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Função social da propriedade: desapropriação, usucapião e agricultura familiar

Agenda 05/11/2022 às 16:45

Políticas agrárias no Brasil e seus instrumentos de redução das desigualdades sociais, em busca da garantia dos preceitos constitucionais.

                                                                                               "É a parte que te cabe deste latifúndio
                                                                                                     É a terra que querias ver dividida"

                                                                                                                                  (Chico Buarque)

 

 

Introdução

A discussão sobre o tema da função social da propriedade ganhou espaço na contemporaneidade, sobretudo com a valorização, constitucionalmente estabelecida no Brasil, de políticas agrárias e fundiárias, bem como da redução das desigualdades regionais e sociais terem sido listadas como alguns dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Entretanto, apesar disso, observa-se pouco avanço concreto nas políticas agrárias nas últimas décadas, sendo que no contexto político-ideológico que permeia a realidade atual brasileira, quase não tem havido ações voltadas à Reforma Agrária no Brasil.  

Neste âmbito, o presente trabalho percorre temáticas relativas à desapropriação rural e urbana, critérios de tredestinação e retrocessão, conceitos de latifúndio, minifúndio, usucapião, função social da propriedade e agricultura familiar.

 

Função social da propriedade e desapropriação: aspectos doutrinários e jurisprudenciais

A Constituição Federal brasileira traz, em diversos trechos, conceitos que fundamentam a relevância da função social da propriedade privada, como elemento legitimador da mesma. Como segue: 

 

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; (...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (...)

III - função social da propriedade;

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. (...)   (BRASIL, 1988)

 

Como é possível observar, a lei máxima em nosso país buscou assegurar, de maneira atrelada ao direito à propriedade, a necessidade de que a mesma exerça sua função social. Com isso, a propriedade privada não é, perante a Constituição Federal, um direito absoluto, sendo, portanto, condicionado ao uso que se faz da mesma, em solo brasileiro. 

Assim sendo, o instituto da desapropriação (estampado literalmente no artigo 184 da CF/88) se mostra, conforme alguns autores, como caminhando historicamente ao lado da noção de propriedade privada. Isto porque a característica de exclusividade da propriedade privada exclui o restante da comunidade de seu usufruto, enquanto a desapropriação, por outro lado, exclui o proprietário privado para colocar aquele bem à disposição da coletividade. Com isso, propriedade privada e desapropriação são pressupostas uma da outra (BEZNOS, 2016).

Neste contexto, dentre os fundamentos jurídicos da desapropriação está a função social da propriedade, ou seja, a noção que se baseia no fato de que a propriedade imobiliária, capitalista e hereditária somente pode ser explicada e considerada juridicamente legítima em uma determinada época se for socialmente útil (BEZNOS, 2016).  Trata-se de mecanismo voltado para reduzir desigualdades sociais no acesso à terra, partindo do princípio de que não é benéfico à sociedade ter propriedades de terra sem utilidade.

Referindo-se ao ambiente urbano, Pereira e Alencar (2018) mencionam, como consequências das alterações trazidas pela Constituição Federal de 1988 que: 

A propriedade passou a ter seu uso condicionado ao bem-estar social e ambiental, visando, sobretudo, a satisfação de componentes concernentes ao direito às cidades sustentáveis como o direito à moradia digna, o acesso a terra urbana, à infra-estrutura urbana, à saúde, educação, ao meio ambiente, ao transporte e aos serviços públicos, ao saneamento ambiental, ao trabalho, a cultura e ao lazer, viabilizando, assim, a concretização de parâmetros de justiça social. Verifica-se, portanto, que a propriedade urbana deve ser vista por uma ótica social, e não mais privada e egoísta. (PEREIRA & ALENCAR, 2018, P. 131)

Destaca-se, portanto, aspectos que extrapolam os limites tradicionalmente atribuídos à propriedade privada, transportando também para o coletivo referido conceito.

Nesta perspectiva, em âmbito urbano, dentre as propriedades que não contemplam o exercício de sua função social, estão os chamados  vazios urbanos, ou seja, regiões onde estão presentes terrenos e/ou edificações abandonadas ou subutilizadas, dentro das cidades, em locais considerados valorizados no mercado imobiliário pelo seu entorno e localização (PEREIRA & ALENCAR, 2018).

Já em âmbito rural, pode-se citar como exemplo de propriedades desprovidas de função social as terras improdutivas, ou seja, propriedades rurais que não alcançam graus mínimos de exploração exigidos por lei.

 Os trechos constitucionais que se debruçam sobre definições para o termo função social são os constantes nos artigos 182 e 186, como segue:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (...)

2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores." (BRASIL, 1988)


 

Entretanto, apesar destas definições expressas, parte da doutrina questiona a pretensão distributiva do conceito constitucional de função social. Dantas (2017), por exemplo, argumenta que o objetivo do legislador, ao definir função social tal qual se encontra disposto na Constituição Federal, foi somente o de coibir a não utilização das grandes propriedades, mantendo, no entanto, protegidos os latifúndios que demonstrarem um mínimo de produtividade.  Como forma de corroborar sua argumentação, afirma que não houve transformações distributivas significativas no Brasil após 1988, pois não teria sido identificada redução do número de latifúndios mesmo mais de 20 anos após a promulgação da Constituição (DANTAS, 2017).

Nesta mesma linha argumentativa, PEREIRA (2015) asseverou que, se por um lado a Constituição Federal de 1988 ampliou significativamente a esfera relativa aos direitos dos cidadãos, no que tange à questão fundiária o resultado não alcançou as reivindicações dos movimentos populares que surgiram na crise da ditadura. Para referido autor, historicamente, a fiscalização do Estado acerca do atendimento aos requisitos referentes à função social foi muito restrita e circunscreveu aspectos predominantemente  econômicos, não abarcando critérios ambientais e trabalhistas.  Tais elementos, segundo o autor, impediram a realização de uma reforma agrária estrutural e massiva no Brasil, até o momento (PEREIRA, 2015). 

