Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A INAPLICABILIDADE DA ESTRUTURA NORMATIVA DE PRINCÍPIO AO INSTITUTO JURÍDICO DA TORTURA, ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL

Agenda 18/11/2022 às 00:46

o presente estudo desenvolverá procedimento hermenêutico acerca do juízo de ponderação de Direitos Fundamentais em sede colisão dos mesmos, tendo como base argumentativa, a proteção do núcleo essencial, da Dignidade da Pessoa Humana.

 

Roberto Metzker Colares Pacheco[1]

 

RESUMO

O Estado Democrático de Direito, proporcionou ao advento da institucionalização do caráter plural da sociedade e suas constantes buscas a fim da efetividade dos Direitos Fundamentais. Porém, em sede de colisão de Direitos Fundamentais, busca-se a constante interpretação acerca da limitabilidade de um destes direitos para a prevalência de outro.

Destarte, o presente estudo desenvolverá procedimento hermenêutico acerca do juízo de ponderação de Direitos Fundamentais em sede colisão dos mesmos, tendo como base argumentativa, a proteção do núcleo essencial, da Dignidade da Pessoa Humana.

Para tanto, será desenvolvida análise interpretativa dos Direitos Fundamentais enquanto estruturas normas basiladas em regras e princípios. Assim sendo, no que tange ao que positiva o art. 5º, III, da Constituição Federal de 1988, discutir-se-á a exceção de juízo de ponderação no que diz respeito ao que positiva a Carta Magna, conforme mencionado supra.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Dignidade da Pessoa Humana. Tortura. Hermenêutica. Princípios. Regras.

1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O estudo do Direito enquanto ciência proporciona o observar dos fatos que o levaram a frente o dinamismo das relações sociais, instituir um ordenamento legal capaz de estabelecer limites às ações do homem e promover, assim, um equilíbrio, uma harmonia na vida em sociedade. Acerca da relevância do Direito, cita-se argumento de Füher e Milaré[2]:

Portanto, a finalidade do Direito se resume em regular as relações humanas, a fim de que haja paz e prosperidade no seio social, impedindo a desordem ou o crime. Sem o Direito estaria a sociedade em constante processo de contestação, onde a lei do mais forte imperaria sempre, num verdadeiro caos.

Neste sentido, o que se percebe é que o Direito Objetivo passa a designar o império da lei em um arcabouço de regras de ação norma agendi para reger as relações humanas de maneira coativa, estabelecendo a obediência de todos. Já o Direito Subjetivo campo da faculdade de cumprimento da norma (facultas agendi) determina que caso alguém desrespeite o direito de outro, abre espaço para a imposição de decisão judicial, frente uma lide instaurada. Tem-se desta forma, o processo de instituição e institucionalização de normas e, posteriormente, suas regras de procedimento social para a sua eficácia jurídica. Assim, percebe-se que o direito subjetivo apresenta-se como possibilidade ou prerrogativa atribuída a alguém e correlativa de um dever de outrem com aspecto de imperatividade coativa, segundo positivado pelo ordenamento jurídico.

Em consonância com o que fora supramencionado, cita-se entendimento de Jean Dabin[3] asseverando que o direito subjetivo é prerrogativa, concedida a uma pessoa pelo direito objetivo e garantida por vias de direito, de dispor como dono de um bem que se reconhece e que lhe pertence, quer como seu, quer como devido. Assim sendo, no escopo dos direitos subjetivos e sua fundamentalidade, cita-se apontamento de Neto[4]:

De fato a incorporação do adjetivo fundamental ao substantivo direito, quando empregada essa palavra no sentido subjetivo, não só indica que existem direitos subjetivos fundamentais e direitos subjetivos não fundamentais, como também que o segredo da diferenciação entre uns e outros está na fundamentalidade dos primeiros e na não fundamentalidade dos segundos. Por isso, uma primeira aproximação à temática dos direitos fundamentais requer a iluminação do significado do adjetivo fundamental, porque é nele, ao indicar uma qualidade exclusiva do grupo respectivo, que radica o sentido da singularidade das muitas posições subjetivas correspondentes. Assim, há que começar examinando o que, afinal, significa para um direito subjetivo o seu ser fundamental em confronto com aqueles outros que não o são, ou então, o que no mesmo, qual é o sentido dessa qualidade acrescida que permite extremar uns e outros.

No entendimento de Alexy[5] é possível estabelecer distinção no que tange às questões inerentes às razões para os direitos subjetivos no âmbito de posições e relações jurídicas e o aspecto da exigência jurídica dos direitos subjetivos. No sentido de uma melhor apresentação da teoria mencionada, explicita-se:

Se a norma individual, segundo a qual a tem, em face de b, tem um direito a G, é válida, então, a encontra-se em uma posição jurídica caracterizada pelo direito a G que ele tem em face de b; e se uma posição jurídica de a consiste no fato de a ter em face de b, um direito a G, então, é válida a norma individual segundo a qual a tem, em face de b, um direito a G. É possível se perguntar, diante disso, que sentido tem falar em posições. A resposta é que falar em posições é necessário a partir de um determinado ponto de vista: a partir da perspectiva que se interessa pelas características normativas de pessoas e ações e pelas relações normativas entre pessoas ou entre pessoas e ações. Normas podem ser consideradas de forma bastante geral, como qualificações de pessoas ou ações. Nesse sentido pode-se dizer que uma norma que proíbe a de fazer h confere a a a característica jurídica de ser alguém ao qual é proibido fazer h. Essa característica de a, que pode ser expressa por meio do predicado monádico complexo alguém ao qual é proibido fazer h, é uma posição, na qual a é colocado por meio da norma. Se houvesse apenas posições desse tipo, com certeza não valeria a pena falar de posições. O interesse surge apenas quando não se trata mais de características, mas de relações, que podem ser expressas por predicados como ... tem um direito a G em face de ... ou por predicados triádicos como ... tem em face de ... um direito a ....

