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PROCEDIMENTO FLEXÍVEL: A INSTRUMENTALIDADE COMO PRESSUPOSTO DA EFETIVIDADE PROCESSUAL

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Agenda 01/11/2022 às 18:57

PROCEDIMENTO FLEXÍVEL: A INSTRUMENTALIDADE COMO PRESSUPOSTO DA EFETIVIDADE PROCESSUAL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em direito da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo FADISP, como quesito para obtenção do Título de Mestre em Direito

RESUMO

O processo não é uma finalidade em si mesmo. É, em verdade, uma ferramenta que deve ser utilizada para se alcançar a pretensão material da parte ou do Estado. Pretende-se demonstrar que o processo deve ser dirigido com procedimentos racionais e flexíveis para garantir direitos elementares como o acesso à justiça e o duplo grau de jurisdição, e que o juiz é o principal autor para garantir a justa condução do caso até o seu deslinde final, devendo, sempre que exarar algum despacho, decisão ou sentença, primar pela clareza, probidade, honestidade, boa-fé, e, principalmente, para que a questão material pretendida na demanda seja analisada e julgada, de forma procedente ou não.

Palavras-chave: Neoprocessualismo. Instrumentalidade das formas. Jurisprudência defensiva. Processo. Procedimento.

ABSTRACT

The process is not an end in itself. It is, in fact, a tool that must be used to achieve the material claim of the party or the State. It is intended to demonstrate that the process must be directed with rational and flexible procedures to guarantee elementary rights such as access to justice and the double degree of jurisdiction, and that the judge is the main author to ensure the fair conduct of the case until its final conclusion, and, whenever issuing any order, decision or sentence, strive for clarity, probity, honesty, good faith, and, above all, so that the material question intended in the demand is analyzed and judged, with or without provenance.

Keywords: Neoprocessualism. Instrumentality of forms. Defensive jurisprudence. Process. Procedure.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Gráfico arrecadações do poder judiciário 78

Figura 2 - Valores arrecadados em relação ao número de processos ingressados sujeitos a cobrança de custas 79

SUMÁRIO

Introdução 11

Metodologia 14

1. O processo e a sua utilidade para o direito 16

1.1. Praxismo, processualismo, instrumentalismo e neoprocessualismo 17

1.2. Processo e Procedimento 30

2. Princípios elementares do processo 34

2.1. Contraditório e ampla defesa 35

2.2. Devido processo legal 37

2.3. Instrumentalidade das formas, fungibilidade recursal e duplo grau de jurisdição 39

2.4. Razoabilidade e proporcionalidade 47

2.5. Princípios reflexos 48

3. O rigor em contraste com a essência processual: situações fáticas 50

3.1. Recursos no âmbito dos Juizados Especiais 50

3.2. Súmulas de tribunais superiores que vedam o reexame de fatos e de provas 56

3.3. Repercussão geral 61

3.4. Indeferimento de justiça gratuita 71

4. Procedimento Flexível como resultado da evolução teórica do direito e do processo 82

4.1. Diferenças entre o processo de natureza sancionatória e o processo de natureza privada 95

4.2. Postura ativa construtiva (não destrutiva) por parte do magistrado no âmbito da condução processual 97

5. Conclusões 105

Bibliografia 108

Introdução

Atrás muitas vezes da técnica de não conhecimento de habeas corpus se esconde um covarde. E Rui falava: o bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde[1].

Esta foi a frase que o Ministro Gilmar Mendes, no bojo do Habeas Corpus n.º. 164493, proferiu, na ocasião em que fundamentava o seu posicionamento em favor do reconhecimento da suspeição de um magistrado que condenou um réu em uma operação que se tornou famosa por investigar grandes empresários e autoridades públicas que teriam praticado crimes corrupção e outros relacionados[2].

É certo que no momento da verve da sustentação de uma tese perante um tribunal as palavras proferidas pelo interessado podem soar duras, porém, a ideia contida nesta expressão é justamente o que será estudado neste trabalho: a urgente necessidade de uma condução racional do processo, que respeite os princípios constitucionais e que efetive a sua real utilidade, que é a de se atingir a pretensão material trazida pelo autor ou pelo réu, dado que de nada adianta as leis ou a Constituição Federal garantirem diversos direitos aos cidadãos se estes não forem efetivados perante o Poder Judiciário por conta de uma condução processual demasiadamente rígida e inflexível, que cerceia a possibilidade de até mesmo levar a pretensão para ser analisada por este órgão.

Um curioso caso, que se tornou conhecido pela quantidade de recursos que foram interpostos é o Recurso Extraordinário com Agravo n.º. 1035798/SP. Neste caso, em breve síntese, é tratada a condenação criminal de um sujeito que teria praticado os incursos previstos nos arts. 304 e 299 do Código Penal, dado que o réu se inscreveu no CREA com histórico escolar e diploma falsos, e, além disso, expediu 292 ARTs, se responsabilizando como engenheiro e exercendo irregularmente a profissão.

Sem adentrar no mérito da demanda, o que está evidenciado neste caso é a quantidade de recursos interpostos pelo réu e que sequer foram conhecidos pelo Poder Judiciário. Após a condenação em segunda instância pelo Tribunal local, interpôs Recurso Extraordinário, que teve o seguimento negado pela presidência deste tribunal. Após, interpôs agravo, com o intuito de que este fosse remetido ao STF. O tribunal superior denegou seguimento ao recurso por não vislumbrar relevante impacto sobre o ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassaria os interesses subjetivos da causa, bem como pelo fato de que a matéria constitucional não foi prequestionada pelo interessado nas instâncias inferiores. Com isso, o réu opôs embargos de declaração, que foram denegados pelo decurso do prazo, mesmo tendo o réu alegado a ocorrência de feriado na cidade do advogado subscritor. Ato contínuo, interpôs agravo regimental, que foi denegado pelo relator, aduzindo que bem reexaminada a questão, verifica-se que a decisão ora atacada não merece reforma, visto que a parte recorrente não aduz argumentos capazes de afastar as razões nela expendidas. Após a negativa, o réu opôs embargos de declaração para afastar a cominação de uma multa que não tinha sido imposta pelo relator, o que fora provido. Ato contínuo, opôs embargos de divergência, que não foi admitido dado que o relator defendeu que a parte embargante, uma vez mais, insiste em tese já examinada, configurando-se, assim, o mero inconformismo com o resultado que lhe foi desfavorável. Após a negativa de seguimento de sua pretensão, interpôs agravo regimental, que foi recebido, remetido ao pleno do STF, e que posteriormente fora denegado dado que o relator reiterou que não houve o preenchimento dos requisitos indispensáveis de embargabilidade. Por fim, em sua última tentativa, opôs embargos de declaração que foram recebidos e não providos, dado o reconhecimento, por parte do relator, do caráter meramente protelatório do recurso.