Por outro lado, outros autores destacam a inquestionável intenção constitucional de redução das desigualdades, analisando-se os artigos 182 e 186 à luz do conjunto da CF/88, sobretudo o artigo 3º. Conforme Mitidieri (2019), as desigualdades sociais no Brasil passam pela concentração de terras, e, nesse contexto, a reforma agrária, ao enfrentar esta questão, define-se como política voltada para redução de desigualdades. Em suas palavras, A reforma agrária como comando constitucional e direito social não é uma opção de governo, mas uma imposição da Carta Magna, devendo operar sobre as terras que não cumprem sua função social. (MITIDIERI, 2019, p. 165).

Na esteira destas divergências doutrinárias, a jurisprudência brasileira nem sempre adota uma postura equânime na defesa de interesses da coletividade,  ao interpretar a função social, adotando, por vezes, posicionamentos conflitantes em situações diversas (CRAWFORD, 2017)

Apesar disso, temos, na prática jurídica cotidiana no Brasil, inúmeras decisões de Tribunais superiores que reconhecem a procedência de ações de desapropriação com base na perda da função social da propriedade, inclusive do próprio Supremo Tribunal Federal, conforme exemplos destacados a seguir. 

DECISÃO: (...) ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. INCRA. FAZENDA BANHADÃO. PERDA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. INDENIZAÇÃO. VALOR FIXADO PELO INCRA. MANUTENÇÃO. JUROS MORATÓRIOS. JUROS COMPENSATÓRIOS. CABIMENTO. CONSECTÁRIOS. 1. Caso em que houve desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural denominado "Fazenda Banhadão - parte 1", medindo aproximadamente 762,30 ha (setecentos e sessenta e dois hectares e trinta ares), em vista da perda da função social da propriedade. 2. Fixação do valor da indenização em conformidade com o estabelecido pelo INCRA. Precedente desta Corte. 3. Entende-se cabível a incidência dos juros compensatórios na desapropriação de terras improdutivas. Precedentes do STJ e desta Corte. 4. Mantida a sentença que julgou "procedente a ação de desapropriação, fixando a indenização a ser paga ao Expropriado em R$ 1.399.065,12, (representados por 18.132 TDA's e R$ 76,01 tocante à sobra de emissão de TDA's), referente à terra nua e acessões naturais e R$ 105.461,02 correspondente às benfeitorias úteis e necessárias, que é o valor da oferta inicial, fixado em novembro de 2001". 5. O valor da indenização deverá ser atualizado monetariamente, por meio do INPC e acrescido de juros moratórios e compensatórios. 6. Sem condenação em honorários advocatícios, eis que não foi observada diferença no quantum apurado pelo INCRA e o valor constante da sentença. 7. Mantida, ainda, a sentença que condenou o Expropriado ao pagamento das custas processuais devidamente atualizadas, bem como a ressarcir ao Expropriante os honorários do Perito, os quais já foram pagos, no valor de R$ 4.000,00, devidamente atualizado. 8. Apelação parcialmente provida. Opostos os embargos de declaração, foram acolhidos em parte para fins de prequestionamento. No recurso extraordinário sustenta-se violação do (s) art.(s) 5º, XXIV, e 184 da Constituição Federal. Decido. Analisados os autos, verifica-se que, para ultrapassar o entendimento do Tribunal de origem, seria necessário reexaminar os fatos e as provas dos autos, o que não é cabível em sede de recurso extraordinário. Incidência da Súmula 279 do STF. (...) RECURSO EXTRAORDINÁRIO MATÉRIA FÁTICA. O recurso extraordinário não é meio próprio ao revolvimento da prova. (RE 1066713-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 20/2/20). Ex positis, nego seguimento ao recurso (alínea c do inciso V do art. 13 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Havendo prévia fixação de honorários advocatícios pelas instâncias de origem, seu valor monetário será majorado em 10% (dez por cento) em desfavor da parte recorrente, nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil, observado os limites dos §§ 2º e 3º do referido artigo e a eventual concessão de justiça gratuita. Publique-se. Brasília, 21 de junho de 2021. Ministro LUIZ FUX Presidente Documento assinado digitalmente

(STF - ARE: 1326510 PR 0000776-26.2002.4.04.7002, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 21/06/2021, Data de Publicação: 22/06/2021)

 

REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. Autora que se diz proprietária de imóvel invadido pelo réu, pretende a reintegração. Sentença de improcedência. Pleito recursal. Incontroverso que a mesma área fora vendida à apelante (autora) e ao apelado (réu), tendo ambos adquirido o imóvel do legítimo proprietário, possuindo justo título. A função social da propriedade é um poder-dever do proprietário de dar ao objeto da propriedade determinado destino, de vinculá-lo a certo objetivo de interesse coletivo. A função social e socioambiental da propriedade encontra-se mais bem atendida estando o imóvel em posse do réu (apelado), eis que o fato de o endereço onde fora citado ter sido outro, não tem o condão de afastar a função social da propriedade, uma vez demonstrada, com sua utilização, o cumprimento de sua finalidade. Honorários advocatícios. Manutenção. O disposto no art. 85, § 11, do NCPC, constitui regra de julgamento que não incide sobre recursos opostos sob a égide da lei processual revogada, quando não se encontrava positivada tal hipótese de majoração do ônus sucumbencial. Sentença mantida. Apelo desprovido.

