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Sistema Interamericano de Direitos Humanos e seu diálogo com o ordenamento jurídico nacional.

Uma análise da eficiência de cumprimento do caso Favela Nova Brasília vs Brasil

Agenda 24/10/2022 às 11:24

Resumo: A proposta do presente artigo consiste na identificação e levantamento de dados acerca do caso favela nova Brasília onde o Brasil sofreu uma condenação publicada pela corte interamericana de direitos humanos em 2017, utilizando-se o caso como parâmetro de estudo sobre o diálogo entre a ordem jurídica nacional e a ordem jurídica internacional. Através de um levantamento bibliográfico avaliaremos o controle de convencionalidade e o seu alcance em nosso ordenamento, especialmente o seu entendimento em sede de tribunais superiores. Como objetivo busca-se demonstrar que o cumprimento efetivo das condenações impostas por cortes internacionais, no caso pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, encontra resistência prática e resistência teórica em nosso ordenamento, colocando a efetividade das decisões da corte em xeque e dificultando a implementação de direitos humanos em nosso ordenamento.

Palavras-chave: Corte Interamericana. Direitos Humanos. Convencionalidade. Ordenamento jurídico. Diálogo internacional.


1. INTRODUÇÃO

Em 2017 ocorreu a condenação do Brasil pela Corte interamericana de direitos humanos no caso Favela Nova Brasília, caso que havia sido submetido em 19 de maio de 2015 à Corte e envolvia a avaliação das falhas na investigação e punição dos responsáveis pelas violações ocorridas em 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995 na Favela Nova Brasília, situada no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro. Os fatos são homicídios e violências sexuais, além de atos de tortura, cometidos por agentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em duas operações.

Após essa condenação, que envolvia basicamente a proibição de que o país fosse novamente palco de outra chacina, diversos casos similares ocorreram e ocorrem por todo o Brasil, demonstrando uma dificuldade de ordem prática na execução das decisões de cortes internacionais, mas que também é reflexo da dificuldade teórica enfrentada pelo nosso ordenamento de entender o diálogo e a hierarquia, se existente, entre as ordens jurídicas nacional e internacional.

Nesse contexto o presente artigo, fruto da conclusão de uma especialização em direito internacional aplicado, visa avaliar esse diálogo entre ordens jurídicas através do estudo do caso favela nova Brasília e seus desdobramentos. Em um primeiro momento faremos um apanhado sobre o histórico do sistema interamericano de direitos humanos, detalhando os documentos base de seu surgimento e explicando o nascimento e funcionamento de seus dois principais órgãos: a comissão interamericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos.

Em um segundo momento a proposta é avaliar a análise teórica sobre a comunicação e diálogo entre as ordens jurídicas nacional e internacional, considerando que em diversas condenações o Brasil possui posições da mais alta corte do país militando em sentido diverso da posição das cortes internacionais, propõe-se ainda trabalhar o conceito de controle de convencionalidade e estabelecer um marco teórico sobre esse assunto.

Por fim, o artigo enfrentará o que foi o caso favela nova Brasília e como se desenvolveu esse processo na corte interamericana de direitos humanos até o momento da publicação da sentença condenatória, bem como vem o Conselho Nacional de Justiça e outras instituições trabalhado para cumprir com as determinações estabelecidas pela corte.


2. STATUS DAS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA NO DIREITO BRASILEIRO

A temática de defesa de direitos humanos é presença em todos os ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais e na busca de uma maior efetividade desses direitos, surgem as dificuldades de relacionamento entre as previsões de distintas ordens jurídicas.

André de Carvalho Ramos, ao conceituar a teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos, definiu que deve ser reconhecida a atuação em separado do controle de constitucionalidade nacional, promovido em última palavra pelo Supremo Tribunal Federal, e do controle de convencionalidade internacional, promovido pelos órgãos de direitos humanos do plano internacional, como a Corte IDH, Corte Europeia e outros. Segundo o autor, deve, por essa teoria, se avaliar a questão com base nos direitos fundamentais, previstos expressa ou implicitamente na Constituição e, para tanto, a Corte Constitucional dá a palavra final sobre o que por eles se entende, mas também com base nos direitos humanos, previstos expressa ou implicitamente em tratados internacionais ratificados pelo Estado. Deve realizar, assim, controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade.

