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A prisão preventiva em Moçambique, um mecanismo de violação da dignidade da pessoa humana

Agenda 01/11/2022 às 16:42

Resumo: Na presente análise, discutimos o instituto jurídico prisão preventiva na Ordem Jurídica Moçambicana, uma medida cautelar que tem sido usada de forma abusiva pelos órgãos da administração da justiça, fazendo com que uma grande parte da população reclusória seja constituída por presos em situação preventiva, violando vários direitos fundamentais, como é o caso da dignidade da pessoa humana. Sendo a prisão preventiva uma medida de coação de carácter excepcional que visa acautelar fins de natureza instrumental, o seu uso excessivo constitui mecanismo para a violação da dignidade da pessoa humana e como consequência disso, os direitos humanos. O uso da prisão preventiva como regra, constitui atentado aos princípios básicos dum Estado de Direito Democrático, onde a garantia jurídica é alcançada, não pela vontade desenfreada de punir, mas pela manutenção dos direitos e garantias individuais, ou seja, a liberdade deve ser preservada enquanto a sentença penal condenatória não transitar em julgado.

Palavras chaves: Prisão preventiva, dignidade, pessoa humana.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como finalidade analisar em que medida a prisão preventiva no ordenamento jurídico moçambicano, embora medida cautelar do direito penal, constitui mecanismo de violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, pondo em causa a dignidade da pessoa humana e por conseguinte os seus direitos humanos. Na presente análise, pretende-se fazer uma reflexão em torno desta medida cautelar, buscando identificar e apreciar as práticas judiciárias, situações que configuram violação da dignidade da pessoa humana, prisões arbitrarias e injustas.

Os dados do Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, indicam que cerca de quarenta e cinco por cento da população reclusória em Moçambique é constituída por presos preventivos, o que evidência a distorção da natureza jurídica da prisão preventiva, visto que a prisão preventiva é uma medida de coação de carácter excecional que visa acautelar fins de natureza instrumental, não fazendo sentido o seu uso excessivo e como consequência disso, tem sido a violação da dignidade da pessoa humana.

Outro sim, a sociedade moçambicana nos últimos tempos tem assistido detenções mediáticas de cidadãos com alguma influência no cenário político nacional e de forma reiterada os advogados dos réus têm solicitado outro tipo de medida cautelar para além da prisão preventiva. Essa situação de sucessivas e constantes prisões preventivas, associado aos dados sobre o crescente número da população prisional em prisão preventiva, obriga-nos a analisar este fenómeno anormal num Estado de Direito Democrático, onde a garantia jurídica é alcançada, não pela vontade desenfreada de punir, mas pela manutenção dos direitos e garantias individuais, ou seja, a liberdade deve ser preservada enquanto a sentença penal condenatória não transitar em julgado.

A regra da presunção de inocência, ou de não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença de todo aquele que é investigado, acusado e julgado por suspeita de ter praticado um crime, é essencial para a sobrevivência do Direito nas sociedades modernas. Dai a relevância em nossa opinião da presente análise.

  1. A LIBERDADE E A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA

1.1. Do Direito a liberdade

Para o alcance dos objectivos que nos propusemos é importante começar por fazer uma breve análise sobre o direito à liberdade do cidadão, um direito fundamental com dignidade constitucional e também tratado em vários diplomas internacionais, tais como, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. O direito à liberdade reconhecido constitucionalmente é um direito pessoal do ser humano, a liberdade individual é a seguir à vida, um dos mais relevantes bens de uma pessoa.

A lei estabelece os mecanismos tendentes a assegurar o equilíbrio entre a autoridade do Estado e liberdade dos cidadãos, a liberdade de poder fazer tudo o que não colide com direito de outrem constitui um direito fundamental do ser humano, em que nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido fora dos casos determinados pela lei e pela forma nela prescrita. O ser humano nasce livre e com plena autonomia das suas faculdades, nasce com a liberdade de praticar os atos que pretende para realizar os seus propósitos, pese embora ser um ser social e viver em comunidade, em conjunto de outros homens.