(TJ-SP - APL: 00041791220118260577 SP 0004179-12.2011.8.26.0577, Relator: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 21/02/2017, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/02/2017)

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APELAÇÃO CÍVEL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ABANDONO DO BEM. MELHOR POSSE. RECURSO IMPROVIDO. 1. A Constituição Federal protege a função social da propriedade, conceito ligado ao dever de boa administração e de boa gestão, assumindo forma de verdadeiro encargo social aplicado ao bem-estar da coletividade. 2. De acordo com os tribunais pátrios, a melhor posse está com quem mantem relação fática com o bem, dando-lhe finalidade e preservação. Inegável que foi a apelada, pessoa desprovida de recursos, que desempenhou melhor papel, nele residindo com sua família. Ressalta-se que os filhos da recorrida deram continuidade à posse até a presente data, o que totaliza 33 (trinta e três) anos.3. Recurso improvido.

(TJ-PE - AC: 5421081 PE, Relator: Alberto Nogueira Virgínio, Data de Julgamento: 18/12/2019, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 07/02/2020)

 

No entanto, nesta seara, observa-se intensos conflitos, sobretudo quando se trata de grandes concentrações de terras e questões atinentes à reforma agrária. Intensas disputas, inclusive judiciais, são levadas a cabo, envolvendo proprietários e movimentos sociais que buscam a democratização do acesso à terra. Não raro, o discurso jurídico dominante se mostra voltado para  resguardar o direito de propriedade, e, em detrimento disso, inviabiliza e criminaliza, com certa frequencia, as ocupações de terra pelo MST (BORGES, COSTA & LEITÃO, 2020). Como exemplo, segue decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais nesta direção:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - REINTEGRAÇÃO DE POSSE - FALTA DE INTERESSE DE AGIR - INEXISTÊNCIA - PLURALIDADE E INDETERMINAÇÃO DE RÉUS - CITAÇÃO - VALIDADE - DILAÇÃO PROBATÓRIA - DESNECESSIDADE - CERCEAMENTO DE DEFESA - INOCORRÊNCIA - AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO SOBRE EXERCÍCIO DA POSSE - REQUISITOS DEMONSTRADOS - POSSE ANTERIOR - ESBULHO - COMPROVAÇÃO - IMÓVEL RURAL - FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE - DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE PÚBLICO - REFORMA AGRÁRIA - DETERMINAÇÕES CONTIDAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E EM LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR - OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA - INVASÕES - DESCABIMENTO. 1. Ocorrendo esbulho possessório, o interesse de agir do autor a fim de obter a reintegração da posse do imóvel é patente e inquestionável na respectiva ação possessória. 2. Quando se trata de ação com polo passivo multitudinário flutuante, com previsível dificuldade de determinação e identificação dos invasores do imóvel, não é exigível a citação pessoal de todos os réus, sendo lícita a citação e intimação por edital dos incertos ou desconhecidos que compõem a coletividade do grupo ou movimento social e, por economia processual, dos requeridos que, apesar de nominados, não sejam encontrados pelo oficial de justiça no momento da diligência. 3. Havendo provas suficientes nos autos e, por isso, entendendo o Juízo singular, de forma motivada, pela desnecessidade de dilação probatória, não há que se falar em cerceamento de defesa e, consequentemente, em nulidade da sentença prolatada, mormente quando as partes tiveram oportunidade de se manifestar e nada postularam. 4. Reconhecido o exercício da posse, com motivação suficiente e indicação dos requisitos necessários, é inconteste a existência de decisão fundamentada. 5. A reintegração de posse deve ser concedida se comprovados a posse anterior e o seu esbulho. 6. A desapropriação de imóvel rural por interesse público, para fins de reforma agrária, deve observar as determinações contidas na Constituição de 1988 e em normas infraconstitucionais, inclusive com a finalidade de se constatar eventual (in) observância de sua função social, que não podem ser substituídas por invasões.

(TJ-MG - AC: 10000160371951002 MG, Relator: Maurílio Gabriel, Data de Julgamento: 03/12/0019, Data de Publicação: 11/12/2019)

Como é possível observar, a desapropriação é uma demanda recorrente dentre ações judiciais no país, chegando, muitas vezes, a instâncias superiores, envolvendo, via de regra, os valores de indenização estabelecidos no processo.

Uma vez caracterizado, ainda que brevemente, o ambiente doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, adentrar-se-á, a seguir, os procedimentos e regras que envolvem a desapropriação no Brasil.  Observa-se que estão previstas desapropriações tanto em âmbito rural como urbano, e enfrentam, no mérito, questões atinentes ao uso, ocupação e função social dos imóveis.

 

Tipos e procedimentos de desapropriação urbana e rural

A desapropriação é o meio pelo qual o Poder Público, de forma compulsória, transfere para si a propriedade privada, com base em razões de interesse público. Tal procedimento se dá nas modalidades ressarcitória (mediante prévia e justa indenização em dinheiro), e sancionatória (mediante prévia indenização em títulos públicos), ou, ainda, confiscatório (sem compensação financeira) (FISHER, 2018)

A chamada desapropriação confiscatória consiste na tomada da propriedade de uma dada pessoa (física ou jurídica), por uma autoridade pública, sem qualquer indenização ou ressarcimento. Tal hipótese está respaldada no art. 243 da Constituição de 1988 e regulamentada na Lei Federal nº 8.257/91, e incidirá sobre as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde houver culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou, ainda, a exploração de trabalho escravo. Conforme expresso na previsão normativa, nesses casos, as terras rurais confiscadas serão destinadas à reforma agrária e, as urbanas, a programas de habitação popular (FISHER, 2018)

A desapropriação sancionatória, por sua vez, tem o objetivo de penalizar o proprietário que não atende à função social do seu imóvel, podendo ocorrer tanto no meio urbano quanto no rural (BEZNOS, 2016). O mesmo não se pode dizer da modalidade ressarcitória, pois sua ocorrência está ligada à utilidade ou necessidade pública e não a uma destinação social insuficiente da mesma (FISHER, 2018).