Importante destacar que o agravo em recurso extraordinário do caso acima relatado foi interposto por volta de março de 2017 e a publicação do último acórdão que denegou o intento do réu ocorreu em maio de 2019, ou seja: o STF, por um período superior a dois anos, denegou o acesso ao recorrente à referida jurisdição dado o fato de que este não teria cumprido determinados pressupostos de admissibilidade.

Será que a tramitação destes sucessivos recursos respeitou a finalidade do processo, que é a de promover um julgamento sobre a pretensão material levada ao julgador? Será que houve respeito à celeridade e à eficiência processual?

Pois, no primeiro exemplo, acerca da suspeição do magistrado, houve justamente a interposição de embargos declaratórios no bojo do Habeas Corpus, que foram recebidos e que alteraram o curso no julgamento proferido pelo mesmo tribunal. Desta forma, por que em contextos semelhantes o Tribunal denegou o acesso à jurisdição a uma pessoa, e, à outra, concedeu o referido acesso e se pronunciou acerca do efetivo mérito que a este fora submetido?

Será que a interpretação processual está sendo feita em conformidade com os princípios que regem o processo, tais como os da instrumentalidade das formas, duplo grau de jurisdição, contraditório, ampla defesa, dentre outros? Será que em casos de irregularidades processuais cometidas pela parte, esta, fatalmente, estará com a sua pretensão material comprometida por conta de um posicionamento extremamente rígido adotado pelo Poder Judiciário?

Será que isto atende a função, essência e utilidade do processo?

De acordo com Renato Montans de Sá, o conceito de direito processual:

Já o direito processual regula um conjunto de normas criadas para garantir que o direito material seja cumprido porque a) o destinatário da norma não o cumpre de forma espontânea ou b) porque a norma substancial somente poderá produzir efeitos com a chancela ou homologação do Poder Judiciário (jurisdição voluntária).

A relação do direito com o processo é de autonomia, mas de plena interação, decorrente da denominada instrumentalidade do processo em relação ao direito material controvertido.

Se o processo nada mais é do que a narrativa de uma situação de direito material, o processo deve se adaptar e se estruturar às peculiaridades do direito material. Por isso há no sistema brasileiro mecanismos para tornar o processo mais rente à realidade substancial, como os procedimentos especiais (dentro e fora do CPC), os negócios jurídicos processuais (art. 190, CPC) e a possibilidade de adaptação do procedimento em casos de cumulação (art. 292, §2º, CPC).

O direito processual se materializa por meio de um processo, que consiste (dentre diversas outras funções em um conjunto de atos hábeis a conferir um resultado prático ao conflito ou situação jurídica (tutela jurisdicional). Isso só é possível porque aos juízes é conferido um poder para tornar a pretensão realidade (jurisdição).[3]

Desta forma, o presente trabalho versará justamente sobre uma forma condução processual voltada ao atendimento da finalidade do processo (que é a de se pronunciar acerca da pretensão material trazida por uma das partes), bem como os princípios que regem essa interação entre partes e julgador.

Metodologia

As ciências jurídicas e sociais, tanto quanto as demais ciências, caminham simultaneamente às constantes perspectivas teórico-metodológicas que se impõem historicamente, revendo premissas e paradigmas científicos.

Esta dissertação utiliza o método cartesiano, que se baseia na intuição intelectual para explicar a realidade. Segundo Alexandre Araújo Costa, René Descartes, filósofo do século XVII, se contrapunha ao método escolástico, ainda em voga em sua época, que defendia um sistema metodológico baseado na observação empírica. O filósofo revoluciona a ciência ao propor uma explicação racional aos fatos, de forma dedutiva, em que o pensamento é o grande mediador no processo científico, sem renunciar a ampla objetividade.

Conforme observa, Descartes considera que os seres humanos são perfeitos como criação divina e, portanto, a capacidade de explicar o mundo também é perfeita para responder às múltiplas dúvidas do Universo. Seu pensamento é dualista porque dividia a realidade em dois, a material, externa aos indivíduos, e a espiritual, interna aos seres humanos, que é o pensamento.

Sua teoria revoluciona a forma de se fazer ciência que se estende para todos os campos dos saberes e se sobrepõe ao empirismo. A ciência, sob o ponto de vista cartesiano, se estabelece tendo a razão humana como elemento primordial para a compreensão dos fatos, diferentemente do empirismo, que se baseia por intermédio da observação dos fenômenos da natureza.

Com isso, Descartes colocou em movimento um novo personagem conceitual: o Cientista. Esse personagem, que é o autor arquetípico do impessoal discurso da ciência, é caracterizado por ser relativista quanto aos valores culturais, mas também por ter certeza quanto à possibilidade racional de explicar os fatos do mundo. Enquanto as visões tradicionais atrelam verdade e validade, o pensamento científico rompeu essa ligação, de tal forma que a verdade com relação aos fatos ficou libertada do domínio da validade com relação aos valores tradicionais. E é justamente essa postura cética perante a Tradição e crente perante a Razão que constitui a marca maior da modernidade, e a fonte de sua energia revolucionária.[4]

O presente trabalho recorre ao dedutivismo cartesiano para analisar as temáticas jurídicas com métodos, objetivos e procedimentos científicos durante a pesquisa bibliográfica acerca do neoconstitucionalismo e neoprocessualismo e suas implicações na efetividade e realização dos direitos fundamentais.

A pesquisa bibliográfica, utilizada como método para a obtenção de informações, tem por objetivo aprimorar e atualizar o conhecimento mediante uma investigação científica de obras conhecidas sobre um determinado tema.

Esse tipo de pesquisa se encerra em si mesmo, sem necessidade de uma segunda etapa de levantamento empírico, tendo em vista que a metodologia aplicada é a dedutivista cartesiana, não a empirista baconiana. A proposta se insere em um questionamento teórico e procura verificar em que medida as teorias conseguem responder à problematização proposta sob análise.