Neste sentido, percebe-se que os direitos fundamentais se apresentam como extremamente valiosos, marcando-se como bens essenciais, vitais, indispensáveis. Percebe-se, contudo, que, em sede de direitos subjetivos, ser ou não fundamental, um dado direito, está intrinsecamente ligado ao que se encontra positivado pelo Estado Constitucional de Direito, vez que é democraticamente legitimado a positivar acerca da fundamentalidade ou não do direito, em especial, pelo aspecto heterogêneo das demandas de uma sociedade heterogênea, marcando-se como pressupostos jurídicos elementares da existência digna de um ser humano[6].

Neste prisma de entendimento acerca da positivação de direitos e sua nomenclatura envolvida pelo adjetivo fundamental, percebe-se que alguns direitos inerentes ao homem estão tão próximos à sua natureza, tão próxima à condução de uma vida com dignidade, com qualidade, que, tais direitos, não se poderia instituir Cartas Constitucionais onde os mesmos fossem distantes, tangentes ao que se apresentava como instituto basilar dos Estados Constitucionais instituídos, isto é, um rol de direitos onde os homens, onde a própria sociedade estivesse próxima de práticas democráticas, consolidando seu caráter plural, e distante das práticas teratológicas dos Estados absolutistas onde eram constantes as práticas que feriam a vida com dignidade e centralizavam o poder.

Destaca-se aqui a necessidade de estabelecer uma distinção acerca dos direitos fundamentais, dos direitos do homem e dos direitos humanos. Em sede de explicitar com clareza e objetividade o que se argumenta, cita-se apontamentos de Antonio Augusto Cançado Trindade[7]:

Devido à grande proximidade de sentido e significância que encerram essas expressões, cuidaremos, primeiramente, dos direitos fundamentais, indicando aqueles direitos que formalmente foram inscritos ou recepcionados nos textos constitucionais, a partir da consciência do constituinte, como elementares para manter a unidade política e integração da sociedade. Constituem aqueles direitos assegurados por garantias constitucionais cuja finalidade é a preservação da liberdade e da dignidade da pessoa humana, sem prejuízo, no decorrer da presente explanação, do emprego das denominações direitos do homem, direitos humanos e direitos humanos fundamentais, tendo em vista a íntima relação entre esses direitos, considerando-se sua essencial indivisibilidade no que diz respeito à interdependência desses direitos.

Contudo, o processo de elaboração doutrinária dos direitos humanos, conforme ensinamento de Sarlet[8] teve como marco, no século XIII, na esfera do direito positivo, a instituição de direitos, liberdades e deveres individuais que serviram de antecessores aos direitos fundamentais. Em escopo específico tem-se a Inglaterra com o Rei João Sem-Terra sendo marco referencial no que tange aos direitos humanos, em sede de evolução destes. Neste caso em especial, a Magna Carta inglesa passou a garantir, mesmo que apenas para as pessoas mais abastadas, alguns direitos e liberdades civis clássicos, tendo como exemplo o instituto do habeas corpus. Porém, como privou a maioria da sociedade do acesso aos direitos, passou-se, assim, a serem desenvolvidos movimentos sociais em prol do Constitucionalismo, para, cada vez mais, impedir os abusos do poder por parte dos governantes e implementar direitos e garantias individuais e coletivas.

Para melhor entendimento do aspecto de constitucionalização do Estado, cita-se posicionamento de Canotilho[9] acerca do conceito de Constituição:

Este conceito ideal identifica-se fundamentalmente com os postulados políticos-liberais, considerando-os como elementos materiais caracterizadores e distintivos os seguintes: (a) a constituição deve consagrar um sistema de garantias da liberdade (esta essencialmente concebida no sentido de reconhecimento de direitos individuais e da participação dos cidadãos nos actos do poder legislativo através do parlamento); (b) a constituição contém o princípio da divisão dos poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estatais; (c) a constituição deve ser escrita (documento escrito).

Não obstante, em sede de delegação de poder, a sociedade civil, através de seus representantes, busca a instituição de um corpo de direitos e garantias individuais e coletivos, que sejam capazes de proporcionar-lhes uma vida com dignidade.

Segundo Habermans[10], o homem passa a ser conduzido por faculdades subjetivas primando pelo alcance da sua felicidade, tendo como base o individualismo e a autonomia individual. Assim, passa o homem a assumir importante papel na sociedade civil para construção do Estado.

No âmbito de um modelo de Estado de direito, segue análise do Direito com o advento da modernidade, em rompimento com práticas absolutistas, segundo Baracho Júnior[11]:

A modernidade importa em ruptura com a justificação sagrada de uma ordem normativa aglutinadora, o que viabiliza a distinção entre moral, religião, direito e tradição. Ao comprometer a estabilidade da ordem, fundada no amálgama normativo indiferenciado, a modernidade passa a exigir uma justificação própria para os diversos sistemas de normas, particularmente para o Direito. O Direito passa a exigir uma justificação que substituta a fundamentação naturalizada presente nas estruturas sagradas.

Percebe-se, contudo que neste emaranhado ideológico, o marco do Estado Moderno é o liberalismo, fazendo com que o individualismo, a igualdade e a liberdade sejam reconhecidos como institutos que fundamentam o Estado Constitucional de Direito.