Nos casos de desapropriação mediante indenização, é considerada justa aquela que reflita o preço atual de mercado do imóvel em sua totalidade, aí incluídas as terras e acessões naturais, matas e florestas e as benfeitorias indenizáveis (BEZNOS, 2016).

Como fundamentação jurídica para tais procedimentos, relevante mencionar o decreto-lei nº 3.365, de 21.06.1941, que dispõe, em seu art. 5º, sobre as hipóteses de desapropriação por utilidade pública (ex.: segurança nacional, defesa do Estado, socorro público em caso de calamidade, exploração ou conservação dos serviços públicos, entre outros). Outrossim, cumpre destacar a Lei nº 4.132, de 10.09.1962, que versa sobre os casos de desapropriação por interesse social, como o aproveitamento de bens improdutivos ou explorados sem que atendam às necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico (FISHER, 2018).

Em se tratando de imóveis rurais, conforme os arts. 184 e 185, I, da Constituição da República, poderão ser objeto de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, as grandes propriedades rurais e também as propriedades de porte médio ou pequeno que pertençam a quem já possui outro imóvel rural e que estejam descumprindo sua função social (BRASIL, 1988). 

Considerando-se o disposto no artigo 186 da CF/88, não são apenas imóveis rurais improdutivos que podem ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária, mas também aqueles que, ainda que produtivos, incorrem nas outras hipóteses de descumprimento de sua função social, muito embora estes casos sejam raros (OLIVEIRA, 2019). Importante mencionar ainda pela Lei Complementar nº 76/93, que trata do procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural por interesse social para fins de reforma agrária.

Na prática, são os artigos 6 a 9 da Lei 8.629/1993 que estabelecem os critérios e graus de exigência relativos às desapropriações. Em suma, considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra (GUT) e de eficiência na exploração (GEE) especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º da referida lei. Entretanto, importante destacar que há relevantes conflitos de interesse envolvidos, bem como  intensa polêmica ao redor da metodologia de cálculo e atualização dos índices de produtividade, para fins de mensuração dos patamares de produtividade previstos legalmente (OLIVEIRA, 2019).

Já no tocante aos imóveis urbanos, conforme artigo 182 da CF/88, poderão ser desapropriados por interesse social, para fins de política urbana, aqueles não edificados, subutilizados ou não utilizados, que estejam localizados em área incluída no plano diretor da cidade. Neste contexto, é fundamental que a cidade na qual o imóvel urbano está localizado tenha um Plano Diretor e esteja nele incluído, para que este esteja sujeito a desapropriação por perda da função social (CRAWFORD, 2017). 

O processo que culmina na desapropriação é procedimento de caráter misto, por admitir tanto uma fase administrativa (quando não há discordância quanto aos valores arbitrados para indenização) quanto uma fase judicial (quando haverá litígio de iniciativa do que perdeu a propriedade para o poder público). De todo modo, a desapropriação se configura, via de regra, como uma forma compulsória de extinção da propriedade, que se opera à revelia da vontade de seu titular (BEZNOS, 2016).

Outrossim, importante destacar que, quando de sua incorporação ao patrimônio público, trata-se de uma forma originária de aquisição da propriedade, pois, na prática, constitui uma nova propriedade, livre de qualquer ônus e vícios que eventualmente tenham recaído anteriormente sobre o bem desapropriado (BEZNOS, 2016).

No Brasil, o órgão responsável pela fiscalização do cumprimento da função social da propriedade rural, prevista constitucionalmente, é o INCRA, conforme § 2º do Artigo 2º da Lei 8.629/93. É  da competência de referido órgão vistoriar previamente os imóveis rurais antes de notificar o proprietário, levando em consideração fatores como a localização em áreas prioritárias, extensão e histórico da região ou se envolve denúncia por parte de entidades representativas dos trabalhadores rurais (FISHER, 2018).

Realizada a vistoria, os dados coletados constarão no Laudo Agronômico de Fiscalização, e, sendo constatado o descumprimento de algum dos requisitos da função social da propriedade, será declarado o interesse social do bem móvel para fins de reforma agrária, através de decreto expedido pelo Presidente da República. Trata-se de ato declaratório auto executável e que possui prazo decadencial de dois anos. Destaca-se que o  Poder Público pode propor um acordo junto ao proprietário do imóvel, para fins de ajustar os valores ressarcitórios, sem precisar recorrer ao Poder Judiciário. Caso haja acordo extrajudicial, será emitida escritura pública, no entanto, caso haja discordância, inicia-se um litígio judicial. Importante destacar que, judicialmente, discute-se apenas quanto ao valor correspondente à indenização, e não quanto ao mérito referente às razões da desapropriação (BEZNOS, 2016).

No que tange à desapropriação sancionatória urbana, sua competência será exclusiva dos municípios, sendo a indenização correspondente mediante emissão de título de dívida pública, nos termos do artigo 182 da Constituição Federal, com prazo para resgate de até dez anos (CRAWFORD, 2017).  

O detalhamento dos trâmites relativos à desapropriação urbana está descrito no Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001) e no Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015).