É nesta senda que se impõe ao homem o respeito ao ambiente social, nascendo assim, um conjunto de regras e imposições impostas ao ser humano. A privação da liberdade de um cidadão em razão da suspeita de haver praticado um crime é essencial à realização da justiça e à defesa da sociedade contra as ações humanas criminosas que afetam, mas constitui cautela processual muito gravosa para o direito individual à liberdade, sobretudo quando inocente. Assim, a Constituição da República de Moçambique(CRM), consagra no seu artigo 59 o princípio da liberdade sob a epígrafe "Direito à liberdade e à segurança", estabelecendo que, todos têm direito à liberdade e à segurança; ninguém pode ser preso e submetido a julgamento se não nos termos da lei. No mesmo artigo, a Magna Carta preconiza que, os arguidos gozam da presunção de inocência até decisão judicial definitiva.

No que concerne à privação da liberdade a título excecional, a Constituição no seu artigo 64 estabelece que a prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei, onde são fixados os respetivos prazos. A Norma Suprema de Moçambique, preconiza ainda que, o cidadão sob prisão preventiva deve ser apresentado no prazo fixado na lei à decisão de autoridade judicial, que é a única competente para decidir sobre a validação e a manutenção da prisão, toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível as razões da sua prisão ou detenção, seus direitos e a decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida de privação da liberdade deve ser logo comunicada ao parente ou pessoa da confiança do detido, por este indicado.

A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei, obriga o Estado o dever de indemnizar o lesado. A este propósito, a Constituição Moçambicana, estabelece no seu artigo 58 que, a todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei, indeminização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos seus direitos fundamentais. A CRM preconiza ainda no mesmo articulado que, o Estado é responsável pelos danos causados por atos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei.

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A liberdade deve ser entendida como a liberdade física, a liberdade de locomoção traduzida no direito de não ser alvo de detenções ou prisões arbitrárias, fora dos casos previstos pela Constituição e pela lei, por parte de entidades públicas. Ela surge associada ao direito de reivindicar, junto das autoridades públicas, a garantia de protecção da liberdade pessoal dos cidadãos contra eventuais agressões ou limitações por parte de terceiros (CANOTILHO e MORRERIA, 2014, p. 478).

1.2. Da Presunção de Inocência

O princípio da presunção de Inocência que teve sua origem no direito romano, ficou obscurecido durante o período compreendido de Idade Média. Nesse período, em que as características de uma sociedade autoritária são marcantes, percebe-se, de forma clara, a inversão do princípio da presunção de Inocência para o de presunção de culpabilidade, como forma de manutenção desses regimes (LOPES JUNIOR, 2005, p. 203).

Apesar de remotar ao direito romano, o princípio da presunção da Inocência até prova em contrário foi ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas inquisitórias desenvolvidas na Baixa Idade Média. Basta recordar que no processo penal medieval a insuficiência da prova, conquanto deixasse substir uma suspeita ou uma dúvida de culpabilidade, equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e uma semicondenação a uma pena mais leve. Só no início da idade moderna o princípio da presunção da Inocência foi reafirmado com firmeza (FERRAJOLI, 2002, p.441).

De uma forma geral, o princípio da presunção de Inocência sobreviveu conservado pelo direito canónico. A expressão da manutenção desse princípio se apresentou de forma mais palpável, na Inglaterra, no sistema da Common Law. A consagração do princípio da presunção de inocência se manifestou, novamente, em seu mais alto grau, na Declaração dos Direitos do Homem de 1789, como forma de frear o poder absolutista (LOPES JUNIOR, 2005, p. 203).

A ausência do princípio da presunção de inocência foi marcante em Estados absolutistas, autoritários, totalitários ou ditatórias. A sua inexistência ou inversão em regimes fascistas, gerou a legitimação do uso arbitrário do poder e força estatal em face do indivíduo. Assim, se nos regimes tidos autoritários, em caso de dúvida, a regra é a permanência da presunção da culpabilidade, nos regimes democráticos, havendo dúvida, a regra deve ser a presunção da inocência.

O princípio da presunção de inocência se ergue em sociedades modernas, Estados de Direito Democrático e ele é consagrado na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse sentido, o princípio da presunção de inocência é uma garantia típica de sociedades democráticas, representando a base do devido processo legal e consagrado a valorização do humano.