Conforme o que fora supracitado, vislumbra-se que no processo evolutivo da sociedade, frente às constantes e diferentes demandas, o cenário do Direito foi (é) marcado pela composição de um Ordenamento Jurídico. O referido ordenamento, em seu limiar, estabelece o basilamento normativo para alcançar dos desejos manifestos pelos grupos humanos em todo um emaranhado de movimentos sociais, políticos e econômicos, que assim, com o avançar do processo histórico que evidenciou os momentos de jurisdicionalização dos anseios sociais, é marcado, especialmente pelo que se denomina Dimensões do Direito.

Neste sentido, acerca das dimensões do direito, explica-se sua primeira dimensão em consonância com os direitos fundamentais concernentes ao escopo das liberdades, que se encontram, assim, positivadas no texto constitucional, referindo-se aos direitos civis e políticos. Afirma-se, então, que tais direitos estão ligados ao caráter da não intervenção do Estado, fortalecendo o aspecto da autonomia individual. Assim, corrobora-se com o entendimento da inspiração jusnaturalista, em especial pelo movimento iluminista dos séculos XVII e XVIII, onde afirma-se de maneira contundente os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Em sede de melhor exposição, segue citação de Ingo Wolfgang Sarlet[12]:

Um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia. Também o direito de igualdade, entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais (devido processo legal, habeas corpus, direito de petição) se enquadram nesta categoria.

Porém, neste crivo absenteísta do Estado, os problemas sociais agravaram-se, em especial, pelo fato dos direitos de primeira dimensão privilegiarem grupos mais abastados, privando, assim, uma grande parcela da sociedade civil do acesso aos direitos até então narrados. Neste liame, deve o Estado promover a operacionalização do Direito, a fim de que o mínimo, no que diz respeito aos direitos sociais, fosse garantido. Elenca-se, ainda, o agravamento desta questão pelo advento do dinamismo das práticas capitalistas, acelerados pelo processo da Revolução Industrial, que proporcionava um conjunto de mazelas sociais vividas pelos trabalhadores. Conforme ensinamento de Baracho Júnior[13]:

O Direito passa a ser visto como algo objetivo, que pode ser observado diretamente na realidade, a partir de normas positivas. (...) A legitimidade do poder estatal é aferida em razão dos serviços que presta da sua capacidade de controlar as relações sociais de forma a reduzir as desigualdades econômicas.

No grupo desses direitos sociais, cita-se o direito ao trabalho e, consequentemente, sua garantia no emprego; de cogestão; direito de greve e à justa remuneração; direito à previdência social, à saúde e à educação. No que diz respeito aos direitos de segunda dimensão, traz-se a lição de Quadro de Magalhães[14]:

O segundo grupo de direitos fundamentais que vêm a se somar aos direitos que compõem os Direitos Humanos. São direitos fundamentais que vêm a se somar aos direitos individuais, oferecendo meios para que todos possam ser livres, e não apenas alguns. Marcam eles uma mudança de comportamento do Estado, que passa a se preocupar com o bem-estar social.

Porém, o que se observou ao longo dos tempos, em especial no período após a Segunda Guerra Mundial, os investimentos do Estado nas questões sociais sofreram acentuada redução, o que corroborou com a instituição das práticas neoliberais a partir de meados da década de 1960. Assim, rompe-se o modelo interventor do Estado e inaugura-se o espaço para o desenvolvimento de práticas políticas por parte da sociedade civil, o que evidenciou o seu caráter plural e inaugurou o paradigma do Estado Democrático de Direito.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Para melhor explicitar esse processo de instituição dos chamados direitos de terceira dimensão, cita-se lição de Carvalho Neto[15]:

A própria crise econômica, no bojo da qual ainda nos encontramos, coloca em xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas e do planejamento econômico, bem como a posição antitética entre a técnica e a política. O estado interventor transforma-se em empresa acima de outras empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação ou pós-industrial comportam relações extremamente intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos de 3ª geração, os chamados interesses ou direitos difusos, que compreende os direitos ambientais, do consumidor e da criança dentre outros. São direitos cujos titulares, na hipótese de dano, não podem ser clara e nitidamente determinados. O Estado, quando não diretamente responsável pelo dano verificado, foi, no mínimo, negligente no seu dever de fiscalização ou de atuação, criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associações da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os direitos de 1ª e 2ª gerações ganham novo significado. Os de 1ª geração são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto.

Assim, fica evidenciado o cenário da evolução das conquistas sociais no que tange aos seus direitos e garantias fundamentais, segundo entendimento de Rui Barbosa que cita:

Da leitura do texto constitucional poder-se-iam separar as disposições declaratórias, que estariam a imprimir a existência legal aos direitos reconhecidos, das disposições assecuratórias, que atuariam na proteção desses direitos fundamentais, limitando o poder.[16]

Para tanto, fruto da dinâmica e intensa vida em sociedade, percebeu-se que algumas conquistas no aspecto jurisdicional, representam estruturas fundamentais para o exercício de uma vida digna, atinente a todos os dispositivos normativos na Constituição Federal de 1988 do Estado brasileiro, especialmente no que tange ao princípio da dignidade da pessoa humana, conforme positivado como um dos Princípios Fundamentais (art. 1º, III) e, também, no art. 5º e seguintes da Carta Magna, no que tange ao Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, entende-se pela referida dignidade:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.[17]

No diapasão exposto pelo parágrafo e citação supra, vislumbra-se que para alcançar uma vida com dignidade, mister se faz que em um sistema de leis (Ordenamento Jurídico), sejam garantidos um mínimo de condições que promovam, estabeleçam e mantenham o atendimento às demandas sociais.

Destarte, no que diz respeito à eficácia dos Direitos Fundamentais, há de tornar-se explícito o entendimento doutrinário que os referidos direitos, para quaisquer indivíduos, terão sua eficácia limitada, isto é, terão sua devida aplicação desde que não firam, não ultrapassem o que é garantido aos seus pares, promovendo, assim, sua razoável aplicação.