Cumpre destacar que, antes de executar a desapropriação sancionatória propriamente dita,  deverão ser adotadas pelo município as medidas de cada inciso do artigo 182 da CF/88, sucessivamente, sobrevindo a desapropriação somente caso não sejam obtidos os resultados desejados. Assim sendo, caso o proprietário do imóvel  urbano deixe de dar adequado aproveitamento de sua propriedade, mesmo depois da medida de parcelamento ou edificação compulsórios e a de imposto aumentado progressivamente, este deverá arcar com a desapropriação, mediante notificação emitida pelo município onde está localizado (CRAWFORD, 2017)

Para além da questão do cumprimento das medidas sucessivas previstas na Constituição, ora mencionadas, ainda poderá ocorrer desapropriação sancionatória urbana, desde que o bem a ser expropriado esteja localizado em área incluída em plano diretor do município.  Isto porque, no que tange a propriedades urbanas, os parâmetros que disciplinam os procedimentos de ações de desapropriação em meio urbano constam no plano diretor municipal. (PEREIRA & ALENCAR, 2018).

 

Tredestinação e retrocessão: requisitos e critérios

  Em conformidade com o previsto da Constituição Federal, a finalidade da desapropriação deve atender aos fins a que se destina, sobretudo aqueles expressos no decreto que fundamentou a desapropriação em si. 

No entanto, há casos em que outro destino foi dado ao bem expropriado, em desconformidade com a previsão inicial, situações  em que fala-se em tredestinação. Esta pode se dar de forma lícita, quando, apesar da finalidade dada ao bem expropriado ser diversa da pretendida no processo de desapropriação,  ainda está dotada de natureza pública. Assim, não se vislumbra ilicitude (PEREIRA (2016).   

Por outro lado, caso o fim dado pelo Poder Público ao bem desapropriado não seja de interesse ou  utilidade público, fala-se em tredestinação ilícita, praticando desvio de finalidade ou, ainda, transmitindo a terceiros. Dentre suas consequências jurídicas, está a possibilidade de retrocessão (PEREIRA (2016).   

Isto porque, do ponto de vista constitucional, processos que resultem em desapropriação devem garantir o atendimento ao interesse e/ou necessidade pública e social.  Esta é a motivação principal e o fundamento maior que embasa o instituto da desapropriação, com fulcro no princípio da primazia do interesse público sobre o privado. Portanto, em sua ausência, deixa de ter legitimidade (PEREIRA (2016). 

Neste contexto, o direito à retrocessão se mostra presente, ou seja, a devolução do domínio expropriado, para que se integre ou regresse ao patrimônio daquele de quem foi tirado, tal como previsto pelo Código Civil, como segue:

"Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa."

Nesta seara, o entendimento jurisprudencial sugere a confirmação de que, se a finalidade da desapropriação deixar de ser cumprida,  emerge, portanto, o direito à requisição do bem por parte do ex-proprietário, como reflexo da garantia constitucional do direito à propriedade, podendo ser demandado judicialmente pela parte interessada, como no exemplo a seguir:

EMENTA: AÇÃO DE RETROCESSÃO - DESAPROPRIAÇÃO - PROGRAMA HABITACIONAL POPULAR - DESVIO DE FINALIDADE - SENTENÇA CONFIRMADA EM DUPLO GRAU. - É tempestivo o recurso de apelação interposto dentro do prazo de 30 (trinta) dias úteis (prazo em dobro), contados da data da intimação pessoal do procurador do Ente Municipal - "Retrocessão é o direito que tem o expropriado de readquirir o bem ao qual não dera o poder expropriante a finalidade específica para que fora o mesmo desapropriado." (LACERDA, Belizário Antônio de. Da Retrocessão. Ed. Forense. Rio de Janeiro, 1983 p. 21) - Havendo comprovação através de laudo pericial do desvio de finalidade da desapropriação que visava implementação de "Programa Habitacional Popular" para outra que resultou em loteamento e alienação de seus imóveis, bem como não sendo viável a devolução do imóvel ao expropriado, deve-se julgar procedente o pedido e condenar o apelante em perdas e danos, pois são esses o denominador comum para onde desagua a condenação quando não há mais condição de outorgar a prestação jurisdicional judicial "in natura".

(TJ-MG - AC: 10005130013179002 Açucena, Relator: Belizário de Lacerda, Data de Julgamento: 17/11/2020, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/12/2020)

Referido entendimento jurisprudencial se mostra reconhecido também nas decisões negativas quanto ao pedido de retrocessão, em caso de efetiva destinação do bem, em conformidade com a previsão expressa no decreto expropriatório, como ocorreu no caso abaixo: 

DESAPROPRIAÇÃO. ERS-240 (TRECHO RINCÃO DO CASCALHO - CAÍ). AÇÃO DE RETROCESSÃO. TREDESTINAÇÃO. INOCORRÊNCIA. 1. Sendo a retrocessão o ato pelo qual o bem expropriado é reincorporado, mediante devolução da indenização paga na expropriação, ao patrimônio do ex-proprietário, em virtude de não haver sido utilizado na finalidade para a qual fora desapropriação, a tredestinação deve estar evidente, o que não é o caso. 2. A prova dos autos denota que a destinação da área expropriada está em consonância ao decreto expropriatório, que abrangeu também as áreas que possam ser utilizadas na execução da obra."(art. 1º do Decreto-RS nº 17.519/65). Assim, restando demonstrado que o imóvel foi utilizado durante a execução da obra, conforme expressamente previsto no decreto expropriatório e, portanto, tendo servido ao interesse público, descabe o pedido de retrocessão. 3. Não havendo, portanto o desvirtuamento da desapropriação e, sendo do interesse do Município a alienação do imóvel outrora expropriado, incide, na espécie, a regra do art. 519 do CC. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70079231015, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 31/01/2019).