Sob esta perspectiva, a dissertação assevera que o processo é um instrumento garantidor da efetivação da justiça desde que utilizado mediante critérios racionais, sem o excesso de formalismos que criam uma camisa de força para a sua implementação. Defende a ótica do instrumentalismo processual, que se efetiva mediante a flexibilização dos procedimentos, como garantidor da efetividade do processo, e rejeita o método do formalismo exacerbado. O trabalho toma como base as argumentações de autores que se aprofundaram nesta temática, bem como as conclusões do próprio autor.

A aplicação prática da metodologia cartesiana dedutivista se divide, basicamente, em quatro etapas: evidência, análise, síntese e enumeração.

Sob o enfoque da evidência, tem-se que nunca se deve tomar o objeto de estudo como verdade absoluta quando não se tem o conhecimento real do assunto, ou seja, não seria possível presumir determinado fato ou conclusão como verdadeiros em um primeiro ponto de vista. A introdução, bem como os capítulos 1 e 2 procuram satisfazer essa etapa.

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A análise consiste em dividir cada uma das dificuldades existentes dentro do problema, com o intuito de interpretá-las para entender o problema com maior complexidade. Em outras palavras, ao observar um problema complexo, faz-se necessário dividi-lo em partes menores, com o intuito de que seja possível compreender o fenômeno mais obscuro que se pretende vislumbrar. O capítulo 3 procura satisfazer essa etapa.

A síntese consiste em organizar as conclusões acerca das análises dos pequenos problemas identificados na etapa anterior, com o intuito de aglutiná-los em conhecimentos mais compostos, pressupondo uma ordem ou correlação entre estes, ou seja, procura juntar os problemas que foram divididos na etapa anterior. O capítulo 4 procura satisfazer essa etapa.

Por fim, a enumeração se refere à conclusão do esforço intelectual do autor, consistente em enumerar todas as revisões de forma tão ampla a ponto de que o autor tenha certeza de não ter omitido nada dentro de seu ponto de vista, ou seja, trata-se do final do processo dedutivo e envolve, necessariamente, a opinião do autor sobre o tema posto em debate. O capítulo 5 procura satisfazer essa etapa.

1. O processo e a sua utilidade para o direito

A necessidade de se pensar em formas pré-estabelecidas para solucionar o conflito entre as pessoas surge da necessidade de afastar as partes de praticarem justiça com as próprias mãos, o que poderia tornar a vida em sociedade impraticável, dado que o conflito surge justamente da divergência de posicionamento entre os indivíduos. Ou seja: haverá conflito sempre que duas partes detiverem posicionamentos divergentes em determinada situação e não estiverem dispostas a transigirem para a efetiva resolução consensual da querela.

Para que o conflito seja resolvido sem que as partes busquem as suas pretensões pela própria força, pensou-se na figura de um terceiro distante de ambas, livre de qualquer pendência com qualquer delas, para que este pronuncie acerca de quem estaria com a razão, e quem deveria ser condenado à determinada prestação.

Não seria justo permitir uma interpretação do direito se esta fosse aplicada de forma a não possibilitar que as partes expusessem as razões sobre os motivos pelos quais teriam determinado direito, ou se o magistrado determinasse quais seriam os procedimentos sem que as partes pudessem ter o conhecimento prévio destes para se prepararem aos referidos atos, e, com isso, surge a necessidade de se estabelecer ferramentas para que as partes possam apresentar as suas razões e as suas provas a este terceiro, que analisará o direito e porá fim a contenda.

Ou seja: a necessidade de se estabelecer um conjunto prévio de atos concatenados para que as partes tenham condições de exporem as suas razões e as suas provas vem, justamente, da necessidade de se efetivar o próprio direito material, que é interpretado de acordo com normas previamente estabelecidas em uma sociedade.

É certo dizer que o direito processual, em seus diversos ramos, como o civil, penal, trabalhista, etc., é uma ciência autônoma, pois possui regras e princípios próprios para a sua interpretação e efetivação, contudo, a sua essência é desnaturada se este não servir para efetivar o direito material (civil, penal, trabalhista, etc.).

No âmbito brasileiro, verifica-se que que a evolução das formas de se estabelecer previamente estes atos concatenados eram dispostos pelas Ordenações Filipinas, depois pelo Regulamento n.º. 737, que trouxe um Código para regular as causas comerciais, depois pelos Códigos Estaduais, legitimados pela Constituição Federal de 1891, pelo Código de Processo Civil de 1939, pelo de 1973, e, por fim, pelo que fora publicado em 2015.

1.1. Praxismo, processualismo, instrumentalismo e neoprocessualismo

Conforme as sociedades evoluíam, em cada momento houve uma necessidade distinta para a organização sobre as formas de solução de conflitos e que era atendida por intermédio da evolução e atualização das normas processuais anteriormente publicadas, sempre com o intuito de melhor atender as necessidades das partes e para promover um julgamento justo. Basicamente, o processo passou por quatro evoluções metodológicas: o praxismo, processualismo, instrumentalismo e o neoprocessualismo.

O praxismo traz a ideia de que o processo não poderia ser considerado uma ciência autônoma, mas totalmente dependente do direito material. As questões processuais e procedimentais se confundiam entre si, não havia um estudo aprofundado sobre a matéria e havia carência de institutos jurídicos prévios para balizar a relação processual, problemas estes que acabavam sendo resolvidos pela experiência das partes, advogados, ou do próprio julgador; no período do processualismo houve a convolação do processo como uma definitiva ciência autônoma, com regras, princípios e institutos próprios, diversos do direito material; na fase do instrumentalismo, houve a preocupação com o excesso de formalidades preconizados pela fase anterior, que estudava o processo sem qualquer relação com o direito material, e, com isso, houve a necessidade de moldá-lo justamente para o atingimento da referida finalidade; por fim, atualmente é possível verificar o processo sobre uma nova moldura, justamente a do neoprocessualismo, que traz, além do ideal de utilização do processo para o atingimento da finalidade material pretendida na demanda, o reconhecimento da força normativa da Constituição Federal, com princípios aplicáveis diretamente na prática processual, de mudanças na técnica legislativa, com o intuito de permitir uma maior interpretação da norma processual pelas partes e pelo magistrado, da criatividade judicial, e, por fim, de um modelo cooperativo entre o magistrado e as partes para se pretender ao atingimento de uma participação efetiva nos atos processuais.