No intuito de promover melhor entendimento ao que se afirma no parágrafo acima, ilustra-se o entendimento de Alexandre de Moraes,

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou da convivência das liberdades públicas). Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. [18]

Assim, em consonância com o que dispõe o princípio da proporcionalidade, em face de interpretação da Norma Constitucional, o Estado deve buscar a promoção e a igualdade de todos a fim de que seja estabelecido o cumprimento ao que se encontra positivado na Constituição Federal de 1988 no Art. 1º, III (dignidade da pessoa humana), V (pluralismo político) e Parágrafo único (todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição).

Contudo, mesmo no contexto constitucional, que prima pela dignidade da pessoa humana e por uma sociedade plural, o que se percebe é que no convívio social, é comum que os interesses de um indivíduo se contraponham aos interesses de outro, acarretando o surgimento de um conflito de interesses, ou simplesmente uma lide.

1.1 DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1.1 Eficácia jurídica e eficácia social

Em linhas iniciais, como regra geral, todas as normas constitucionais apresentam eficácia que se divide em eficácia jurídica e eficácia social. Isto corrobora com o aspecto jus-histórico de produção de leis, em especial quando se trata de um Estado Democrático de Direito.

Segundo Michel Temer[19], o sistema de eficácia das normas constitucionais, assim se apresenta:

Eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma está apta a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos na medida em que a sua simples edição resulta na revogação de todas as normas anteriores que com ela conflitam.

Faz-se mister aqui, elencar as acepções conceituais de José Afonso da Silva[20], acerca da eficácia das normas constitucionais, que, segundo ele, apresenta-se como eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada, que assim se explica:

Normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata. Situam-se predominantemente entre os elementos orgânicos da constituição. Não necessitam de providência normativa ulterior para a sua aplicação. Criam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, desde logo exigíveis.

Normas constitucionais de eficácia contida são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos dos conceitos gerais nela enunciados.

Normas constitucionais de eficácia limitada regem, até onde possam (por si, ou em coordenação com outras normas constitucionais), situações, comportamentos e atividades na esfera de alcance do princípio. Ou esquema que contêm, especialmente condicionado a atividade dos órgãos do Poder Público e criando situações jurídicas de vantagens ou de vínculo.

1.1.2 Normas definidoras dos direitos fundamentais

No que diz respeito aos direitos fundamentais e sua eficácia, deve-se explicitar o que positiva a Carta da República de 1988 em seu art. 5º, § 1º: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Em sede de acepção hermenêutica concernente à eficácia dos direitos fundamentais, afirma-se que sua aplicação não pode estar condicionada à elaboração de uma norma infraconstitucional que lhe garanta efetividade, conforme lições de Ingo Wolfgang Sarlet, nem, tampouco, estar condicionada aos aspectos discricionários do Poder Público, vez que, os direitos fundamentais elencam os chamados direitos de defesa (que incluem os direitos de liberdade, igualdade, as garantias, bem como parte dos direitos sociais e políticos) e os direitos a prestações[21].

Com o que fora acima narrado, corrobora-se com o advento do Estado Democrático de Direito, em especial o escopo brasileiro com a Carta Magna de 1988, e os institutos legais positivados com o objetivo de afirmarem-se, cada vez mais, os direitos e garantias individuais, coletivos e difusos, em especial, os concernentes ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana, segundo ensinamento de Sarlet e mencionado alhures.

Em sede da eficácia dos direitos fundamentais, Virgílio Afonso da Silva apresenta diferente interpretação à realizada e teorizada por José Afonso da Silva em sua obra aplicabilidade das normas constitucionais, em especial, pelo fato de discutir acerca da aplicabilidade e eficácia da norma, onde aquele (Virgílio Afonso da Silva) narra que se a norma não dispõe de todos os requisitos para a sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de aplicabilidade[22].

A discussão que aqui se apresenta está em conexão com o suporte argumentativo de Michel Temer e de José Luiz Afonso da Silva acerca das normas constitucionais, mas apresenta um aporte diferenciado por tratar de aproximar um escopo eficacial dos direitos fundamentais.

Conforme apresentado alhures, os direitos fundamentais representam os chamados direitos de defesa (que incluem os direitos de liberdade, de igualdade, das garantias, bem como parte dos direitos sociais e políticos) e os direitos a prestações, determinando de tal o que está positivado na Carta da República brasileira em seu art. 5º, § 1º. Isto remonta à ideia de que o referido instituto constitucional determina a produção dos efeitos jurídicos e sociais do que está positivado no rol dos direitos fundamentais. Conforme entendimento de Tércio Sampaio Ferraz Jr. que diz ser eficaz a norma que tem condições fáticas de atuar, por ser adequada em relação á realidade, e que tem condições técnicas de atuar, por estarem presentes os elementos normativos para adequá-la à produção de efeitos concretos[23]. Mister se faz, frente ao instituto da eficácia de normas constitucionais, ilustrar entendimento de Luiz Roberto Barroso, que não utiliza do vocábulo eficácia para tratar dos efeitos da norma, mas, sim, do vocábulo efetividade que seria a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social[24].

No âmbito dos direitos fundamentais, cita-se casos importantes das normas constitucionais de eficácia plena, na lição de José Afonso da Silva[25], que, fruto de sua eficácia plena, seriam tidos como irrestringíveis. Ilustra-se como exemplo, em procedimento hermenêutico ao que positiva a Constituição brasileira, o art. 5º, III, onde o autor supramencionado trata que as liberdades públicas seriam garantidas por normas não-restringíveis.