(TJ-RS - AC: 70079231015 RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Data de Julgamento: 31/01/2019, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 06/02/2019)

Ressalta-se, assim, o reconhecimento jurisprudencial acerca da necessidade de respeito à finalidade eminentemente pública e social dos processos de desapropriação.

 

Usucapião: tipos e requisitos 

Na esteira da discussão acerca do direito à propriedade privada em termos de bens imóveis, ressalta-se que referido conceito envolve, conforme o entendimento doutrinário, a configuração do mesmo como sendo um direito oponível contra todos. Assim, referido direito confere ao proprietário a possibilidade de usar o bem, de acordo com seus próprios interesses (aspecto interno), bem como que esse direito seja reconhecido pelos demais (aspecto externo), sendo que este último é o que permite sua proteção e negociação (COUTO, 2020).

A vertente interna do direito à propriedade privada é chamada de domínio, ou seja, significa que o bem está submetido, de forma direta e imediata, ao seu titular. Tal instituto se refere às faculdades, por parte do proprietário, de uso, gozo e disposição do referido bem (AMORIM, 2021). Referida dualidade chama a atenção para o fato de que, conforme compreendido por parte da doutrina, trata-se de duas possíveis titularidades diferentes no que tange à propriedade do bem, uma formal (mediante inscrição no cartório de registro de imóveis) e outra material (domínio). (COUTO, 2020)

A usucapião teria, nesta seara, o condão de unir estas duas vertentes de propriedade numa só, quando estas são exercidas por pessoas diferentes. Nas palavras de Couto (2020)

No caso da usucapião, considera-se que a posse consolidada no tempo gera para o possuidor o domínio, ou seja, a propriedade informal. O procedimento posterior de reconhecimento dessa aquisição irá formar um título jurídico capaz de promover a mutação da titularidade formal. Por esse motivo, os efeitos do título são declaratórios, pois reconhecem uma situação jurídica constituída anteriormente, e constitutivos, pois modificarão a propriedade formal com efeitos futuros. (p. 38)

Assim como a desapropriação, a usucapião está fundamentada no princípio da função social da propriedade, portanto, baseada no artigo 5º, Inciso XXIII da Constituição Federal. Além disso, o Código Civil determina que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais (Art. 1228, §1º).

O instituto da usucapião está, portanto, voltado para corrigir falhas no percurso a ser trilhado para a transferência de posse de um bem, objetivando adequar a titularidade formal à titularidade de fato.. Via de regra, aplica-se em situações de problemas ou ausência de instrumento (venda sem o devido registro), tendo, portanto, como pressuposto o direito preexistente, criado a partir do negócio jurídico efetivamente celebrado, ainda que sem a devida formalização (AMORIM, 2021). Envolve a posse prolongada do bem, sem os requisitos formais para tanto.

  No entanto, também há situações em que a usucapião nasce de situações em que não houve um negócio jurídico entre as partes, mas a posse se encontra, do ponto de vista concreto, sob o poder de alguém que não é o titular da propriedade formal. (AMORIM, 2021) São, por exemplo, situações de invasão ou ocupação, e que podem resultar em intensas disputas judiciais. 

Há, na previsão legal, três diferentes espécies de usucapião: 

  1. Extraordinário - prevista no art. 1.238 do Código Civil, tem como requisitos:  posse de quinze anos (que pode reduzir-se a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo), exercida com ânimo de dono, de forma contínua, mansa e pacificamente. Dispensam-se os requisitos do justo título e da boa-fé, 
  2. Ordinário  - previsto no artigo 1.242 do Código Civil, baseia-se na propriedade contínua do bem, com justo título e boa fé, por dez anos. 
  3. Especial:

- rural: prevista no artigo 191 da CF/88 e no artigo 1.239 do Código Civil, envolve a fixação do homem no campo, e exige, para sua concessão, a ocupação produtiva do imóvel, devendo neste morar e trabalhar por um período de cinco anos.

- urbana: prevista no artigo 183 da CF/88 e no artigo 1.240 do Código Civil, envolve a posse, por um período de cinco anos ininterruptos, de uma área de até duzentos e cinquenta metros quadrados, utilizada para moradia, e exige não possuir  outro imóvel urbano ou rural.

Há previsão de modalidades de usucapião tanto administrativa como judicial, cada uma com seus trâmites e critérios específicos. 

 

Latifúndios x minifúndios

Quando se aborda a questão da propriedade privada, função social da propriedade e acesso à terra, a classificação dos imóveis, sobretudo rurais, quanto à área, é relevante porque retrata níveis de concentração de terras e, por conseguinte, desigualdades. 

Em estudo recente (PINTO et al, 2020), foi revelada a real extensão  da desigualdade de terras no Brasil. Foi demonstrado ainda, em referido estudo, que o Brasil figura entre os países com a maior desigualdade do mundo neste tema, sendo esta mais acentuada nos estados com produção de commodities em grandes imóveis (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia e na região do Matopiba) e mais baixa nos estados com maior presença da agricultura familiar e diversificação agrícola, como Santa Catarina, Amapá e Espírito Santo.

Os autores reforçam, ainda, que 

(...) o Brasil jamais realizou uma reforma agrária que visasse a distribuição igualitária da posse da terra ou que seguisse os critérios de desapropriação de terras que não cumprissem o seu papel social, como definido na Constituição Nacional e no Estatuto da Terra. (PINTO et al, 2020)

Assim sendo, verifica-se o descumprimento histórico de normas constitucionais, perpetuando-se as desigualdades no acesso à terra, em nosso país.