Em Moçambique, este princípio tem dignidade constitucional, pois o artigo 59 da CRM, consagra que, os arguidos gozam da presunção de inocência até decisão judicial definitiva.

O princípio da presunção de inocência não deve ter uma interpretação de forma literal, sob pena de inviabilizar o próprio processo e, consequentemente, a aplicação de uma pena. Este deve ser interpretado de forma que garanta que a pena somente será imposta ao final do processo. Nesse sentido, a prisão antecipada só se justifica enquanto medida puramente cautelar.

Na verdade, a discussão vai além do conteúdo semântico, ela perpassa pelo escopo do processo penal, qual seja, a efetivação da pretensão punitiva do Estado com a devida aplicação da pena, bem como a garantia dos direitos e garantias individuais. O fim do princípio da presunção de inocência é a manutenção dos direitos e garantias individuais, mais especificamente a liberdade, até o transito em julgado da sentença condenatória (SCHREIBER, 2005, p.5).

A presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica segurança fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica defesa destes contra o arbítrio punitivo. Por isso, o sinal inconfundível da perda de legitimidade política da jurisdição, como também de sua involução irracional e autoritária, é o temor que a justiça incute nos cidadãos. Para o autor, toda vez que um imputado inocente tem razão de temer um juiz, quer dizer que isto esta fora da lógica do Estado de direito, o medo e mesmo só a desconfiança ou não segurança do inocente assinalam a falência da função mesma a jurisdição penal e a rotura dos valores políticos que a legitimam( FERRAJOLI, 2002, p. 441).

Num Estado de Direito Democrático, a garantia jurídica é alcançada, não pela vontade desenfreada de punir, mas pela manutenção dos direitos e garantias individuais, ou seja, a liberdade dever ser preservada enquanto a sentença penal condenatória não transitar em julgado. A regra da presunção de inocência, ou de não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença de todo aquele que é investigado, acusado e julgado por suspeita de ter praticado um crime, é essencial para a sobrevivência do Direito nas sociedades modernas.

Portanto, o princípio da presunção de inocência garante ao acusado, enquanto não houver sentença condenatória, transitada em julgado, a presunção de inocência, tanto na fase investigativa quanto na fase processual. É com essa base que a prisão preventiva é tida como um instituto que não atende aos requisitos e fundamentos da cautelaridade, assim, ferindo princípios fundamentais. As mediadas cautelares não devem constituir regra, elas devem ser utilizadas em caso de extrema necessidade, e a obrigatoriedade do preenchimento de requisitos para o efeito, bem como, um de seus fundamentos, é evitar uma pena antecipada.

O objectivo da incidência do princípio da presunção de inocência no campo do direito do processo penal é igualar as partes processuais, Estado e indivíduo, por que a fase investigava estabelece vantagens para a acusação. Neste sentido, o princípio da presunção de inocência vem ao encontro do Estado de Direito Democrático, buscando uma protecção para o indivíduo em face do poder do Estado.

2. PRISÃO PREVENTIVA NA ORDEM JURÍDICA MOÇAMBICANA

A prisão preventiva corresponde normalmente a uma violação da regra jurídica de presunção de inocência do suspeito. Na Ordem Jurídica Moçambicana, a prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei, que fixa os respectivos prazos. O cidadão sob prisão preventiva deve ser apresentado no prazo fixado na lei, à autoridade judicial competente para decidir sobre a validação e a manutenção da prisão, conforme o artigo 64 da Constituição.

Nos termos artigo 291 do Código do Processo Penal Moçambicano, só é autorizada a prisão preventiva fora do flagrante, quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos, perpetração de crime doloso punível com pena de prisão superior a um ano; forte suspeita da prática de crime pelo arguido; inadmissibilidade da liberdade provisória ou insuficiência desta para a realização dos seus fins; quando o arguido em liberdade provisória, não cumpra as condições a que ela ficar subordinada. Só há forte suspeita da prática da infração quando se encontre comprovada a sua existência e se verifiquem indícios suficientes da sua imputação ao arguido, sendo sempre ilegal a captura destinada a obter esses indícios.