Neste sentido, lança-se a questão de como proceder em sede hermenêutica de um dado direito fundamental para diagnosticar a possibilidade, ou não, de restringi-los; de não imprimir aos direitos fundamentais sua devida eficácia/efetividade conforme positiva a Carta da República de 1988.

1.1.3 A estrutura normativa dos direitos fundamentais

O estudo dos direitos fundamentais remonta a uma complexa categoria jurídica. Afirma-se tal posição em face dos direitos fundamentais incorporarem os ganhos jurídicos da sociedade civil, no constitucionalismo contemporâneo, principalmente pelo processo jus-histórico vivenciado e que marca o caráter vinculante do valor de tais direitos no ordenamento jurídico, em especial, no caso brasileiro.

Cabe aqui estabelecer, frente a interpretação dos dispositivos constitucionais, a distinção entre direito fundamental, norma jusfundamental e dispositivo jusfundamental, por apresentarem escopo diferenciado em termos de figura jurídica. Com o intuito de estabelecer diferenciação termológica acima mencionada, segue ensinamento de Luiz Fernando Calil de Freitas[26]:

Os dispositivos de direitos fundamentais são, na termologia que se vem empregando, o enunciado semântico ou programa da norma, tal como literalmente expresso no texto constitucional. A norma jusfundamental, por sua vez, coincide com o significado atribuído aos dispositivos de direito fundamental; é o resultado ao qual se chega depois de devidamente interpretado o enunciado semântico do dispositivo que veicula o respectivo comando textual. Já o direito fundamental seria, em acordo com o que vem sendo afirmado, a conclusão final a que se chega depois de realizado todo o percurso metodológico que se inicia com o exame do dispositivo jusfundamental onde consta expressamente o enunciado da norma, passando à consideração do âmbito de norma e, ao fim dessa primeira etapa, chegando-se até o entendimento no sentido de qual seja a norma efetivamente; em uma segunda etapa conhecida a norma jusfundamental em questão, passa ela a ser analisada à luz da teoria interna (limites imanentes), teoria externa (sistema de reservas) ou da teoria dos direitos fundamentais como princípios (Alexy), a fim de que se possa delimitar o conteúdo do direito fundamental e a extensão do âmbito de proteção da norma jusfundamental e verificar se a hipótese fática de que trata o caso concreto nele se incluem e, de conseguinte, goza da proteção jusfundamental; em caso afirmativo, da normalidade produzida pela proteção jusfundamental no caso concreto, obtém-se o direito fundamental em definitivo.

Após a explanação acima realizada, o que se busca neste sentido é frente uma colisão de direitos fundamentais, como deveria se proceder o Estado para a devida operacionalização do direito para promover jurisdição? Assim, necessita-se estabelecer um juízo de ponderação, que em sede de exposição conceitual, afirma Jane Reis Gonçalves Pereira[27]:

O vocábulo ponderação, em sua acepção mais corrente, significa a operação hermenêutica pela qual são contrabalançados bens ou interesses constitucionalmente protegidos que se apresentem em conflito em situações concretas, a fim de determinar, à luz das circunstâncias do caso, em que na medida cada um deles deverá ceder ou, quando seja o caso, qual deverá prevalecer.

Porém, observa-se que na realização do juízo de ponderação no momento de conflito entre normas jusfundamentais, deve-se estabelecer entendimento se, frente ao procedimento hermenêutico, cabe a análise relacionado ao instituto de princípios ou ao instituto de regras. Em breves linhas, explica-se que os princípios se ligam a uma norma que vai apontar objetivo a ser alcançado, uma orientação para a atuação do Estado, determinado os deveres para promover os meios necessários a uma vida humana digna. Costuma ser associado ao mínimo existencial, o qual foi criado porque os direitos individuais e sociais encontram dificuldade quanto à efetividade. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação. Já o instituto das regras elenca proposições normativas aplicáveis sob a forma do tudo ou nada. Os fatos nela previstos que chegarem a ocorrerer, devem incidir, de modo direto e automático, produzindo todos os seus efeitos. Destarte, uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de um caso concreto, caso a mesma seja inválida. Sua aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção.

1.1.4 Distinção hermenêutica entre princípios e regras

A teoria aqui apresentada é conhecida como distinção forte e tem como marco teórico os apontamentos de Ronald Dworkin e Robert Alexy. A referida teoria aplica a distinção entre os institutos acima narrados com base no emprego de critérios lógicos e substanciais, que estão diretamente relacionados aos mecanismos de interpretação destas categorias normativas.

A tese apresentada por Dworkin, as doutrinas positivistas apresentam engano em sede de conceber o Direito como paradigma somente de regras, e, assim, ignoram a importância dos princípios no universo jurisdicional, em especial, na solução dos casos difíceis, os chamados hard cases[28]. Assim, segundo Dworkin, o magistrado, em possibilidade de inexistência de um regramento preciso e adequado para resolver uma questão litigiosa, jamais poderá invocar a discricionariedade, devendo, assim, encontrar recursos tais frente à aplicação das regras e dos princípios jurídicos, para, contudo, a obediência às regras e aos princípios, nestes casos, por apresentarem uma função normativa, disciplinarem condutas e fundamentarem decisões judiciais. Destarte, no procedimento hermenêutico para a aplicação de princípios ou regras, frente a um caso concreto, Dworkin estabelece a seguinte distinção:

As regras são aplicadas de forma disjuntiva (tudo ou nada), enquanto os princípios, por não estabelecerem consequências jurídicas que devem ocorrer automaticamente quando determinadas condições se apresente, incidem de forma diversa. (...) tal fator de dessemelhança admite hipóteses em que quando dois princípios antagônicos se colidem (por apresentarem soluções divergentes para o mesmo caso) a decisão resolutória do conflito pressupõe que um juízo que tenha em consideração o peso relativo de cada um deles. No que tange aos conflitos envolvendo regras, sendo estas normas que não ostentam uma dimensão de peso, não é possível adotar uma decisão em que uma ceda espaço à outra. O afastamento de uma das regras deve ocorrer a partir da aplicação dos tradicionais critérios de solução de antinomias (hierárquico cronológico e da especialidade). Assim, as regras assumem prevalência em razão de estar amparada por um princípio mais importante, que entre em conflito com outro princípio que sustenta a regra oposta[29].