Para fins de classificação das propriedades rurais, o chamado Estatuto da Terra (Lei 4504/64) ,em seu art. 4º, IV, define o minifúndio como o imóvel rural de área e possibilidades inferiores às da propriedade familiar

Em outras palavras, trata-se de uma propriedade de dimensão inferior à do módulo rural (dimensão mínima de um imóvel rural caracterizado como propriedade familiar, seu tamanho varia dependendo da região do país). Assim, o minifúndio compreende uma área menor do que o mínimo estabelecido em lei como necessário para produção e subsistência, sendo uma realidade que  prejudica o aproveitamento racional e adequado da terra. Assim sendo, pode-se ponderar serem os minifúndios uma modalidade de imóvel rural que não cumpre com a sua função social.

Os latifúndios, por sua vez, são definidos pelo Estatuto da Terra como:

Art. 4º:

V - "Latifúndio", o imóvel rural que:

a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b, desta Lei, tendo-se em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine;

b) não excedendo o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural.

Observa-se que a definição legal traz consigo um critério dimensional e um relativo ao nível de exploração, o que abre a possibilidade para que propriedades menores sejam consideradas latifúndios caso haja um uso social da mesma insuficiente ou inadequado.

A jurisprudência recente, por vezes, tende a confirmar a inadequação dos latifúndios no que tange aos princípios constitucionais de uso social da terra, e confirmando desapropriações para um destino mais adequado da propriedade, como no exemplo abaixo:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. anulação procedimento administrativo de DESAPROPRIAÇÃO por interesse social. reforma agrária. improdutividade do latifúndio. delimitação de área de proteção permanente. 1. Trata-se de ação anulatória de procedimento administrativo que ensejou a expedição do decreto de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária da "Fazenda Santa Rita do Pau Funcho", discutindo o tamanho da área de proteção permanente e inaproveitável existente no imóvel da autora/apelante, cuja mensuração repercute diretamente no cálculo do grau de utilização da terra (GUT). 2. A intervenção do Ministério Público em segundo grau de jurisdição supre sua ausência na primeira instância, afastando a tese de nulidade do processo arguida pela apelante. 3. Ausência de nulidade da sentença ao desconsiderar laudo pericial produzido na ação de desapropriação, uma vez que consta na ação anulatória, com instrução autônoma, perícia técnica acompanhada de manifestação do IBAMA, a delimitar o tamanho da área de preservação permanente. 4. Aferição do grau de produtividade da área desapropriada a partir de parâmetro legal, que conjuga de forma simultânea graus de utilização da terra (GUT) e de eficiência na exploração (GEE), especificados no art. 6º da Lei nº 8.629/93, segundo índices aferidos pelo órgão federal. Sendo as áreas de preservaçao ambiental não aproveitáveis, conforme dispõe o art. 10, IV, da Lei nº 8.629/93, há redução numérica do denominador no cálculo do GUT. 5. A existência de área preservada é essencialmente factual ou empírico e, portanto, independeria de registro ou averbação cartorária. Precedente: STJ, REsp 1293882/PA, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ 15.05.2015. 6. Prevalência da conclusão do laudo pericial produzido na presente ação anulatória, uma vez que a área definida como de preservação permanente mais se aproxima com a mensuração da autarquia federal IBAMA, órgão técnico, executor da política nacional do meio ambiente, conforme determina a Lei nº 6.938/81. 7. Valor do grau de utilização da terra (GUT) de 74,68% que caracteriza a propriedade como improdutiva, nos termos do art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.629/1993. 1 8. Apelação desprovida.

(TRF-2 - AC: 00038153020004025103 RJ 0003815-30.2000.4.02.5103, Relator: LUIZ PAULO DA SILVA ARAUJO FILHO, Data de Julgamento: 29/03/2017, 7ª TURMA ESPECIALIZADA)

Alguns autores reiteram, inclusive, que tanto quanto os minifúndios, que são nocivos à economia rural, os latifúndios devem ser combatidos por não cumprirem a função social, sobretudo aqueles que recebem esta classificação por sua extensão, por manterem uma estrutura fundiária de concentração (SANTOS, 2018). E, quando se trata de latifúndio por extensão, podem ser considerados ainda mais perniciosos, porque mantêm uma estrutura fundiária de concentração, sob todos os aspectos indesejáveis.

Neste contexto, em face do disposto no artigo 186 da CF/88, que reitera a necessidade de aproveitamento adequado e racional da terra, pode-se concluir que tanto o latifúndio como o minifúndio se apresentam como contrários à  lógica que rege o Direito Agrário, no Brasil, devendo, portanto, ser combatidos por políticas públicas fundiárias e agrárias, tais como as que valorizam e impulsionam a chamada agricultura familiar. 

 

Agricultura familiar: alternativa para uma exploração mais adequada da terra

A partir do final da década de 90,  sobrevieram mudanças de políticas públicas no Brasil, havendo iniciativas voltadas para a valorização e incentivo à chamada agricultura familiar. Neste contexto, a chamada Lei da Agricultura familiar (Lei n. 11.326/2006) foi editada com a finalidade de estabelecer diretrizes para a formulação da chamada Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, tendo em seu artigo 3º a definição desta modalidade de exploração da terra:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:

I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;

II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;

III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; (Redação dada pela Lei nº 12.512, de 2011)

IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

 

Importantes destacar que, na referida definição legal, em seus parágrafos primeiro e segundo, há exceções expressas para o devido enquadramento e classificação desta modalidade, bem como a especificação de outros beneficiários da mesma lei, como segue:

§ 1º O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica quando se tratar de condomínio rural ou outras formas coletivas de propriedade, desde que a fração ideal por proprietário não ultrapasse 4 (quatro) módulos fiscais.