É impossível deixar de verificar uma extrema semelhança sobre a evolução da interpretação do direito material com a própria interpretação do direito processual. Nos primórdios dos estudos jurídicos, o direito era aplicado exclusivamente por intermédio da racionalidade humana (jusnaturalismo). Após essa fase, houve a introdução do positivismo jurídico, com uma teoria pura do direito que o justificaria em si mesmo, afastando qualquer resquício da moral ou relacionado à racionalidade humana, focando exclusivamente em uma interpretação dentro das balizas gramaticais escritas nos textos legais e constitucionais. Com o fracasso deste extremismo jurídico, existiram graves desastres sociais e o direito, novamente, foi sendo readequado para, paulatinamente, incluir os traços da razão e da moral humanas para que fosse efetivamente utilizado como uma ferramenta à serviço da justiça. A estes resquícios morais e de razão humanas, positivados em Constituições Federais para manter o respeito à cultura positivista, denominou-se intitulá-los como princípios interpretativos da norma jurídica.

Tanto no âmbito material quanto no âmbito processual, verifica-se que inicialmente as normas eram sempre aplicadas com base na moral e na razão humanas, e que, após um período, tende-se a interpretar as normas de uma forma estritamente gramatical, para, ao fim, reintroduzir, dentro de normas positivadas, a possibilidade de se interpretar o fenômeno jurídico com base nos valores iniciais.

Contudo, em que pese a utilização do processo civil ser voltada como uma ferramenta para o atingimento da pretensão material, podendo ser readequado para que esta finalidade seja atingida, com o processo penal não seria possível concluir a mesma significação. Não seria possível dotar o processo penal de instrumentalidades procedimentais abrangentes, mas sim de uma ótica que, caso exista qualquer tipo de dúvida para a aplicação da pena, haja um benefício ao acusado, dado que o processo penal, além de permitir a possibilidade de se efetivar a pretensão punitiva estatal (direito material), este também deve resguardar direitos materiais mínimos ao réu, como a dignidade da pessoa humana, em suas vertentes ramificadas em valores voltados à liberdade de locomoção e de integridade física.

Dada a peculiaridade havida no âmbito penal, cuja pretensão material é, justamente, a pretensão punitiva contra um indivíduo que está sendo acusado pelo Estado, cuja efetivação culminaria com a privação da liberdade ou de direitos do sujeito, o rigor às formalidades no âmbito do processo penal ganha um destaque de potencial relevância, dado que, caso este não seja cumprido e exista prejuízo à defesa do acusado, isto acabaria por encaminhar-lhe ao cerceamento de um de seus direitos mais caros: a própria liberdade, que é um princípio fundamental positivado na Constituição Federal Brasileira.

... o objeto do processo penal é uma pretensão acusatória, vista como a faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz através de uma pena ou medida de segurança. O titular da pretensão acusatória será o Ministério Público ou o particular. Ao acusador (público ou privado) corresponde apenas o poder de invocação (acusação), pois o Estado é o titular soberano do poder de punir, que será exercido no processo penal através do juiz, e não do Ministério Público (e muito menos do acusador privado).[5]

Por conta da finalidade da pretensão havida entre o âmbito civil e penal, a própria norma processual penal acaba diferindo da norma processual civil. Enquanto a efetivação da primeira poderia acarretar a restrição da própria liberdade do indivíduo, por intermédio de prisões como medidas de cautela, a segunda poderia, ao máximo, restringir uma parcela do patrimônio, bem como eventuais direitos, e, em casos excepcionais, restringir por um tempo muito menor a liberdade do indivíduo por intermédio da prisão civil.

Todo este esforço para demonstrar que a instrumentalização abrangente de procedimentos de caráter penal ou sancionatório poderia acarretar a violação de outros princípios voltados ao indivíduo, ao passo que a instrumentalização de normas de caráter procedimental privado poderia efetivar com maior êxito o direito material pretendido pela parte. O presente trabalho não se debruçará sobre as discussões existentes entre uma eventual incompatibilidade entre a teoria geral clássica do processo geral e o processo penal, mas pretende, tão somente, ressaltar, que, em que pese estar sendo proposta a ideologia de um processo que ultrapasse barreiras formais para se atingir a efetiva pretensão material da parte, este, no âmbito penal, deve ser observado com cautelas, dado que, em todos os momentos, deve haver o atendimento a princípios gerais que norteiam a marcha processual, pois de nada adiantaria congratular a efetividade de um processo que não garanta igualdade entre ambas as partes para exporem as suas razões.

Diz-se, neste trabalho, processo de natureza penal ou sancionatória, pois o mesmo cuidado com determinados princípios reflexos de natureza material poderia ser vislumbrado em outros procedimentos cujo Estado configura como o pretendente de uma punição contra um particular. Nos processos administrativos e de natureza pública, difusa ou coletiva em geral, é verificável que o Estado configura como a parte que pretende fiscalizar a ocorrência de um ilícito para que se aplique uma pena ou uma prestação ao particular, ao passo que, na relação cível ou particular, o que existe é uma discussão sobre a concretização de uma pretensão material de um indivíduo contra outro, ou uma pretensão unilateral, quando ocorre o fenômeno da jurisdição voluntária, sem o intuito de buscar eventual sanção pública da parte contrária, mas somente para concretizar a prestação que esta esteja obrigada a adimplir, ou eventual direito a ser declarado por parte do magistrado. A estes últimos tipos de processo, dá-se, para os fins deste trabalho, a nomenclatura de processo de natureza privada.

A interpretação principiológica do fenômeno jurídico-processual deve sempre levar em consideração a totalidade dos princípios que estão envolvidos na discussão: se, no âmbito particular, os intrínsecos a garantir a oportunidade que ambas as partes possuam para exporem as suas razões, e, no âmbito público ou sancionatório, além das primeiras garantias, também a de proporcionar a defesa de outros princípios reflexos, como os da liberdade de locomoção e derivados.

Ora, e se assim o é, falar-se-á que a flexibilização dos procedimentos, com o intuito de se atingir a pretensão material da parte, nada mais é do que a aplicação do neoprocessualismo, que, conforme constatou-se anteriormente, decorreu de uma evolução processual que acompanhou, em paralelo, a própria evolução sobre a interpretação sobre o fenômeno jurídico[6] .