Com o objetivo de ampliar o escopo de entendimento acerca de princípios e regras, segue posicionamento doutrinário de Robert Alexy[30]:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que na medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes[31].

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio

Destarte, o que se percebe nos dois posicionamentos doutrinários acerca da hermenêutica de normas constitucionais, em juízo de ponderação de princípios e regras, é que as formulações de Alexy e Dworkin apresentam similaridade. Porém, apresentam-se diferenças, também, em face da utilização de metodologia diferenciada; enquanto Dworkin busca seu método no common low, Alexy enfatiza sua metodologia com base no sistema romano-germânico. Para Dworkin, o sistem jurídico pode peferir uma regra sustentada por princípios mais importantes. Já na visão de Alexy, um princípio pé deslocado quando, em casos concretos, um outro princípio tem um peso maior; já quanto à regras, estas não se deslocam quando um princípio oposto tem um peso maior que o princípio que a regra se apoia.

Agora, de acordo com o escopo argumentativo do trabalho em tela, em se tratando de hermenêutica de normas fundamentais, os dois autores sustentam teses totalmente diferenciadas. Para Dworkin os direitos fundamentais não podem ser ponderados, tendo fins coletivos, pelo fato de serem tidos como trunfos; já Alexy, teoriza que os princípios podem ser restringidos mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, mesmo em face de fins coletivos.

Objetivando ilustrar as teses acimas mencionadas em sede de juízo de ponderação de normas jusfundamentais, conforme ilustrado na doutrina de Luiz Fernando Calil de Freitas[32], segue institutos jurisprudenciais, em face do princípio da reserva do possível[33], do limite fático aos direitos fundamentais prestacionais[34] e da reserva do possível enquanto limitador dos direitos fundamentais[35].

Destarte, no que diz respeito à eficácia dos Direitos Fundamentais, há de tornar-se explícito o entendimento doutrinário que os referidos direitos, para quaisquer indivíduos, terão sua eficácia limitada, isto é, terão sua devida aplicação desde que não firam, não ultrapassem o que é garantido aos seus pares, promovendo, assim, sua razoável aplicação, que é o que se apresenta no capítulo seguinte.

2 JUÍZO DE PONDERAÇÃO E TORTURA

Frente ao dinamismo apresentado pelo Direito, devido às constantes e salutares argumentações em seus aspectos jurisdicionais, questiona-se o fato de aplicação linear, uniforme, do entendimento da relativização dos princípios relacionados aos direitos fundamentais, em especial ao que positiva art. 5º, III, da CF/88, ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Em liame hermenêutico à aplicação do dispositivo constitucional e de sua relativização, afirmar-se-ia que, em dadas ocasiões, diante de um caso jurídico de difícil aplicação da lei, configurar-se-ia a possibilidade, com todo o embasamento legal, de se torturar alguém.

Diante deste escopo interpretativo, estabelecendo, também, uma conexão com o que determina o princípio da dignidade da pessoa humana, estaria o Direito diante de um retrocesso jurisdicional, pois estaria permitindo, esta prática repelida e condenada pela sociedade, em especial durante vinte e um anos de ditadura militar sofrida pelo Estado brasileiro.

Assim, questiona-se acerca de qual estrutura normativa constitucional (princípio ou regra?) aplica-se ao caso concreto em face de garantir o que positiva o art. 5º, III, da CF/88.

Antes de desenvolver a argumentação frente a questão acima mencionado, torna-se salutar analisar de maneira mais detalhada acerca do instituto da tortura.

2.1 TORTURA BREVE HISTÓRICO

O processo histórico da humanidade narra situações em que a prática de violência tornou-se rotineiro. Durante muito tempo, em especial nos momentos de guerras, era comum a prática de tratamento cruel aos prisioneiros nos campos de batalha e, também, o aspecto desumano que era destinado aos povos conquistados, dominados e escravizados, especialmente pela política Imperialista. Em nome de Deus e do lucro, percebia-se tal comportamento pela Igreja Católica medieval. E o único ponto que aparece como comum em todas essas situações é a desumanização da humanidade. De acordo com Valdir Sznick[36]:

A tortura, em sua evolução histórica, foi empregada, de início, como meio de prova, já que, através da confissão e declarações, se chegava à descoberta da verdade; ainda que fosse um meio cruel, na Idade Meia e na Inquisição, seu papel é de prova no processo, possibilitando com a confissão a descoberta da verdade.

Durante milênios a prática da tortura estava diretamente condicionada à conquista, manutenção e transmissão do poder, que sempre se solidificava nos detentores dos meios para a aplicação e uso a força física.

Temendo a perda do poder político centralizado nas dinastias, muitos governantes aprisionavam seus opositores utilizavam de meios coercitivos (punitivos) para a obtenção de informações durante interrogatórios. Michel Foucault[37] afirmava que o corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade.

Mesmo com o advento de movimentos jus-filosóficos que primavam pelo advento da liberdade e repúdio às práticas cruéis de governos (como o Iluminismo, por exemplo), tais práticas continuaram a serem corriqueiras. Ainda, em sede de tentativas de práticas jurídicas de repúdio á tortura, tem-se a instituição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa, que, mesmo assim, não impediu que tais práticas fossem abolidas.