§ 2º São também beneficiários desta Lei:

I - silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;

II - aqüicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede;

III - extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;

IV - pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente.

V - povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º ; (Incluído pela Lei nº 12.512, de 2011)

VI - integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º . (Incluído pela Lei nº 12.512, de 2011)

 

Em suma, é possível dizer que a Lei da Agricultura Familiar define o agricultor familiar ou empreendedor familiar rural, como todo aquele que pratica atividades no meio rural, possui área de até quatro módulos fiscais, utiliza mão de obra da própria família, com gerenciamento do estabelecimento ou empreendimento sendo realizado também pela própria família. Outrossim, podem ser abarcados por esse conceito também os assentados da reforma agrária, além dos quilombolas, indígenas, artesãos, pescadores artesanais, piscicultores, silvicultores, extrativistas, entre outros.

Atualmente, na realidade brasileira, a agricultura familiar mostra-se vinculada à questão da segurança alimentar e nutricional da população. Conforme alguns autores, ela ajuda a impulsionar as economias locais e também colabora para o desenvolvimento rural sustentável. Trata-se, nas palavras de Bittencourt (2020):

 (...) uma forma social específica de trabalho e produção, que se situa em um espaço geográfico definido, cuja atividade implica a interação de um grupo familiar, ligado por laços de parentesco, com a terra e com os outros meios de produção, do mesmo modo que com outras unidades familiares e grupos sociais. (p. 25)

Dentre os programas que beneficiam aqueles que se enquadram na definição de agricultores familiares, destaca-se o Pronaf, criado em 1995 como uma linha de crédito rural, com o objetivo de fortalecer a agricultura familiar, através de apoio técnico e financeiro. Desde a sua criação, referido programa  aplicou bilhões de reais no financiamento de máquinas agrícolas, veículos de transporte e equipamentos diversos para a agricultura familiar (BIANCHINI, 2015).

Tal processo não tem se dado, no entanto, sem que haja resistência por parte do agronegócio, que discorda dos programas que beneficiam os agricultores familiares, e considera tratar-se de algo a ser alcançado por políticas sociais para melhoria de vida dos menos favorecidos e não de políticas agrárias. Isto gera, na realidade atual brasileira, relevante dualismo econômico e também político; de um lado, a agricultura familiar e do outro a agricultura patronal/agronegócio, que disputam por recursos públicos. Com isto, não raro, desvia-se do foco a realidade das desigualdades nacionais neste campo  (AQUINO, GAZOLLA &SCHNEIDER, 2018).

Por outro lado, para os defensores desta modalidade, interessam ao país o fomento e o fortalecimento de iniciativas familiares no campo agrícola, pois, quando esta modalidade se mostra bem-sucedida, restam fortalecidos o desenvolvimento regional, contribuindo com mais segurança, maior qualidade e oferta de alimentos, o que amplia a sustentabilidade agrícola (BITTENCOURT, 2020).

Considerações finais

A Constituição Federal de 1988 introduziu diferentes dispositivos que visam fundamentar ações com vistas à redução das desigualdades sociais, inclusive em termos de distribuição de terras, no Brasil. Assim, institutos como o da desapropriação, com fundamento na chamada função social dos imóveis, têm esse condão de relativizar a propriedade privada, antes tida como absoluta, ressaltando a supremacia do interesse público em detrimento do privado.

Historicamente, observa-se que, em décadas anteriores, em atendimento às normas constitucionais, houve esforços de implementação de programas fundiários e agrários com vistas a uma melhor distribuição de terras no país, e fortalecimento dos pequenos agricultores, sobretudo da agricultura familiar.

No entanto, apesar disso, diversos autores apontam que o Brasil continua sendo um dos países com piores índices de desigualdade social e também de distribuição agrária, ocorrendo, portanto, poucos avanços concretos nas políticas fundiárias nesta direção. Em especial no atual contexto político-ideológico que permeia a realidade atual brasileira, com o fortalecimento do lobby do agronegócio sobre as iniciativas legislativas, praticamente não tem havido ações voltadas à Reforma Agrária no Brasil.  

No campo jurídico, parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras tem chamado a atenção para esta temática, reconhecendo e reiterando a necessidade de reafirmação da relevância da função social das propriedades privadas, como condição para as mesmas, sobretudo daquelas voltadas para a produção agrícola, como formas de garantia dos preceitos constitucionais e redução das desigualdades no Brasil. 

 

Referências

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Beznos, C. Aspectos jurídicos da indenização na desapropriação  2. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte : Fórum, 2016

Bianchini, V. Vinte anos do PRONAF, 1995 - 2015 : avanços e desafios. Brasília : SAF/MDA, 2015. 113 p.

Bittencourt, D. M. C. Estratégias para a agricultura familiar: visão de futuro rumo à inovação. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Brasília, DF, 2020, disponível em: https://www.alice.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/1126191/1/2Texto-Discussao-49-ed-01-2020.pdf

Borges, R. S. S. ; Costa, S. L. F.; Leitão, .M .C. Movimentos sociais e Poder Judiciário: a judicialização das lutas do Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra. Rev. Campo Juridico, Barreiras-BA v.8 n.2, p.227-245, Julho-Dezembro, 2020.

Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Couto, M.R.C.M. ; Usucapião extrajudicial: doutrina e jurisprudência. 3ª ed. ver. E atual, 2020. Salvador, JusPodvim.

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Sobre a autora
Nicole Medeiros Guimarães

Bacharel em Direito pela UNAERP, psicóloga judiciária no Tribunal de Justiça de São Paulo, doutora e mestre em Psicologia pela USP-Ribeirão Preto.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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