da Justiça e Segurança Pública, Brasília, 3 de novembro de 2011. Disponível em: https://www.novo.justica.gov.br/sua-protecao-2/politicas-sobre-drogas/backup-senad/acervo-historico/programa-crack-1/a-droga#:~: text=O%20crack%20%C3%A9%20obtido%20a,l%C3%ADquidas%20e%20s%C3%B3lidas%20s%C3%A3o%20separadas. Acesso em: 15 out. 2020.

WOLKMER, A. C. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

Sobre o autor
Marcos Henrique Machado

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso - TJMT. Membro da Primeira Câmara Criminal e Órgão Especial do TJMT. Diretor Geral da Escola Superior da Magistratura do Estado de Mato Grosso - ESMAGIS-MT (2021-2022). Coordenador adjunto da Comissão Especial sobre Drogas Ilícitas do TJMT (2021-2022). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Araçatuba - SP. Especialista em Direito Civil, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Difusos e Coletivos, Processual Civil e Processual Penal. MBA em Poder Judiciário pela Escola de Direito do Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas - FGV/Rio. M.B.L em Direito do Estado pela Universidade Castelo Branco - RJ. Mestre em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. Doutor em Estado, Políticas Sociais e Direitos pela Universidade de Brasília - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Marcos Henrique. Entre o usuário e o traficante de drogas ilícitas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7049, 19 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100701. Acesso em: 18 dez. 2024.

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