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Acerca desse controle de convencionalidade que, por fim, colocaria a ordem jurídica internacional como referência de análise dentro do nosso ordenamento, cabe avaliar em que grau é aceita essa interlocução com o direito nacional, especialmente avaliando situações anteriores como a questão do depositário infiel e das leis de anistia de períodos de ditadura, onde o Brasil sofreu uma condenação da Corte Interamericana no Caso Gomes Lund.

Segundo o Juiz da Corte IDH, Eduardo Ferrer Mac-Gregor, o controle de convencionalidade, quando exercido por intérpretes e tribunais domésticos possui três níveis, ou graus, de intensidade: Grau baixo, onde o intérprete da norma realiza uma interpretação dos atos normativos internos que seja conforme as normas internacionais. Teríamos o Grau médio, onde o intérprete considera que não há forma de compatibilizar, por meio do princípio a interpretação conforme, a aplicação da norma interna com a norma internacional. Portanto, deixa de aplicar a norma interna em detrimento da norma internacional e por fim, teríamos o Grau alto, que verifica-se nos casos em que o intérprete possui a faculdade de expulsar do ordenamento jurídico interno a norma doméstica que considere inconvencional, que no caso do Brasil, só é possível quando o STF ou um Tribunal de Justiça de um determinado Estado reconhecer, de forma simultânea, a inconstitucionalidade diante de juízo abstrato e concentrado e, ao mesmo tempo, a inconvencionalidade de determinada norma.[2]

Outra classificação dessa relação é a que coloca o chamado controle de convencionalidade forte e o controle de convencionalidade fraco, onde o controle forte consiste na situação em que a autoridade pública deixa de aplicar a norma interna em razão dela violar o bloco de convencionalidade e a própria jurisprudência internacional.

E o controle fraco, também chamado de controle débil, se caracteriza como um mandado de interpretação das normas internas conforme o conteúdo disposto nos tratados internacionais de direitos humanos e na jurisprudência internacional. Nessa modalidade de exercício do controle de convencionalidade, a norma interna não seria deixada de lado no caso concreto, mas interpretada à luz do bloco de convencionalidade e da jurisprudência internacional de Direitos Humanos.[3]

Além desse ponto teórico importante que deve ser considerado ao tratar do relacionamento entre o direito interno e o direito internacional, cumpre trazer alguns pontos relacionados à execução das decisões oriundas de cortes internacionais de direitos humanos, que a priori, devem ser classificadas como sentença internacional, ou seja, sem necessidade de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo então executada em primeiro grau, na Justiça Federal com os seus desdobramentos. Mais uma vez destaca-se o autor André de Carvalho Ramos que define a necessidade de um diálogo das cortes, que deve ser realizado internamento para impedir interpretações equivocadas de tratados e impedir que os tratados internacionais, ou condenações da corte, recomendações da comissão, sejam mera retórica judicial.

Outro autor que nos traz uma ferramenta interessante de diálogo entre as ordens jurídicas distintas é o professor Marcelo Neves, que defende a aplicação do transconstitucionalismo entre as ordens distintas especialmente em um conceito de américa latina, com reconhecimento de precedentes de outros países e do direito internacional em uma espécie de encaixe multiangular. Superada a questão das dificuldades teóricas, passamos à análise do caso Favela Nova Brasília.


3. CASO FAVELA NOVA BRASÍLIA VS BRASIL

Em 18 de outubro de 1994, as polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro realizaram uma invasão na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, sendo que nessa operação treze jovens, de maioria negra, foram mortos. Através de denúncias de ONGs, nessa mesma operação, três mulheres, sendo duas adolescentes também teriam sido torturadas e violentadas sexualmente.