Desta feita, é imperioso que haja a análise, com maior vagar, sobre as características desta nova ótica neoprocessual.

A inefetividade da instituição de um processo pautado em procedimentos extremamente rígidos, que obstaculizam a sua efetividade, veio sendo estudada por parte da doutrina, que identificou a necessidade de tornar o processo como um fenômeno cultural, imbuído de valores constitucionais, e não com base no mero tecnicismo procedimental:

Acrescento que, no ambiente cultural brasileiro, quando se fala em formalismo geralmente não se tem em mente o seu sentido positivo, mas apenas e tão somente o negativo. O formalismo é considerado, assim, como excesso de formalidades, a dificultar o trabalho do juiz e dos advogados, obstaculizando a marcha adequada do processo e a realização da justiça, seu fim principal. Não se olha o outro lado da moeda. Entre outras coisas, o papel ordenador do formalismo, que contribui para a efetividade, e o seu aval como garantia do cidadão contra o arbítrio estatal, emprestando assim suporte à segurança.

A tese, contudo, não só lida com todas essas expressões do problema, como também visualiza o processo como fenômeno cultural, embebido de valores, e não como mera técnica, o que justifica a expressão formalismo-valorativo. Ademais, essa nova visão do processo pode colaborar, e essa é enfim a maior aspiração, para sua melhor compreensão e uma mais efetiva realização da justiça.[7]

Em que pese a assertiva de que o formalismo é necessário para evitar os possíveis arbítrios cometidos pelo julgador, decerto que o formalismo exacerbado não deve ser prestigiado, pois desnatura a função essencial do processo, que é, justamente, a busca pelo pronunciamento acerca do direito material que está sendo pretendido.

O formalismo desmesurado ignora a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz, bem como se afasta da visão neoconstitucionalista do direito, cuja teoria proscreve o legicentrismo e o formalismo interpretativo na análise do sistema jurídico, desenvolvendo mecanismos para a efetividade dos princípios constitucionais que abarcam os valores mais caros à nossa sociedade.[8]

Pouco importa, sob a ótica neoprocessual, se o processo tenha cumprido com todos os requisitos procedimentais se, para tanto, houve o desrespeito aos valores sociais e jurídicos elencados na Constituição Federal, bem como à própria finalidade do processo, que deve ser a de conduzir ao julgamento do mérito da demanda. Por exemplo, de nada adianta a lei dizer que presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural[9] se o magistrado, por convicções pessoais, indeferir o pedido de justiça gratuita à pessoa natural e determinar que junte provas negativas ou diabólicas[10] que, em muitos casos, não possua capacidades para produzir. Em muitos casos haverá o indeferimento ab initio dos pedidos formulados pela parte por conta da criação de um obstáculo procedimental que vai de afronta à própria letra da lei e à própria Constituição Federal quando esta prevê a inafastabilidade da jurisdição.

A consequência lógica deste formalismo procedimental exacerbado, é, como frisado anteriormente, a desnaturação da própria finalidade do processo, pois o julgador, ao se debruçar em uma interpretação preciocista acerca do formalismo, acaba por sequer adentrar ao mérito da demanda trazida pelo jurisdicionado. Desta feita, como se falar em justiça?

Ora, neste exemplo, há a verificação de um processo perfeito, mediante a conclusão ou não dos procedimentos que foram determinados pelo magistrado, contudo, em caso de indeferimento da ação, mesmo que este seja processualmente correto, seria possível falar que este é materialmente justo? Cercear o direito de ação a um jurisdicionado que financia, por intermédio do pagamento de tributos, o poder judiciário, por conta de um procedimento que poderia ser facilmente superado, seja pela interpretação gramatical da norma, seja pelo diferimento do pagamento das custas para o final do processo, seria um ato justo ou constitucionalmente válido sob a interpretação dos valores constitucionais?

E é justamente esta a visão neoprocessualista: a de garantir que o processo seja dotado de efetividade, por intermédio da ótica constitucional aplicável no caso concreto.

Zagrebelsky, com seu conceito de ductilidade do direito, acrescenta aos caracteres gerais do direito constitucional atual os seguintes aspectos: a transformação da soberania, a soberania da constituição, a aspiração à convivência dos princípios e a fluidez da dogmática.

Em primeiro lugar, destaca-se o projeto de superação da divisão da Europa em estados nacionais zelosos de sua soberania. O princípio original da soberania trazia implícita o princípio de exclusão e beligerância frente aos outros, pois um estado soberano não poderia admitir competidores, devendo anular seus antagonistas.

E o direito público do Estado moderno da Europa se construiu sobre o princípio fundamental da soberania. Essa foi a marca do século XX, que viu o apogeu e o declínio do Estado de força, inclusive dos estados totalitários, que sucumbiram aos princípios políticos do liberalismo e da democracia. Tal conceito de soberania se expressava do ponto de vista jurídico na metáfora do Estado como uma pessoa soberana, abstrata, porém capaz de manifestar sua vontade e realizar ações concretas através de seus órgãos, presumivelmente neutra na defesa da paz e da ordem as razões de Estado e o direito do Estado. Mas pelo menos desde o século XIX tal neutralidade do Estado vinha sendo denunciada como uma farsa por trás da qual se escondiam interesses de grupos privilegiados, classes sociais dominantes e até mesmo dos funcionários do Estado.

Mas tais noções se desintegraram a partir do final do século XX sob o impacto de forças como o pluralismo político e social, ao surgimento de centros de poder alternativos tanto em nível nacional quanto multinacional (e, portanto, fora do alcance do Estado) e, por fim, à criação de instâncias supranacionais (desde uniões alfandegárias a blocos de nações) que ameaçam a soberania dos estados particulares.

Com a desagregação da antiga noção de soberania, não se verifica, no entanto, o retorno à situação pré-estatal de insegurança e imposição pela força, mas se vislumbra o nascimento de um novo direito independente marcado pela descentralização estatal. Deixa de existir o tradicional ponto unificador axiomático no direito público. Novos atores devem formular, propor e aperfeiçoar suas categorias, mas essas não podem se afirmar de maneira prévia e axiomática como antes acontecia com a soberania do Estado:

Éste es el rasgo característico de la situación actual. Las categorias del derecho constitucional, para poder servir como critério de acción o de juicio para la práxis, deben encontrar uma combinación que ya no deriva del dato indiscutible de um centro de ordenación. Por usar uma imagen, el derecho constitucional es um conjunto de materiales de construcción, pero el edificio concreto no es obra de la Constitución em cuanto tal, sino de uma política constitucional que versa sobre las posibles combinaciones de esos materiales[11]

Zagrebelsky assinala que as sociedades atuais são marcadas pela presença de diversos grupos sociais com diferentes interesses, ideologias e projetos, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, desta forma, restabelecer o velho conceito de soberania estatal. Tais sociedades pluralistas são dotadas de um certo grau de relativismo e encaram a Constituição não como a tarefa de estabelecer diretamente um projeto determinado de vida em comum, mas de realizar as condições de possibilidade delas.