A prisão preventiva é a mais grave medida de coação, consistindo na perda da liberdade pessoal do arguido, e tem, por isso, caracter excecional, só podendo ser aplicado se verificarem alguns pressupostos legais. A aplicação da medida de prisão preventiva exige a verificação de fortes indícios da prática do crime, o que significa que a base factual que suporta essa aplicação deve ser de tal modo consistente que permita seriamente inferir que o arguido virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado (SANTOS e HENRIQUES, 2011, p. 292).

A prisão preventiva é a medida de coação mais grave e problemática, desde logo porque opõe dois interesses divergentes: por um lado, o interesse do Estado em privar da liberdade um arguido numa altura do processo em que este ainda goza da presunção da inocência com o fim, entre outros, de proteger o normal andamento do processo e de garantir a execução penal; por outro lado, o interesse do arguido em responder o processo em plena liberdade, de maneira a melhor realizar a sua defesa.

A prisão preventiva deve ser tida como uma medida excecional, o carácter excecional da prisão preventiva traduz-se no facto de ela nunca poder ser aplicada nem mantida quando não estejam presentes, no caso em concreto, os pressupostos materiais constantes na Constituição e na lei.

A medida excecional da prisão preventiva, consiste no facto de ela nunca poder ser aplicada nem mantida quando, no caso concreto, se apresente desnecessária ou haja uma medida de coação prevista na lei menos gravosa, mas capaz de acautelar os fins visados por ela. O contorno constitucional desenhado para a prisão preventiva espelha bem a sua natureza excecional e precária, assim como a necessidade de ser fundamentada e temporalmente limitada (CANOTILHO, 2011, p. 348).

A prisão preventiva só deve ser aplicada quando se revelar inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação. A execução das medidas de coação não deve prejudicar o exercício de outros direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer (SILVA, 2011, p. 348).

O princípio da necessidade consiste na determinação legal no sentido de as medidas de coação só serem aplicáveis dentro das fronteiras das necessidades processuais, que têm por função satisfazer, e de serem adequadas às exigências que o caso suscita. Esses princípios não devem ser observados apenas na fase inicial da aplicação de uma medida, mas também em sede da sua alteração, visto que, posteriormente à sua aplicação, as medidas de coação podem ser extintas ou substituídas por outras em função das necessidades processuais e das circunstâncias que lhes deram lugar (MARQUES,2008, p. 17).

A proibição da aplicação da prisão preventiva sempre que seja possível aplicar outra medida de coação significa que, desde que qualquer das outras medidas se revele adequada e suficiente para acautelar os fins processuais visados com a aplicação da medida de coação, deve ser sempre aplicada a menos grave, sendo que a prisão preventiva é a mais grave de todas. Não podemos perder de vista que o princípio da presunção da inocência é uma garantia fundamental, pelo que a imposição de restrições à liberdade só é de admitir na medida da sua estrita necessidade para a realização dos fins do processo. É de recordar que a competência para a aplicação da prisão preventiva é exclusiva do juiz que, na fase do inquérito, só a pode aplicar se houver requerimento prévio do Ministério Público e que, nas fases posteriores, pode aplicá-la oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade (SILVA, 2011, p. 399).

A lei estabelece as finalidades processuais que se visa alcançar com a aplicação de uma determinada medida de coação. A fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

CONCLUSÃO

Concluímos que a natureza excepcional da prisão preventiva, leva-nos ao entendimento que o seu uso abusivo viola os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos(arguidos), resvalando para o perigo de possíveis intervenções dos poderes públicos à margem da lei. As presunções legais não podem servir, por si só, de fundamento para a imposição da prisão preventiva ao arguido, é essencial, para a sua aplicação, a existência nos autos de fortes indícios de que o arguido em liberdade constitui uma ameaça grave de perturbação do processo, ou de escapar à acção penal. Por outro lado, a ele deve ser sempre garantida a possibilidade de se defender da referida medida, sendo, por isso, necessário que lhe seja dado a conhecer, sem excepções, as razões que fundamentam a sua prisão.