Em 1995, na mesma comunidade, outra operação foi realizada e mais treze jovens foram mortos na ação. Estima-se que cerca de 120 policiais participaram das duas operações. Após as denúncias, foram iniciadas investigações por parte da Polícia Civil do Rio de Janeiro e por uma comissão de investigação especial criada pelo governo do estado. No decorrer dessas as mortes ocorridas foram classificadas como resistência à prisão resultante na morte dos opositores, tráfico de drogas, grupo armado e resistência seguida de morte, também conhecidos como autos de resistência.

Em 2009, todas as investigações foram arquivadas sob alegação de prescrição, sem maiores esclarecimentos sobre as mortes, sem investigação formal sobre as denúncias de violência sexual e sem qualquer punição para os envolvidos. Em 2015 o processo sobre o caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos e em 16 de fevereiro de 2017 aconteceu a publicação da sentença condenatória.

A sentença condenou o Estado brasileiro pela não realização da justiça no referido caso, atribuindo-lhe responsabilidade internacional, tendo sido a primeira sentença em que o Brasil foi condenado pela corte interamericana por violência policial, vale destacar que o Brasil já sofreu ao todo 11 condenações no âmbito da Corte IDH.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que os chamados autos de resistência, usados para justificar as mortes efetivadas durante as operações, impactaram negativamente o curso das investigações, contribuindo para a demora e a falta de diligência. Também entendeu que o Estado deve tomar medidas preventivas em contextos em que sejam evidentes os riscos de violência contra mulheres e meninas e, considerou violados os direitos à integridade pessoal, à circulação e à residência, bem como as garantias e proteções judiciais.

Na decisão ainda foram impostas medidas de reparação e não repetição, como a obrigação de investigar e punir os responsáveis pelas violações, a disponibilização de tratamento médico e psicológico às vítimas, a criação de políticas públicas específicas, como a instalação de um sistema numérico de acompanhamento das ações policiais e a extinção dos autos de resistência.

Verifica-se que temos duas questões a tratar sobre a eficácia dessa decisão da corte, uma do ponto de vista restrito ao caso e outra do ponto de vista de adoção de medidas gerais pelo estado brasileiro visando evitar novas chacinas como a que gerou a condenação.

Com relação à execução do caso em si, cabe destacar que o Conselho Nacional de Justiça entende e recomenda que quando as condenações da Corte IDH ao Estado brasileiro resultarem em ações judiciais para reparar as vítimas desses casos, o Judiciário deverá priorizar o julgamento dos respectivos processos.[4]

Em 2020, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve 6.416 vítimas fatais de intervenções policiais, com uma média de 17,6 mortes por dia. Nesse cenário cumpre destacar que desde 2013, o número de mortes cresceu 190% e que estamos ainda em monitoramento de implementação da condenação sofrida pelo Brasil no caso favela nova Brasília.

O Ponto Resolutivo 16 definiu que "desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público"[5]. Ou seja, é necessária a previsão de mecanismos institucionais que sejam acompanhados por um corpo policial, técnico criminalístico e administrativo que não pertença ao órgão de segurança do qual faz parte o possível acusado para garantir a apuração de situações que resultem em supostas mortes ou outros atos violentos de maneira legal, transparente e imparcial.[6]

Com relação à esses mecanismos, o Conselho Nacional de Justiça apresentou à corte em 2021[7] um relatório referente aos pontos de condenação que estão pendentes de cumprimento pelo Brasil, como o de capacitação das polícias, acompanhamento dos formulários periciais sobre as vítimas e o acompanhamento de outras medidas de controle da atividade policial, inclusive através da sugestão de criação de um observatório judicial no âmbito de ADPF de nº 635 que tramita no Supremo Tribunal Federal sobre essa matéria, permitindo diálogo entre a decisão da corte e eventual decisão no âmbito doméstico também.