O limiar com o rompimento das práticas de tortura deu-se na Europa por um decreto de Frederico II da Prússia, de 1740. Com o início do século XX, as práticas de tortura absorvem o mundo através dos regimes antidemocráticos, em caráter especial. Governos ditatoriais (militares) reforçaram a prática da tortura e o Brasil fez parte deste contexto, em especial com a implantação da Ditadura Militar no ano de 1964. Relatórios da Anistia Internacional explicitam a existência da tortura nos países democráticos, incluindo o Brasil. Em relatório publicado pela entidade no ano de 1971, foram apontadas oficialmente mais de mil pessoas vítimas de tortura no Brasil.

Cecília Maria Bouças Coimbra[38] assinala a crueldade das práticas de tortura estabelecidas no Brasil, que, assim, retratavam o caráter de sua diversidade das práticas realizadas ao longo da história da humanidade:

(...) diferentemente da Inquisição, não é ela que absolve e redime o torturado. Ela, inclusive, não é garantia para a manutenção da vida; ao contrário, muitos após terem confessado foram e continuam sendo mortos e desaparecidos. Além disso, tem tido como principal papel o controle social: pelo medo, cala, leva ao torpor, a conivência e omissões.

Mister se faz, também, ilustrar o apontamento de Elio Gaspari, ao descrever a conhecida "aula de tortura", realizada em dezembro de 1969, pelo tenente Ailton Joaquim a oficiais do Exército no quartel da Vila Militar no Rio de Janeiro, momento em que, segundo o autor, a ditadura deixa de se envergonhar de si própria:

Assim, os presos foram enfileirados perto do palco, e o tenente Ailton identificou-os para os convidados. (...) Com a ajuda de slides, mostrou desenhos de diversas modalidades de tortura. Em seguida os presos tiveram de ficar só de cuecas. Um deles receberia choques elétricos: Depois de algumas descargas, o tenente-mestre ensinou que se devem dosar as voltagens de acordo com a duração dos choques. Chegou a recitar algumas relações numéricas, lembrando que o objetivo do interrogador é obter informações e não matar o preso. Outro preso segue o autor, foi submetido ao esmagamento dos dedos com barras de metal. Um terceiro apanhou de palmatória nas mãos e na planta dos pés. O tenente explicava aos "alunos" que "a palmatória é um instrumento com o qual se pode bater num homem horas a fio, com toda a força". Pendurando ainda um outro no pau-de-arara, o tenente explicou - enquanto os soldados demonstravam que essa modalidade de tortura ganhava eficácia quando associada de palmatória ou aplicações de choques elétricos, cuja intensidade aumenta se a pessoa está molhada[39].

2.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A VEDAÇÃO DA PRÁTICA DE TORTURA

Com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 1793, todas as convenções internacionais têm-se mostrado destinadas a pactuar e aplicar direitos concernentes ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, objetivando a positivação de normas jurídicas capazes de atender ao princípio supra, em especial após a Segunda Guerra Mundial com o advento do Holocausto[40], no ano de 1948 a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assim positivava em seu art. 5º: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Em sede de consolidar o entendimento acerca do repúdio e estabelecimento de institutos jurídicos contrários à prática de tortura, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) que assim positiva acerca do referido instituto:

Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano[41].

Porém, grande pertinência foi concedida ao tema, quando em 1984 em uma Convenção da ONU acerca do instituto da tortura, buscando tornar cada vez mais patente o repúdio a tal prática e objetivando, também, criminalizá-la. Assim, em tal conferência foi conceituado tortura da seguinte forma:

Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência[42].

O Estado brasileiro apresenta um histórico negativo no que diz respeito aos impedimentos de práticas de crimes de tortura, sendo que, em nenhuma das Constituições Republicanas fora positivado qualquer instituto normativa impedindo tal prática. Somente a Constituição de 1824 havia positivado acerca do tema em questão e assim dispunha:

 

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis[43].

Observa-se que, após a carta Constitucional de 1824, a Carta de 1967[44], do Estado Ditatorial, não menciona acerca do crime de tortura, positivando que presos teriam a sua dignidade respeitada, assim, evidencia-se, em procedimento hermenêutico, que nada fora explicitados com relação à tortura.

Portanto, com o advento da Convenção Interamericana (que também estabelecera um conceito para tortura) para prevenir e punir a tortura[45], datada de 1985, o Estado brasileiro, observando o caráter crescente do respeito á dignidade da pessoa humana e as legislações de repúdio e criminalização das práticas de tortura, ratificou a referida Convenção Interamericana através do Decreto nº 98.386/89[46].

2.3 EXCEÇÃO À LIMITABILIDADE E RESTRIGIBILIDADE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Em que pense os Direitos Fundamentais em um Estado Democrático de Direito, está intrinsecamente em consonância com a efetividade da obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana e o atendimento e concretização do mínimo existencial (o núcleo sindicável da dignidade da pessoa humana, inclui como proposta para sua concretização os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à Justiça, todos exigíveis judicialmente de forma direta)[47]. Porém, como estrutura basilar do que se discute neste trabalho, torna-se patente a exposição de como proceder-se em escopo hermenêutico no que tange à colisão de direitos fundamentais.

Procedimento doutrinário fora apesentado com os posicionamentos de Dworkin e Alexy acerca de juízo de ponderação na possibilidade de colisão de direitos fundamentais e, assim, aplicar-se-ia uma ideia de relativização dos direitos, do escopo deste trabalho. Destarte, conforme lição de Norberto Bobbio, determinados direitos fundamentais, em especial, o direitos de não ser torturado, conforme dispõe nossa Carta Magna em seu art. 5º, III, são direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou aquela categoria[48].