Na Ordem Jurídica Moçambicana, o arguido goza do princípio constitucional da presunção de inocência ao longo da marcha processual, mas ele tem de suportar, nos casos de inadmissibilidade de liberdade provisória, encargos com a sua sujeição à prisão preventiva até que haja no processo um despacho de arquivamento da acusação, de não pronúncia ou uma sentença absolutória transitada em julgado, para que possa ver a sua liberdade restituída.

É urgente a consagração legal da natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva, bem como a anulação do seu regime regra e obrigatório. Pois assim haverá conformação da lei ordinária com o disposto no artigo 56 da CRM, que determina que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição. Contudo, não basta uma reforma legal no sentido apontado, é imperioso que tal reforma seja acompanhada de uma formação intensiva das entidades encarregues da sua aplicação, de maneira a conceder-lhes uma preparação que as habilite a lidar com a referida medida de forma mais prudente e só a título excepcional. Os princípios da necessidade, da adequação e da subsidiariedade devem presidir, sempre, à prisão preventiva, não só no momento da sua aplicação, mas também devem servir de base para a sua manutenção. É igualmente necessária a criação de mais medidas de coação, não privativas da liberdade, que, aplicadas separada ou cumulativamente, possam tutelar igualmente os fins visados com a aplicação da prisão preventiva.

O uso da prisão preventiva como regra, constitui atentado aos princípios básicos dum Estado de Direito Democrático, onde o juiz garante o Direito, aplicando no tribunal a regra jurídica superior visando à justiça do caso concreto e defendendo o acusado contra todos os abusos da acusação, permitindo-lhe todos os meios de defesa a começar pela sua capacidade física, moral e psicológica de se defender em liberdade e de ser considerado inocente perante o tribunal e a sociedade quando se está a defender.

A possibilidade dada ao investigado de, em liberdade e com a presunção de que é inocente aceite pelo juiz, praticada por aqueles que o investigam e plenamente vivenciada na sociedade em que está, é a única via jurídica para garantir um julgamento justo e uma sentença adequada. Dai que, o juiz deve seguir o Direito sem preconceitos, pela via do processo, aplicando regras jurídicas para manter a balança equilibrada e aberta a possibilidade de Justiça em cada caso que julga. O juiz não pode ser aquele que interpreta normas legais contra as regras jurídicas que defendem o investigado, suspeito ou acusado, por exigência elementar de Justiça, para corresponder às expectativas da sociedade, ou ao clamor público que até é intolerante, prove julgamentos e condena, sem direito ao contraditório.

Mesmo que se justifique a prisão preventiva como essencial para a investigação, por haver perigo de ocultação ou destruição de parte da prova ou por perigo de fuga, nunca suficientemente provado nos casos conhecidos, a liberdade do suspeito é um valor jurídico superior à da defesa da investigação para uma adequada acusação. A questão das restrições de direitos fundamentais por necessidade do processo viola princípios fundamentais que resvalam para a violação da dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, José Gomes / MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014.

CARVALHO, Paula Marques. As medidas de coacção e de garantia patrimonial, uma análise prática à luz do regime introduzido pela lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 2ª edição, Editora Almedina, Coimbra, 2008.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FONSECA, Adriano Almeida. O princípio da presunção de inocência e sua repercussão infraconstitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 36, nov. 1999.

ISASCA, Frederíco. A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção in "Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais", Organizadas pela Faculdade de Direito de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa.

LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 3ª ed. 2005.

PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Prisão Preventiva e Presunção de Inocência. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 17, nº 43, p. 29-36, Abril-Junho/2016.

SANTOS, Manuel Simas/ LEAL-HENRIQUES, Manuel/ SANTOS, Joao Simas. Noções de Processo Penal. 2ª edição, 2011, editora: Letras e Conceitos, Lda.

SILVA, Germano Marques da. Curso de processo penal. Vol.II. 5ª Edição, Editora Babel, Lisboa, 2011.

Legislação

Constituição da República de Moçambique de 2004

Código de Processo Penal Moçambicano

Sobre o autor
Hélder Ernesto Injojo

Advogado, Deputado e Doutor em Direito.

Informações sobre o texto

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