4. CONCLUSÃO

O objetivo da lógica atual de um direito emancipatório é a lógica de máxima efetividade de direitos humanos e buscar essa aplicação diante da convivência eventualmente de normas opostas presentes no ordenamento nacional e no direito internacional é um desafio para o intérprete e vem se mostrando como um obstáculo para a máxima efetividade da proteção da dignidade humana.

No presente artigo buscamos lançar alguns conceitos base sobre essa relação, com destaque para o estudo do controle de convencionalidade e suas classificações a partir desse relacionamento com o direito pátrio, bem como entender como surgiu e como funciona o sistema interamericano de direitos humanos.

O Brasil encontra-se inserido no sistema universal e no sistema regional americano de proteção de direitos humanos, sistema esse de vital importância justamente por enfrentar questões particulares dos países latinos e em razão dos contornos assumidos pelos seus órgãos de composição, a Corte e a Comissão interamericana de direitos humanos que foram avaliadas em todos os seus pormenores no presente trabalho.

Dentre as diversas condenações que o Brasil já sofreu pela Corte, realizamos a análise do caso favela nova Brasília, em especial por conta da ainda constatação de situações similares à que gerou a condenação do Brasil pela Corte IDH em 2018, demonstrando que muitos estudos e esforços devem ser dedicados para a execução dessas condenações e para a conformidade do nosso sistema legal à uma lógica de proteção de direitos humanos que supere as barreiras nacionais, a ser tomado como exemplo em outras esferas que envolvem outras condenações que já sofremos e poderemos vir a sofrer.


REFERÊNCIAS

ASSESSORIA DE IMPRENSA DO CNJ. CNJ apresenta à CIDH balanço sobre cumprimento de sentença no caso Nova Brasília. Consultor Jurídico. ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-24/cnj-apresenta-cidh-balanco-cumprimento-decisao-condenou-brasil. Acesso em: 21 set. 2022.

BRASIL. Decreto nº 678 de 06 de novembro de 1992. Planalto. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 21 set. 2022

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs Brasil. 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 21 set. 2022.

CASO Favela Nova Brasília versus Brasil. jan. 2021. Disponível em: https://reubrasil.jor.br/caso-favela-nova-brasilia-versus-brasil/. Acesso em: 30 set. 2022.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Ato Normativo n. 0008759-45.2021.2.00.0000. Rel. Conselheira Flávia Pessoa. Pauta de Julgamentos,

61ª Sessão Extraordinária, 14 dez. 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pauta-de-julgamentos-de-14-de-dezembro-de-2021-61a-sessao-extraordinaria/. Acesso em 21 set. 2022.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Caso Favela Nova Brasília (Cosme Genoveva e outros) vs. Brasil: sumário executivo. Série Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Brasília: CNJ, 2021.

GUEDES, Luiza da Rocha. Criação de órgão pericial autônomo à luz do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Consultor Jurídico. ago. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-01/luiza-guedes-favela-brasilia-vs-brasil. Acesso em: 21 set. 2022.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 5. ed., rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

NEVES, Marcelo. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao transconstitucionalismo na América Latina. Revista de Informação Legislativa. a. 51, n. 201, jan./mar. 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/201/ril_v51_n201_p193.pdf. Acesso em: 21 set. 2022.

PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3. ed. Boa Esperança: Editora Cei, 2020.

RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva; OLIVEIRA, Geziel Viana de; SIQUEIRA, Isadora de Sousa. Cosme Rosa Genoveva e outros vs Brasil (2017): Os homicídios na Favela Nova Brasília e o dever de reformulação da prática policial. 2018. Disponível em: https://www.conic-semesp.org.br/anais/files/2019/1000005028.pdf. Acesso em: 21 set. 2022.

Sobre o autor
Luciano Leite Pereira

Delegado de Polícia Federal. Ex Agente de Polícia Legislativa – Câmara dos Deputados, Ex Técnico Judiciário do MPU e do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá.; Especialização em Direito Constitucional pela Faculdade de Tecnologia e Ciências do Alto Parnaíba – FATAP; Especialização em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá – UNESA e Especialista em direito internacional aplicado pelo EBRADI.

Informações sobre o texto

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