Em sede de direito comparado, importante é o posicionamento hermenêutico do professor Vieira de Andrade que apresenta a hipótese de que, existindo reserva legal de direito, caberá, em sede de tortura, a possibilidade de praticá-la, caso colida com outro direito fundamental. Explicitando sobre tal teoria, assim argumento Luiz Fernando Calil de Freitas[49]:

Haverá restrições quando o direito fundamental em questão estiver previsto com reserva legal, que à luz da teoria externa do conteúdo dos direitos fundamentais, autoriza a intervenção desvantajosa do legislador. Haverá resoluções abstratas de conflitos quando ausente a reserva legal, a previsão legislativa se caracterize como norma harmonizadora que estabeleça critérios gerais para a futura resolução de casos concretos pelo Judiciário nessa hipótese, a norma ordinária irá apenas aclarar os limites imanentes dos direitos fundamentais, como preconizado pela teoria interna, sem diminuir, comprimir ou de qualquer forma apequenar o conteúdo ou a extensão do Direito. Para o autor luso, os direitos fundamentais estatuídos sem reserva legal como é o caso da Constituição brasileira, do direitos a não ser submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante são irrestringíveis no plano abstrato, somente sendo passíveis de restrições a partir de juízos de ponderação, para solucionar conflitos concretos. Para Vieira de Andrade somente há verdadeira restrição legislativa quando o direito fundamental tenha sido estabelecido com reserva legal; quando houver limitação legislativa de um direito em razão da colisão com outro direito ou bem constitucionalmente protegido sem a norma jusfundamental contemple reserva legal que a tanto autorize já não se tratará de restrição, mas sim de forma de expressar os limites imanentes implícitos na norma jusfundamental. (...) Ocorre que o direito de não sofrer tortura, do ponto de vista lógico-racional, nos estritos limites do sistema jurídico em vigência no Brasil[50], em hipótese alguma colidirá com qualquer outro direito fundamental ou mesmo com qualquer bem comunitário que desfrute da proteção constitucional.

O que se entende então acerca do juízo de ponderação dos direitos fundamentais, em especial no que positiva a Constituição Federal de 1988 no art. 5º, III, no Brasil não admite-se a possibilidade de tortura-se alguém ou sequer promover tratamento desumano ou degradante, efetivando-se, assim, de maneira imediata a eficácia dos direitos fundamentais, conforme dispõe a Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, § 1º, permitindo-se, contudo, que tal dispositivo legal, que até então só havia encontrado positivação na Carta Constitucional de 1824, mencionada alhures, impedisse as práticas de tortura e tratamentos desumanos e degradantes que eram constantes durante a Ditadura Militar vivida pelo Brasil de 1964 e 1985. Assim, em que pese o princípio da dignidade da pessoa humana, vislumbra-se obediência ao que dispõe a Organização das Nações Unidas e a Convenção Interamericana sobre o instituto em tela.

Diante do que aqui exposto, em sede de atenção configura-se como crime a prática de tortura no Brasil, conforme dispõe a Lei nº 9.455/97[51]:

Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:         a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;         b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;         c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.  § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos. § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I - se o crime é cometido por agente público; II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;  II se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) III - se o crime é cometido mediante seqüestro. § 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.  § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.  Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diante do exposto, conforme entendimento, também, de Humberto Ávila, a referida norma jusfundamental deve ser tratada enquanto regra e não enquanto princípio, em face de proteção do núcleo fundamental da dignidade da pessoa humana, evitando desta forma, sua relativização caso colida com outro direito fundamental. Destarte, o direito pátrio, aplica ao referido instituto constitucional, objeto do trabalho em tela, a ideia que se constitua o direito fundamental a não sofrer tratamento desumano ou degradante, em exceção à restringibilidade dos direitos fundamentais.

Cabe aqui, também, mencionar posicionamento de Eros Grau[52], haja vista seus apontamentos em julgamentos no Supremo Tribunal Federal, onde, em dadas ocasiões, valeu-se do procedimento hermenêutico acerca da aplicação de regra ou de princípio no que tange à colisão de direitos fundamentais, onde afirma que a importância dos princípios, especialmente, da sua inserção no plano constitucional resulta a ordenação dos preceitos constitucionais segundo uma estrutura hierarquizada. Destarte, para ele a interpretação das regras contempladas na Constituição é determinada pelos princípios, fazendo com que, corroborando com o pontua Humberto Ávila, valer-se-á do entendimento de regra ao analisarem-se casos concernentes ao art. 5º, III, da Constituição Federal, preservando, todavia, o núcleo essencial, sendo este, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Conforme leciona Juarez Freitas[53], em que pese aplicação de regra ao instituto supra:

Sobre o autor
Roberto Metzker Colares Pacheco

Professor no Centro Universitário Doctum (UniDoctum). Graduado em Ciências Sociais pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro – Fenord (1998). Graduado em Direito pelas Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni – Doctum (2011). Ex-Coordenador Acadêmico nas Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni. Ex-Membro do Conselho Superior Acadêmico e do Núcleo Docente Estruturante (NDE), das Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni. Membro do Núcleo Docente Estruturante do curso de Direito do Centro Universitário Doctum de Teófilo Otoni. Especialista em História do Brasil - Faculdades Simonsen. Especialista em Elaboração e Gestão e Gestão de Projetos Internacionais com Ênfase no Terceiro Setor - PUC MG. Especialista em Ciências Penais e Segurança Pública - Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni - Rede Doctum de Ensino. Especialização em Ciências Forenses: Medicina Legal e Perícia Criminal - Faculdade Supremo. Especialização em Criminologia - Faveni. Especialização em Direito Constitucional - Faveni. Capacitação em Direitos Humanos e Segurança Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!