A partir da Constituição como uma plataforma de partida que representa a garantia de legitimidade para cada um dos setores sociais, abre-se uma competição para que cada grupo busque imprimir ao Estado uma determinada orientação, no âmbito das possibilidades oferecidas pelo compromisso constitucional. É por isso que também se fala em substituição da soberania do Estado pela soberania da Constituição.

A sobrevivência de sociedades pluralistas e democráticas depende da espontaneidade da vida social e da existência de competição para assumir a direção política da sociedade, o que só é possível com constituições abertas. Estas, por sua vez, dependem de um compromisso de possibilidades, e não de um projeto rigidamente ordenador que possa assumir-se como um a priori da política com força própria, de alto a baixo, ou seja, a assunção de uma Constituição democrática caracterizada apenas por uma proposta de soluções e coexistências possíveis.

Zagrebelsky apresenta a imagem de ductilidade como característica essencial do direito dos Estados constitucionais atuais, em que a coexistência de valores e princípios é a base de uma Constituição que não renuncie a seus fundamentos de unidade e integração e não se faça incompatível com sua base material pluralista. Para isso, esses valores e princípios devem se assumir com caráter não absoluto, de modo a se compatibilizar com os daqueles com os que se deve conviver. Absoluto somente se pode admitir o duplo imperativo do pluralismo dos valores e da lealdade nos enfrentamentos. Somente para garantir a sobrevivência desse duplo imperativo é que se poderia admitir a salvaguarda das antigas razões de soberania:

Los términos a los que hay que associar la ductilidade constitucional de la que aqui se habla son la coexistência y el compromisso. La visión de la política que está implícita no es la de la relación de exclusión e imposición por la fuerza (em el sentido del amigo-enemigo hobbesiano y schmittiano), sino la inclusiva de integración a través de la red de valores y procedimentos comunicativos, que es además la única visión no catastrófica de la política posible em nuestro tiempo[12]

O autor ressalta a característica do tempo atual de aspiração à (difícil) convivência entre os muitos princípios que emergem da convivência coletiva, tanto os valores individuais quanto os coletivos. Uma convivência necessária, mas difícil porque os valores são irreconciliáveis, mas em que nenhum deles prevalece sobre os demais, mas sim a garantia de existência dada legalmente a todos eles.

Trata-se de uma exigência atual o abandono do que se costuma chamar de soberania de um único princípio político dominante, de onde se deduzem todas as execuções concretas. Ao contrário, ao se falar de direito atual, deve-se levar em conta um modo de pensar possibilista.

Diante de tal realidade, o autor defende a exigência de uma dogmática jurídica líquida ou fluida para permitir que os elementos do direito constitucional da época atual possam ser agrupados de maneira não rígida, que permita combinações que derivem não do direito constitucional, mas da política constitucional. A isso ele chama de instabilidade das relações entre os conceitos, consequência da instabilidade resultante do jogo pluralista entre as partes que se desenvolve na vida constitucional concreta:

La dogmática constitucional deve ser como el líquido donde las sustancias que se vierten los conceptos mantienen su individualidade y coexisten sin choques destructivos, aunque com ciertos movimentos de oscilación, y, en todo caso, sin que jamás um sólo componente pueda imponerse o eliminar a los demás. Puesto que no puede haver superación en una síntesis conceptual que fije de una vez por todas las relaciones entre las partes, degradándolas a simples elementos constitutivos de una realidad dogmática rígida no puede ser el objetivo de la ciencia constitucional[13]

Conclui o autor que o direito constitucional atual se caracteriza estruturalmente pela presença de elementos constitutivos que, para poder coexistir, devem ser relativizados entre si, isto é, tornar-se dúcteis ou moderados.

Em que pese o autor versar sobre o direito material constitucional, a sua ideia acerca de uma dogmática jurídica líquida ou fluída converge com a acepção neoprocessualista, dado que, pelo que se nota, esta nova evolução do processo se dedica a justamente fundamentar os valores constitucionais nesta seara, assim como ocorre no âmbito material.

É importante novamente relembrar a comparação acerca da evolução metodológica do direito e do processo, pois, em que pese serem disciplinas autônomas em termos científicos, percebe-se que ambas evoluíram com a mesma base teórica, e ambas acabam, atualmente, se encontrando na necessidade de efetivação da Constituição Federal.

Adentrando-se especificamente no âmbito do neoprocessualismo, as faíscas iniciais da discussão da matéria no Brasil se iniciam com Cândido Rangel Dinamarco, nas teorias sobre o direito processual, principalmente ao destacar sobre a sua vertente instrumentalista.

Segundo o autor, um primeiro questionamento se dá ao entendermos que a ação se dirige ao juiz e não ao processado. Com isso se dá a autonomia da ação e dos elementos processuais, que são distintos. Desta forma, o direito processual surge como ciência, com objeto próprio, gerando novos estudos e premissas metodológicas a partir de então com esse novo viés.

Ainda segundo Dinamarco, o direito processual passa a ser instrumento para a implementação do direito material. Há de ser suficientemente justificada lógica e juridicamente, garantida a ampla defesa e acesso livre a todos, independentemente de sua situação econômica, ao sistema de resolução de resolução de conflitos. Ressalta outro princípio metodológico moderno que tem em vista os valores garantidos pela Constituição, sobretudo, liberdade e igualdade, que aprimoram o direito processual.

O processo jurídico não pode ser imposto, mas aceito entre as partes:

Naturalmente, essa legitimidade tende a caminhar para graus mais elevados e animadores, à medida que o próprio sistema se aperfeiçoe, com maior abertura do canal de acesso, maior celeridade na produção dos resultados, menos formalismo na busca da boa solução, ou seja, à medida que se aproxime do ideal representado pela plena efetividade do controle jurisdicional.[14]

A metodologia instrumentalista de Dinamarco

inaugura (ou, quando menos, renova) a preocupação teórica com os resultados do processo, com a sua capacidade não apenas de propiciar aos litigantes a atuação concreta do direito material (escopo jurídico), mas, também, de servir de instrumento de pacificação social (escopo social) e garantidor da participação dos indivíduos nos destinos da sociedade (escopo político). Nessa perspectiva, o processo passa a ser encarado não mais como simples elo de ligação (interface) entre o direito abstrato desatendido (direito positivo) e o direito concreto realizado (direito subjetivo), assumindo uma dimensão ampliada, de instrumento voltado para fora do sistema, que tem por objetivo primordial a entrega de uma prestação jurisdicional adequada, tendente à realização do ideal de justiça.[15]

Para Dinamarco a Constituição reflete o contexto político-social de um país, bem como o direito processual como forma a salvaguardar os valores individuais e coletivos de então. Desta forma, sugerir a neutralidade ideológica do direito processual se traduz em um formato conservador inadequado, porque as mudanças políticas redundam inevitavelmente em mudanças constitucionais. Adverte, no entanto, os possíveis descompassos constitucionais em situações que exigem reformulações legais.

Acerca da proposição de que os processos são instrumentos de mudanças legais, Dinamarco admite que os juízes, em suas decisões, acabam por interferir e modificar as leis, em decorrência da interpretação legítima que fazem de uma situação concreta.

Já no âmbito do neoprocessualismo, este prevê a autonomia do direito processual, porém, o instrumentaliza, a fim de concretizar os direitos fundamentais:

Este direito ao processo justo compreende as principais garantias processuais, como as da ação, da ampla defesa, da igualdade e do contraditório efetivo, do juiz natural, da publicidade dos atos processuais, da independência e imparcialidade do juiz, da motivação das decisões judiciais, da possibilidade de controle recursal das decisões etc. Desse modo, pode-se afirmar que o direito ao processo justo é sinônimo do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada[16]

Ou seja, foi em Dinamarco, com a sua concepção acerca da instrumentalidade do processo, que a semente do neoprocessualismo, cuja nomenclatura faz total alusão ao fenômeno do neoconstitucionalismo, fora plantada.

Não se pode, todavia, confundir o instrumentalismo com o neoprocessualismo. É que a ideia de instrumentalismo remete às soluções intrinsecamente aplicáveis ao caso concreto, enquanto a ótica neoprocessual abarca a utilização do processo como forma de efetivar igualmente os próprios valores processuais-constitucionais alçados ao nível de princípios no texto da Constituição Federal Brasileira, que melhor serão explicados oportunamente. Ou seja, o neoprocessualismo seria capaz de garantir ainda mais a ideia de efetividade do processo, pois esta seria diretamente relacionada com o cumprimento e efetividade da própria Constituição Federal. Logo a lide não se traduz em um mero desentendimento entre as partes, mas sim em uma situação que atinge o interesse constitucional de serem garantidos os princípios e valores de ordem processual nela contidos, o que beneficia ainda mais a busca pela justiça, em detrimento à busca pelo mero cumprimento de excessivos formalismos burocráticos e demasiadamente tecnicistas.

De acordo com Gabriel Barreira Bressan, em sua dissertação de mestrado voltada ao neoprocessualismo, com a promulgação da Constituição brasileira de 1988, o neoprocessualismo se estabelece com premissas teóricas. Rompe com o positivismo que abarca o formalismo exacerbado, reforça a importância da ética no Direito e reconhece a Constituição como elemento norteador e garantidor dos direitos fundamentais no Direito Processual.

Substituindo o praxismo, o formalismo exacerbado e o instrumentalismo, surge o quarto período metodológico, o formalismo-valorativo, ou neoprocessualismo, que se fundamenta a partir dos contextos políticos e culturais que vão nortear o processo.

Deve-se entender que o formalismo-valorativo é um garantidor dos aspectos jurídico-constitucionais, ao mesmo tempo que permite a flexibilidade, dando abertura às múltiplas razões das partes. Essa flexibilidade exprime as variações dos intérpretes, ou seja, da interpretação dos textos jurídicos por diferentes julgadores que se disponham a dialogar democraticamente.

O marco fundamental da nova fase neoprocessualista no âmbito brasileiro é o Código de Processo Civil de 2015, quando em seu artigo primeiro, afirma que o processo civil será interpretado com base em valores e normas fundamentais da Constituição brasileira. Tal determinação legitima as teses do formalismo-valorativo.

O formalismo-valorativo prevê a expansão teórica para um esquema interdisciplinar na construção do processo, expandindo as fronteiras para os conhecimentos filosóficos, sociológicos entre outros.

Daí a constatação de que a organização da justiça civil e em particular a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo investigar-se as funções sociais por elas desempenhadas e em particular o modo como as opções técnicas no seu seio veiculam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou mesmo antagônicos (interesses de padrões ou de operários, de senhorios ou de inquilinos, de rendeiros ou de proprietários fundiários consumidores ou de produtores, de homens ou de mulheres, de pais ou de filhos, de camponeses ou de citadinos)[17]

O neoprocessualismo vem, portanto, se situar numa combinação de elementos positivos que se colocam como uma nova fase metodológica que transcende o instrumentalismo.

Tratam-se, pois, o instrumentalismo e o formalismo-valorativo, de proposições teóricas concebidas, no contexto da superação do formalismo característico da fase autonomista do Direito Processual Civil Brasileiro, com o propósito de possibilitar a realização da justiça no processo, mas que procuram atingir essa finalidade por meio da aplicação de técnicas claramente distintas, exatamente porque partem, uma e outra doutrina jurídica, compreensões igualmente dessemelhantes sobre qual seria o verdadeiro papel da atividade cognitiva desenvolvida pelos intérpretes no campo da aplicação do Direito. (MADUREIRA, 2015, p.256)

Destarte, é imperioso ressaltar que, atualmente, há amparo para a ótica neoprocessualista no âmbito do direito interno brasileiro, e, conforme se verificará, esta poderá ser efetivada por intermédio da flexibilização dos procedimentos em prol da solução do conflito, com a consequente análise do direito subjetivo submetido ao magistrado, contrastando com a ideia de formalismo exacerbado.

1.2. Processo e Procedimento

Importante que não restem dúvidas quanto a diferenciação de processo e procedimento, até porque, o que se defende é justamente que haja a instrumentalização dos procedimentos e não do processo em si. E para que não restem dúvidas: a ideia de um processo instrumental abarca diretamente a ideia de flexibilização de procedimentos.

Processo pode ser entendido como o conjunto de normas pré-estabelecidas destinadas a garantir a atuação do poder jurisdicional, permitindo aos participantes a oportunidade de apresentarem as suas versões acerca dos fatos, com o intuito de, ao final, ser exarada uma decisão acerca do direito material discutido no caso concreto. Já procedimento significa a exteriorização fática dessas normas, ou seja, a aplicação in loco das normas processuais, com o intuito de materializar a participação das partes no âmbito de determinada discussão jurídica.

Defendemos que processo e procedimento são ideias distintas. Inclusive, foi a partir do estudo da distinção entre processo e procedimento, preconizado por Büllow, em meados de 1860, que a autonomia científica alcançada pelo direito processual foi se consolidando.

Enquanto o processo caracteriza-se por seu caráter teleológico, isto é, por sua finalidade precípua de permitir o exercício do poder jurisdicional para a aplicação dos preceitos constitucionais e a eliminação dos conflitos, com o objetivo de realizar a justiça possível naquele caso, o procedimento é o elemento visível do processo. Constitui apenas o meio extrínseco pelo qual o processo é instaurado e desenvolvido. Trata-se, na verdade, de sua manifestação fenomenológica.[18]

Nas palavras de Dinamarco

No cenário das instituições jurídicas do país, o procedimento tem o valor de penhor da legalidade no exercício do poder. A lei traça o modelo dos atos do processo, sua sequência, seu encadeamento, disciplinando com isso o exercício do poder e oferecendo a todos a garantia de que cada procedimento a ser realizado em concreto terá conformidade com o modelo preestabelecido: desvios ou omissões quanto a esse plano de trabalho e participação constituem violações à garantia constitucional do devido processo legal. No Estado-de-direito, como foi dito, não se concebe como possa o juiz, no exercício da jurisdição, realizar atividades cujo escopo jurídico é a atuação da lei, mas realizá-las com o campo aberto para o arbítrio.

Isso não significa que o due process of law se resolva em mera garantia de legalidade. O que importa é a estrutura de oportunidades e de respeito a faculdades e poderes processuais que a Constituição e a lei impõem ao juiz que comanda o processo. A observância da lei torna-se importante, nesse contexto, como meio de preservar o devido processo constituído por essa estrutura. O alcance da cláusula vai além dos limites do processo jurisdicional e por isso são frequentes as afirmações de sua natureza extraprocessual, ou substancial.

No contexto processual bastante amplo afirmado pela doutrina moderna, due process of law é mais que uma garantia: é o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. É também, por outro aspecto e em outras palavras, um sistema de limitações ao exercício do poder limitações postas ao juiz como penhor da efetividade das garantias do contraditório e ampla defesa. Em sua redução mais sintética, é uma garantia de justiça e consiste no direito ao processo, ou seja, direito ao serviço jurisdicional concretamente prestado e às oportunidades que o conjunto de normas processuais-constitucionais oferece para a defesa judicial de direitos e interesses.[19]

Com o intuito de adentrar em questões práticas, analise-se, por exemplo, o instituto da citação, consistente no ato processual para que a parte interessada tome ciência sobre a existência de uma demanda jurídica proposta em face de sua pessoa. Neste contexto, a parte citada, interessada, possui duas alternativas: defender-se ou não, por se tratar de direito subjetivo. A ausência de apresentação de defesa poderá repercutir em efeitos quanto à interpretação a ser dada pelo juízo no tocante aos fatos apresentados pela parte proponente. O juízo poderá considerar a revelia do réu e interpretar que todos os argumentos fáticos tecidos pelo autor sejam tidos como verdadeiros, contudo, quando há a apresentação de defesa, o juiz analisará tanto a argumentação de uma parte quanto de outra para dirimir a questão fática, podendo, inclusive, determinar a produção de novas provas.

Somente neste exemplo, nota-se a existência de inúmeras questões processuais e procedimentais. Atendo-se especificamente ao ato citatório, tem-se que o cumprimento desta se refere à uma norma processual, pois é indispensável para a formação da relação jurídico-processual, contudo, a forma pela qual este ato processual se concretiza no mundo fático se refere ao âmbito dos procedimentos.

O art. 238 do Código de Processo Civil traz a disposição que citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual. O art. 239 dispõe que, para a validade do processo, é indispensável a citação do réu ou do executado, ressalvadas as hipóteses de indeferimento da petição inicial ou de improcedência liminar do pedido. O art. 240 dispõe que a citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz a litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor.

Ou seja, o Código de Processo Civil deixa claro que a citação válida é fundamental para a constituição da relação jurídico-processual. Destarte, há de se considerar que este ato se refere a uma norma processual, rígida, que não deve ser flexibilizada.

Porém, o mesmo Código de Processo Civil diz que a citação poderá ser feita por meio eletrônico, por carta, por oficial de justiça, por edital, ou, inclusive, por intermédio do comparecimento do interessado no cartório, sendo este verificado pelo escrivão ou chefe de secretaria. Há de se considerar que essa forma pela qual se efetivará a citação se situa no âmbito dos procedimentos, que devem ser flexíveis, eis que necessitam atender ao comando normativo processual exarado no artigo 238.

A celeuma que será mais bem trabalhada no decorrer deste trabalho é justamente a adoção de um preciosismo quanto aos procedimentos, que reflete no cerceamento do próprio comando normativo processual, que, conforme verificado alhures, sob a ótica neoprocessualista, está imerso nos princípios constitucionais. Em outras palavras, o procedimento, quando demasiadamente rigoroso a ponto de causar óbice tanto à norma processual quanto aos princípios e valores constitucionais, deve ser revisto ou flexibilizado, sob a ótica defendida neste trabalho.

Trazer-se-á a discussão acerca das irregularidades quanto ao ato citatório, indicado acima a título de exemplo.

Sobre o autor
Rodrigo Nunes Sindona

Advogado, mestre em direito pela FADISP, especialista em direito tributário, previdenciário e empresarial pela EPD, direito penal e constitucional pela Faculdade LEGALE, Defensor Dativo junto ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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